Resumo: O presente artigo visa traçar uma interligação entre a teoria da sociedade de risco, desenvolvida pelo sociólogo Ulrich Beck, o conceito do direito penal máximo e os princípios da intervenção mínima e ofensividade. Ademais, demonstrar-se-á que três vetores levam à necessidade de tal discussão: a crescente violência, o consequente sentimento de insegurança da sociedade e o discurso do endurecimento das leis penais como solução para tal problema. Contudo, há limitações jurídico-constitucionais ao Ius puniendi, como os princípios da intervenção mínima e da ofensividade. Através de pesquisa bibliográfica, tais pontos são aqui explorados a fim discutir qual deve ser o espaço adequado do direito penal em nossa sociedade. Utiliza-se o estudo de caso dos “blackblocs”, movimento surgido nas manifestações populares de junho de 2013, aos quais se propõe no Projeto de Lei nº 236/12, o anteprojeto do novo Código Penal, a tipificação como crime de terrorismo. Verifica-se em nossa sociedade, pois, em concreto a adoção do direito penal máximo como forma de combate aos crescentes índices de violência. Diante de tal cenário, estabelecer-se-á a política criminal do garantismo penal como forma adequada de preservação dos direitos fundamentais, em harmonia com o contexto hodierno de Constitucionalização do direito penal.[1]
Palavras-Chave: Direito Penal Máximo. Sociedade de Risco. Princípios Penais.Garantismo Penal.
Abstract: This article aims to draw a link between the theory of the risk society, developed by the sociologist Ulrich Beck, the concept of maximum criminal law and the principles of minimal intervention and offensiveness. In addition, it will prove that three vectors lead to the need for such a discussion: the growing violence, the resulting feeling of insecurity in society and the discourse of hardening criminal laws as a solution to such a problem. However, there are legal and constitutional limitations on the Iuspuniendi, the principles of minimal intervention and offensiveness. Through literature research, such points are explored here to discuss what should be the appropriate scope of criminal law in our society. It uses the case study of “black blocs”, a movement emerged in the popular protests of June 2013, which in the proposed Bill 236/12,the draft of the new Penal Code, it will be penalized as a crime of terrorism. Thus, it can be attested, in effect, the adoption of the maximum criminal law as a means of fighting rising levels of violence. Faced with such a scenario, it will establish the criminal garantismtheory as the proper way to protect the fundamental rights and in harmony with today’s context of Constitutionalisationof the criminal law.
Keywords: Maximum Criminal. Risk Society. Criminal principles. Criminal garantism.
Sumário: 1. Introdução; 2. Desenvolvimento; 2.1. Base Constitucional; 2.2 .Sociedade de Risco – Uma Sociedade do Medo; 2.3. Direito Penal Máximo e Garantismo Penal; 2.4. Princípios da Intervenção Mínima e da Ofensividade; 2.5. Os “blackblocs” e tipificação de terrorismo como exemplo do uso do direito penal máximo em uma sociedade de risco; 3. Considerações Finais; 4. Referências.
1. Introdução
A atual contextura da sociedade, onde altas taxas de criminalidade coexistem com reiteradas propostas de maior severidade na política criminal estatal, revela o quanto é necessário rediscutir e reavaliar o papel do direito penal na atualidade.
Nosso ordenamento jurídico-penal, em especial a Constituição, preza por um direito penal equilibrado, ou seja, que busque a reabilitação e punição dos que cometem crimes, mas que, ao mesmo tempo, preserve as liberdades individuais. Nesse sentido, os princípios da intervenção mínima e da ofensividade são freios a uma atuação imponderada do direito penal.
No entanto, é cada vez mais corriqueiro ouvir aqueles que defendem sem pestanejar o endurecimento das leis penais. O discurso de que se reduz a violência por transformar um número maior de condutas em crimes surge como uma atraente panaceia para uma população insegura.
Porém, para que haja uma correta aplicação do direito, faz-se necessário entender como é a sociedade a que se destina. Nessa esteira, o trabalho seminal do sociólogo Ulrich Beck “Sociedade de risco” traz um referencial teórico indispensável para entender de forma crítica o corpo social do século XXI.
Destarte, o presente artigo traz ao meio acadêmico uma reflexão de suma importância, qual seja, a restrição da punibilidade como garantia de um Estado Democrático de Direito. É imperioso que os operadores do direito que trabalham na seara criminal reflitam sobre os limites e o uso do direito penal na política criminal.
Objetiva-se, portanto, analisar criticamente o espaço que o direito penal deve ocupar em nossa sociedade vis-à-vis seu uso no combate à violência.
A metodologia adotada no presente artigo baseia-se em pesquisa bibliográfica, utilizando-se de livros tanto de autores clássicos com Nilo Batista, como obras de autores contemporâneos com o fito de abordar o tema de forma mais rica e apurada.
Para facilitar e tornar mais agradável a leitura, o presente trabalho foi dividido em cincosubtópicos. Inicialmente, é abordada a base constitucional do trabalho. Em seguida são exploradas as razões que levaram Ulrich Beck a considerar que vivemos em uma sociedade de risco. Depois, passa-se a determinar o que é o Direito Penal máximo o garantismo penal. Após, em contraste, são apresentados os princípios da intervenção mínima e da ofensividade como limites necessários ao direito penal. Por fim, e agregando as análises anteriores, chega-se ao ponto nodal, o estudo do caso dos “blackblocs” e a tipificação de crime terrorismo intentada pelo Anteprojeto do novo Código Penal como exemplo do direito penal máximo em prática em nossa atualidade.
2. Desenvolvimento
2.1. Base constitucional
Inicialmente, impende assinalar que após a promulgação de nossa Constituição de 1988, a Constituição Cidadã, operou-se no Brasil um movimento de neoconstitucionalismo, ponto este que será abordado de forma mais detida no tópico dos princípios da intervenção mínima e da ofensividade. Torna-se de cabedal importância que todos os trabalhos jurídicos pós Constituição de 1988, assim como o presente faz, tenham como origem e base nossa Carta Maior, sob pena de desrespeitarem os valores mais preciosos de nosso ordenamento jurídico.
