Direito material e processo. O direito de ação no ordenamento pátrio

Resumo: O presente estudo busca confrontar os estudos doutrinários antagônicos de dois de nossos renomados processualistas, ao abordar o sempre polêmico tema do conceito de ação em nosso ordenamento, ao mesmo tempo conduzindo à prevalência da teoria da asserção no Direito pátrio.

Abstract: The present study confront antagonic doctrinal studies of two of our renowned processual law experts, dealing with the always controversial theme of the concept of action in our land, at the same time leading to the prevalence of the della propettazione theory.

Palavras-Chave: AÇÃO. PROCESSO. DIREITO MATERIAL. DUALISMO. TEORIA DA ASSERÇÃO

Keywords: PROCESSUAL ACTION. PROCESS. MATERIAL LAW. DUALISM. DELLA PROPETTAZIONE THEORY.

Sumário: Introdução. 1. Ação “material” versus ação “processual”. 2. A teoria da asserção no ordenamento pátrio. Conclusão. Referências.

Introdução

O conceito dualista do ordenamento jurídico, com sua divisão clássica entre direito material e processual, ainda que hodiernamente conte com ampla aceitação e se cuide, a rigor, da única teoria capaz de equacionar as relações entre as normas jurídicas substanciais e processuais, ainda é foco de divergências doutrinárias no que toca ao conceito de ação no Direito pátrio. O presente estudo confronta os estudos de dois de nossos renomados processualistas, Ovídio Baptista da Silva e Carlos Alvaro de Oliveira (contidos na obra Polêmica sobre a ação – a tutela jurisdicional na perspectiva das relações entre direito e processo. MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006), buscando equacionar a prevalência da teoria da asserção em nosso ordenamento.

1. Ação “material” versus ação “processual”

Ovídio Baptista propõe a dicotomia do conceito de ação, em material e processual, visando ao preenchimento do verdadeiro “espaço vazio”, resultante da aplicação da teoria eclética de Liebman – a rigor adotada pelo Direito pátrio –, entre a atividade de peticionar em Juízo (exercício do direito constitucional, genérico, de ação – para Ovídio, ação processual) e a efetiva prestação da atividade jurisdicional pelo magistrado. Com efeito, se, conforme a teoria de Liebman, a análise das condições da ação pelo juiz não constitui atividade propriamente jurisdicional, restaria um hiato entre a petição inicial e o despacho pelo qual se consideram presentes as condições da ação.

Para Ovídio Baptista, a ação material representaria a efetiva pretensão decorrente de um dado direito subjetivo, pretensão à satisfação da situação jurídica conferida por tal direito subjetivo em face de outrem, ao passo que a ação processual retrataria a pretensão, do particular perante o Estado, à prestação da tutela judicial. Assim, ao passo que a existência da ação material imprescinde da exigibilidade do direito subjetivo em que se funda – poderá haver direito subjetivo sem a correspondente ação, porque ainda não vencida a prestação ou porque já verificada a prescrição –, a ação processual existirá sempre, mesmo à míngua do direito invocado em Juízo, ao mesmo tempo em que esta última não se restringirá à esfera jurídica do autor, mas a ela igualmente fará jus o demandado em Juízo – como se vê, na justificativa trazida por Ovídio, da exigência de concordância do réu para desistência do feito pelo autor.

Inegável a meu ver que parte da controvérsia reside em saber se as condições da ação devem ser aferidas (1) segundo a afirmativa feita pelo autor na petição inicial (in statu assertionis) ou (2) conforme seu elo efetivo com “a situação de fato contrária ao direito”, ou seja, com o objeto litigioso do processo, que vier a ser evidenciado pelas provas produzidas pelas partes (WATANABE, 2000, p. 80).

Como ensina Lopes da Costa, podem-se dividir em duas técnicas a fixação de quando se estará a analisar as condições da ação ou quando, ultrapassada esta fase, já se terá adentrado no mérito do processo[1]. Tratam-se aí das teorias (1) da apresentação e (2) da asserção. Demonstraremos a seguir que apenas essa última é compatível com o ordenamento pátrio.

2. A teoria da asserção no ordenamento pátrio

Para os adeptos daquela primeira teoria, não basta que o demandante descreva formalmente uma situação em que estejam presentes as condições da ação. É preciso que elas existam realmente. As condições da ação devem ser aferidas segundo o que vier a ser afirmado e comprovado no processo após o exame das provas, e não apenas levando-se em consideração a afirmativa feita pelo autor na petição inicial (in statu assertionis). Sob certo aspecto, aqui se situa a teoria adotada por Ovídio Baptista, para quem o enfrentamento das condições da ação já constitui apreciação de mérito.

