Direito penal do inimigo e controle social no Estado Democrático de Direito

Resumo: O presente
trabalho analisa brevemente o direito penal do inimigo como forma de controle
social, de modo a concluir que o direito penal do inimigo é incompatível com o
Estado democrático de direito e com o respeito aos direitos da pessoa humana.

Palavras-chave:
Direito penal do inimigo; Controle social; Estado democrático de direito.

1. Direito penal e controle social

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Winfried Hassemer
[01], em conferência proferida na Universidade de Salamanca,
disse, muito acertadamente, que a abolição do direito penal não é de forma
alguma uma opção agradável aos seres humanos e muito menos para os seus
direitos humanos. É que a existência da pena é de grande relevância para o
controle social da vida quotidiana: os seres humanos necessitam do direito
penal, do direito processual penal e das penas para a sua própria proteção.

A observância do
direito penal a partir do prisma do controle social implica no fato de que as
sanções penais resultam da necessidade de se manter a ordem, a paz e o
equilíbrio quotidianos ou, melhor, da sociedade. Francesco Carrara
[02] ensina que o delito se constitui como “a infração da lei do Estado,
promulgada para proteger a segurança dos cidadãos, resultante de um ato externo
do homem, positivo ou negativo, moralmente imputável e politicamente
danoso”. Sob essa perspectiva, o delito é um comportamento contrário à
ordem social, tendente a prejudicá-la, de modo que se faz necessária uma
repressão: a sanção penal.

A sanção penal, ao
lado das sanções cíveis (ou não-criminais), é uma das formas de controle
social, o qual, teoricamente, é o mesmo para todos, ou, como deixa entrever
Fernando da Costa Tourinho Filho [03]: todo ser humano está sujeito à
existência da pena, a qual se constitui em uma reação estatal à violação de
bens e interesses tutelados pelas normas penais. É que o Estado, como
representante da sociedade, detém o direito de punir (ius
puniendi), de modo que o deve utilizar corretamente,
vale dizer: a infração que supostamente tenha violado bem ou interesse tutelado
pela ordem legal penal deverá receber a devida apuração, com respeito a todos
os procedimentos processuais penais e a todas as garantias da pessoa humana.

Entende-se, assim,
que a sanção penal é uma forma de controle social e que deve ser limitada e
regulamentada, haja vista constituir forma “de invasão do Poder Estatal na
liberdade” do ser humano [04], de modo que há que se respeitar o rol de
garantias e de direitos estabelecidos pelo Estado democrático de direito. A
aplicação da sanção penal mediante o correto procedimento e com respeito às
garantias que todo indivíduo possui é interesse de toda a sociedade, tanto
daqueles que sofrem os delitos quanto daqueles que os praticam:
“naturalmente, os delinqüentes também estão interessados em que o
ordenamento jurídico continue a ter vigência [05]”, isto é, uma pessoa que
se apropria indevidamente do dinheiro de outra não há de querer que terceiro se
aproprie do dinheiro seu ou de familiar seu; do mesmo modo que um sujeito
inocente acusado de ter matado outrem quer que seja devidamente processado e
julgado, para, muito provavelmente, caso não haja algum acidente de percurso,
como queima de arquivo ou erro do judiciário, ser absolvido. O direito penal,
considerado em seus aspectos material e processual, afora as garantias de praxe
contempladas, de regra, pelo Estado democrático de direito, serve para punir
(condenar) e para absolver.

É por isso que não
se pode pretender abolir o direito penal, haja vista este promover, ao lado de
outras normas sociais (não-jurídicas), o controle social, de modo a manter a
sociedade em equilíbrio e ordem: “o direito penal não é somente uma
realização das necessidades punitivas da sociedade, ele é ao mesmo tempo também
seu rompimento; ele é controle social e, ao mesmo tempo sua formalização [06]”.
Ao que diz Francesco Carrara [07]:

“O fim da pena não
é que se faça justiça, nem que seja vingado o ofendido, nem que seja ressarcido
o dano por ele sofrido; ou que se amedrontem os cidadãos, expie o delinqüente o
seu crime, ou obtenha a sua correção. Podem, todas essas, ser conseqüências
acessórias da pena, algumas delas desejáveis; mas a pena permaneceria como ato
inatacável mesmo quando faltassem todos esses resultados”.