O direito penal, ramo do direito público que tem como cerne a proteção da sociedade em contraste com o direito à liberdade do suposto ofensor, não poderia ignorar as inovações da leitura pós-positivista trazida pelo neoconstitucionalismo.
Se é dilúcido que não há abordagem da ciência criminal sem a ótica constitucional, mais cristalino se torna a importância do princípio da dignidade da pessoa humana como fio condutor de nosso ordenamento jurídico. Tal princípio encontra-se elencado no artigo 1°, III de nossa Constituição, no qual se estabelece ser um fundamento de nosso Estado Democrático de Direito.
Tamanha importância tem o princípio da dignidade da pessoa humana que diversos doutrinadores o caracterizam como um valor suprajurídico, isto é, acima do próprio ordenamento, devendo informar todas as ações do Estado em quaisquer áreas e funções. O mestre Fernando Rodrigues Martins (2009, p.51) propõe o seguinte ensinamento:
“(…) há uma tendência doutrinária que compreende o valor da dignidade da pessoa humana, tantas vezes transcrito nas Constituições mundiais, como o vetor preponderante dos direitos fundamentais. Possível compreender que o axioma da dignidade da pessoa humana, inserido como fundamento na Constituição Federal (art. 1º, III), transparece nitidamente como fonte do ordenamento jurídico, sendo que a partir dele toda norma jurídica constitucional ou infraconstitucional se desdobra, permitindo alcançar objetivos (foz) presentes na mesma Constituição (art. 3º): erradicação da pobreza e da marginalidade e construção de uma sociedade livre, justa e solidária.”
Percebe-se, portanto, que o estudo da política criminal não pode ignorar esse princípio de ingente importância.
Também de grande relevância no direito penal é o direito à igualdade presente no caput do artigo 5º da Constituição, localização topográfica que não pode ser vista como coincidência, visto que demonstra ser a isonomia o direito que informa todos os outros direitos tidos como fundamentais nos incisos seguintes.
A igualdade se reveste de duas perspectivas. A formal se refere ao tratamento equânime dos indivíduos perante a lei. Em seara penal significa que não há crime especificamente aplicável a determinado grupo social, racial ou religioso. O tipo penal de homicídio presente no artigo 121 do Código Penal Brasileiro tem aplicação em abstrato tanto para um jovem rico e branco quanto para uma senhora idosa, pobre e negra.
De outro giro, a perspectiva material da isonomia diz respeito ao tratamento do direito no plano fático, fenomênico, real. Está encapsulada na célebre frase do grande jurista e político Rui Barbosa (1997, p. 26): “A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam”. Logo, embora a lei seja abstrata e geral, não pode ignorar que existem diferenças fáticas nos indivíduos a que se destina.
Nesse cenário, não é despiciendo trazer à baila as palavras do constitucionalista José Afonso da Silva (2004, p. 222 apud SILVA, 2012, p. 50) que alerta para a falta de isonomia material no âmbito penal: “os menos afortunados ficam muito mais sujeitos aos rigores da justiça penal que os mais aquinhoados de bens materiais”.
Assim, diante dos princípios e conceitos exarados, é que se pode iniciar qualquer abordagem jurídico-penal em harmonia com nossa Constituição e seus axiomas éticos, como será feito no presente artigo.
2.2 .Sociedade de risco – uma sociedade do medo
Em primeiro lugar, é necessário entender que o direito como ciência social está intrinsecamente ligado ao modo como a sociedade se estrutura. Estudar o direito sem observar em que tipo de corpo social ele será aplicado é uma leitura pobre e capaz de produzir erros grotescos de interpretação. Maior ainda é a necessidade do operador de direito, aquele que de fato aplica os institutos da ciência jurídica, de conhecer que tipo de tecido social o direito se origina e se destina. Nesse sentido, o direito penal por ser um mecanismo de controle social, tem um caráter ainda mais próximo e estreito com a sociedade e, portanto, seu estudo e aplicação dependem de uma acurada compreensão das estruturas sociais vigentes.
Por óbvio, existem várias formas de compreender a trama de uma determinada sociedade em um determinado período histórico. Uma perspectiva marxista, por exemplo, irá privilegiar os aspectos socioeconômicos da apropriação dos meios de produção pela burguesia e a luta de classes. De outro lado, em um modelo weberiano dar-se-á destaque à racionalização do homem e à ação social como atitude transformadora da sociedade.
O presente trabalho utiliza a ideia da sociedade de risco como forma de interpretar nossa sociedade, já que tal modelo construído pelo sociólogo Ulrich Beck, além de ser inovador traduz uma abordagem político-sociológica particularmente relevante para o pensamento jurídico.
Nesse diapasão, questiona-se: o que o desastre do reator nuclear de Chernobyl, os ataques terroristas de 11 de setembro e a epidemia da doença da vaca louca têm em comum? Todos esses exemplos denotam o que o sociólogo alemão Ulrich Beck chama do surgimento de uma sociedade (global) de risco.
Para Beck (2010, p. 12), a sociedade contemporânea encontra-se na transição entre a modernidade industrial e a segunda modernidade, fruto das construções ainda pendentes em nosso século XXI. A produção em massa de bens e o avançado desenvolvimento da tecnologia acabam por criar novos problemas, o que Beck denomina de riscos.
O autor (BECK, 2010, p. 26) traz como definição o seguinte:
“Os riscos e ameaças atuais diferenciam-se, portanto, de seus equivalentes medievais, com frequência semelhantes por fora, fundamentalmente por conta da globalidade de seu alcance (ser humano, fauna e flora) e de suas causas modernas. São riscos da modernização. São um produto de série maquinário industrial do progresso, sendo sistematicamente agravados com seu desenvolvimento ulterior.”
