Resumo: O presente estudo visa analisar a polemica questão da conformidade da legislação brasileira relativa a sobre propriedade industrial, marcas e patentes em consonância ao Acordo TRIPS e a recente decisão do governo brasileiro em decretar a licença compulsória do medicamento Efavirenz produzido pelo laboratório norte-americano Merck Sharp & Dohme, usado no combate ao vírus HIV/AIDS.
Palavras-chave: patente – licença compulsória – medicamentos – AIDS – Acordo TRIPS
Abstract: The present study it aims at to analyze the question of the conformity of relative the Brazilian legislation on industrial property, marks and patents in accord to Agreement TRIPS and recent decision of the Brazilian government in decreeing license compulsive of the Efavirenz medicine produced for the North American laboratory Merck Sharp & Dohme, used in the combat to virus HIV/AIDS.
Keys-words: patent – medicine – Acquired Immunodeficiency Syndrome – TRIPs Agreement
Sumário: Introdução 1. Licenciamento compulsório, Acordo TRIPS e Legislação brasileira 2. Casuística OMC – Patentes sobre a produção e comercialização de medicamentos – Brasil X EUA 3. Casuística licenciamento compulsório – Medicamento anti-retroviral Efavirenz. Considerações finais.
INTRODUÇÃO
As questões relativas as patentes e acessos aos medicamentos essenciais e, especificamente, aos anti-retrovirais utilizados no tratamento da AIDS (Acquired Immunodeficiency Syndrome) é temática constante na agenda da Organização Mundial do Comércio (OMC) e da Organização Mundial de Saúde (OMS).
A concepção das agendas da OMC e OMS são evidentemente diversas. Na OMC destaca-se a visão econômica e na OMS consagra-se a visão consubstanciada em interesses da saúde publica. Destarte, em sede de OMS, o acesso aos medicamentos e a questão das patentes não são consideradas apenas na dimensão econômica. A ótica da discussão na OMS versa, essencialmente, sob o aspecto do acesso universal aos medicamentos, a promoção a saúde e ao bem estar. As perspectivas da OMS se consubstanciam na premissa que consagra o acesso a medicamentos essenciais como parte do direito fundamental à saúde.[1] Destarte, para a OMS, o sistema de patentes deve ser administrado de uma maneira imparcial: protegendo os interesses do proprietário da patente e salvaguardando os princípios de saúde pública. A OMS tem defendido que a garantia ao acesso aos medicamentos essenciais é considerado um direito fundamental e uma das responsabilidades essenciais do Estado, responsabilidade que independe de orientação política ou econômica. [2]
Em sede de OMC, a discussão versa, em essencial, a respeito do Trade Related Aspects of Intelectual Property Rights – TRIPS Agreement (Acordo TRIPS – Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio),a questão das patentes, o impacto da globalização e o acesso aos medicamentos. [3]
A OMC vem sendo palco de inúmeras discussões relativas a patentes e Acordo TRIPS, essencialmente no que tange ao impacto da globalização e o acesso aos medicamentos. [4]
Uma das temáticas suscitadas refere-se ao fato do Acordo TRIPS poder representar uma barreira para o acesso a medicamentos. Segundo dados da OMS, mais de um terço da população mundial não tem acesso regular a medicamentos essenciais. Adicionalmente, nas ultimas décadas tem se evidenciado significativo aumento de gastos nacionais com saúde, impulsionado, essencialmente, pelos altos custos dos medicamentos.[5]
Por outro lado, na visão da competitividade de comércio nem sempre se enquadram legítimas preocupações sanitárias e ambientais.
A visão de competitividade pode inspirar regulamentações internas e acabam por atingir relações comerciais e, regra geral, de forma restritiva e podem configurar barreiras não tarifárias ao comércio internacional.
A conformidade ou não dos regulamentos sobre propriedade industrial, marcas e patentes do Brasil em relação ao Acordo TRIPS é questão freqüentemente discutida. Destarte, a legislação brasileira já foi alvo de “panel” na OMC que resultou em acordo entre os EUA e o Brasil em 2001.Com efeito, dentre as casuísticas no âmbito da OMC, o acordo em questão, a respeito da discussão da conformidade ou não da legislação brasileira de patentes sobre a produção e comercialização de medicamentos, consagrou-se casuística de relevante repercussão internacional, consoante análise subsequente.
