Resumo: Empós o fatídico, e funesto, episódio de 11 de setembro de 2001, o mundo, perplexo, assistiu o desenrolar da denominada guerra ao terrorismo, bem como a supressão de garantias materiais e processuais perpetradas pela incansável busca ante ao terror. Em contrapartida a tal evento, no universo jurídico, duas mentes brilhantes se debruçaram sobre o assunto e desenvolveram o denominado direito penal do inumano (ou inimigo). É sob essa perspectiva, diga-se en passant, que se almeja averiguar a (in)aplicabilidade destas regras em nosso ordenamento.
Palavras_chave: Direito penal do inimigo; supressão de garantias; nova ordem constitucional; efeito cliquet.
Abstract: In spite of the fateful episode of September 11, 2001, the world, perplexed, witnessed the unfolding of the so-called war on terrorism, as well as the suppression of material and procedural guarantees perpetrated by the relentless search for terror. In contrast to this event, in the legal universe, two brilliant minds focused on the subject and developed the criminal law of the inhuman (or enemy). It is from this perspective, let us say en passant, that one seeks to ascertain the (in) applicability of these rules in our ordering
Keywords: Criminal law of the enemy; Suppression of guarantees; New constitutional order; Cliquet effect
Sumário: 1-Propedêutica; 2- 11 de setembro de 2001 e o emergir do direito penal do inimigo (ou do inumano); 3- o direito penal do inimigo e suas peculiaridades; 4- a nova ordem constitucional (neoconstitucionalismo) e o efeito cliquet (vedação do retrocesso); 5- conclusão.
1-Propedêutica.
No período do iluminismo (Aufklärung, Siècle des Lumières), um, dentre diversos outros notórios pensadores, se destacou. Seu nome era Isaac Newton, físico e matemático inglês, criador da lei da gravitação e das famosas três leis de Newton – descritas no ano de 1687, em seu aclamado trabalho de três volumes intitulado Philosophiae naturalis principia mathematica.
Diga-se, en passant, um desses postulados se perfaz de forma tão concreta e presente que é capaz de se estender a diversos outros ramos do conhecimento – inclusive o jurídico.
Vale dizer, a ideia de que toda ação leva a uma reação[1] se faz presente desde os primórdios das relações entre indivíduos, como nas priscas eras de antanho (antes do eclodir do direito), onde a existência de todo ato antissocial, ocasionada pela busca de vantagens pessoais, sobejava na idéia de repressão (quod plerumque accidit) perpetrada por intermédio da autodefesa (autotutela).
Nesse passo, pela busca da satisfação daquilo que pretendiam por meio de sua própria força[2] – solução egoística, precária e aleatória[3], porquanto não garantia a justiça, mas apenas a vitória do mais forte, astuto, sobre o mais fraco –, verdadeiras guerras tribais e particulares eclodiram, haja vista que o autor do dano, sua família ou clã investiam contra aqueles que almejavam alcançar a punição do ato antissocial. E, assim, com o derramamento de sangue, só se perpetuavam o ódio e a desavença, não se alcançando a colimada Justiça.
Antolha-se, por demais, que nosso poder legiferante não fica estanque a este fenômeno.
Isso porque, ao invés de termos leis elucubradas antecipadamente, sob o pálio de outros estudos interdisciplinares, não raras vezes, nossos legisladores têm editado normas em virtudes de casuísticas isoladas e, em regra, de grande repercussão midiática.
Nessa alheta, tão somente como ilustração, pode-se rememorar o exsurgir da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei dos crimes hediondos), que, a grosso modo, fora fomentada pelo sequestro do conceituado empresário Abílio Diniz (do grupo Pão de Açúcar) na plácida manhã de 11 de dezembro de 1989.
Outrossim, pode-se relembrar, de igual maneira, a inclusão do homicídio qualificado naquela lege, empós o nefasto homicídio da atriz global Daniella Perez Gazolla, morta, de maneira brutal (18 golpes vibrados com instrumento perfurante), na lúgubre noite de 28 de dezembro de 1992.
