Resumo: A abordagem do direito subjetivo perpassa ˆs li›es b‡sicas do pr—prio estudo do Direito. Contudo, em que pese a contumaz utiliza‹o do termo pela jurisprudncia, doutrina e legisla‹o, Ž not—ria a inexistncia de um consenso quanto ao seu sentido, o que revela pouca precis‹o conceitual no trato da matŽria. Assim, no presente artigo buscou-se traar as caracter’sticas do direito subjetivo com o escopo de investigar a rela‹o existente entre este e a Administra‹o Pœblica, e se Ž poss’vel, nas bases cient’ficas atuais, inclusive ante a promulga‹o da Constitui‹o Federal, pleitear o reconhecimento desta espŽcie jur’dica em face do Poder Pœblico.
Palavras-chave: direito subjetivo, Direito Administrativo, Administra‹o Pœblica.
Sum‡rio: Introdu‹o; 1. Considera›es Sobre o Direito Subjetivo; 2. Breve An‡lise Sobre o Surgimento e Desenvolvimento do Direito Administrativo. Uma hist—ria contada de forma equivocada; 3. Reflex›es Acerca da Rela‹o entre Direito Subjetivo e a Administra‹o Pœblica. 4. Conclus›es.
Introdu‹o
O presente artigo tem o escopo de investigar a rela‹o existente entre o direito subjetivo e o a Administra‹o Pœblica. Para isso, analisou-se a origem da express‹o direito subjetivo e sua evolu‹o com o tempo nas escolas que influenciaram diretamente o Direito aplicado hoje no Brasil. Isto feito, foram traados as suas principais caracter’sticas e efeitos da na rela‹o jur’dica travada entre os sujeitos de direito.
De posse destas conclus›es, fez-se um paralelo entre o direito subjetivo e a evolu‹o do Direito Administrativo com o tempo. Visamos, ao final, responder ˆ pergunta de se Ž poss’vel defender a existncia de direitos subjetivos em desfavor da Administra‹o Pœblica, nos moldes preceituados ao longo do cap’tulo.
1. Considera›es sobre o direito subjetivo
Falar de direito subjetivo Ž tocar fundo nas li›es b‡sicas do pr—prio estudo do Direito. O termo, contudo, em que pese a contumaz utiliza‹o pela jurisprudncia, doutrina e legisla‹o n‹o parece possuir o mesmo sentido em todas as vezes que referido, o que revela, talvez, pouca precis‹o conceitual no trato dos juristas com a matŽria. Iniciemos, bem por isso, com uma r‡pida digress‹o hist—rica acerca desta figura jur’dica.
Com apoio em Orestano (apud ENTERRêA, 2001, p. 50), vemos que as prim‡rias utiliza›es da express‹o, t‹o cara ao estudo desta cincia social, se fizeram em meio de uma ampla e longa batalha do pensamento humano, que almejava a libera‹o do indiv’duo e, por conseqŸente, a afirma‹o daqueles direitos tidos por inatos ˆ sua pr—pria condi‹o[1].
Em meio a este debate hist—rico, surge a figura de Guilherme de Ockham, que, se valendo de um estudo sobre a estrutura da propriedade, ainda no sŽculo XIV, se vale da express‹o direito subjetivo tal qual hoje podemos entender. Conta-nos Enterr’a (2001, p. 52):
ÒA primeira formula‹o tŽcnica do conceito de direito subjetivo, no sentido de hoje em dia ter‡ uma origem surpreendente: a polmica sobre a pobreza dos franciscanos, que se desenvolve entre a Santa Sede (ent‹o em Avignon) e os te—logos franciscanos durante a primeira metade do sŽculo XIV. A figura tŽcnica tem um padre perfeitamente identificado, Guilherme de Ockham, que, a fim de justificar o postulado b‡sico franciscano, segundo o qual nem Cristo nem os ap—stolos tiveram propriedade alguma, […] formula em seu Opus nonaginta dierum, 1332, sob a prote‹o do imperador em sua disputa com a cœria, uma disseca‹o da estrutura da propriedade como direito subjetivo, o que leva a elaborar um conceito tŽcnico desta figura assombrosamente modernoÓ. (ENTERRêA, 2001, p. 51, tradu‹o nossa)
A express‹o do jurista espanhol ao final do par‡grafo para expressar a sua surpresa com a modernidade do instituto desenhado por Guilherme de Ockham advŽm da considera‹o de que este œltimo, j‡ ˆ Žpoca, concebia a liga‹o entre a figura do direito subjetivo e os imperativos da Lei (ENTERRêA, 2001, p. 53), ou seja, o surgimento do direito subjetivo estaria atado ˆ figura de um texto regulador das rela›es entre os seres humanos.
Avanando neste panorama hist—rico, recorda-nos o brilhante Enterr’a (2001, p. 53) que o termo direito subjetivo tambŽm foi utilizado e precisado na Segunda Escol‡stica, oportunidade na qual alguns te—logos-juristas espanh—is do sŽculo XVI se debruaram sobre uma corrente jusnaturalista interessante, a dos iura innata, que concede a todo o homem, pelo simples fato de o s-lo, direitos que devem ser respeitados pelas autoridades civis e eclesi‡sticas; em suma, direitos que deveriam ser reconhecidos independentemente de qualquer positiva‹o a respeito.