A temática volta ao cenário e poderá novamente repercutir de forma incisiva no cenário internacional tendo em vista recente medida do governo brasileiro através do Decreto nº 6108 de 04 de maio de 2007 em determinar a licença compulsória, medida prevista no Acordo de Propriedade Industrial (Trips) da Organização Mundial do Comércio (OMC) e popularmente designada “quebra de patente” do medicamento Efavirenz produzido pelo laboratório norte-americano Merck Sharp & Dohme, detentor da patente, usado no combate ao vírus HIV/AIDS.
Conceitualmente, o licenciamento compulsório consiste no poder de governos obrigarem, em situações excepcionais, que companhias titulares de patentes forneçam segredos industriais ao poder público (ou a outras empresas) por prazos temporários.
Em maio de 2007 o governo brasileiro tomou decisão inédita ao optar pelo licenciamento compulsório (quebra de patente) do Efavirenz – anti-retroviral produzido pelo Laboratório Merck Sharp & Dohme, detentor da patente , usado no combate ao vírus HIV/AIDS.
1. ACORDO SOBRE ASPECTOS DOS DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL RELACIONADOS AO COMÉRCIO – TRIPS
O Acordo TRIPS estabelece os padrões gerais relativos a propriedade intelectual e as obrigações para sua aplicação. Essencialmente, o acordo preconiza que todos os Membros da OMC têm que incorporar os novos padrões na legislação nacional de propriedade intelectual.
Os Membros poderão, mas não estarão obrigados a prover, em sua legislação, proteção mais ampla que a exigida neste Acordo, desde que tal proteção não contrarie as disposições deste Acordo. Determina ademais o Acordo TRIPS:
I) Os Membros determinarão livremente a forma apropriada de implementar as disposições deste Acordo no âmbito de seus respectivos sistema e prática jurídicos (TRIPS, art. 1º , §1);
II) Qualquer invenção, de produto ou de processo, em todos os setores tecnológicos, será patenteável, desde que seja nova, envolva um passo inventivo e seja passível de aplicação industrial (TRIPS, art. 27).
III) A proteção e a observação dos direitos de propriedade intelectual deverão contribuir para a promoção da inovação tecnológica e para a transferência e difusão da tecnologia, em benefício recíproco dos produtores e dos usuários de conhecimentos tecnológicos e de modo que favoreçam o bem estar social e econômico e o equilíbrio de direitos e obrigações (TRIPS, art. 7º );
IV) Os Membros, ao formular ou modificar suas leis e regulamentos, poderão adotar as medidas necessárias para proteger a saúde pública e a nutrição da população, ou para promover o interesse público em setores de importância vital para seu desenvolvimento socioeconômico e tecnológico (TRIPS, art. 8º )[6]
Os litígios entre os Membros estão sujeitos ao mecanismo de resolução de controvérsias da OMC.[7]
1.1 Direitos Patentários
A patente configura-se em um dos mecanismos legais de proteção à propriedade intelectual. Visa, portanto, garantir ao inventor os direitos de reprodução e comercialização de seu invento.
Em consonância ao art. 27§1 do Acordo TRIPS, as patentes serão disponíveis e os direitos patentários serão usufruíveis sem discriminação quanto ao local de invenção, quanto a seu setor tecnológico e quanto ao fato de os bens serem importados ou produzidos localmente; e no impedimento de que terceiros usassem o processo ou produto sem o consentimento do titular.
A patente conferirá a seu titular os seguintes direitos exclusivos:
(a) nas hipóteses do objeto da patente for um produto, confere-se ao titular o direito de evitar que terceiros sem seu consentimento produzam, usem, coloquem a venda, vendam, ou importem com esses propósitos aqueles bens;
(b) nas hipóteses do objeto da patente ser um processo, o de evitar que terceiros sem seu consentimento usem o processo e usem, coloquem a venda, vendam, ou importem com esses propósitos pelo menos o produto obtido diretamente por aquele processo[8]
A Declaração de Doha (2001) reafirmou o direito dos Membros da OMC de utilizar, ao máximo, as disposições do Acordo TRIPS, que prevêem uma flexibilidade com o fim de proteger a saúde pública e em particular para promover o acesso aos medicamentos para todos.