Desta forma, distingue-se os riscos dos antigos perigos vivenciados na história humana. Não significa dizer que a vida no neolítico, por exemplo, era mais segura que a nossa. Durante a maior parte da vivência humana no globo os perigos advinham do que chama de “riscos naturais”, como por exemplo, enchentes e epidemias. Nas sociedades pré-industriais tais perigos eram atribuídos a forças sobrenaturais. Com a industrialização e o progresso científico as crenças supersticiosas e/ou religiosas perderam força. Surge nesse momento uma nova categoria de risco, os “riscos manufaturados”, ou seja, aqueles produzidos como consequência da própria industrialização, como por exemplo a pobreza, a crescente violência, o terrorismo, acidentes ambientais, novas epidemias etc.
Significa dizer que até então os riscos sempre foram vistos como algo externo, alheio à sociedade e, atualmente, são parte nuclear da mesma. Ademais, na contemporaneidade, a velocidade dos avanços econômico-sociais não é a mesma da criação de formas de contenção dos riscos. Exemplifica-se: os mercados financeiros globais possuem uma produção de riquezas em volume incomparável a qualquer momento histórico anterior, não obstante, como corolário do mesmo, aumenta-se a pobreza e a concentração de renda. Ocorre que, a produção de riquezas desenvolve-se muito mais rapidamente do que as formas de combate à pobreza, o que alimenta a crescente desigualdade econômica. Logo, o risco passa a ser algo indissociável ao desenvolvimento econômico, social e científico e, portanto, torna-se figura central da sociedade.
Ulrich Beck (2010, p. 23) caracteriza tal situação como:
“Na modernidade tardia, a produção social de riqueza é acompanhada sistematicamente pela produção social de riscos. Consequentemente, aos problemas e conflitos distributivos da sociedade de escassez sobrepõem-se os problemas e conflitos surgidos a partir da produção, definição e distribuição de riscos científico-tecnologicamente produzidos.”
Nesse contexto, os meios de comunicação de massa tornaram-se disseminadores da insegurança coletiva, ao noticiarem os riscos a todo tempo e em todo lugar. Basta imaginarmos o seguinte exemplo: na década de 1940, quando foi produzido o nosso código penal vigente, caso ocorresse um assalto em uma rua de grande circulação, as pessoas iriam saber do fato pelo jornal no dia seguinte ou no rádio ao final do dia. Pela própria natureza desses meios (isto é, lê-se o jornal e ouve-se o rádio) a narrativa dos eventos tem uma natureza distante e impessoal.
Atualmente, em contraste, a internet e a televisão mostrarão imagens e vídeos do assalto fazendo com que a percepção desse risco seja nítida e virtualmente presencial. O cidadão é automaticamente transportado para aquela situação de violência sentindo-se quase como vítima do mesmo. Obviamente a sensação de medo é maior e mais vívida.
Mister se faz ressaltar, pois, o papel da mídia na sociedade de risco e sua influência na política criminal. A crítica que se deve fazer não é à mídia per se,pois, nenhuma sociedade democrática sobrevive sem que haja liberdade de expressão e difusão de diferentes opiniões. O problema surge quando a pauta jornalística dita a pauta legislativa e jurisdicional.
O que se tem observado nos últimos anos é uma relação simbiótica entre mídia e o legislativo, na qual este responde às pressões populares decorrentes dos altos níveis de criminalidade noticiados e transformados em espetáculo por aquele. O legislador deixa de levar em consideração aspectos materiais e constitucionais para atender de forma populista ao noticiário policial.
Ademais, surgiu dentro do meio jornalístico um movimento de inversão do princípio da não-culpabilidade. Noticiários policiais apresentam a notícia e imediatamente o apresentador/jornalista começa a tecer comentários agressivos e depreciativos sobre o suposto autor do crime, sem ao menos conhecer a fundo os fatos. Leva-se à casa do telespectador o contrário do que o sistema jurídico constitucional-penal almeja, isto é, aquela pessoa apresentada é um infrator merecedor de toda a raiva social, cabendo à Justiça a tarefa de provar sua inocência.
Quem nunca ouviu o bordão “escracha” de um famoso apresentador e deputado estadual do Rio de Janeiro quando se refere a supostos autores de crime. Outro caso exemplar foi o de uma apresentadora de telejornal que, após apresentar a notícia de um grupo de “justiceiros” que espancaram, deceparam a orelha e amarraram um adolescente nu a um poste, pois ele teria sido autor de um furto, proferiu o seguinte impropério (GIL, 2014):
“O que resta ao cidadão de bem, que, ainda por cima, foi desarmado? Se defender, claro! O contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite. E aos defensores dos direitos humanos, que se apiedaram do marginalzinho no poste, lanço uma campanha: Façam um favor ao Brasil: adotem um bandido.”
Não bastasse a atitude cruel dos “justiceiros”, vê-se um discurso inflamado de um membro da mídia que utiliza sua plataforma que atinge milhões de telespectadores para incitar a violência e o radicalismo. Poder-se-ia atribuir essa fala absurda a um fato isolado, de autoria de alguém destemperado. Contudo, quem liga a televisão é cotidianamente bombardeado com frases e pensamentos como esse. Ao invés de veicular as notícias e propiciar o diálogo, o papel da mídia na sociedade de risco tem sido o de aumentar a dimensão dos fatos criminosos, propagando uma sensação de insegurança e desespero absolutos o que, por sua vez, leva à população a buscar na maior criminalização de condutas e no aumento da severidade da punição estatal soluções para tais problemas.
Em suma, a zona neural por trás da ideia da sociedade de risco é que vivemos em uma era onde os riscos são mais globalizados e radicalizados. A notícia de um atentado terrorista como o do 11 de setembro, não afeta somente a população de Nova York ou dos Estados Unidos. Seja no Brasil ou no Butão, o cidadão tem a sensação de que esse risco também é capaz de atingir-lhe. A mídia, ao invés de informar, dissemina temores fora de proporção. Cria-se, portanto, uma sociedade onde o medo impera, já que se tem uma miríade de riscos e poucas formas de combatê-los.