Parece-me, com a devida vênia, que se trata de posição equivocada e que não se coaduna ao sistema processual pátrio, pois exigir a demonstração das “condições da ação” no caso concreto significa, em termos práticos, afirmar que só tem ação quem tem direito material, no que se incorre em petição de princípio. A propósito, o escólio de Alexandre Freitas Câmara:

“Pense-se, por exemplo, na demanda proposta por quem se diz credor do réu. Em se provando, no curso do processo, que o demandante não é titular do crédito, a teoria da asserção não terá dúvidas em afirmar que a hipótese é de improcedência do pedido. Como se comportará a outra teoria? Provando-se que o autor não é credor do réu, deverá o juiz julgar seu pedido improcedente ou considerá-lo ‘carecedor de ação’? Ao afirmar que o caso seria de improcedência do pedido, estariam os defensores admitindo o julgamento da pretensão de quem não demonstrou sua legitimidade, em caso contrário, se chegaria à conclusão de que só preenche as ‘condições da ação’ quem fizer jus a um pronunciamento judicial” (2002, p. 114-115).

Com efeito, a análise das condições da ação preconizada na tese defendida por Ovídio Baptista implica em verdadeiro julgamento de mérito, fazendo com que perca qualquer sentido a distinção entre as duas categorias.

De outro lado, pela teoria da asserção (ou teoria della propettazione), o juízo preliminar de admissibilidade do exame do mérito se faz mediante o simples confronto entre a afirmativa feita na inicial pelo autor, considerada in statu assertionis, e as condições da ação. Trata-se, assim, de um juízo formulado com base em cognição não exauriente da controvérsia que, desde logo, pode antecipar o insucesso do pleito deduzido pelo demandante[2].

No entender de Kazuo Watanabe, a aferição das condições da ação in statu assertionis é a única compatível com a teoria do direito abstrato de agir[3]. Diz-se isso pelo seguinte: Se essas condições, que são o ponto de contato entre a ação e o direito material, forem aferidas de forma exauriente, até mesmo por análise de provas, estar-se-á, em verdade, defendendo a ideia que pertencem ao mérito e, via de consequência, que não possuem natureza processual[4].

Em resumo, se a análise das condições da ação é feita no plano hipotético, com base apenas nas assertivas feitas pelo autor na inicial, trata-se de cognição superficial, que é incompatível com o julgamento de mérito (asserção). Todavia, se o Magistrado realizar cognição exauriente terá, na verdade, proferido juízo sobre o mérito da questão e a solução a ser adotada só poderá ser a extinção do processo nos termos do art. 269, do CPC (apresentação).

Forçoso concluir que a utilização de outra técnica de análise das condições da ação, que não a teoria da asserção, implica em confusão entre condições da ação e mérito, categorias processuais distintas, colocando-se em xeque o fato de que, sempre que for possível antever com segurança que o demandante não terá direito a obter o provimento de mérito porque uma das condições lhe falta, é dever do juiz extinguir o processo desde logo, fazendo-o na primeira oportunidade, pois é inconveniente ao Estado e à sociedade o dispêndio de recursos financeiros, perda de tempo e assoberbamento dos órgãos judiciários em detrimento do serviço, sem qualquer expectativa de um resultado prático que o justifique[5]. Como bem apontado por Rodrigo Klippel:

“Ao vincular a existência da ação e a análise do mérito à verificação das condições da ação – possibilidade jurídica do pedido, legitimidade processual e interesse processual –, acabou a lei processual por diminuir a possibilidade de sujeição do réu ao autor, qualificando-a e diminuindo o desequilíbrio natural que há entre eles pela própria estrutura dialética e progressiva do procedimento.

“Este – o réu – não deve se sujeitar a qualquer demanda do autor, mas somente àquelas um mínimo qualificadas pela aparência de pertinência a uma relação de direito material, que se queira afirmar ou negar. São as condições da ação, de certa forma, um freio ao direito de ação (que não pode ser moeda especulativa) e um modo de atenuar o desequilíbrio inicial entre os dois pólos. Se a sujeição se verificar em uma demanda esdrúxula, inviável, sem um mínimo de condições de prosperar, deve logo ser liquidada (CPC 267, VI)” (2007, p. 250 – destaques nossos).

Conclusão

Carlos Alvaro de Oliveira traça num primeiro momento pontos básicos de contato com o escólio de Ovídio Baptista, sobretudo ao asseverar que “a tutela jurisdicional atua… em nível qualitativo diverso ao do direito material”, e, parafraseando Eros Grau, que a interpretação do direito pelo juiz “tem caráter constitutivo – não meramente declaratório” (2006, p. 290). Ao longo de sua consideração, contudo, acaba por confrontar a tese de Ovídio Baptista com “as críticas usualmente endereçadas à teoria da ação como direito concreto” (2006, p. 290), dentre as quais, acredito, inclui-se a acima exposta.

Alvaro de Oliveira, nada obstante, prende-se à argumentação da inexistência de um liame conceitual entre a chamada “ação material” (“eficácia do direito material quando desatendido”) e a ação no plano processual. Justifica com a assertiva de que “a improcedência do direito material invocado não priva o autor do exercício do direito subjetivo público de pedir o exercício da prestação jurisdicional” (2006, p. 292), no que, a meu ver, debela a tese de Pontes de Miranda, mas em nada afeta a construção de Ovídio Baptista, para quem a ação material e a processual situam-se igualmente em planos distintos, e “o Estado presta igualmente tutela jurisdicional quando declara impossível este socorro” (2006, p. 26), seja pela ausência de condições da ação, seja pela improcedência da pretensão exordial.