1.2 Licenciamento compulsório da patente sob a égide do acordo TRIPS
O art. 31 do Acordo TRIPS, permite o licenciamento compulsório, mediante o preenchimento de certas condições. [9] Nos termos do Acordo TRIPS, quando a legislação de um Membro permite outro uso do objeto da patente sem a autorização de seu titular, inclusive o uso pelo Governo ou por terceiros autorizados pelo governo, as seguintes disposições serão respeitadas.
Primeiramente, a autorização desse uso será considerada com base no seu mérito individual. Ademais, o uso só poderá ser permitido se o usuário proposto tiver previamente buscado obter autorização do titular, em termos e condições comerciais razoáveis, e que esses esforços não tenham sido bem sucedidos num prazo razoável. A condição sub exame pode ser dispensada por um Membro em caso de emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência ou em casos de uso público não-comercial. No caso de uso público não-comercial, quando o Governo ou o contratante sabe ou tem base demonstrável para saber, sem proceder a uma busca, que uma patente vigente é ou será usada pelo ou para o Governo, o titular será prontamente informado;
O alcance e a duração desse uso será restrito ao objetivo para o qual foi autorizado e, no caso de tecnologia de semicondutores, será apenas para uso público não-comercial ou para remediar um procedimento determinado como sendo anticompetitivo ou desleal após um processo administrativo ou judicial.
Adicionalmente, se evidenciam as seguintes condições:
I) o uso será não-exclusivo e nem transferível, exceto conjuntamente com a empresa ou parte da empresa que dele usufruir;
II) o uso será autorizado predominantemente para suprir o mercado interno do Membro que autorizou;
III) sem prejuízo da proteção adequada dos legítimos interesses das pessoas autorizadas, a autorização desse uso poderá ser terminada se e quando as circunstâncias que o propiciaram deixarem de existir e se for improvável que venham a existir novamente [10];
IV) o titular dos direitos patentários será adequadamente remunerado nas circunstâncias de cada uso, levando-se em conta o valor econômico da autorização;
V) a validade legal de qualquer decisão relativa à autorização desse uso estará sujeita a recurso judicial ou outro recurso independente junto a uma autoridade claramente superior naquele Membro;
VI) qualquer decisão sobre a remuneração concedida com relação a esse uso estará sujeita a recurso judicial ou outro recurso independente junto a uma autoridade claramente superior naquele Membro;
Infere-se, finalmente, que quando esse uso é autorizado para permitir a exploração de uma patente (“a segunda patente”) que não pode ser explorada sem violar outra patente (“a primeira patente”), as seguintes condições adicionais serão aplicadas:
I) a invenção identificada na segunda patente envolverá um avanço técnico importante de considerável significado econômico em relação à invenção identificada na primeira patente; II) o titular da primeira patente estará habilitado a receber uma licença cruzada, em termos razoáveis, para usar a invenção identificada na segunda patente; e
III) o uso autorizado com relação à primeira patente será não transferível, exceto com a transferência da segunda patente.[11]
Os EUA e Canadá durante décadas se utilizaram freqüentemente de licenciamento compulsório em diversos campos tecnológicos, inclusive atinentes a medicamentos. [12]
2. ACORDO TRIPS E A NORMATIVA BRASILEIRA
A conformidade ou não conformidade dos regulamentos sobre propriedade intelectual e industrial, marcas e patentes do Brasil em relação ao Acordo TRIPS (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio) é questão freqüentemente discutida em âmbito mundial.