Uma quizila que serviu de pano de fundo hist—rico para esta corrente de pensamento foi a que girava em torno dos direitos dos ind’genas frente ˆs conquistas espanholas ocorridas no referido per’odo e que originou a ÒCarta Universal dos direitos do ’ndio proclamados pela CoroaÓ. A idŽia essencial que resultou ao fim no documento n‹o apenas reconhecia a impossibilidade de se escravizar qualquer ’ndio, como restringia a realiza‹o de confisco em todas as suas terras, devendo este ser tratado, naquele momento, como um sœdito qualquer da Coroa Espanhola (ENTERRêA, 2001, p. 54).
Este legado hist—rico, por sua vez, vai desembocar nos estudos levados a cabo pela Escola do Direito Natural e das Gentes, a qual se ramificou por grande parte da Europa Ocidental, dos quais se podem citar expoentes famosos como Grocio, Puffendorf, Hobbes e Locke.
Aqui, como bem observou Orestano, uma primeira e imprescind’vel mudana: a express‹o sujeito n‹o mais se emprega no sentido tradicional de pessoa sujeita ou submetida a algo ou alguŽm, ou seja, afasta-se a no‹o de pessoa subordinada para fazer prevalecer o sujeito como sujeito de direitos. (ENTERRêA, 2001, p. 57).
J‡ Wieacker (1967, p. 279) observa que este Direito da raz‹o foi, depois do Corpus iuris, a fora espiritual mais poderosa da hist—ria da Europa Ocidental, resultando no fortalecimento da concep‹o do fundamento œltimo da sociedade e do Estado em um contrato social, idŽia esta que vem a ser desenvolvida posteriormente por fil—sofos como Locke, Hobbes, e tem sua express‹o m‡xima em Rousseau. Quanto ao reflexo desta concep‹o no sistema jur’dico como um todo, voltamos ˆs palavras Enterr’a (2001, p. 57):
ÒA constru‹o de instrumentos racionais para explicar o sistema jur’dico (nova idŽia, esta de sistema, por eles introduzido), p™s em primeiro plano a idŽia dos direitos, naturais primeiro […], e dos direitos subjetivos adquiridos a t’tulo particular (ocupa‹o, contrato, prescri‹o, herana, concess‹o). O homem Ž visto inicialmente como tal, e n‹o como membro de um grupo ou corpora‹o ou como objeto de v’nculos feudais ou religiosos, se impondo, assim, o postulado da igualdade jur’dica. Este individualismo deu uma importante base a instrumentos centrais como a propriedade civil e o contratoÓ. (tradu‹o nossa)
N‹o bastassem as referncias expressas a importantes figuras do direito privado, Ž preciso realar a inelut‡vel guinada que esta escola jur’dica d‡ no conceito de direito subjetivo. Com o reconhecimento, mesmo que sob as bases de um forte jusnaturalismo, da existncia de um direito para alŽm de sua express‹o positiva, foram sendo concedidas ao particular facultas, potestas moralis, as quais poderiam e deveriam ser exercidas perante outros sujeitos, e qui‡ perante o soberano da vez, ainda que no gozo de toda a sua pujana de poder.
Ainda que discordemos, no particular, com as bases pelas quais se erige o jusnaturalismo, Ž preciso lhe conceder o mŽrito de erigir, ao menos, o debate acerca de posi›es ativas dos sujeitos em face do Estado ou de qualquer outro particular. N‹o por outra raz‹o que estas inova›es s‹o essenciais na elabora‹o de documentos paradigma do mundo moderno, a exemplo da Declara‹o de Direitos do Homem e do Cidad‹o, na Frana em 1789[2].
Em que pese todo este reconhecimento, e todo o avano reportado neste breve relato, verifica-se que a no‹o de direito nesta Žpoca Ð e, por sua vez, de direito subjetivo – se encontrava ligada intrinsecamente n‹o a um determinado indiv’duo, mas a estratos sociais, organiza›es e comunidades familiares, que se perpetuavam no tempo por mais e mais gera›es (ENTERRêA, 2001, p. 74). N‹o h‡, portanto, um modelo individual de situa›es ativas no direito praticado na Žpoca, cuja express‹o m‡xima se v no conceito de propriedade, a qual se reconhece Ð com matizes, Ž verdade Ð no ordenamento jur’dico de hoje em dia.
E Ž neste momento que Enterr’a defende o papel de destaque da Declara‹o francesa de 1789, que, j‡ em seu pre‰mbulo e artigo 2¡, positiva a existncia deste arsenal de direitos em favor do ser humano. ÒApenas a ignor‰ncia, esquecimento ou desprezo dos direitos dos homens, disse o curto pre‰mbulo da Declara‹o, s‹o as causas das desgraas pœblicas e da corrup‹o dos governosÓ (ENTERRêA, 2001, p. 77).
Aqui, entende o ilustre doutrinador espanhol, ocorre a jun‹o entre o direito subjetivo e o direito objetivo, t‹o caracter’stico de toda e qualquer concep‹o daquela express‹o. Atrela-se, neste momento, a idŽia de que o direito subjetivo a uma anterior norma objetiva que lhe d suped‰neo (ENTERRêA, 2001, p. 80).