2.3. Direito penal máximo e garantismo penal
Constatado que a sociedade vive em meio a riscos imensuráveis e medo da crescente criminalidade, surge o questionamento de como solucionar esse problema ou ao menos minorá-lo. Uma resposta que frequentemente aparece é a do recrudescimento do direito penal. Seria necessário, assim, criar novos tipos penais, aumentar as penas dos já existentes, alargar a esfera da atuação policial e diminuir as garantias materiais e processuais dos acusados e réus. Esses são os sustentáculos do denominado “Direito Penal Máximo”.
Esse posicionamento de um direito penal mais robusto e absoluto tem origem nos Estados Unidos nas décadas de 1970 e 1980. Em um momento político de neoconservadorismo e estagnação econômica, surgiu o movimento da lei e ordem (“Law andOrdermovement”), no qual o endurecimento da política criminal seria a solução para os altos níveis de criminalidade (SHECAIRA, 2013, p. 286). Na década de 1990, na cidade de Nova York o movimento da lei e ordem atinge seu pico com a adoção da política de “tolerância zero” pelo então prefeito Rudolph Giuliani. Infrações cotidianas e de pequeno porte foram coibidas com vigor, por exemplo, prisão daqueles que pulavam a catraca do metrô, retirada compulsória da população de rua e o denominado “stop andfrisk”, no qual qualquer indivíduo considerado “suspeito” (o que na prática, acabou significando homens negros e latinos de baixa renda) são parados no meio da rua e revistados por risco de estarem portando armas e/ou drogas (SHECAIRA, 2013, p. 289).
Nessa esteira, a política de tolerância zero tomou como base a teoria criminológica das “janelas quebradas” (ou “brokenwindowstheory”). O cerne do pensamento por trás dessa teoria é de que se previne a macrodelinquência e os crimes mais graves punindo exemplarmente crimes de menor ofensividade. James Q. Wilson e George Kelling são os autores da teoria que descreve o seguinte experimento: dois carros são abandonados, sem capô e sem placas em duas localidades distintas, um em um bairro afluente de Palo Alto na Califórnia e o outro no bairro do Bronx em Nova York, onde frequentemente havia vandalismos (SHECAIRA, 2013, p. 287). Enquanto que o carro em Palo Alto permanece intacto por uma semana, o que estava no Bronx é saqueado em dez minutos. Em seguida, um dos autores resolveu quebrar uma das janelas do carro em Palo Alto, sendo este também saqueado em questão de horas. Em ambos os casos, os autores dos saques e vandalismo foram pessoas aparentemente de boa situação social (KELLING; WILSON, 1982, p. 4 apud SHECAIRA, 2013, p. 287). Segundo os autores o carro no Bronx é imediatamente depredado, já que ali, por serem corriqueiros os atos de vandalismo, haveria uma maior sensação de impunidade, estimulando tal conduta. Já em Palo Alto, como a depredação não era costume, o carro permaneceu intacto até o momento que a janela é intencionalmente quebrada por um dos pesquisadores. Embora fosse uma comunidade onde se respeitava a propriedade privada, uma vez que o carro foi depredado, despertou-se em seus membros a mesma impunidade que havia no Bronx.
Todavia, a suposta cientificidade do estudo é questionável, já que de acordo com LoïcWacquant (2004, p. 244), além de ter como autores um cientista político ultraconservador (James Q. Wilson) e um ex-chefe de polícia (George Kelling), o trabalho de apenas nove páginas não fora publicado em uma revista de cunho acadêmico onde pudesse ser criticado e sim em uma revista de variedades. Soma-se a isso, o fato de não ter havido, desde a publicação em 1982 nenhuma prova empírica que sustentasse a tese apresentada.
Apesar disso, a política de tolerância zero foi alardeada como um grande sucesso, pois a taxa de criminalidade de fato baixou em meados dos anos 1990 em Nova York. No entanto, houve desrespeito à máxima científica de que “correlação não implica em causalidade”. Ao mesmo tempo em que fora adotada a política de tolerância zero, os Estados Unidos voltaram a ter crescimento econômico com alta queda do desemprego, estabilização e diminuição do mercado do crack, além do fato de que outras grandes metrópoles que não adotaram a referida política também apresentaram drásticas quedas nas taxas de criminalidade (SHECAIRA, 2013, p. 289).
Apesar das críticas, o modelo do direito penal na sua acepção máxima foi difundido pelo mundo, tendo adeptos também no Brasil, o que remete à percepção do fenômeno da globalização do medo na sociedade de risco.
O modelo do direito penal máximo, como se nota, não está relacionado a uma eficácia real/quantitativa da ocorrência dos crimes. Ele tem, na verdade, um papel meramente simbólico, atuando como um remédio não para a causa da criminalidade e sim para a ansiedade social. E, de forma mais nociva, tem o efeito de prejudicar a própria essência do direito penal.
Não se pode olvidar que, na ciência jurídica, o que um dos fundamentos da lei é sua presunção de obrigatoriedade. Todavia, em um cenário de direito penal máximo, onde há uma hipertrofia legislativa e nenhuma redução da criminalidade, a sensação que a sociedade passa a ter é que a lei não tem nenhuma aplicabilidade no campo prático, perdendo, portanto, seu fundamento de obrigatoriedade. Passe-se, assim, a um contexto de anomia jurídica que tem como corolário a perda de legitimidade da norma penal, por não mais corresponder aos valores e anseios sociais.
O que se extrai do contexto histórico acima apresentado é que o direito penal em sua versão máxima ignora que as soluções para o problema da criminalidade são mais complexas e variadas que o mero endurecimento político-legislativo-criminal. A criminalidade urbana é fruto de uma série de fatores sociais e não há uma só resposta para combatê-la, sendo necessárias ações que envolvam a área da educação, habitação, distribuição de renda, ou seja, combatendo as verdadeiras raízes do problema.
Qual seria então a alternativa a um sistema de direito penal máximo, uma vez que, em última instância, ele leva a própria decadência do direito penal? A resposta mais equilibrada e em harmonia com os direitos fundamentais consagrados em nossa Constituição tende a ser o chamado “garantismo penal”.
