1. Considerações Iniciais.
A compreensão dos elementos constitutivos da doutrina da proteção integral, como base teórica legitimante e orientadora das políticas públicas para a infância no Brasil, exigem apontamentos sobre os significados históricos atribuídos à infância na produção jurídica brasileira pela doutrina da situação irregular.
Isso porque a inclusão dos Direitos da Criança e do Adolescente no campo dos novos direitos ainda causa espanto. Ora, como a exclusão dos direitos humanos, de uma parcela significativa da população brasileira, resistiu ao processo histórico sendo reconhecidos como direitos fundamentais tão recentemente? Qual o significado jurídico-político da afirmação do Direito da Criança e do Adolescente como ramo jurídico autônomo e interdependente dos demais campos da ciência jurídica? Seria realmente necessária uma mudança conceitual em relação à matéria? Quais as concepções superadas em 1988 com a instituição do Direito da Criança e do Adolescente? As respostas para todas essas questões estariam absolutamente incompletas se desconsideradas a real dimensão das idéias de situação irregular produzidas no processo histórico brasileiro.
Além disso, o interesse pela matéria decorre do descompasso profundo entre a lei e a realidade brasileira. Daí, a necessidade de compreensão dos reais limites e perspectivas do novo Direito da Criança e do Adolescente para que se transformem em instrumentos provocadores de mudanças sociais positivas. Por isso, a compreensão destas questões implica necessariamente na análise da transição desde as origens do Direito do Menor até o estabelecimento da Doutrina da Proteção Integral da Criança e do Adolescente. É fundamentalmente essa transição que instaura o Direito da Criança e do Adolescente no campo dos denominados novos direitos.
A compreensão deste processo requer uma perspectiva histórica. No entanto, é preciso ressaltar que a descrição dos elementos históricos visa tão somente resgatar alguns elementos para melhor compreensão do tema, deixando-se à margem qualquer expectativa classificatória em torno dos aspectos históricos do tema. Sob este aspecto, PINHEIRO observou:
“[…] quatro representações sociais mais recorrentes sobre a criança e o adolescente: objeto de proteção social; objeto de controle e de disciplinamento; objeto de repressão social; e sujeitos de direitos. Cada uma delas emerge em cenário sócio-histórico específico, respectivamente: Brasil-Colônia; início do Brasil-República; meados do século XX; e décadas de 70 e 80 do mesmo século. À medida que vão emergindo e se consolidando, verifica-se a coexistência de duas ou mais delas, marcada pelo embate simbólico. (2004, p. 345)”
Em visão semelhante entende-se que a percepção da infância no processo histórico brasileiro envolve retratos do período colonial e imperial, bem como, elementos constituídos em diversos momentos, arbitrariamente definidos e propostos como: Período Pré-Republicano (1530-1889) Primeira República (1889-1927), Período do Direito do Menor (1927-1964), Período da Política Nacional do Bem Estar do Menor (1964-1979), Período da Situação Irregular (1979-1988) e Período da Proteção Integral de 1988 até os dias atuais.
As idéias da situação irregular e do “menorismo” dominaram a maior parte da história brasileira, pois apesar da “descoberta da infância” (ARIES, 1981), o Brasil continuou convivendo com idéias segregacionistas, tais como incapacidade e discernimento (VERONESE, 1999). Segundo MENDEZ: “No momento em que a infância é descoberta, ela começa a ser percebida por aquilo que não pode, por aquilo que não tem, por aquilo que não sabe, por aquilo que não é capaz. Aparece uma definição negativa de criança.” (1994) Essa definição produziu uma política e uma normatividade definida pela orientação dos princípios menoristas, que estabeleceu um modelo que perdurou por quase cinco séculos no Brasil e, fundamentalmente, ainda resiste no imaginário cultural e nas práticas institucionais na atualidade. Para compreender os meandros dessa concepção é preciso percorrer alguns momentos históricos decisivos para o tema.
2. As raízes da Doutrina do Direito do Menor.
No período denominado como Pré-Republicano, ou seja, até a instalação da República em 1889, o Brasil manteve exclusivamente um modelo caritativo-assistencial de atenção à infância representada por ações em torno do abandono, da exposição e do enjeitamento de crianças que, em regra, tinham como destino o acolhimento por famílias substitutas e a institucionalização nas Rodas dos Expostos.