O fim primário da
pena é o restabelecimento da ordem externa da sociedade.

O fim primeiro da
sanção penal é restabelecer, após uma condenação ou uma absolvição, a ordem, a
sensação de segurança da coletividade como um todo, e, reflexamente, caso seja
possível, a sensação da parte que foi vítima do delito ou que foi vítima de
acusação infundada de ter sido feita justiça. E aí está a necessidade de um
direito penal enquanto controle social voltado para o devido processo legal,
com fulcro nos direitos humanos fundamentais, para se aplicar, ou não, uma
sanção.

Nesse sentido é que
será desenvolvido o seguinte breve ensaio, de se dizer: todo ser humano, sem
qualquer tipo de distinção, possui todas as garantias e todos os direitos que
lhes são conferidos pelo Estado democrático de direito, dentre eles, um
principal, a dignidade da pessoa humana.

2. Estado democrático de direito e contrato social

O Estado
democrático de direito funda suas bases, de acordo com Reinhold Zippelius [08], no que se chama de Constituição material, a
qual conforme lição de Paulo Bonavides [09] é vista
como o conjunto de normas que permite uma melhor e mais organizada convivência
social e que cujo conteúdo básico se refere “à composição e ao
funcionamento da ordem política”; e, dentro desse conteúdo básico, se
situam os direitos da pessoa humana, os quais são assegurados a todos.
Portanto, não permite o Estado democrático de direito que existam indivíduos
que não tenham, para si, assegurados os direitos inerentes a toda e qualquer
pessoa humana. Como bem destaca Bernardo Feijoo
Sánchez [10], não é possível dizer, como quer Jakobs,
que cidadão, ou pessoa é aquela que se mostra fiel ao direito, haja vista que
isso equivaleria a dizer: “o inimigo não seria um sujeito de direito, e
sim apenas um objeto deste”. Ou seja: a conclusão jakobsiana
é incompatível com o Estado democrático de direito atual.

Pela formulação
teórico-descritiva de Jakobs, o direito penal moderno
poderia ser dividido em dois ramos: o direito penal do cidadão, para pessoas, e
o direito penal do inimigo, para não-pessoas. Deve-se, a princípio, levar em
conta que a doutrina mais recente considera não haver distinção entre cidadãos
e pessoas, direitos do cidadão e direitos humanos fundamentais, de modo que
cidadãos são pessoas e vice-versa, e direitos do cidadão e direitos humanos
fundamentais são a mesma coisa. Assim, voltar-se-ia o direito penal do cidadão
para as pessoas, sujeitos de direitos, e o direito penal do inimigo para as
não-pessoas, objetos de direito.

Bernardo Feijoo Sánchez [11] destaca que Jakobs,
ao desenvolver sua distinção entre cidadão e inimigo, toma por espeque a
doutrina contratualista de Hobbes. Nesse aspecto,
destaca Elisangela Melo Reghelin
[12]:

“Jakobs parte […] de um contrato individual, quando na
realidade ele é social, aproximando-se da concepção individualista de Hobbes,
para quem eram inimigos aqueles contrários ao contrato social, ou seja, aqueles
que manifestam condutas próprias de um estado de natureza, e que, portanto,
podiam ser punidos com as regras deste mesmo estado de natureza, onde todos são
inimigos entre si; Jakobs também parte da existência
dos grupos humanos paralelos: uma sociedade civil por um lado, e um grupo de
inimigos em estado de guerra por outro (ou seja, de um lado os que assumiram o
pacto; de outro, aqueles que não o fizeram)”.