Os regulamentos sobre propriedade industrial, marcas e patentes no Brasil são considerados em conformidade com o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio – TRIPS no âmbito da OMC, Anexo 1C do Tratado de Marrakesh, ratificado pelo Brasil através do Decreto nº 1.355 de 30 de dezembro de 1994 incorporou a Ata final da Rodada Uruguai das Negociações Comerciais Multilaterais do GATT.[13]
Em sua condição de país em desenvolvimento, o Brasil se beneficiou de um período de transição para aplicar alguns dos compromissos previstos nos diversos Acordos da OMC. Sendo assim inobstante ratificação ocorrida em 1994, O Brasil efetivamente se obrigou ao Acordo TRIPS a partir de 1º de janeiro de 2000, data em que expirou o prazo de adequação aos países em desenvolvimento[14].
Desde 1996 a proteção dos direitos de propriedade intelectual se fomenta mediante a promulgação de novas leis e a intensificação das medidas destinadas a garantir sua observância. Em 14 de maio de 1996, o Brasil promulgou uma legislação específica sobre a matéria, a Lei nº 9.279/96, denominada de “Lei da Propriedade Industrial”.
Posteriormente, o Decreto nº 3.201/99, “Decreto sobre Licença Compulsória nos Casos de Emergência Nacional e de Interesse Público” veio normatizar sobre a concessão, de ofício, de licença compulsória nos casos de emergência nacional e de interesse público de que trata o art. 71 da Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996.
Fundamentalmente, nesse contexto, outras legislações anteriores a 1999 merecem destaque: a Lei de Programa de Computador nº 9.609/98; da Lei de Direitos Autorais nº 9.610/98; da Lei de Cultivares nº 9.456/97; a Lei de Biossegurança nº 8.974/95[15], além de iniciativas de regulamentação dos recursos genéticos no país[16]. A respeito de patentes e desenho industrial há vários atos normativos; quanto a Patentes, conforme já mencionado, tem-se o Decreto nº 3.201/99 e o Decreto nº 2.553/98; em Marcas e Indicação Geográfica também há vários atos normativos; Leis sobre Transferência de Tecnologia, além dos variados projetos[17] que tramitam no Congresso.[18]
Em 14 de fevereiro de 2001 foi convertida em Lei nº 10.196 – a polêmica Medida Provisória nº 2.105-15[19] – que alterou e acresceu dispositivos à Lei de Propriedade Industrial. Desde a promulgação da Lei 10.196/01, acirram-se os debates em torno da temática, suscitando inúmeras discussões por parte dos EUA e da União Européia. [20]
Inobstante tais considerações, a legislação brasileira vem sendo considerada em consonância ao acordo TRIPS da OMC, tendo sido, inclusive, objeto de “panel” na OMC em 2001, consoante análise a seguir.
3. Casuística OMC – Patentes sobre a produção e comercialização de medicamentos – Brasil X EUA (2000)
Em dezembro de 2000 os EUA obtiveram junto a OMC uma rodada de consultas, que culminou, em 8 de janeiro de 2001, em um pedido de “panel” a OMC para discutir a questão do licenciamento compulsório, previsto nos artigos 68 e 71 Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996 (Lei de Propriedade Industrial) – regulamentada pelo Decreto n. 3.201, de seis de outubro de 1999, que dispõe sobre a concessão, de ofício, de licença compulsória nos casos de emergência nacional e de interesse público de que trata o art. 71da Lei no 9.279, de 14 de maio de 1996, que preconiza, in verbis:
“Art. 71. Nos casos de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do Poder Executivo Federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa necessidade, poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular. Parágrafo único. O ato de concessão da licença estabelecerá seu prazo de vigência e a possibilidade de prorrogação.”
E ainda nos termos do artigo 68 da mesma normativa, a licença compulsória pode ser concedida sempre que a empresa dona da patente aplicar preços abusivos. A exegese que emana das normativas retro-mencionadas, permite que, em casos de emergência nacional e interesse público, faculta-se a concessão de licença compulsória. Inobstante tal medida, o laboratório farmacêutico, detentor da patente, receberia, a título de royalties um quantum considerado justo pelo Brasil. A concessão de licença compulsória é comumente denominada de “quebra de patente”, pelos laboratórios internacionais.
Para os EUA, o dispositivo em questão feria frontalmente regras internacionais e não garantia que uma patente seria respeitada.