As Rodas criadas conforme o modelo de acolhimento infantil, em vigor na Europa durante o período colonial brasileiro, foi reproduzido e disseminado em larga escala por aqui. Provavelmente, foi um dos modelos assistenciais que mais perdurou na história brasileira, pois a primeira Roda dos Expostos foi criada em 1750 e a última encerrada em 1950, ou seja, durante duzentos anos consolidou-se como o principal modelo de acolhimento infantil. (MARCÍLIO, 1999)
No campo da educação, as práticas pedagógicas instituídas pelos jesuítas no século XVI representadas pelo binômio amor-repressão, que aliou a educação à imposição de castigos corporais, também resistiu ao longo dos séculos (CHAMBOULEYRON, 1999, SCHUELER, 2000). Embora, no século XIX as escolas de primeiras letras tenham se ramificado pelas comunidades brasileiras, a real condição da infância era a da absoluta exclusão educacional, com exceção, das crianças nobres que desde esta época recebiam cuidados diferenciados em um modelo educacional doméstico extremamente diversificado.
A escravidão também deixou sua marca na história da infância brasileira, pois mesmo no século XIX com os avanços no campo das ciências e a lenta incorporação dos ideais liberais europeus, a maior parte das crianças afro-descendentes foi subjugada à condição de absoluta exploração, muitas vezes tratadas como pequenos animaizinhos como retrata a historiografia referente ao período. (GÓES, 1999)
Até o final do período imperial brasileiro, praticamente inexistiu qualquer interesse, garantia de direito e proteção jurídica à infância. Apesar dessa condição, é possível encontrar nas Decisões do Império mulheres reivindicando a liberdade de seus filhos e a devolução de meninos e meninas subtraídos pelas Rodas dos Expostos.
Um interesse jurídico especial pela infância surge com a proclamação da República em 1889, quando em decorrência da abolição da escravidão, meninos e meninas empobrecidos circulam pelos centros urbanos das pequenas cidades procurando alternativas de sobrevivência e “perturbam” a tranqüilidade das elites locais. É principalmente a partir destas circunstâncias que o sistema de controle penal é colocado em ação visando estabelecer um controle jurídico específico sobre a infância.
Embora, o Código Criminal do Império, de 1830, já tratasse da menoridade como uma categoria jurídica; foi a partir da aprovação do Código Penal da República que a repressão assumiu um caráter político claro em torno do que se desejava enquanto imagem da infância brasileira, ou seja, aquela consagrada como o futuro do país baseado nas concepções básicas do positivismo. WOLKMER observa que
“A supremacia do positivismo jurídico nacional constrói-se no contexto progressivo de uma ideologização representada e promovida pelos dois maiores pólos de ensino do saber jurídico: a Escola de Recife e a Faculdade de Direito do Largo São Francisco (São Paulo). Produto de concepções consideradas avançadas na Europa, o apelo cientificista do positivismo surgia como discurso hegemônico e uniforme, identificado com os interesses emergentes da burguesia urbana liberal e com as novas aspirações normativas da formação sócio-econômica brasileira. (2000, p. 130.)”
As idéias positivistas aliadas ao movimento higienista e a todo um novo aparato jurídico foi responsável pela produção do “menor” enquanto objeto normativo, segundo o qual o Estado “visando garantir o futuro do país” deveria tomar medidas especializadas. (VIEIRA, 2005, p. 15)
É neste contexto que a criminalização, mesmo por meio de contravenções como a vadiagem e a capoeira, tornaram-se instrumentos poderosos de controle social das classes populares. Medidas como a criação do Instituto Disciplinar em 1902 para “menores delinqüentes” e a ampliação da aprendizagem pelas instituições militares serão medidas de caráter simbólico na nova estrutura institucional que se estabelecia na transição dos séculos XIX-XX.
Nos primeiros anos do século XX são criadas diversas iniciativas públicas e privadas de atenção à criança, seja pela influência européia decorrente da descoberta da infância ou ainda pela própria necessidade do Estado em oferecer respostas a uma constante pressão social de uma enorme massa de excluídos considerados como obstáculos reais ao ideário positivista da ordem e do progresso. Neste contexto, várias iniciativas isoladas procuravam oferecer medidas de caráter filantrópico e assistencial às crianças já nesta época submetidas ao estigma da “menoridade”.