Ora, como outrora lido (mas, infelizmente, olvidada a devida autoria de tamanha verdade), fica a ponderação de que “quando a mídia dramatiza, espetaculariza, o parlamento imediatamente ecoa. O legislador, que perdeu completamente sua autoridade (em virtude do seu envolvimento com tantas falcatruas, nepotismos patrimonialismos etc), já não consegue reagir de forma racional e independente. Seu discurso se apresenta, quase sempre, como apêndice da mídia. Essa é uma das partes mais visíveis da engrenagem do populismo penal.”
Ao se deixar o cenário brasileiro, verifica-se que este mesmo fenômeno, traçado em uma época distante, também se aplica a outras nações.
2 – 11 de setembro de 2001 e o emergir do direito penal do inimigo (ou do inumano).
Um caso que jamais será esquecido, e nos traz consequências até os dias atuais, se perfez há exatos 10 anos, na data de 11 de setembro de 2001, quando, na manhã de uma terça-feira, dois aviões Boeing 767 se chocaram com as torres gêmeas do World Trade Center.
Tal ato, que infelizmente veio a ceifar a vida de 2.996[4] pessoas, resultou na recente guerra ao terrorismo, bem como nas guerras contra o Afeganistão e ao Iraque, haja vista a desenfreada busca pelo autor intelectual de tal atrocidade, o saudita Osama Bin Laden e sua organização, a Al Qaeda.
Nesse passo, em contrapartida, nos debates que permeam os centros acadêmicos começou-se a se discutir sobre as funções[5] do direito penal e, precipuamente, da pena. Fora num desses acalorados debates, por sinal, que nasceu a tese acerca do direito penal do inimigo, na Universidade de Bonn, na Alemanha.
Com estofo nesse luminar, se faz necessário observar que a criminalidade recrudesce, cresce e se organiza. Em determinadas situações, chega a ter recursos próprios e estruturação similar ao de um governo instituído, exsurgindo verdadeiros Estados paralelos.
Tamanha a verdade dessa nova onda organizada de ilícitos, que se pode vislumbrar a ocorrência de tal macrocriminalidade no mundo todo, como, exempli gratia, o caso das máfias italianas, combatidas por intermédio do sistema de delação premiada (colaboração processual)[6] aliadas as ostensivas políticas de combate àquela modalidade deletéria.
Pari passu a essa realidade, o Brasil também tem sofrido com tal inteligência criminosa, verbi gratia a existência de cada vez emergirem maiores e bem engendradas associações ilícitas, como o denominado Comando Vermelho (CV), no Rio de Janeiro, ou o Primeiro Comando da Capital (PCC), em São Paulo[7].
Desta feita, o pensar de GÜNTHER JAKOBS, onde “se já não existe a expectativa séria (…) de um comportamento pessoal – determinado por direitos e deveres -, a pessoa degenera até converter-se em um (…) individuo perigoso, o inimigo[8]”.
Daí, porque estes indivíduos, para ele, deveriam ser segregados dos cidadãos comuns, tratados com austeridade e, inclusive, com a supressão de garantias. Noutra palavra, esboroar-se-iam os cediços direitos humanos, com o emergir deste direito penal do inumano (inimigo).
3 – O direito penal do inimigo e suas peculiaridades.
Como grande parcela das coisas da vida, o direito penal do inimigo também é pautado por regras, haja vista que “é uma exigência do Direito (Hegel) e da própria sociedade (Luhmann) que a norma há de preponderar frente ao ilícito.[9]”
Entrementes, nota-se que, enquanto o direito se estabelece entre titulares de direitos e deveres, a relação com aquele agente que infringe os fundamentos do Estado (inimigo) se dá por intermédio de coação.
É que, de acordo com ROSSEAU, “qualquer malfeitor que ataque o direito social deixa de ser membro do Estado, posto que se encontra em guerra com este[10]”, razão pela qual “ao culpado se lhe faz morrer mais como inimigo que como cidadão”[11], já que, como menciona FICHTE[12], haveria a perda de todos os seus direitos como cidadão e como ser humano.
Desta sorte, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, exsurge a primeira regra deste direito penal, que é a interceptação, em estado prévio, do inimigo – a quem se combate por sua periculosidade.
Cumpre obtemperar, passa-se a punir o planejamento, os atos preparatórios. Tem-se, decerto, uma antecipação do iter criminis, com a imposição de reprimenda prévia aos atos executórios do ílicito colimado.