Ë guisa de conclus‹o, n‹o poder’amos finalizar esta breve an‡lise sem antes nos reportar ˆs contribui›es da Pandect’stica alem‹ do sŽculo XIX, notadamente dos ensinamentos de seu jurista expoente, Federico Carlos de Savigny[3]. De fato, o modelo de concep‹o de direito por parte de seus cultores[4] estimula a precis‹o tŽcnica e a rela‹o sistem‡tica entre os conceitos, possuindo o debate do direito subjetivo papel fundamental nesta vis‹o estritamente dogm‡tica do mundo jur’dico.
A despeito da famosa discuss‹o travada ˆ Žpoca sobre a prevalncia da Teoria da Vontade, capitaneada por Savigny e Otto von Gierke, ou da Teoria do Interesse, da qual o expoente maior era Rudolf Von Jhering (MIRANDA, 2000, p. 272/273), na consubstancia‹o do que seria o sujeito de direito e o direito subjetivo, fato Ž que com o advento dos ensinamentos desta escola jur’dica, consolidou-se de forma extrema o conceito de rela‹o jur’dica. Nesta, por sua vez, existiria ao menos uma situa‹o ativa que, por resultado l—gico, gerava uma situa‹o passiva. Como resultado nasceriam direito e dever, respectivamente.
Precisando ainda mais esta no‹o, e j‡ colocando o estudo da express‹o em tempos atuais, temos Pontes de Miranda, cuja extensa e vasta obra remonta ao estilo proposto e cultuado no ‰mbito da Pandect’stica.
Da leitura do expoente e not‡vel civilista, percebe-se que o direito subjetivo, em verdade, Ž algo que surge do estudo da efic‡cia jur’dica, entendida esta como a irradia‹o de efeitos jur’dicos advindos depois da incidncia da regra jur’dica no suporte f‡tico que lhe Ž correspondente (MIRANDA, 2000, p. 47).
Analisado sob este ‰ngulo, o direito subjetivo Ž resultado que se inicia com a verifica‹o de determinado suporte f‡tico, que vem, posteriormente, a incidir em determinada regra jur’dica, para t‹o s— irradiar as conseqŸncias tidas como relevantes pelo ordenamento jur’dico. Nas palavras do jurisconsulto:
ÒRigorosamente, o direito subjetivo foi abstra‹o, a que sutilmente se chegou, ap—s o exame da efic‡cia dos fatos jur’dicos criadores de direitos. A regra jur’dica Ž objetiva e incide nos fatos; o suporte f‡tico torna-se fato jur’dico. O que, para alguŽm, determinadamente, dessa ocorrncia emana, de vantajoso, Ž direito, j‡ aqui subjetivo, porque se observa do lado desse alguŽm, que Ž o titular dele.Ó (grifos nossos)
Colocando-se a quest‹o do direito subjetivo sob estes termos, compreende-se o porqu de Miranda insistentemente em sua obra observar que, nada obstante a proximidade das no›es de direito objetivo e subjetivo, n‹o podem ser os mesmos reduzidos a verso e anverso do mesmo conceito. A regra jur’dica, ou norma objetiva, necessariamente, no entender do jurista, se faz presente em momento anterior, e, por fora de sua incidncia, um Ð e n‹o o – efeito Ž a cria‹o de situa‹o de vantagem a determinado sujeito em face de outro. Mais uma vez, pela clareza, retornamos ao pensamento do tratadista:
ÒQuando, porŽm, se pensa em direito subjetivo, j‡ se est‡ longe da regra jur’dica; porque, em rela‹o ˆ regra jur’dica, o direito subjetivo Ž efeito. Sup›e ter havido o suporte f‡tico, a regra jur’dica e o fato de incidncia. Sup›e mais: sup›e ap—s isso, o que ali‡s Ž imediato ˆ incidncia, o fato jur’dico. Sem esse encadeamento, seria obscuro chegar-se ˆ no‹o de direito subjetivo.Ó
Com base nesta œltima li‹o, vemos que o direito subjetivo surge como o resultado de um longo processo desencadeado pela aplica‹o de determinada norma jur’dica. Bem por isso, n‹o Ž algo que se concebe no plano abstrato e de forma independente da regra jur’dica que lhe serviu de suped‰neo.
O legado desta œltima corrente de pensamento, assim, Ž a liga‹o final e at‡vica do direito subjetivo e objetivo – ainda que n‹o representem causa e conseqŸncia um do outro – e a explica‹o do que de fato ocorre no ‰mbito jur’dico para que se possam atribuir certas faculdades e/ou poderes a determinados sujeitos.
Com base em todos os aspectos hist—ricos agora delineados, a comear pelas li›es basilares de Gulherme de Ockham, entende-se que Ž poss’vel compreender que, a despeito da discuss‹o do que Ž o direito subjetivo, o trao caracter’stico deste instituto jur’dico Ž a situa‹o ativa dele decorrente em um sujeito de direito, face de outro determinado, e que nesta posi‹o assumida se encerra um poder, uma faculdade, ou ambos (MIRANDA, 2000, p. 274).
Ao lado dessa situa‹o ativa, existiria tambŽm, necessariamente e de forma correlata, um dever por parte do sujeito passivo da rela‹o jur’dica, o qual tem de prestar obsŽquio ao exerc’cio daquele que se encontra no seu p—lo ativo.