A produção jurídica no período da Primeira República também foi muito intensa com uma vasta produção, geralmente de caráter meramente simbólico, mas que tratavam de temas como a assistência à infância desvalida, o controle do espaço público, a institucionalização de crianças, a regulamentação do trabalho, da aprendizagem e da educação em patronatos agrícolas, o abandono e a delinqüência.[1]
É preciso considerar também que o modelo federativo republicano também deixava aos estados as responsabilidades de políticas neste campo, que eram tratadas de acordo com as conveniências locais, mas que indistintamente tiveram como elemento basilar o controle judicial da menoridade.
3. A Doutrina do Direito do Menor.
A Doutrina do Direito do Menor teria sua primeira versão organizada com a proposta do primeiro Código de Menores no Brasil, iniciado com a edição do Decreto nº 5.083, de 01 de dezembro de 1926 e manifestando o interesse governamental na elaboração de uma legislação que consolidasse toda a produção normativa referente à matéria.
Para desempenhar esta função, o então Presidente Washington Luís, atribuiu ao Juiz de Menores do Rio de Janeiro José Candido Albuquerque de Mello Mattos, conhecido como o primeiro juiz de menores do Brasil e por sua preocupação com a menoridade, a responsabilidade de sistematizar uma proposta. Como resultado, em 12 de outubro de 1927 seria aprovado o primeiro Código de Menores da América Latina. (BRASIL, 1927) Este Código consolidou toda a legislação produzida desde a proclamação da república. De acordo com VERONESE,
“O Código de Menores veio alterar e substituir concepções obsoletas como as de discernimento, culpabilidade, penalidade, responsabilidade, pátrio poder, passando a assumir a assistência ao menor de idade, sob a perspectiva educacional. Abandonou-se a postura anterior de reprimir e punir e passou-se a priorizar, como questão básica, o regenerar e educar. Desse modo, chegou-se à conclusão de que questões relativas à infância e à adolescência devem ser abordadas fora da perspectiva criminal, ou seja, fora do Código Penal. (1999, p. 27-28)”
O Código de Menores brasileiro seria representativo das visões em vigor na Europa neste período, segundo as quais era necessário o estabelecimento de práticas psico-pedagógicas, geralmente carregadas de um forte conteúdo moralizador, produzindo e reproduzindo uma visão discriminatória e elitista, que desconsiderou as condições econômicas como fatores importantes na condição de exclusão. Para supostamente resolver os incômodos da delinqüência, do abandono e da ociosidade apresentava propostas focalizadas nas conseqüências dos problemas sociais omitindo-se em relação à absoluta condição de exploração econômica.
Os Institutos e estabelecimentos criados para o internamento dos considerados como menores eram motivos de constantes críticas por parte das autoridades, mas o modelo resistiu até o ano de 1941, quando foi criado a Serviço de Assistência a Menores, com a finalidade de prestar a proteção social aos menores institucionalizados. (BRASIL, 1941)
A criação do Serviço de Assistência aos Menores demarca uma mudança importante com a inclusão de uma política de assistência social nos estabelecimentos oficiais que até então estavam sob a jurisdição dos juizados de menores. A principal característica da política proposta pelo Código de Menores de 1927 era a institucionalização como via necessária para a solução dos problemas considerados como essenciais à organização social.
De todo modo, ao longo de todo o período foi freqüente o reconhecimento da incapacidade do Estado em prover uma política assistencial mesmo mínima, mas que não deixava de exercer o papel de repressão, controle e vigilância aos grupos estigmatizados pelo ideário elitista. Além disso, estimulou a inserção de crianças no trabalho pelos artifícios da aprendizagem e da profissionalização, pois se interessava mais pelos interesses econômicos do que qualquer outra necessidade social.
Até 1964, o modelo jurídico do Direito do Menor, que na verdade foi reduzido ao direito de ação estatal contra o menor, subsistiu às diversas transformações do Estado brasileiro praticamente inalterado, convivendo com pequenas experiências democráticas como nas Constituições de 1934 e de 1946, e também com modelos autoritários como do Estado Novo em 1937. No entanto, não se pode desconsiderar que por detrás das concepções menoristas estão as idéias fundamentais do pensamento autoritário. O pensamento autoritário no Brasil teve ênfase principalmente no período compreendido entre 1930 e 1945, sendo resultado da produção política e teórica de intelectuais tais como Francisco Campos, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, Alceu Amoroso Lima e Plínio Salgado. (MEDEIROS, 1978)
Contudo, a transposição desse modelo centrado no controle jurisdicional sobre a menoridade para o controle repressivo assistencial aconteceria a partir do golpe militar em 1964 com o estabelecimento da Política Nacional do Bem-Estar do Menor e a correspondente criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor.