Pela concepção hobbesiana, o contrato social surge da necessidade de haver
harmonia e paz na relação entre os seres humanos, de maneira que cada
indivíduo, para atingir esse fim, deve renunciar a seu direito de fazer tudo
que quiser: quando todos renunciarem ao seu direito a todas as coisas, de fazer
o que quiser fazer, estará presente a condição inicial e essencial para que se
possa firmar um acordo; ou seja, a renúncia mútua a um mesmo direito pelos
seres humanos permite que se elabore um contrato [13]. Portanto, o contrato hobbesiano visa pôr fim ao conflito estabelecido pela
guerra de todos contra todos, de modo que, uma vez estabelecido o contrato,
cabe aos contratantes cumprir cada um com sua parte, isto é, observar o
contrato, de modo a renunciarem a seu direito conforme haviam prometido. E Jakobs [14] cita o entendimento de Hobbes que corrobora o
modelo do direito penal do inimigo:

“Hobbes distingue
entre o cidadão delinqüente e o autor de alta traição; aquele é condenado
segundo as leis promulgadas, este, ao contrário, é combatido enquanto inimigo,
e a razão dessa distinção é patente, haja vista que aquele busca uma vantagem
particular, o que não deve ser tolerado, apesar de não prejudicar a sociedade,
enquanto que este, o traidor, combate o fundamento da sociedade, o qual, em
Hobbes corporifica-se no domínio concreto”.

Desta forma, a
teoria jakobsiana instiga a sempre se ter em mente a
formulação contratualista de aceitação ou não do
contrato social: aqueles que não aceitavam o contrato social tal qual posto
pela maioria dos indivíduos, seriam à margem deste considerados, e, por
conseguinte, à margem da sociedade. Contudo, é evidente a incompatibilidade com
o Estado democrático de direito, haja vista que, além de haver uma
classificação entre as pessoas, como fiéis ou não ao direito, há a errada
formulação de que, segundo sua fidelidade ao direito, isto é, se constituem ou
não fonte presente e futura de perigo para a sociedade: as pessoas serão
julgadas de acordo com leis diferentes, embora estejam sujeitas a um mesmo
Estado democrático de direito.

Evidencia-se,
assim, a diferença entre direito penal do cidadão e direito penal do inimigo,
ou melhor: há na proposta de Jakobs uma importante e
inconstitucional diferença entre a forma de controle social dispensada ao
cidadão e aquela dispensada ao inimigo. O cidadão, portanto, sabe que sofrerá
um processo penal, no qual estarão, em tese, assegurados seus direitos, e que
poderá vir a ser condenado ou absolvido; ou seja, o cidadão tem pelo menos uma
chance. Já o inimigo sabe que sofrerá um processo penal, o qual servirá apenas
para cumprir as comuns “burocracias” do Estado democrático de
direito, haja vista já estar previamente condenado; ou seja, o inimigo não tem
chances.

Essa falta de
chances que o inimigo suporta, ou é obrigado a suportar por não ter opção
diversa, choca-se com o princípio da presunção de inocência, pelo qual o
acusado só pode ser considerado culpado quando contra ele pesar uma sentença
condenatória definitiva, e fundamentada em provas veementes da culpabilidade
(não-inocência) do indivíduo. Portanto, constitui-se a presunção de inocência
no impedimento de ser a liberdade de determinado sujeito restringido até se ter
a certeza de sua responsabilidade, o que não quer dizer não poder o acusado ter
sua liberdade restringida, e sim que tal restrição só pode ocorrer em situações
excepcionais, como é o caso, por exemplo: da prisão preventiva e da prisão
temporária.

Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró [15] destaca
que “o princípio da presunção de inocência é reconhecido, atualmente, como
componente basilar de um modelo processual penal que queira ser respeitador da
dignidade e dos direitos essenciais da pessoa humana”. Deste modo, é de se
dizer que o desrespeito ao princípio da presunção de inocência anda de mãos
dadas com o desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. Eduardo Reale Ferrari [16] bem observa:

“De acordo com o
princípio da dignidade da pessoa humana, nenhum cidadão pode ser sancionado
desnecessária ou ilimitadamente, devendo haver restrições temporais máximas
quanto à sua punição, respeitando-se o homem e seus atributos no instante da
enunciação e aplicação dos preceitos primários bem como das sanções penais”.

Assim, a dignidade
da pessoa humana, enquanto princípio máximo do Estado democrático de direito,
deve ser sempre respeitada, sob a possibilidade de que se o poder estatal não a
respeitar seja nula qualquer condenação, a tomar por
base o brocardo nulla poena
sine humanitate.