E decorre deste œltimo aspecto o efeito de limita‹o do direito subjetivo, ˆ medida que este restringe o sujeito passivo ao respeito de determinada conduta por aquele que Ž o titular de um direito subjetivo. Como bem relembra Miranda (2000, p. 270) ÒTodo direito subjetivo, como produto da incidncia da regra jur’dica, Ž limita‹o ˆ esfera de atividade de outro, ou de outros poss’veis sujeitos de direitoÓ.
O reconhecimento da posi‹o jur’dica ativa a um sujeito de direito, assim, conduz a uma inevit‡vel redu‹o de condutas pass’veis de outro que est‡ em situa‹o de desfavor na rela‹o jur’dica. E o exerc’cio em desacordo com os efeitos da rela‹o jur’dica, ou a simples omiss‹o Ð quando necess‡rio agir para cumprir a presta‹o – na conduta daquele que se v em posi‹o passiva Ž o que faz nascer o efeito da pretens‹o, entendida como a possibilidade de exigir judicialmente ou extrajudicialmente o cumprimento de determinado direito subjetivo (SILVA, 1991, P. 135).
Mas, traados estes contornos essenciais do direito subjetivo, faz-se necess‡rio indagar: como se d‡ – e se deu – essa rela‹o entre direito subjetivo e a Administra‹o Pœblica? ƒ poss’vel sustentar a existncia de situa›es ativas do administrado em face do Poder Pœblico?
Para respondermos a esta pergunta de forma satisfat—ria, entendemos imprescind’vel analisar, ainda que de forma sucinta, o desenvolvimento do direito administrativo desde o seu nascedouro atŽ os dias atuais, realando as caracter’sticas principais que se consolidaram neste ramo do direito com o passar do tempo.
2. Breve an‡lise sobre o surgimento e desenvolvimento do direito administrativo: uma hist—ria contada de forma equivocada.
Para a realiza‹o da an‡lise proposta ao fim do t—pico anterior, comecemos com a investiga‹o da situa‹o deste ramo da cincia do direito no Antigo Regime, em Žpoca prŽ-revolucion‡ria na Frana, bem refletida no discurso do Rei Lu’s XV perante o Parlamento de Paris, em 03 de maro de 1766:
ÒOs direitos e os interesses da na‹o dos que se ousam fazer um corpo separado do monarca est‹o necessariamente unidos com os meus e n‹o repousam mais que em minhas m‹os. […] Em minha pessoa unicamente reside o poder soberano, cujo car‡ter pr—prio Ž o esp’rito de conselho, de justia e de raz‹o… A plenitude desta autoridade, que os Tribunais n‹o exercem mais que em meu nome, permanece sempre em mim e seu uso n‹o pode ser jamais usado contra mim.Ó (ENTERRêA, 2001, p. 101, tradu‹o nossa)
Acreditamos, com Enterr’a, que neste discurso repousa a idŽia b‡sica e central do direito administrativo anterior ˆ Revolu‹o Francesa e que pode ser resumido no seguinte brocardo: Òtodos est‹o obrigados em algo ao Rei, o Rei n‹o est‡ obrigado nunca com nenhumÓ[5] (ENTERRêA, 2001, p. 101, tradu‹o nossa).
N‹o nos parece demasiado afirmar que em um cen‡rio como esses a defesa de uma rela‹o jur’dica travada com o Estado era invi‡vel. Essa m‡xima transcrita rechaa, de forma perempt—ria, toda e qualquer possibilidade de vincula‹o jur’dica passiva a ser refletida no Rei ou em eventual pr’ncipe.
O que se passava no direito de cunho pœblico, ent‹o, a essa Žpoca, era o seguinte: com a consolida‹o das monarquias absolutistas o mandat‡rio do poder era visto como uma figura que estava acima das leis, bem por isso, defendia-se a sua liga‹o direta com o divino, com o direito natural, n‹o necessitando, em momento algum, se submeter ˆs vicissitudes das leis positivas de seu tempo.
O discurso proliferado por aqueles estudiosos do Direito Pœblico[6], portanto, buscava legitimar a quebra do direito comum, que regulava as rela›es de cunho privat’stico, em favor do Rei, e postulava a justifica‹o das exorbit‰ncias do Poder Pœblico e das derroga›es das leis atŽ ent‹o estabelecidas. Tudo se fazia para evidenciar que n‹o seria poss’vel a ocorrncia de rela›es jur’dicas diretas com o Poder estabelecido; ao sœdito, em face da autoridade e de seu poder inesgot‡vel restaria apenas a venera‹o, a obedincia e a fidelidade: Òn‹o h‡ outros direitos que os que encerram o uso do poder em paz e em guerra, pr—prio do ReiÓ (ENTERRêA, 2001, p. 100).
PorŽm, como cedio, adveio a Revolu‹o Francesa em 1789 e com ela substancial mudana no regime pol’tico, ascendendo ao poder uma camada da sociedade amplamente influenciada por novas idŽias, tidas por liberais, e que se pautaram decisivamente pelas li›es da Escola do Direito Natural e das Gentes, a qual, como relembrado, concedia ao sujeito a condi‹o de detentor de direitos inescus‡veis atŽ mesmo em face do monarca prŽ-estabelecido.
Para consuma‹o destas garantias, consolidou-se o que chamamos nos estudos hodiernos de Estado do Direito, submetendo todas as nuances do poder aos ditames da legalidade, na qual deveriam estar reguladas todas as matŽrias imprescind’veis para a convivncia do ser humano. Seria a Lei, portanto, o objeto de regula‹o e liberdade do cidad‹o contra os desmandos, seja de um particular, seja do Poder Pœblico.