O garantismo defende que o direito penal por si só não resolve a questão da criminalidade, já que por estar no seio da sociedade acaba por reproduzir as desigualdades materiais nela existentes (QUEIROZ, 2002, p. 102). O garantismo quebra, portanto, com a panaceia criada pelo direito penal máximo.
Oportuno se torna revelar que assim como o Brasil outros países da América Latina como México e Argentina começaram a introduzir em seus ordenamentos jurídicos e nos discursos acadêmicos o garantismo penal quando da redemocratização e promulgação de Constituições protetoras dos direitos fundamentais. Percebe-se, desse modo, quanto o garantismo penal está associado a um contexto histórico-social de proteção do indivíduo contra arbitrariedades típicas de Estados autoritários.
O jusfilósofo italiano Luigi Ferrajoli é o grande expoente dessa (re)leitura do direito penal, defendendo que os contornos do direito penal são as garantias fundamentais presentes na Constituição. Se de um lado, na concepção máxima do direito penal sua função é acabar com o crime (e o criminoso) a qualquer custo, já na releitura garantista, na qual se defende um direito penal com o menor espaço possível (direito penal mínimo) o foco é proteger o cidadão das arbitrariedades inerentes ao uso do ius puniendi e preservar todos os direitos fundamentais constitucionalmente assegurados.
Neste sentido, defende o autor (FERRAJOLI, 2002, p 85):
“A certeza perseguida pelo direito penal máximo está em que nenhum culpado fique impune, à custa da incerteza de que também algum inocente possa ser punido. A certeza perseguida pelo direito penal mínimo está, ao contrário, em que nenhum inocente seja punido à custa da incerteza de que também algum culpado possa ficar impune. Os dois tipos de certeza e os custos ligados às incertezas correlativas refletem interesses e opiniões políticas contrapostas: por um lado, a máxima tutela da certeza pública acerca das ofensas ocasionadas pelo delito e, por outro lado, a máxima tutela das liberdades individuais acerca das ofensas ocasionadas pelas penas arbitrárias.”
Insta salientar que o uso do Direito Penal em sua concepção máxima tem como suposto objetivo a pacificação social através do endurecimento da lei penal. Contudo, um indivíduo, que vê cada vez mais condutas serem criminalizadas e as penas aumentadas, não se sente seguro, pelo contrário, tem a sensação de que há algo errado em seu meio social.
De fato, o direito penal máximo não demonstrou concretamente melhora nos índices de criminalidade. De nada adianta tipificar uma conduta e atribuir pena alta se diversos crimes no Brasil sequer são investigados e quando o são, a morosidade do sistema judiciário impede que o autor seja punido e ressocializado.
Diante da promessa vazia do Direito Penal máximo, a sociedade torna-se mais temerosa o que irá justificar a intrusão violenta do Estado, reiniciando desta forma a espiral de violência provocada pela conjugação de tais fenômenos. O principal problema de se alocar a solução para os perigos da sociedade do risco no direito penal é que ele não representa o instrumento mais adequado para tanto. Acaba-se por conferir responsabilidades ao direito penal as quais ele não consegue corresponder
Destarte, não se pode harmonizar um Estado Democrático de Direito, no qual os direitos fundamentais são a base de todo o ordenamento jurídico com o direito penal máximo. Assim, a adoção do garantismo penal é salutar e tem, na sociedade de risco, o fito de deslegitimar a força estatal como instrumento de eliminação do medo social.
2.4. Princípios da intervenção mínima e da ofensividade
Faz-se imperioso, primeiramente, antes de adentrar no estudo dos princípios da ofensividade e da intervenção mínima, entender a importância dos princípios na ordem jurídica atual.
Nossa Constituição de 1988 encontra-se em um contexto de neoconstitucionalismo, movimento este surgido em resposta aos horrores da segunda guerra mundial. Percebeu-se que o positivismo jurídico em sua forma clássica e radical não se coaduna com a função precípua e original do direito, qual seja, a promoção da paz social. De fato, Hitler, na hecatombe da segunda guerra mundial, agiu por meio de normas formalmente legais. Surge, portanto, o questionamento: como pode a formalidade normativa impor-se e contrastar-se com a preservação da vida humana?
Diante disto, iniciou-se um movimento tanto teórico quanto no bojo das constituições europeias de superação do arcaico positivismo jurídico. O neoconstitucionalismo busca, portanto, superar a dicotomia do jusnaturalismo-positivismo, abandonando a legalidade estrita como único e maior pilar jurídico mas interpretando-a em consonância com os direitos fundamentais
Dentro dessa nova sistemática, passou-se a reconhecer a força normativa dos princípios e valores como forma de atuação do direito em conformidade com o princípio da dignidade da pessoa humana, presente no artigo 1º, III, de nossa Constituição Cidadã, verdadeiro norte axiológico de nosso ordenamento jurídico hodierno.
Neste cenário o direito penal também passa por uma releitura guiada pelos princípios e valor inerentes a essa nova ordem constitucional.
Sobre o tema, o emérito professor Luiz Regis Prado (2010, p. 139) traz o seguinte escólio:
“Os princípios penais constituem o núcleo essencial da matéria penal, alicerçando o edifício conceitual do delito – suas categorias teoréticas –, limitando o poder punitivo do Estado, salvaguardando as liberdades e os direitos fundamentais do indivíduo, orientando a política legislativa criminal, oferecendo pautas de interpretação e de aplicação da lei penal conforme a Constituição e as exigências próprias de um Estado democrático e social de Direito. Em síntese: servem de fundamento e de limite à responsabilidade penal.”
Nesse diapasão surge a necessidade de explorar o sentido do princípio da intervenção mínima. Também conhecido como princípio da ultimaratio, ele tem como fito a restrição do poder punitivo do Estado, acarretando sua incidência apenas quando for o meio necessário para proteção de um determinado bem jurídico.