3. Exclusão do estado de pessoa ou de cidadão

O direito penal do
inimigo trabalha, pois, com o ponto de vista de que o cidadão é pessoa e,
assim, sujeito de direitos, enquanto que o inimigo é não-pessoa, e, assim,
objeto do direito. Tal entendimento promove o que se pode chamar de exclusão do
estado de pessoa (status personae). Escreve Jakobs [17] que “todo aquele que prometa de modo mais
ou menos confiável fidelidade ao ordenamento jurídico tem direito a ser tratado
como pessoa de direito”. De acordo com o próprio Jakobs
[18]: “ser pessoa significa ter de representar um papel”. Assim é que
aquele que não quiser representar um determinado papel na sociedade, qual seja,
o de prometer de modo credível que será fiel ao ordenamento jurídico será
privado de seus direitos; e, se assim o for, não há que ser tratado como pessoa
de direito. Aliás, Jesús-María Silva Sánchez [19]
destaca o que seria para Jakobs o inimigo:

“[…] o inimigo é
um indivíduo que, mediante seu comportamento, sua ocupação profissional ou,
principalmente, mediante sua vinculação a uma organização, abandonou o Direito
de modo supostamente duradouro e não apenas de maneira incidental. É, assim,
alguém que não garante a mínima segurança cognitiva de seu comportamento
pessoal e manifesta este déficit por meio de sua conduta”.

Pode-se perceber
que a idéia de Jakobs muito se parece com o princípio
básico do ostracismo helênico: aquele sujeito que não se compromete de maneira
crível a não interferir na organização da cidade (polis), de modo a se
comportar como um mal em potencial para a ordem estatal sofrerá exílio político
pelo período de dez anos, durante os quais não terá seus direitos e só poderá
retornar caso não mais se apresente como um mal social.

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A idéia do inimigo
segue o mesmo princípio básico do ostracismo: o inimigo é excluído da
sociedade, de modo que lhe é aplicada uma lei totalmente distinta daquela
aplicada ao cidadão e o prazo que tem para se retratar é o mesmo que tem para
fornecer uma garantia cognitiva credível de que será fiel ao direito. Escreve,
aliás, Silva Sánchez [20] que não há concepção teórica contemporânea (nem a do
próprio Jakobs) que trate o delinqüente inimigo
“como uma absoluta não-pessoa”. Ou seja, o inimigo não é visto nem
por Jakobs como um ser que não possua algumas
garantias do Estado democrático de direito, o que não quer dizer, entretanto,
que haja compatibilidade entre o direito penal do inimigo e o Estado
democrático de direito.

Mesmo a não se
falar em exclusão do status personae, mas em exclusão
do estado de cidadão (status civitatis), como procura
fazer Silva Sánchez, inexiste a possibilidade de haver uma compatibilização
entre o direito penal do inimigo e o Estado democrático de direito: como dito
mais acima, encontra-se, embora ainda haja alguma pouca voz em sentido
contrário, superada a distinção pretendida entre pessoa humana e cidadão;
assim, excluir-se o status civitatis é mesma coisa
que se excluir o status personae. Ou seja: o direito
penal do inimigo não se pode tornar de forma alguma, com espeque em nenhuma das
duas argumentações, compatível com o Estado democrático de direito. Escreve com
razão Luigi Ferrajoli [21] que: “a razão
jurídica do Estado de direito não conhece inimigos e amigos, e sim apenas
culpados e inocentes”, de modo que “quando se fala em direito penal
do inimigo se está a falar de um oximoro, de uma
contradição terminológica, a qual representa, de fato, a negação do direito
penal: a dissolução de seu papel e de sua íntima essência”.