Ao lado desta inova‹o jur’dica, estaria tambŽm uma nova forma de organiza‹o do Estado, onde restaria aplicada a teoria da separa‹o de poderes, encontrando em seu expoente maior o francs Montesquieu.
Nesta nova forma de reparti‹o do poder, restaria ao Parlamento, —rg‹o m‡ximo de representa‹o popular, elaborar as imprescind’veis leis gerais e abstratas que seriam executadas pelo Poder Executivo, e aplicadas pelo Poder Judici‡rio, de forma indistinta a todos os cidad‹os. Em apertada s’ntese, e para caber na exigŸidade deste estudo, a leitura que se faz desse novo regime Ž a prevalncia da vontade geral expressa na Lei em face dos demais poderes, que deveriam estar sujeitos ˆs sempre prŽvias manifesta›es do Parlamento. E o direito aplicado ˆ Administra‹o Pœblica, supostamente, n‹o restaria isento de transforma›es perante esse amplo espectro de mudanas pol’ticas.
Narra a hist—ria oficial do direito administrativo que com a Loi de 28 do pluviose do ano VII – editada em 1800, organizando e limitando, de forma externa, a atividade realizada pela Administra‹o Pœblica – se passou, pela primeira vez na hist—ria, a limitar objetivamente a atua‹o administrativa (BINENBOJM, 2008, p. 10). Ou seja, ap—s a promulga‹o deste programa legal se consubstanciaria o ideal da Administra‹o mera executora da Lei – faceta da aplica‹o do princ’pio da separa‹o dos poderes, vale dizer -, que deveria estar subordinada e atada aos ditames do Direito.
N‹o por outra raz‹o que autorizados doutrinadores defendem que a simples existncia da reportada Lei representa n‹o apenas o fen™meno da submiss‹o do poder do mandat‡rio e da Administra‹o Pœblica ˆ Lei, mas tambŽm a cria‹o pr—pria do direito administrativo. Vejamos o representativo esc—lio de ninguŽm menos que Caio T‡cito:
ÒO epis—dio central da hist—ria administrativa no sŽculo XIX Ž a subordina‹o do Estado ao regime de legalidade. A lei, como express‹o da vontade coletiva, incide tanto sobre os indiv’duos como sobre as autoridades pœblicas. A liberdade administrativa cessa onde inicia a veda‹o legal. O Executivo opera dentro dos limites traados pelo Legislativo sob a vigil‰ncia Poder Judici‡rioÓ. (apud BINENBOJM, 2008, p. 10)
A leitura tradicional da doutrina administrativista, portanto, encontra neste epis—dio o manancial para defender uma mudana vertiginosa no tratamento deste ramo do direito. Operou-se, aqui, verdadeiro milagre[7]: subjugou-se a vontade do soberano ˆ vontade geral do Parlamento. Com esta simples manobra pol’tica, como que quase todos os problemas do abuso de autoridade, da exacerba‹o do poder estariam eliminados: a Administra‹o Pœblica, agora, estaria sujeita nada mais, nada menos, que ao imperativo da Lei.
A revolu‹o liberal, assim, sobrelevaria uma mudana de paradigma: da representa‹o do divino pelos reis ˆ representa‹o popular pelo Parlamento (COSTA, 2011, p.29). E o resultado disso seria a sa’da de um regime autorit‡rio para um sistema baseado na liberdade do administrado, que estabeleceria rela›es jur’dicas com o soberano pautadas diretamente em diplomas normativos. Da autoridade ˆ garantia dos administrados. Uma hist—ria, portanto, essencialmente de liberdade, do direito dos administrados contra a Administra‹o Pœblica, muito bem resumida nas palavras de Enterr’a (2001, p. 110):
ÒA substitui‹o do monarca pelo povo implica tambŽm, portanto, uma mudana do instrumento de governo; o Rei era uma vontade singular, que se legitimava como representante do divino, e que, portanto, […] podia excepcionar ou dispensar em qualquer momento a norma geral de uma Lei prŽvia […].Ó
Desde a situa‹o geral de liberdade na qual a sociedade civil se constitui […] a rela‹o pol’tica do cidad‹o com o poder deixar‡ de ser uma rela‹o de sujei‹o ou subordina‹o pessoal […]; ser‡, de agora em diante, uma rela‹o jur’dica de simples obedincia ˆ Lei.Ó
Em um panorama como esse, poder’amos sustentar facilmente que a consolida‹o de direitos subjetivos n‹o poderia ser mais do que o normal no dia-a-dia da rela‹o entre a Administra‹o e o particular. Afinal, se a atividade administrativa est‡ pautada na Lei, e esta œltima, como acima rememorado, por fora de sua aplica‹o, gera situa›es ativas ao particular, n‹o haveria como escapar ao reconhecimento de poderes e/ou faculdades a serem exercidas em detrimento do Poder Pœblico.
Mas, Òtal hist—ria seria esclarecedora, e atŽ mesmo louv‡vel, n‹o fosse falsaÓ (BINENBOJM, 2008, p. 11). Se nos aprofundarmos nos detalhes, veremos antes que o direito administrativo hodierno mais teve sua gnese em uma perpetua‹o da autoridade e do poder do Antigo Regime, que da garantia de situa›es jur’dicas ativas aos administrados. Vejamos.