No primeiro semestre de 2000 foram realizadas consultas entre os dois países.[21] Os reclamantes embasavam suas consultas nos artigos 27 e 28 do TRIPS[22], que dizem respeito, respectivamente, à matéria patenteável e aos direitos conferidos. Em síntese preconiza o art. 27 do TRIPS que qualquer invenção, de produto ou de processo, em todos os setores tecnológicos, será patenteável, desde que seja nova, envolva um passo inventivo e seja passível de aplicação industrial.
Por força dos parágrafos segundo e terceiro do art. 27 do TRIPS, é facultado aos Membros considerar como não patenteáveis :
a) invenções cuja exploração em seu território seja necessário evitar para proteger a ordem pública ou a moralidade, inclusive para proteger a vida ou a saúde humana, animal ou vegetal ou para evitar sérios prejuízos ao meio ambiente, desde que esta determinação não seja feita apenas por que a exploração é proibida por sua legislação;
b) métodos diagnósticos, terapêuticos e cirúrgicos para o tratamento de seres humanos ou de animais;
c) plantas e animais, exceto microorganismos e processos essencialmente biológicos para a produção de plantas ou animais, excetuando-se os processos não-biológicos e microbiológicos. Não obstante, os Membros concederão proteção a variedades vegetais, seja por meio de patentes, seja por meio de um sistema sui generis eficaz, seja por uma combinação de ambos.[23]
OS EUA questionavam a lei brasileira em diversos aspectos. Primeiramente, face à exigência de que os detentores das patentes comecem a produzir seus medicamentos no Brasil num prazo de três anos. Caso a determinação não seja cumprida, a empresa perde sua proteção de patente.
Sustentavam os reclamantes que os dispositivos em questão do Acordo Multilateral estariam em desacordo com a legislação brasileira, principalmente no tocante ao art. 68.1.I da Lei de Propriedade Intelectual, que dispõe sobre licença compulsória, em especial a respeito da possibilidade de licenciamento compulsório quando o objeto de matéria das patentes não for produzido em território brasileiro[24]. Ademais, concomitantemente, fundamentava-se a reclamação no art. 3 do GATT 94, que dispõe sobre o princípio do tratamento nacional[25].
Os EUA exigiam supressão da regra que permite o licenciamento obrigatório de produtos em casos de ‘emergência nacional’ ou de ‘interesse público’na temeridade de que o Brasil proceda à aplicabilidade desta norma no caso de preços abusivos de remédios (por considerar caso de interesse público), por considerar abusivas as exigências de venda da patente para outras empresas em caso de emergência nacional, e a obrigação de produzir os medicamentos no país para garantir a patente.
A preocupação dos reclamantes centrava em especial à obrigatoriedade dos titulares das patentes a transmitir as informações necessárias e suficientes à efetiva reprodução do objeto protegido, supervisão de montagem e os demais aspectos técnicos e comerciais aplicável ao caso em espécie. Atacando a forma genérica da redação legal, pretendiam que a legislação brasileira restringisse o conceito de emergência nacional, para que a indústria farmacêutica soubesse exatamente quando o governo poderá exigir a venda dos segredos de fabricação de medicamentos.
Em contrapartida, o Brasil alegava que os Estados Unidos estariam assumindo atitude excessivamente protecionista, no intuito de proteger os lucros de sua indústria farmacêutica, postura que prejudicaria os esforços do governo brasileiro – em especial na sua campanha contra a AIDS, que se baseia na produção de remédios genéricos mais baratos.[26]
Defendia o Brasil que a legislação atendia aos interesse do país, ao evitar que haja desabastecimento de remédios ou prática de preços abusivos no setor, considerando que a Lei de Patentes está em conformidade às regras da OMC. O princípio geral do licenciamento compulsório faz parte dos acordos internacionais sobre o assunto.
O art. 31do Acordo TRIPS anteriormente analisado, permite o licenciamento compulsório, mediante o preenchimento de certas condições inobstante reiteradas críticas em torno das expressões genéricas que abrem margem a variadas interpretações pelas partes, como por exemplo ‘condições comerciais razoáveis’, ‘emergência nacional’, ‘adequadamente remunerado’. O dispositivo em questão visa garantir o fornecimento ao mercado de produtos essenciais em casos extremos, nos quais as companhias donas das patentes não conseguem suprir o mercado, não fabriquem o produto ou se neguem a licenciá-lo.