Refere-se Ferrajoli ao fato de ser impossível haver um direito penal
do inimigo, haja vista ser o direito penal um só, isto é, ou é direito penal ou
não é; de maneira que o que pode haver, em verdade, é o direito penal e os seus
inimigos (diritto penale e
i suoi nemici), conforme,
ao que o próprio autor faz remissão, a expressão utilizada por Zaffaroni. Todavia, mesmo a mudar a expressão, não se pode
dizer ter o direito penal inimigos, o que, se fosse aceito, ensejaria dizer ter
o direito penal amigos, o que traria a questão de se saber que indivíduos
seriam tidos como amigos e se bastaria, para tanto, serem não-inimigos.
Portanto, como bem se expressou Luigi Ferrajoli, para
o direito penal existem apenas indivíduos culpáveis e indivíduos inocentes, de
maneira a permitir que a uns e outros seja aplicado o mesmo tipo de controle
social: mesmas normas jurídico-penais e sanções, e mesmo respeito aos direitos
humanos fundamentais.

Indubitável o
acerto de Ferrajoli ao se posicionar pela
indivisibilidade do direito penal e ao defender a opinião de que o direito
penal não possui amigos nem inimigos, mas seres humanos, pessoas inocentes ou
culpadas. Ora, o direito penal tem um objetivo precípuo: manter a ordem e a paz
sociais, ao dividir o direito penal em duas esferas, uma voltada para os
inimigos e outra voltada para os amigos do Estado democrático
direito, nega-se não apenas o direito penal como o próprio Estado democrático
de direito: se o Estado de direito é marcado por ser democrático, não se pode
conceber uma diferenciação entre as pessoas.

4. Respeito aos direitos humanos fundamentais

Assim, respeitar os
direitos humanos fundamentais tem um sentido muito importante na atualidade:
proteger o ser humano enquanto sujeito de direitos, de modo a efetivar a
dignidade da pessoa humana. Os direitos da pessoa humana se encontram inseridos
em todos os âmbitos da vida civil, de modo que precisam ser realizados, ou
melhor, de maneira que o seu núcleo essencial precisa ser realizado, a fim de
que se possa falar em respeito da dignidade da pessoa humana. No passo em que
no presente ensaio se vem a referir, há que se falar em direitos fundamentais
penais materiais e procedimentais, isto é, de se compreender, como destaca
Jorge Miranda [22], os direitos fundamentais “não só estaticamente, ou da
perspectiva de seu conteúdo, mas também dinamicamente, através das formas de
sua efectivação, através do procedimento”. Em
suma, não basta simplesmente dizer-se que os indivíduos possuem direitos, é
preciso que haja a efetivação desses direitos garantidos, e a primeira
manifestação disso é um processo penal adequado, ou, como se acostumou dizer,
um devido processo legal.

A crítica cá posta
em relação ao direito penal do inimigo, ou mesmo na expressão de Ferrajoli direito penal e seus inimigos, encontra esteio na
necessidade de, no controle social decorrente do direito penal material e
processual, haver respeito pelo menos a um núcleo essencial de direitos humanos
fundamentais; tal núcleo, como se pode extrair das palavras de Ana Paula de
Barcellos [23], é “um conjunto formado por uma seleção desses direitos,
tendo em vista principalmente sua essencialidade, dentre outros critérios”.
Como dito no início deste ensaio, quando se fez referência à conferência do
professor alemão Winfried Hassemer:
a todas as pessoas, sem quaisquer distinções, são assegurados direitos e
garantias fundamentais, ou seja, independente do crime cometido e da reincidência,
ocorra esta antes ou após o cumprimento da pena imposta ao indivíduo, o
indivíduo mantém um mínimo essencial de seus direitos, a fim de que tenha
respeitada sua dignidade humana.

É interessante como
o enfoque do etiquetamento (labeling
approach) muito se aproxima do criticado direito penal do inimigo, no passo que
este tem por finalidade grudar a etiqueta de inimigo em alguns indivíduos, é um
código de barras difícil, senão impossível, de retirar, e que muito lembra o
delinqüente nos modelos de Cesare Lombroso.