Primeiramente, observe-se que ap—s a eclos‹o da Revolu‹o Francesa e a conseqŸente tomada de poder pelos liberais, instaurou-se nos revolucion‡rios o medo de que os Tribunais Judici‡rios recebessem com hostilidade a nova ordem de governo, suprimindo, assim, ampla margem de a‹o de suas autoridades administrativas ditas revolucion‡rias. N‹o se poderia permitir, por sua vez, que o julgamento das causas em que estivesse envolvido o aparato administrativo chegasse ao conhecimento do Tribunal Judici‡rio da Žpoca.
Procedeu-se, bem por isso, a uma espec’fica releitura do princ’pio da separa‹o dos poderes apregoada por Montesquieu. Ao invŽs de se enveredar por um caminho de aprecia‹o dos atos administrativos por um —rg‹o imparcial e neutro, qual seja, o Poder Judici‡rio, se proliferou uma m‡xima consistente em que Òjulgar a Administra‹o ainda Ž administrarÓ (OTERO, 2008, p. 275).
Esta ideia, que por muito tempo entenderam os administrativistas revelar uma garantia aos administrados, em verdade, Ž uma das condicionantes da permanncia de seu gŽrmen de autoridade. E isto porque, no momento em que a Administra‹o Pœblica assim declara, suprime a competncia do Poder Judici‡rio de julgar os conflitos em que esteja envolvida e os entrega para um —rg‹o distinto, que ˆ Žpoca se apresentou como o Conselho de Estado Francs. Cria-se, com isso, um Tribunal Administrativo apartado do Poder Judici‡rio comum.
Acontece que este —rg‹o, nomeadamente o respons‡vel pelo desenvolvimento dos institutos do Direito Administrativo de hoje em dia, se encontrava vinculado diretamente ao Poder Executivo, sendo que suas decis›es se afiguravam como meras propostas pass’veis de aprecia‹o e acatamento de parte do Chefe daquele poder[8]. Ou seja, em que pese a mudana advinda com o paradigma liberal, a Administra‹o Pœblica continuava julgando a si pr—pria. E isto n‹o representa mudana alguma ao estilo anterior ˆ Revolu‹o, tanto que Tocqueville assinalou com precis‹o que Ònesta matŽria apenas encontramos a f—rmula; ao Antigo Regime pertence a idŽiaÓ (apud OTERO, 2008, p. 275).
Mas essa manobra pol’tica representou ainda mais. A legitimidade concedida ao Conseil D«Etat para julgar este tipo de contenda propiciou que o mesmo constru’sse ao longo do tempo o manancial de conceitos a serem trabalhados no Direito Administrativo, resultado da consolida‹o de seus precedentes jurisprudenciais.
Em um primeiro momento, a institucionaliza‹o deste sistema jur’dico, em que a Administra‹o Pœblica literalmente foge ao controle exercido pelo Poder Judici‡rio, comeou a legitimar a cria‹o de solu›es de cunho processual bastante distintas e evidentemente derrogadoras do Direito Comum.
Por meio da jurisprudncia do Conselho de Estado francs consolidaram-se princ’pios que limitavam ou reduziam a matŽria a ser questionada no ato emanado pela Administra‹o Pœblica; entendiam pela isen‹o de determinados atos do controle do Tribunal, a exemplo dos atos de governo e dos atos pol’ticos; e, ainda, preceituavam a apertada legitimidade processual ativa para figurar em uma demanda perante a Administra‹o Pœblica (OTERO, 2008, p. 276). Ou seja, resta aqui um racioc’nio embrion‡rio para a existncia de um Direito Processual diferenciado pelo t‹o s— fato de estar em litig‰ncia com a Administra‹o Pœblica.
Momento posterior e l—gico ˆ cria‹o Ð jurisprudencial e n‹o legal, vale dizer Ð deste t’pico direito processual, foi o avano das decis›es do Conselho de Estado sobre as atividades realizadas pela Administra‹o Pœblica, ou seja, sobre o direito material que iria reger as rela›es travadas pelo particular em face daquela.
Baseado sempre na ideia da disparidade supostamente verificada entre as rela›es travadas entre os privados – solucionadas pelo Direito Comum e no ‰mbito do Tribunal Judici‡rio – e as rela›es jur’dicas estabelecidas perante o Estado – que ensejariam a interven‹o de um Tribunal Administrativo – a Administra‹o Pœblica, por meio de uma decis‹o tomada no ‰mbito do Poder Executivo, passou a avaliar e qualificar as suas pr—prias condutas, como sendo consoantes ou n‹o com o ordenamento jur’dico[9]. E isto se fazia em meio a um suposto v‡cuo legislativo, que legitimava a cria‹o de solu›es pautadas sempre na ideia de desigualdade, como demonstra Otero (2008, p. 280):
ÒNo quadro de um sistema em que a explica‹o da origem do Direito Administrativo se encontra na necessidade de criar um grupo de normas especificamente reguladoras da actividade do poder executivo, afastando-se a aplica‹o do Direito Comum de natureza substantiva Ð tal como j‡ antes, num momento imediatamente anterior, se haviam afastado os meios processuais comuns de reac‹o contra as decis›es administrativas Ð comeam a desenhar-se os contornes materiais de um novo ramo de Direito derrogat—rio de muitas das solu›es normativas decorrentes do Direito Comum e genericamente animado por uma desigualdade do estatuto jur’dico das partes envolvidas, isto por efeito da atribui‹o de prerrogativas especiais de autoridade ao poder executivo.Ó (grifos nossos)
Ap—s esta œltima ideia, residente em suposta constata‹o de diferencia‹o entre as atividades administrativas e aquelas laboradas pelos particulares, comeou-se a solidificar espec’ficos entendimentos no direito administrativo que se reflete atŽ a atualidade.