Destarte, o princípio da intervenção mínima age em dois planos, o legislativo e o da aplicação do direito. No primeiro, orienta o legislador somente a escolher condutas que efetivamente devam ser criminalizadas. No mesmo sentido, quando houver alteração legislativa torna se necessário abolir do ordenamento crimes que já não mais ofendam os valores da sociedade. De outro bordo, o intérprete do direito deve identificar quando e onde a atuação do direito penal faz-se necessária.
Justifica-se essa maior cautela na aplicação do direito penal devido à natureza das sanções aplicadas na seara penal que, em regra, envolvem a restrição da liberdade, direito este fundamental que somente pode ser atingido em situações excepcionais previstas em lei.
A expressão latina ultimaratio, significa última razão ou último recurso e leva ao entendimento de que o direito penal somente deve ser usado quando esgotados outros mecanismos legais e sociais.
Dá-se, assim, precedência a outros ramos do direito assim como a ações e políticas públicas, utilizando o direito penal apenas em última hipótese. Extrai-se do conceito supra exarado que quando é possível a aplicação de sanções civis ou administrativas não cabe o uso do direito penal
O celebrado jurista Nilo Batista (2007, p. 86) vislumbra como desdobramento do princípio da intervenção mínima o (sub) princípio da fragmentariedade, denominado por ClausRoxin (1981, p. 31, apud BATISTA, 2007, p. 87) de “remédio sancionador extremo”.
A fragmentariedade aqui defendida é a ideia de que o direito penal somente deve tutelar os valores mais caros à sociedade. Em outras palavras, nem todo o bem jurídico merece a proteção da esfera penal somente aqueles em que se faz estritamente necessária a presença do Estado no exercício do ius puniendi.
Além do citado princípio da intervenção mínima outro princípio, qual seja, o da ofensividade também impõe inscrições o poder Estatal de punir. O princípio da ofensividade, também denominado princípio da lesividade, disciplina que para que haja infração penal faz-se necessária ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma penal. A tarefa aparentemente simples de verificar a ocorrência de ataque ao bem jurídico torna-se mais complexa quando analisada em uma leitura penal-constitucional.
Nessa linha de intelecção a partir da análise do conceito de crime, a tipicidade outrora vista somente na análise formal ganha o que Zaffaroni e Pierangeli (2011, p. 399) denominam de tipicidade conglobante. Segundo tais doutrinadores não basta a subsunção perfeita da conduta ao tipo penal abstrativamente descrito na lei penal (tipicidade formal), mas também dois outros elementos: antinormatividade da conduta do agente e a tipicidade material.
Ganha destaque nesse ponto a tipicidade material vista como “condutas que produzam relevante afetação ao bem juridicamente protegido” (SILVA, 2012, p. 196).
A relevante lesão ao bem jurídico torna-se necessária a partir de uma visão casuística do caso concreto para que fique caracterizada a ocorrência da infração penal.
Imagine-se a seguinte situação: Tício enfurecido com Mévio resolve empurrar-lhe, fazendo com que caia no chão. Todavia, da queda somente resulta um arranhão na mão de Mévio. Verifica-se nessa hipótese que a conduta de Tício amolda-se ao tipo previsto no artigo 129 do Código Penal referente à lesão corporal leve: “Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem”. Conquanto haja perfeita configuração da tipicidade formal, não se verifica no caso uma verdadeira ofensa a integridade corporal de Mévio. É nesse ponto que o princípio da ofensividade se torna adequado para resolver a questão
Casos como o acima descrito demonstram a aplicação dos dois princípios retromencionados, da ofensividade e da intervenção mínima. Se o direito penal é de fato a última instância faz sentido aplicá-lo a casos onde falta uma real ofensa ao bem jurídico?
A resposta da doutrina e da jurisprudência tem sido no sentido de afastar a aplicação do direito penal nesses casos.
À guisa de exemplo, vale assinalar o entendimento do Supremo Tribunal Federal, em um caso concreto levado a sua apreciação, no qual reconhece a absolvição do réu pela ausência de tipicidade material em função dos princípios da ofensividade e da ultimaratio:
“E M E N T A: PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL – CONSEQUENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL – DESENVOLVIMENTO DE ATIVIDADES DE TELECOMUNICAÇÃO SEM AUTORIZAÇÃO DO PODER PÚBLICO (LEI Nº 9.472/97, ART. 183) – SERVIÇO DE RADIODIFUSÃO COMUNITÁRIA – DOUTRINA E PRECEDENTES – CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: “DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR”. – O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. – O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social. (…) O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada esta na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Precedentes. Tal postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. STF, RHC 122464 AgR., Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, j. 10.06.2014, Public. 12.08.2014 (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2014, sem grifo no original).”
Assim sendo, na ótica penal-constitucional que deve reger a atuação tanto do legislador penal quanto do operador do direito, os princípios da intervenção mínima e da ofensividade têm precípua função, sendo, pois, óbices a um direito penal desarrazoado, como o proposto pelo direito penal máximo, além de constituírem pilares de uma ordem jurídica em consonância com a dignidade da pessoa humana.
2.5. Os “black blocs” e tipificação de terrorismo como exemplo do uso do direito penal máximo em uma sociedade de risco
Devidamente conceituados os supracitados fenômenos e princípios, passa-se ao entendimento da lógica que os une. Utiliza-se no presente trabalho o estudo do caso dos “blackblocs” como um exemplo da adoção do discurso do direito penal máximo e externalização do medo social característico das sociedades de risco.
O Brasil viveu uma onda de protestos em junho de 2013 que tinha, inicialmente, como motivo maior a indignação da população acerca da má qualidade da prestação de serviços públicos. Após o entusiasmo inicial ter arrefecido, atos públicos continuaram esporadicamente a ocorrer só que comandadas por grupos tidos como anarquistas. Os “blackblocs”, como se autodenominam, se utilizaram muitas vezes de violência e atos de vandalismo, como destruição de mobiliário público e privado. A sociedade que, a princípio, simpatizava com o entusiasmo desse grupo, passou a temer tanto suas ações violentas quanto a desmedida repressão policial. Isso porque, a resposta do Poder Público não foi conciliatória, ao revés, abusou da força policial para supostamente conter os atos do referido grupo.