Alessandro Baratta [24], ao se referir à abordagem do etiquetamento afirma que “a criminalidade não é um
comportamento de uma restrita minoria, […] mas, ao contrário, o comportamento
de largos estratos ou mesmo da maioria dos membros de nossa sociedade”; de
modo que, continua o professor italiano [25]:

“[…]
não se pode compreender a criminalidade se não se estuda a ação do sistema
penal, que a define e reage contra ela, começando pelas normas abstratas até a
ação das instâncias oficiais (política, juízes, instituições penitenciárias que
as aplicam), e que, por isso, o status social de delinqüente pressupõe,
necessariamente, o efeito da atividade das instâncias sociais de controle
social da delinqüência, enquanto não adquire esse status aquele que, apesar de
ter realizado o mesmo comportamento punível, não é alcançado, todavia, pela
ação daquelas instâncias”.

Escreve Winfried Hassemer [26] que
“as teorias do labeling approach afirmam, em
suas distintas versões, que a questão de que uma pessoa possa escapar ou não de
uma sanção penal encontra sua resposta simplesmente na capacidade dessa pessoa
em se livrar da justiça penal”. Assim, pela abordagem do etiquetamento, os etiquetados são aqueles que não conseguem
escapar da justiça penal, e, por conseguinte, são por ela punidos.

É ainda mais
interessante o fato de que só é considerado inimigo, conforme coloca Silva
Sánchez [27]: “para o Direito penal é inimigo aquele ser humano, e só
aquele ser humano, a quem, na medida em que se considere fonte de mal-estar
para aqueles que têm o poder jurídico de definição, nega-se-lhes
a proteção penal”.

Nesse prisma, é de
se lembrar de as caçadas comandadas pelo governo norte-americano pelas cabeças
de Osama Bin Laden e de Saddam Hussein. Após os atentados terroristas de
11 de setembro de 2001, os Estados Unidos da América iniciaram sua política
externa de guerras contra um suposto “eixo do mal”, ou, a melhor
dizer, inimigos dos Estados Unidos, de modo a burlar recomendações das Nações
Unidas e a forjar documentos, como restou comprovado no caso da (in) existência
de armas de destruição em massa no Iraque. A política de ataques ao Afeganistão,
por tentar encontrar Osama Bin
Laden, o mentor intelectual dos ataques de 11 de
setembro de 2001, e ao Iraque, por tentar encontrar Saddam Hussein, o
“dono” de poços de petróleo cobiçados pelo governo norte-americano,
tem seus efeitos a serem sentidos até a atualidade: os civis de ambos os países
foram os mais prejudicados, bem como os soldados americanos, os quais continuam
a morrer por causa da ambição expansionista bushiana
de “querer fazer chegar a democracia a tais
países”, ou, nas palavras de um conhecido personagem de desenho animado:
tentar dominar o mundo.

O exemplo acima não
é único de como têm sido julgados, processados e condenados os inimigos do
direito penal, mas é exemplo mundialmente conhecido. Tal como realizar cruzadas
para eliminar infiéis, ou, ainda, eliminar a judeus e homossexuais em campos de
concentração, e, até, quem sabe, dizer que homens negros não têm alma, e por
isso podem ser utilizados como escravos.

Todos esses
exemplos giram em torno de um eixo comum, qual seja o de se considerar
determinados indivíduos como objetos, e não sujeitos de direito, o que, como
dito mais acima, é a tônica da abordagem do direito penal do inimigo. De se
dizer, uma verdadeira dissolução do direito penal material e processual e suas
respectivas garantias, um enorme desrespeito aos direitos fundamentais dos
seres humanos e uma tremenda violação à dignidade da pessoa humana.

 

Bibliografia:

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Notas :

01 HASSEMER, Winfried. Contra el abolicionismo: acerca del por qué no se
debería suprimir el derecho penal. Responsa iurisperitorum
digesta, volume IV (Separata), pp. 215-231
(Conferência proferida no ato de fechamento do XII Curso de Pós-Graduação em
Direito da Universidade de Salamanca).

02 CARRARA,
Francesco. Programa do curso de direito criminal: parte geral: volume 1. Trad. Ricardo Rodrigues Gama. 1ª ed. Campinas (São Paulo):
LZN, 2002, p. 59.

03
TOURINHO
FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 5.

04
FERRARI,
Eduardo Reale. Medidas de segurança e direito penal
no Estado democrático de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p.
92.