Reconhecia-se naquele momento, de forma concomitante, n‹o a validade do Direito Comum para a solu‹o de seus casos, mas a existncia de um direito especial, criado no ‰mbito da Administra‹o Pœblica, e que era notoriamente desvantajoso ao particular na medida em que, dentre alguns exemplos: concede poderes exorbitantes de defini‹o do direito aplic‡vel ao caso concreto ‡ Administra‹o Pœblica; prev a possibilidade de execu‹o forosa de suas decis›es em determinados casos; reconhece a titularidade da defini‹o unilateral da norma ˆ regular o caso concreto; sem contar com as j‡ mencionadas garantias processuais distintas daquelas veiculadas no Tribunal Judici‡rio em sentido comum.
E isto tudo representa uma contradi‹o flagrante com a ideia basilar de submiss‹o direta e irrestrita de toda e qualquer atividade dos sujeitos de direito a uma atividade legislativa prŽvia proveniente dos representantes do povo, ou seja, ao princ’pio da legalidade que colocaria em pŽ de igualdade todos os participantes da sociedade. Como acima relembrado, foi li‹o recorrente dentre os liberais que, evocando Montesquieu e a Rousseau e os artigos 5¼ a 8¼ da Declara‹o dos Direitos do Homem, a Lei deveria ser a medida de todas as coisas e o suped‰neo œnico dos poderes advindos de qualquer sujeito de direito, sem distin‹o (ENTERRêA, 2001, p. 82).
O que se passou com o direito administrativo, no entanto, foi literalmente o contr‡rio. N‹o se vinculou a vontade administrativa em nenhum momento aos ideais do Parlamento, mas ˆ jurisprudncia laboriosa de um —rg‹o integrante do Poder Executivo, que se queria, declaradamente, distante dos Tribunais Judici‡rios. V-se, pois, que a evolu‹o deste ramo do direito n‹o Ž produto da lei, Òantes se configura como uma interven‹o decis—ria autovinculativa do Executivo sob proposta do Conseil D«EtatÓ (OTERO, 2008, p. 271). E, como bem pontuou Binenbojm (2008, p. 15), se h‡ algum sentido de garantia que norteia e inspira o surgimento e o desenvolvimento da dogm‡tica administrativa, Òeste foi a favor da Administra‹o, e n‹o dos cidad‹osÓ (BINENBOJM 2008, p. 15).
3. Reflex›es acerca da rela‹o entre o direito subjetivo e a administra‹o pœblica
Esclarecidos em pormenores os detalhes ocorridos no nascedouro do direito administrativo atual, apenas por equ’voco hist—rico Ž que se poder‡ afirmar que a sua gnese estaria ligada ˆ ideia de liberdade e de submiss‹o da Administra‹o Pœblica aos ditames da vontade geral. Antes, se vincula este ramo do direito ˆs at‡vicas ideias de autoridade e de poder, reproduzindo, bem por isso, a f—rmula anteriormente vislumbrada ˆ Žpoca do Antigo Regime.
Baseado numa interpreta‹o tortuosa do princ’pio da separa‹o dos poderes, assim como assentado em uma duvidosa legalidade, curiosamente moldada aos dissabores da jurisprudncia de um Tribunal Administrativo vinculado ao Poder Executivo, Ž que o Direito Administrativo nasce.
E nasce, repita-se, cheio de prerrogativas especiais. Prerrogativas estas que, como bem relembrou Otero (2008, p. 271), com base na pr—pria an‡lise da jurisprudncia do Conselho de Estado francs ˆ Žpoca, chegaram a ser eleitas como a Òcausa e a medida da independncia do Direito Administrativo, ou seja, este ramo do direito comeou por ser um Direito de prerrogativas especiais da Administra‹oÓ.
E foi em meio a todos esses resqu’cios de autoridade que a maioria dos conceitos que hoje trabalhamos surgiu, como bem relata Binenbojm (2008, p. 15):
ÒNesse contexto, as categorias b‡sicas do direito administrativo, como a discricionariedade e sua insindicabilidade perante os —rg‹os contenciosos, a supremacia do interesse pœblico e as prerrogativas jur’dicas da Administra‹o, s‹o tribut‡rias deste pecado original consistente no estigma de suspeita de parcialidade de um sistema normativo criado pela Administra‹o Pœblica em proveito pr—prio, e que ainda se arroga o poder de dirimir em car‡ter definitivo, e em causa pr—pria, seus lit’gios com os administrados.Ó
A luta ao longo do tempo, assim, n‹o ser‡ o fortalecimento das garantias advindas dos ideais revolucion‡rios, mas da limita‹o pr—pria dos poderes que foram concedidos ˆ Administra‹o Pœblica de quando elaborado o direito Administrativo na Europa Continental e que foi importado em quase sua totalidade no Brasil (BINENBOJM 2008, p. 17)[10]. Procura-se afastar, e n‹o consolidar, gradativamente, a vincula‹o da conduta do Poder Pœblico ao ordenamento jur’dico[11].