O uso de violência contra a violência parece para olhos desatentos como algo contraditório, contudo se justifica quando se percebe que o objetivo do Estado é a promoção do medo. Somente com uma sociedade acuada é possível a usurpação de poder pelo ente Estatal e a consequente prática de atos atentatórios aos direitos individuais sob a lógica maquiavélica “dos fins justificam os meios”.
Assim, em uma situação de apreensão social o foco Estatal não é a resolução pacífica dos conflitos e sim, que o medo aumente para que a sociedade peça desesperadamente auxílio ao Estado. Uma carta branca lhe é dada para agir conforme sua conveniência, que claramente apenas visa um maior acúmulo de poder.
Retornando ao caso concreto dos “blackblocs”, já identificado o medo social (reflexo da sociedade de risco) e a resposta desproporcional do Estado, surge, então, o terceiro elemento: o Direito Penal máximo. Nessa contextura, o projeto de Lei nº 236/12, o anteprojeto do novo Código Penal, encontra-se no cerne de uma discussão acerca da tipificação penal dos atos de vandalismo dos “blackblocs” como terrorismo.
Há outros projetos que também tipificam o terrorismo tramitando em conjunto com a proposta do novo Código Penal. Um é o PLS 588/2011, do ex-senador Demóstenes Torres. Outro, o PLS 707/2011, é do senador Blairo Maggi (PR-MT). O terceiro, o PLS 762/2011, foi proposto por Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), mas todos seguem a mesma linha do anteprojeto do novo Código Penal.
Convém aqui fazer uma breve digressão. Nossa Constituição de 1988 diz em seu art. 5º, inciso XLIII:
“A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.”
O poder constituinte originário quis criminalizar o terrorismo, deixando a cargo do poder constituinte derivado o dever de tipificá-lo em lei própria. Contudo, após vinte e cinco anos, ainda falta regulamentação específica sobre que conduta de fato constitui terrorismo.
O artigo 239 do anteprojeto do novo código penal assim tipifica o crime de terrorismo:
“Art. 239. Causar terror na população mediante as condutas descritas nos parágrafos deste artigo, quando:
I – tiverem por fim forçar autoridades públicas, nacionais ou estrangeiras, ou pessoas que ajam em nome delas, a fazer o que a lei não exige ou deixar de fazer o que a lei não proíbe, ou;
II – tiverem por fim obter recursos para a manutenção de organizações políticas ou grupos armados, civis ou militares, que atuem contra a ordem constitucional e o Estado Democrático ou;
III – forem motivadas por preconceito de raça, cor, etnia, religião, nacionalidade, sexo, identidade ou orientação sexual, ou por razões políticas, ideológicas, filosóficas ou religiosas.
§ 1º Sequestrar ou manter alguém em cárcere privado;
§ 2º Usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa;
§ 3º Incendiar, depredar, saquear, explodir ou invadir qualquer bem público ou privado;
§ 4º Interferir, sabotar ou danificar sistemas de informática e bancos de dados;
§ 5º Sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com grave ameaça ou violência a pessoas, do controle, total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meios de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia e instalações militares.
Pena – prisão, de oito a quinze anos, além das sanções correspondentes à ameaça, violência, dano, lesão corporal ou morte, tentadas ou consumadas.
Forma qualificada
§6º Se a conduta é praticada pela utilização de arma de destruição em massa ou outro meio capaz de causar grandes danos:
Pena – prisão, de doze a vinte anos, além das penas correspondentes à ameaça, violência, dano, lesão corporal ou morte, tentadas ou consumadas.
Exclusão de crime
§ 7º Não constitui crime de terrorismo a conduta individual ou coletiva de pessoas movidas por propósitos sociais ou reivindicatórios, desde que os objetivos e meios sejam compatíveis e adequados à sua finalidade. (BRASIL. Projeto de Lei do Senado nº 236, de 2012, art. 239, sem grifo no original).”
Tipificar as condutas dos “blackblocs” como terrorismo é um verdadeiro uso indevido do direito penal. Não se trata de ignorar o caráter criminoso das ações, mas elas já se encontram tipificadas no ordenamento penal pátrio. A tipificação de terrorismo por ser deveras rigorosa não parece ser razoável para a ação desse movimento. A PL 236/12 traz como pena para o crime de terrorismo pena de prisão de oito a quinze anos em concurso com as condutas de dano, violência e lesão corporal ou morte.
Em outras palavras, os “blackblocs”, segundo a vontade de alguns congressistas, estariam sujeitos a um concurso de crimes entre terrorismo e as diversas outras condutas que de fato praticaram (dano ao patrimônio público, lesão corporal, etc). Imagine-se uma hipótese em que um indivíduo “blackbloc”, quebra um banco público. Somadas as penas, em concurso formal e de forma mais benéfica, ou seja, com o acréscimo mínimo de um sexto, teríamos como resultado uma pena de privação de liberdade de no mínimo nove anos e quatro meses. Teriam estes manifestantes o mesmo grau de reprovabilidade que alguém que pratica homicídio simples, lesão corporal seguida de morte, latrocínio, extorsão mediante sequestro ou estupro de vulnerável? Evidente que não. Estamos diante do Direito Penal máximo que tem como escopo a criminalização exacerbada e o uso de rigor excessivo no quantum das penas.
O senador Renan Calheiros, ao referir-se à aplicabilidade do anteprojeto do novo Código Penal na tipificação do crime de terrorismo aos atos dos “blackblocs”, disse o seguinte: “Quando você pune levemente, você passa para a sociedade a ideia de que o crime compensa. E o crime não pode jamais compensar.”(DE OLHO…, 2014)
Extrai-se tanto da fala do congressista quanto da proposta de alteração legislativa o direito penal máximo em prática. Há em ambos a concretização de uma política criminal baseada na punição excessiva como forma de coibir os índices de violência. Outrossim, demonstra a relação entre mídia e legislativo, na qual as leis não são propostas para atender as reais necessidades sociais e sim como respostas imediatas baseadas em episódios polêmicos. Trata-se, novamente, do espetáculo midiático levando a uma casuística na atuação legislativa, que, por sua vez, gera um direito penal inflacionado e em choque com direitos fundamentais.