Em relação ao Art. 68, §1, I da Lei brasileira, o Brasil sustentava que os Estados Unidos estariam interpretando de forma errônea visto estarem procedendo à leitura do inciso deslocado do caput do artigo. A leitura combinada dos dois dispositivos demonstraria não existe incompatibilidade com o acordo de TRIPS.
Em junho de 2001, foi anunciado, em Genebra um acordo entre Brasil e EUA a respeito da discussão da lei de patentes sobre a produção e comercialização de medicamentos. [27]
Os Estados Unidos decidiram retirar as queixas no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) desistindo do pedido de investigação contra o artigo 68 da Lei de Propriedade Industrial do Brasil. Em contrapartida, o Brasil se compromete a comunicar com antecedência qualquer intenção de ‘quebra de patente’, de concessão de licença compulsória. [28]
4. LICENÇA COMPULSÓRIA, AIDS E MEDICAMENTOS ANTI-RETROVIRAIS
A epidemia da AIDS consagrou-se a grande praga do século XX e ensejou grandes preocupações, a nível global, sobre doenças emergentes e re-emergentes. [29]
Uma das questões refere-se exatamente ao acesso aos medicamentos principalmente pela população de paises em desenvolvimento ou subdesenvolvidos vis a vis a proteção e direitos patentários. E nestas questões, os interesses econômicos e os direitos de proteção da propriedade industrial poderão ser suplantados por questões de cunho social. No caso específico das patentes de medicamentos para o tratamento de AIDS, o aspecto social de maior impacto refere-se a dizimação de povos que não tem recursos tecnológicos para produção do medicamento e nem recursos financeiros suficientes para arcar com os custos da medicação.[30]
A PROBLEMATICA DA AIDS NO BRASIL E O PROGRAMA NACIONAL DST/AIDS
No Brasil, já foram identificados cerca de 433 mil casos de Aids. O primeiro caso foi identificado em 1980 e em 1982 foram realizados os primeiros diagnósticos de AIDS no Brasil.
Em 1986 o Ministério da Saúde criou o Programa Nacional DST/AIDS com a missão de reduzir a incidência de doenças sexualmente transmissíveis e implementar medidas face ä nova epidemia.[31]
Em 1996, a Lei 9.313 preconiza e determina a distribuição gratuita de medicamentos para tratamento de AIDS, cumprindo diretrizes constantes da Constituição Federal de 1988 que estatui, no art. 196, verbis:
“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. (BRASIL, 2001).
O programa anti-AIDS brasileiro vem sendo considerado um dos melhores do mundo e atende milhares de infectados que recebem os medicamentos gratuitamente através do SUS (sistema Único de Saúde).[32]
Consoante remissão anterior, em maio de 2007 o governo brasileiro tomou decisão inédita ao optar pelo licenciamento compulsório (quebra de patente) do Efavirenz – anti-retroviral produzido pelo Laboratório Merck Sharp & Dohme, detentor da patente , usado no combate ao vírus HIV/AIDS.
A medida decretada pelo governo brasileiro é inédita na América Latina, consagrando-se, portanto, a primeira vez que o Brasil licencia um remédio protegido por patente. Todavia, a questão do da necessidade de licenciamento compulsório dos medicamentos Anti-AIDS vem sendo suscitada, especificamente, desde 2001.
Com efeito, em 2001 e 2003 o governo brasileiro já havia ameaçado aplicar a licença compulsória relativas aos medicamentos Nelfinavir, do laboratório Roche e ao Kaletra, do laboratório Abbot.