05 HASSEMER, Winfried. Obra citada, p. 225. (tradução livre).

06 HASSEMER, Winfried. Direito penal libertário. Trad.
Regina Greve. 1ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007,
pp. 78-79.

07 CARRARA,
Francesco. Programa do curso de direito criminal: parte geral: volume 2. Trad. Ricardo Rodrigues Gama. 1ª ed. Campinas (São Paulo):
LZN, 2002, p. 78.

08 ZIPPELIUS,
Reinhold. Teoria geral do Estado. 3ª ed. Trad. Karin Praefke-Aires
Coutinho. Lisboa :
Fundação Calouste Gulbenkian,
1997, p. 65.

09 BONAVIDES,
Paulo. Curso de direito constitucional. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p.
63.

10 FEIJOO SÁNCHEZ,
Bernardo. O direito penal do inimigo e o Estado democrático de direito. Trad. Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira e Igor
Rodrigues Brito. Panóptica, Vitória, ano 2, n. 10,
nov. 2007 – fev. 2008, p. 107.

11 FEIJOO SÁNCHEZ,
Bernardo. Obra citada, 2007-2008, p. 101.

12 REGHELIN, Elisangela Melo. Entre terroristas e inimigos… Revista
Brasileira de Ciências Criminais, ano 15, n. 66, maio – jun. 2007, São Paulo:
Revista dos Tribunais, p. 276.

13 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico
e civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 1ª ed.
São Paulo: Nova Cultural, pp. 114-115.

14 JAKOBS, Guenther. Derecho
penal del enemigo? Un estudio acerca de los
presupuestos de la juridicidad. Trad. Manuel Cancio
Meliá. Panóptica, Vitória,
ano 2, n. 10, nov. 2007 – fev. 2008, p. 205. (tradução livre).

15
BADARÓ,
Gustavo Henrique Righi Ivahy.
Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, pp.
283-284.

16
FERRARI,
Eduardo Reale. Obra citada, 2001, p. 122.

17 JAKOBS, Guenther. Obra citada, 2007-2008, p. 206. (tradução livre).

18 JAKOBS, Guenther.
Sociedad, norma y persona en una teoría de un derecho penal funcional. Trad. Manuel Cancio
Meliá e Bernardo Feijoo
Sánchez. Madrid: Civitas, 2000, p. 50. (tradução livre).

19 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del
derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. 2ª ed. Madrid: Civitas Ediciones, 2001, p. 164. (tradução livre).

20
SILVA SÁNCHEZ,
Jesús-María. Os indesejados como inimigos: a exclusão
dos seres humanos do status personae. Trad. Mário Ferreira Monte. Panóptica,
Vitória, ano 2, n. 10, nov. 2007 – fev. 2008, p. 136.

21 FERRAJOLI, Luigi. Il “diritto penale del nemico” e la dissoluzione del diritto penale. Panóptica, Vitória, ano 2, n. 10, nov. 2007 – fev. 2008, p. 99.
(tradução livre).

22
MIRANDA,
Jorge. Manual de direito constitucional: tomo IV: direitos fundamentais. 3ª ed.
Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 93.

23 BARCELLOS, Ana
Paula de. O mínimo existencial e algumas fundamentações: John Rawls, Michael Walzer e Robert Alexy. In: TORRES, Ricardo Logo (org.). Legitimação dos
direitos humanos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 100.

24 BARATTA,
Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à
sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos
Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan e Instituto
Carioca de Criminologia, 2002, p. 103.

25 BARATTA,
Alessandro. Obra citada, 2002, p. 86.

26 HASSEMER, Winfried.
Persona, mundo y responsabilidad: bases para una teoría de la imputación em derecho penal. Trad. Francisco
Muñoz Conde e María del Mar Díaz Pita. Santa Fe de Bogotá: Temis, 1999, p. 95.

27
SILVA SÁNCHEZ,
Jesús-María. Obra citada, 2008, pp. 137-138.


Informações Sobre o Autor

Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira

Graduando em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV); Membro do Conselho Editorial da Panóptica – Revista Eletrônica Acadêmica de Direito


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