Por fim, a crítica que tece Alvaro de Oliveira contra a construção por meio da qual Ovídio Baptista distingue três momentos distintos do direito material – pretensão, cumprimento espontâneo e ação de direito material –, para ao final afirmar que “se o Estado impede-me de agir privadamente, então ele próprio me há de dar o sucedâneo jurisdicional, de modo a que meu direito se realize por meio do Juiz, cumprindo ele aquela mesma atividade (ação) que o titular do direito poderia ter realizado privadamente” (2006, p. 25), não me parece atender a critérios suficientes de cientificidade, porquanto meramente se baseia na alegação vaga e imprecisa de tal entendimento corresponderia a “empobrecer o direito processual e lhe retirar meios importantes para a necessária efetividade” (2006, p. 293).

De resto, acredito que o ponto essencial da crítica de Alvaro de Oliveira reside em que – aspecto em que suas colocações reputo irretocáveis – “as teorias materiais acerca do objeto litigioso… não levam em conta que neste não se discute a respeito de um direito realmente existente, mas apenas sobre um direito afirmado” (2006, p. 294 – grifei), no que, pelas razões aqui já expostas, cai por terra, a meu ver, a abordagem de Ovídio Baptista.

Referências
ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. “Direito material, processo e tutela jurisdicional” In Polêmica sobre a ação – a tutela jurisdicional na perspectiva das relações entre direito e processo. MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 285-319.
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil, vol. 1, 7ª ed., Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2002.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, v. II, 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2003.
KLIPPEL, Rodrigo. Teoria geral do processo civil, 1ª ed., Niterói: Impetus, 2007.
SILVA, Ovídio A. Baptista da. “Direito subjetivo, pretensão de direito material e ação”. In Polêmica sobre a ação – a tutela jurisdicional na perspectiva das relações entre direito e processo. MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 15-39.
WATANABE, Kazuo. Da cognição no Processo Civil, Campinas: Bookseller, 2000.
YARSHELL, Luiz Flávio. Tutela jurisdicional, São Paulo: Atlas, 1999.

Notas:
[1] Para o autor, referidas técnicas podem ser divididas entre aquelas que: “1) Encartam as condições da ação como categoria cuja existência deve ser confirmada no processo por meio de cognição exauriente, admitindo-se prova a seu respeito; 2) Entendem que as condições da ação devem ser analisadas em hipótese, de forma aparente, de acordo com o conteúdo postulado na inicial, provisoriamente admitidas como verdadeiras, até que se analise a fundo o objeto litigioso, em sentença de mérito” (Alfredo Araújo Lopes da Costa, “A carência de ação, especialmente com relação à legitimação para a causa”, In: Revista de direito processual civil, v. 3, São Paulo: Saraiva, 1962, p. 15, apud, Rodrigo Klippel, Op. cit., p. 230).

[2] Luiz Flávio Yarshell. Tutela jurisdicional, São Paulo: Atlas, 1999, p. 103

[3] Veja-se um dos exemplos apresentado por Kazuo Watanabe para defender esta posição: “Considere-se uma ação reivindicatória movida por “A”, em seu nome, dizendo que o imóvel “X”, de propriedade de seu compadre, foi invadido por “B”. O juiz indeferirá desde logo a inicial por ilegitimidade ad causam ativa (art. 295, III, do CPC). Aqui, nenhuma diferença entre as duas correntes. Admita-se, ao invés, que “A” se diga proprietário do imóvel “X”, apresente o título em seu nome e mova a ação contra “B”. Este, em defesa, alega que o imóvel é de “C’, sendo o autor, em consequência, parte ilegítima. Feita a instrução, conclui o magistrado que a razão está com “B”. Pela teoria eclética, a solução deveria ser de carência, por ilegitimidade ad causam ativa. Mas, pela teoria abstratista, o problema da legitimidade estaria já superado, pela verificação da afirmativa contida na inicial e sua conformidade com o título exibido, de modo que a solução deveria ser de improcedência, pois o que o juiz estará declarando é que o direito que o autor afirmou ser seu, não existe. A consideração de que o imóvel pertence a “C” é apenas o fundamento para negar o direito afirmado pelo autor, pois é esse o objeto litigioso do processo em julgamento” (WATANABE, 2000, p. 88-89).

[4] Rodrigo Klippel, Teoria geral do processo civil, p. 232-233.

[5] Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de Direito Processual Civil, v. II, 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 315.


Informações Sobre o Autor

Felipe Tojeiro

Procurador Federal especialista em Direito Processual pela Escola Paulista da Magistratura EPM e em Direito Público pela Universidade de Brasília UnB MBA em Direito da Regulação pela Fundação Getúlio Vargas FGV


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