Conforme pode-se verificar, o direito penal máximo não é meramente algo teórico, mas está em voga tanto no âmbito legislativo quanto no jurisdicional. Também é evidente o medo social presente na sociedade de risco hodierna e como ele alimenta a intervenção Estatal desmedida. Por fim, observa-se a falta de respeito aos limites impostos pelos princípios da ofensividade e da intervenção mínima.
3. Considerações finais
O conceito de sociedade de risco como teorizado pelo sociólogo Ulrich Beck, leva à percepção de que o tecido social da contemporaneidade é complexo e ainda requer novas observações para ser verdadeiramente entendido. O consagrado autor apresenta um cenário social no qual os riscos estão no centro da sociedade e não podem ser ignorados. Tais riscos são inerentes ao desenvolvimento técnico-científico-econômico característico de nossa era. Os indivíduos imersos em um contexto de profunda insegurança acabam por ficar suscetíveis à influência da mídia e do populismo legislativo. Por conseguinte, cria-se uma instabilidade emocional, um grande medo na população que a leva a procurar no direito penal soluções para a criminalidade.
Nesse contexto, o direito penal máximo surge como uma panaceia capaz de trazer paz ao meio social. Este modelo de política criminal tem como escopo o endurecimento das leis penais e das penas atribuídas aos crimes como forma de solucionar os altos índices de criminalidade. Contudo, o direito penal máximo não consegue atingir tal meta, como demonstrado na grande falácia criada pelo modelo “lei e ordem” aplicado em Nova York na década de 1990. Cria-se, então, uma grande e perigosa contradição: de um modo objetivo a sociedade aparentemente está mais segura (aparato policial robusto, inflação legislativa, etc.), mas subjetivamente o medo e insegurança crescem. Essa celeuma põe em perigo o próprio fundamento do direito penal, já que mesmo diante de seu recrudescimento, sua efetividade é cada vez menor.
Destarte, existe entre o direito penal máximo, os crescentes indicadores de violência e o medo social um ciclo vicioso. Os altos índices de criminalidade levam a uma sensação de medo social que, por sua vez, tem como resposta Estatal o uso do direito penal máximo. Todavia, o direito penal expansionista não consegue diminuir a violência, o que, novamente, alimenta a insegurança da sociedade. Esta, com o temor reafirmado busca, mais uma vez, no direito penal uma solução que ele não é capaz de dar. Configurado está assim o ciclo vicioso, que além de contribuir para uma conjuntura social desesperadora, outrossim gera a decadência do direito penal.
Um ingente exemplo desse fenômeno é o caso dos “blackblocs”. Esse movimento surgiu durante as manifestações de junho de 2013 no Brasil e se caracterizou pelo destruimento de monumentos, placas, carros e confronto com os policiais. Se os “blackblocs” são uma legítima atuação da desobediência civil ou repreensíveis atos de vandalismo (e por que não os dois?) é algo sujeito a uma leitura subjetiva. Todavia, tipificá-los como terrorismo, sujeitos a penas de no mínimo oito anos é algo por deveras desarrazoado. O discurso legislativo em defesa da tipificação dos atos dos “blackblocs” é, pois, uma demonstração do uso do direito penal máximo em concreto e na atualidade brasileira.
Nesse sentido, não se pode olvidar que esse uso extremado do direito penal viola princípios basilares da seara penal, como o da intervenção mínima e da ofensividade. O princípio da intervenção mínima dita que o direito penal somente deve ser utilizado em última hipótese, uma vez que sua sanção envolve, em regra, a restrição da liberdade, direito este de suma importância no âmbito constitucional-penal. Também neste diapasão, o princípio da ofensividade disciplina que somente é legítima a incidência do direito penal quando há lesão substantiva ao bem jurídico tutelado. O que se extrai de ambos os princípios é uma limitação ao iuspuniendi Estatal.
Diante de tais princípios e de uma contextura de adoção do direito penal máximo, a política criminal equilibrada proporcionada pelo garantismo penal é a forma como o direito penal deve se consubstanciar em nossa hodierna sociedade de risco. O garantismo penal visa, ao invés da punição exagerada e intervenção sem limites do Estado, uma política de proteção dos direitos fundamentais do indivíduo. O garantismo penal entende que a violência é resultado de uma série de fatores sociais como pobreza, concentração de renda, déficit educacional e, por isso, o direito penal não é a via correta para diminuir índices de criminalidade. A lógica é de que o direito penal não pode ser o direito do Estado contra o indivíduo e sim o direito do indivíduo contra a arbitrariedade Estatal.
Por fim, salienta-se que a relevância do tema está atrelada tanto ao atuar do operador do direito como à conscientização da sociedade sobre o papel do direito penal. Indubitavelmente, assim como previsto por Ulrich Beck, vivemos em uma era na qual cada vez mais os discursos de medo imperam no cenário político-social. Propostas como a redução da maioridade penal e transformação da corrupção em crime hediondo seguem a mesma linha da tipificação da conduta dos “blackblocs” como terrorismo. O presente trabalho visa, portanto, alertar o operador do direito na esfera penal sobre a falácia do direito penal máximo, guiando-o a uma prática forense que prime pela proteção dos direitos fundamentais e não pelo poder punitivo do Estado a qualquer custo. Demais disso, o interesse em discutir a perniciosa relação entre violência, medo social e o direito penal máximo é, justamente, torná-la evidente à sociedade. É fácil se perder no ruído revanchista da mídia e procurar no direito penal a solução para todos os males, mas um cidadão consciente do real espaço que o direito penal deve ter, é um cidadão em real exercício de seus direitos fundamentais.
Acadêmico de Direito na Universidade Estácio de Sá
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