4. A Política do Bem-Estar do Menor.
A Fundação Nacional do Bem Estar do Menor foi criada pela Lei nº 4.513, em 01 de dezembro de 1964, integrando, a partir daí, o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social, vinculado ao Ministério da Previdência e Assistência Social. Sua personalidade jurídica era a de entidade de direito privado o que garantia a autonomia técnica, financeira e administrativa, mas seus recursos estavam vinculados ao Fundo de Previdência e Assistência Social, de qualquer forma gozava das mesmas “regalias e privilégios” das autarquias federais. A FUNABEM estava sediada em Brasília e tinha por finalidade promover a execução da Política Nacional do Bem Estar do Menor mediante a orientação, coordenação e fiscalização das entidades executoras da política nacional.
A Política Nacional do Bem-Estar do Menor foi constituída com base nos princípios da doutrina da segurança nacional oriunda da ideologia da Escola Superior de Guerra. Declarava como objetivo o atendimento das necessidades “básicas do menor atingido por processo de marginalização social”.
Como se pode observar, a idéia de irregularidade e segmentação já se fazia presente em tal doutrina na medida em que as políticas públicas eram orientadas apenas para parcela estigmatizada com a marca da marginalização social. Além disso, o compromisso do Estado era mínimo, pois se reduzia ao oferecimento das necessidades básicas e sem qualquer comprometimento com as necessidades mais amplas de desenvolvimento integral.
De igual modo, a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor também estabeleceu como objetivo de atuação o atendimento às necessidades “básicas do menor atingido por processo de marginalização social”, ou seja, reconhecia as necessidades sociais pela via do avesso, pois além de manter o caráter discriminatório, produzia a atuação estatal pela via de uma estigmatização na qual o a marginalização era o pressuposto para o oferecimento de medidas públicas, condições características do ideário repressivo da época.
Quando se afirma que suas diretrizes estavam orientadas para a observação dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, é preciso notar que naquele momento ainda não havia sequer uma convenção internacional que amparasse os direitos da criança e do adolescente, mas que as ideologias das Escolas Superiores de Guerra, em especial a americana e a brasileira, estavam em franca ascensão, sendo, pois inevitável compreender que eram estas propostas às quais se vinculavam todo seu conteúdo programático.
A prioridade amparada pelas diretrizes da fundação limitava-se a integração do “menor” na comunidade, prestada mediante a assistência à família, e medidas muito próximas da tradição excludente das políticas brasileiras, tais como o incentivo à adoção, colocação familiar em lares substitutos e a institucionalização de “programas tendentes a corrigir as causas de desintegração.” Ora, a romântica visão que os problemas sociais seriam resolvidos por meio do assistencialismo e da propagação das visões deterministas de famílias estruturadas.
Se por um lado a idéia de família estruturada povoava o imaginário do bem-estar do menor neste período, na outra face da política estava a institucionalização como reprodutora do ideal de família. O art. 8º, III, do Estatuto da Funabem previa em suas diretrizes que deveria:
“[…] incrementar a criação de instituições para menores que possuam características aproximadas das que informam a vida familiar e a adaptação, a esse objetivo, das entidades existentes, de modo que somente se venha a admitir internamento de menor à falta de instituições desse tipo ou por determinação judicial.”
Embora a prática proposta fosse a do controle centralizado pelo Estado, o regime tinha claro que a política deveria ter certa articulação com as instituições locais, por isso, considerada a necessidade de atender as necessidades de cada região de acordo com suas peculiaridades, incentivando as iniciativas locais, públicas e privadas, visando dinamizar a “autopromoção” das comunidades, conforme art. 8º, IV do referido Estatuto.
O discurso da autopromoção das comunidades foi resposta à constante pressão pela implantação de um modelo de atendimento assistencial. Como o Estado já havia demonstrado, pelo menos desde a década de quarenta, seu absoluto desinteresse em prover o devido atendimento, mas ao mesmo tempo, interessava-se em manter o controle absoluto, a solução foi conciliar o discurso da institucionalização com a autopromoção comunitária, que em regra significou o controle regulador sobre as entidades sociais e a atuação estatal no campo da repressão, com o respaldo das autoridades judiciárias.