Além do Brasil, Tailândia, Moçambique, Malásia e Indonésia já se socorreram do mecanismo preconizado no Acordo TRIPS da OMC e procederam ao licenciamento compulsório de patentes de medicamentos. O Canadá, em 2001, aplicou licença compulsória ao remédio Cipro (contra o antraz, na época temido como possível arma terrorista), da Bayer
A LICENCA COMPULSORIA DO MEDICAMENTO ANTI-RETROVIRAL EFAVIRENZ
O Brasil tentou desde novembro de 2006 negociar com o laboratório Merck a redução do preço do Efavirenz de US$ 1,59 para US$ 0,65 por comprimido de 600mg. Foram evidenciados em 2006 que cerca de 200 mil soropositivos atendidos pelo Programa Nacional DST-AIDS, do Ministério da Saúde e estimativas do Ministério da Saúde demonstravam que cerca de 75 mil pacientes com Aids necessitariam de Efavirenz em 2007. Inobstante reiteradas tratativas, as tentativas de negociação se restaram infrutíferas. Fracassada a tentativa de acordo com o laboratório Merck, o Ministério da Saúde declarou o medicamento de “interesse público” e anunciou a intenção de comprar a versão genérica da Índia por um preço de US$ 0,45 por comprimido. [33]
Neste cenário, o governo brasileiro resolveu optar pela licença compulsória para possibilitar a aquisição de medicamentos genéricos pré-qualificados pela OMS (Organização Mundial da Saúde). de fabricantes da Índia,[34]
A decisão do governo brasileira foi tomada visando manter a excelência do programa anti-AIDS e garantir o atendimento e fornecimento de medicamentos aos doentes.
Com efeito, o governo brasileiro considerou que a medida visa queda nos índices de mortalidade dos infectados, interesse que se suplanta, evidentemente, os interesses econômicos do laboratório norte-americano. [35]
A decisão reduzirá em cerca de 72% o preço pago pelo Efavirenz e estima-se economia de US$ 30 milhões por ano para o governo brasileiro e US$ 237 milhões até 2012, valores que serão reinvestidos e garantirão a sustentabilidade do programa anti-Aids brasileiro no longo prazo.no programa DST/Aids.[36]
Atente-se, contudo, que o governo brasileiro continuará destinando 1,5% sobre o gasto com a importação do similar genérico de royalties do medicamento Efavirenz ao Merck Sharp & Dohme.
Especialistas vem defendendo que a licença compulsória é inevitável para a sustentabilidade do Programa DST/AIDS e que o Brasil deve defender a autonomia nacional e da ampliação do acesso à prevenção e ao tratamento no país. Prepondera o entendimento que a decisão do governo brasileiro em proceder a licença compulsória do Efavirenz bem como de outros medicamentos anti-retovirais, como o remédio anti-Aids Kaletra, do laboratório Abbott, tem perfeita base legal e não contraria o direito à propriedade intelectual.
CONSIDERAÇOES FINAIS
Consoante análises precedentes, a licença compulsória é medida prevista no Acordo de Propriedade Industrial (Trips) da Organização Mundial do Comércio (OMC).
No direito brasileiro, a questão do licenciamento compulsório, previsto nos artigos 68 e 71 Lei nº 9.279/96 regulamentada pelo Decreto n. 3.201/99, de seis de outubro de 1999 ampara a concessão, de ofício, de licença compulsória nos casos de emergência nacional e de interesse público de que trata o art. 71 da Lei no 9.279/96. Efetivamente, o princípio geral do licenciamento compulsório é medida que pode ser suscitada em casos de um medicamento ser considerado de “interesse público”, como foi propugnado pelo Ministério da Saúde no caso do medicamento Efavirenz.
Todavia, inobstante amparo normativo e respectivo pagamento de royalties ao laboratório Merck, detentor da patente, é possível, que ao iniciar as transações efetivas de compra do medicamento em questão com as empresas indianas, o Brasil venha a enfrentar nova polemica, inclusive em sede de OMC e possíveis, embora improváveis, retaliações d a industria farmacêutica e em especial do laboratório Merck.
Autora do Curso de Direito Marítimo, vol I e II (Editora Manole). Mestre pela UNESP e Doutora pela USP. Professora do Curso de Mestrado em Direito e Coordenadora do curso de pós graduação em Direito Marítimo e Portuário da Universidade Catolica de Santos – UNISANTOS
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