Id est, inicia-se a punir não a concreção de um real vilipêndio a norma (como assevera o princípio da lesividade ou ofensividade – nullun crime sine injuria –, por nós adotado), mas, em verdade, um fato vindouro (futuro[13]), ainda idealizado[14].
Destarte, criam-se verdadeiros tipos de perigo abstrato (presumido ou de simples desobediência), bem como de mera conduta, sob o estofo de Leis de combate e com penas desproporcionais[15] àquilo faticamente perpetrado.
De igual modo, outro grande problema desta antecipação é o retrocesso ao direito penal do autor, e não mais do fato, o que ocasiona punições por aquilo que se é, e não pelo que se faz[16]. Tal marca, historicamente, remonta aos tatertypus de CESARE LOMBROSO ou, ainda, das perseguições nazistas aos judeus[17].
Em nossos tempos, tem trazido grandes problemas com a caça àqueles que representam tradições islâmicas, precipuamente, nos Estados Unidos da América – que, não raras vezes, são julgados sem nem sequer ter a garantia ao devido processo legal (due process of law[18]), como a possibilidade de um preso entrar em contato com seu defensor[19].
Vislumbra-se, de mais a mais, o esboroar do princípio da presunção da não culpabilidade (presunção de inocência – artigo 5°, inciso LVII, da CRFB; artigo 8°, n° 2 e 9, do Pacto de San José da Costa Rica, promulgado pelo Decreto n°678, de 6 de novembro de 1992), com a concreção de prisões como as de Abu-Ghraib (Iraque) ou de Guantánamo (Cuba), onde, por intermédio de técnicas agressivas de interrogatórios, se averiguam eventuais suspeitos de terrorismo.
Tudo isso pautado no pensar de que “quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não deve tratá-lo, como pessoa, já que vulneraria o direito à segurança das demais pessoas[20]”.
Sob essa premissa, até então estudada, como o direito penal do inimigo tende a combater o perigo, no quadrante de uma imaginária periculosidade social, emergem, nesse esteio, verdadeiras supressões de garantias materiais e processuais, com a similar pretensão de combater a criminalidade organizada com “tolerância zero”.
Verbi gratia, a invasão norte-americana ao Paquistão, onde, na data de 2 de maio de 2011, veio a executar a vida de Osama bin Mohammed bin Awad bin Laden (Osama bin Laden), sem a existência de qualquer processo ou garantias mínimas, oriundas do procedural due process (dimensão formal, processual, procedimental do devido processo legal) e do substantive due process (dimensão material, substancial, do devido processo legal).
Nasce, nesse jaez, o que SILVA SÁNCHEZ denominou de terceira velocidade punitiva – em contraposição à tradicional imposição de penas privativas de liberdade, nos quais se mantêm os princípios político-criminais e as regras de imputação (primeira velocidade) e as medidas despenalizadoras, pautadas no princípio da intervenção mínima, ultima ratio (segunda velocidade) –, onde sopesa a Maquiavélica cognição de que os funestos meios seriam capazes de justificar o aclamado fito de combate a criminalidade hodierna.
4 – A nova ordem constitucional (neoconstitucionalismo) e o efeito cliquet (vedação do retrocesso).
Antes de serem abordadas as conclusões acerca do direito penal do inumano, se faz necessário observar que o direito se encontra, desde os primórdios, em constante evolução.
A cada passagem da história, principalmente naquelas partes onde o ser humano se encontra em algum estado deplorável, exsurge uma regra nova, tutelando-o, dando guarida.
Exempli gratia, o princípio da isonomia perante a lei, no Estado Nazista[21], foi substituído pelo da igualdade de deveres e pelo de prevalência do bem comum sobre o individual. Ou seja, o Partido Nacional Socialista, sectário e intolerante como as demais ditaduras, absorveu inteiramente a personalidade humana e anulou todos os valores individuais.[22]
Ocorre que, com o findar da segunda grande guerra mundial e com o impacto causado pelas atrocidades[23] perpetradas naquele período, desponta uma nova dogmática, denominada de Neoconstitucionalismo, onde a dignidade da pessoa humana aflora como valor jurídico supremo.