Ao nosso sentir, o atual cen‡rio do direito administrativo n‹o nos parece t‹o distante dos debates inicialmente travados na original concep‹o do direito administrativo elaborado pelo Conselho de Estado francs. AtŽ hoje os manuais de direito administrativo s‹o fartos em elencar as Òprerrogativas especiais da Administra‹o PœblicaÓ, as Òcl‡usulas exorbitantesÓ estipuladas em seu favor nos contratos administrativos, com o que se garantem espaos de livre atividade e decis‹o em prol da Administra‹o Pœblica e em desfavor de determinados particulares.
Acontece que todas estas express›es se originaram em sua maioria no sŽculo XIX, e, por mais que recebam diversas ressalvas pelos juristas que o tratam[12], inelutavelmente ainda guardam o autoritarismo que lhe Ž inerente, dificultando a correta compreens‹o de diversas situa›es jur’dicas ocorridas no trato com a Administra‹o Pœblica.
ƒ preciso notar, tambŽm como resultado deste processo hist—rico de consolida‹o do direito administrativo, a pr—pria impregna‹o da linguagem utilizada na matŽria, que difere substancialmente de todas as outras ‡reas do estudo do direito. Direito Administrativo Ž contrabalancear prerrogativas da Administra‹o e garantias do administrado. N‹o se utiliza em seu linguajar, normalmente, duas express›es simples e que muitas vezes refletem com fidelidade fen™menos ocorridos ao redor da Administra‹o Pœblica, quais sejam: direito e dever. Ë Administra‹o, repita-se, n‹o s‹o concedidos direitos, e sim prerrogativas, faculdades, poderes. E o particular Ž mero detentor de garantias, e n‹o propriamente de direitos prontos para o seu exerc’cio.
Remanesce claro, portanto, que em um contexto como esse, ao contr‡rio da facilidade inicialmente apontada por aqueles que veem no in’cio do direito administrativo a hist—ria da concess‹o de poder e/ou faculdade ao cidad‹o, o direito subjetivo n‹o s— Ž matŽria cara, como certas vezes estranha a este ramo da cincia jur’dica. Esta œltima express‹o tem de conviver ao lado de pomposas outras como: Òcl‡usulas exorbitantesÓ, Òprerrogativas especiais do poder pœblicoÓ, Òdiscricionariedade administrativaÓ, que, em uma percep‹o aligeirada e err™nea do fen™meno Ð como adiante se evidenciar‡ -, poderiam ser utilizadas a qualquer tempo em detrimento de um direito do particular, e com base no raso fundamento de que o interesse pœblico deve prevalecer a priori em face do particular[13].
O resultado disso tudo, certamente, Ž um enfraquecimento e sempre uma relut‰ncia no reconhecimento de qualquer situa‹o ativa em favor do particular em que, correlatamente, esteja o Poder Pœblico no lado passivo da rela‹o. ƒ dif’cil imaginar que este, detentor de tantas faculdades e poderes, possa sofrer os efeitos da limita‹o que o direito subjetivo, como acima rememorado, produz.
Mas tudo isso n‹o nos ilude. Sobretudo ap—s a promulga‹o da Constitui‹o de 1988[14], n‹o hesitamos em afirmar que existem, sim, situa›es ativas em favor do cidad‹o e que a Administra‹o Pœblica deve respeitar o seu exerc’cio, sob pena de ser exigido este perante um —rg‹o judicial. E, ao revŽs do que se pode pensar, estas situa›es s‹o muitas e merecem o devido obsŽquio e estudo.
4. Conclus›es
Em um primeiro momento, concebemos, com base em uma an‡lise hist—rica, os traos essenciais do direito subjetivo. Realamos o seu surgimento como efeito decorrente da incidncia de uma norma a um determinado suporte f‡tico, ou seja, o analisamos no plano da efic‡cia jur’dica;
Complementamos o racioc’nio evidenciado a situa‹o ativa que o mesmo gera em favor de um determinado particular, e que faz surgir, tambŽm e como consequncia l—gica, uma sujei‹o passiva do outro polo da rela‹o jur’dica, terminando por limitar a conduta deste œltimo;
Ainda, traamos um paralelo entre o direito subjetivo e a hist—ria do Direito Administrativo. Restou reconhecido, por sua vez, a ilus‹o garant’stica de gnese (OTERO, 2007, p. 129) deste ramo da cincia jur’dica, o que sobreleva a cria‹o da maioria dos conceitos que trabalhamos hoje em dia sob o signo da autoridade e do poder irrestrito;
Por fim, reconhecemos que a gnese do Direito Administrativo est‡, dia a p—s dia, dificultando que se reconheam direitos subjetivos em seu desfavor. No entanto, com o advento da Constitui‹o Federal, e a irradia‹o de seus efeitos Ž a base necess‡ria para que este panorama, t‹o tranquilamente, reverberado pela doutrina, comece a mudar.
Informações Sobre o Autor
Fernando Filgueiras de Araujo
Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Pós-Graduado em Direito Público pela Faculdade Baiana de Direito