Insta asseverar. Consagrado o denotado dogma nas Constituições de diversos países, o ser humano permutou de mero reflexo da ordem jurídica para ser considerado o seu objeto supremo. Noutra palavra. Tornou-se o centro e o fim do direito.
De tal arte, o Estado se tornou um meio para atingir determinado objetivo, tutelando o cidadão – novo centro e fim do direito.
Para tanto, no constitucionalismo contemporâneo, combinou-se a idéia de garantia jurisdicional[24] (constitucionalismo norte-americano) e o forte conteúdo normativo, com exacerbada tutela de direitos fundamentais (constitucionalismo francês).
Buscaram-se, na verdade, instrumentos capazes de permitir a limitação legal e que possibilitassem sua conformação com axiomas da justiça – que seriam colocados numa posição superior e infiltrados nas constituições, haja vista a supremacia da constituição[25].
Houve, nessa vereda, uma rematerialização da Constituição, onde se começou a consagrar um extenso rol de direitos fundamentais, e uma observância da força normativa constitucional[26].
Nessa senda, empós visualizar todo o processo histórico, bem como o sofrimento de gerações, que foram enfrentadas para se chegar ao tal momento evolutivo, ilógico seria viabilizar-se um retrocesso, com eventual supressão de direitos e garantias.
Daí, a real incompatibilidade do direito penal do inimigo com o efeito cliquet, que obsta qualquer retrocesso de garantias, sendo, considerado, por muitos, inclusive uma real limitação ao poder constituinte originário (limitação transcendente, de acordo com JORGE MIRANDA).
5 – Conclusão.
O direito penal do inimigo (ou do inumano), no afã de reprimir todo indivíduo que, aparentemente, externa certa periculosidade social, regride às ideias de Estados totalitários, onde o jus se reduzia a Lex[27] e as leis e atos governamentais objetivavam a população no seu todo, pouco importando o sacrifício ou a negação de interesses ou direitos individuais, haja vista que o Estado era o absoluto e os indivíduos e grupos o relativo[28].
Denotada similaridade, en passant, vislumbra-se na afirmação trazida por BENITO MUSSOLINI e ROCCO: “la dottrina fascista nega il dogma della sovranitá populare, che é ogni giorno smentido della realtá, e proclama in sua vece il dogma della sovranitá dello Stato”.[29]
Vai-se além! Com a eventual aplicação deste direito, o Estado se tornaria criador exclusivo do direito e da moral[30], não encontrando limites morais ou materiais à sua autoridade.[31] Daí aquela máxima: “Tudo dentro do Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado”.
Finca-se, assim, a ponderação de que “os paradigmas preconizados pelo direito penal do inimigo mostram aos seus inimigos, toda a incompetência Estatal, ao reagir com irracionalidade, ao diferenciar o cidadão normal do outro[32]”.
Como nos parece salutar, a contenda entre posições extremadas é o prelúdio de sempre ao advento ou retorno do meio termo, que é a expressão do equilíbrio ou da justa medida (NELSON HUNGRIA).
Nesse cipoal, com lastro no princípio constitucional da razoabilidade ou da proporcionalidade, deve-se buscar um ponto de equilíbrio entre o direito de punir aquele indivíduo, não raras vezes, mais bem preparado que o próprio Estado (direito penal subjetivo). E, de outro turno, aquele interesse de assegurar os direitos fundamentais de todo e qualquer cidadão.
Vale elucubrar. Deve-se ponderar, sopesar, a relação custo-benefício da medida. Ou seja, balancear os danos que possa causar e os resultados a serem obtidos.
Por enquanto, pode-se asseverar que “a supressão e a relativização das garantias constitucionais despersonalizam o ser humano, fomentando a metodologia do terror, repressiva de idéias, de certo grupo de autores, e não de fatos[33]”.
Fato que, nos leva a crer, que aquilo que se denomina direito penal do inimigo não pode ser Direito[34]. Direito penal do cidadão é um pleonasmo; direito penal do inimigo uma contradição em seus termos[35].
Informações Sobre o Autor
Fernando Gentil Gizzi de Almeida Pedroso
Advogado. Presidente da Comissão de Cultura da 18ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil – São Paulo (2013/2015; 2016/2018). Professor no Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade de Taubaté. Mestrando em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).