É neste contexto, que a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor caracterizava-se como típica instituição de controle centralizado, sendo vedada a criação ou manutenção de órgãos executivos voltados ao atendimento, reduzindo-se ao treinamento e experimentação de técnicas e metidos de atendimento. Por isso, estabeleceu a competência para:
I – realizar estudos, inquéritos e pesquisas, procedendo ao levantamento nacional do problema do menor; II – promover a articulação das atividades de entidades públicas e privadas dedicadas à execução da política nacional do bem-estar do menor; III – propiciar a formação, o treinamento e o aperfeiçoamento de pessoal técnico e auxiliar, inclusive pertencente a outras instituições públicas ou particulares, necessário à consecução de seus objetivos; IV – promover cursos, seminários e congressos, com o fim de examinar questões de interesse comum das autoridades administrativas e judiciárias relacionadas com a Política Nacional do Bem-Estar do Menor, em todas as Unidades da Federação; V – mobilizar a opinião pública no sentido da indispensável participação de toda a comunidade na solução do problema do menor; VI – prestar assistência técnica ou financeira aos Estados, Municípios e entidades públicas ou privadas para o desenvolvimento de programas de interesse da política nacional do bem-estar do menor; VII – fiscalizar a execução dos convênios, acordos e contratos de prestação de serviço celebrados com entidades públicas e privadas.
Todas essas ações tinham como fundamento elementar o conceito básico de “menor” e a perfeita correlação com a idéia de problema, daí ao longo de todo esse período o foco de atenção institucional submeter-se à expressão: o problema do menor. Pura subjetivação, amparada por uma normatividade, que retirava as responsabilidades da família, da sociedade e do Estado como focos centrais dos problemas propostos. Assim, o problema do menor não era o problema de um país autoritário e capitalista, que produzia e reproduzia a exclusão social. Nada mais fácil do que transferir a responsabilidade à própria vítima.
É preciso dizer que a administração da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor era exercida por um Presidente nomeado pelo Presidente da República, mas também contava com a participação de outros órgãos governamentais e não-governamentais, motivo pelo qual não se pode atribuir a visão centralizada do modelo apenas aos governos de plantão, ainda que sejam os maiores responsáveis, houve também entidades que contribuíram para a legitimação daquele modelo.
A administração da FUNABEM era composta por representantes de órgãos como o Ministério da Justiça, Ministério da Agricultura, Ministério da Educação e Cultura, Ministério do Trabalho, Ministério da Saúde, Ministério da Previdência e Assistência Social, bem como, representantes da Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, Conselho Federal dos Assistentes Sociais, Fundação Legião Brasileira de Assistência, Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial, Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, Conferência dos Religiosos do Brasil, Confederação Evangélica do Brasil, Confederação Israelita do Brasil, Federação Espírita Brasileira e Federação das Bandeirantes dos Brasil.
Como a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor estava submetida ao Ministério da Previdência e Assistência Social, cabia ao Ministro nomear e destituir os representantes da sociedade civil bem como supervisionar as ações do Conselho de Administração. O controle sobre as entidades era estabelecido de forma centralizada e com fortes vínculos, pois as entidades que recebiam dotações compulsórias, subvenções ou auxílios de qualquer natureza, por parte dos poderes públicos, para a prestação de assistência ao menor, eram obrigadas a planejar suas atividades com observância da política nacional do bem-estar do menor e a submeter à FUNABEM seus planos de trabalho e relatórios circunstanciados dos serviços executados.
No ano de 1978, a Fundação Nacional do Bem-Estar e sua respectiva política já era alvo de críticas contundentes sobre o modelo adotado, inclusive de vários organismos internacionais. Como resposta a essa condição, o Governo brasileiro cria, em 11 de dezembro de 1978, a Comissão Nacional do Ano Internacional da Criança. O resultado dos trabalhos da referida comissão seria a base para a declaração formal da Doutrina do Menor em Situação Irregular no Brasil, que desde 1927 estabelecia-se como prática corrente, que precisava de nova roupagem para subsistir às críticas.
5. A Doutrina do Menor em Situação Irregular.
O Código de Menores do regime militar, Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979, proposto pela Associação Brasileira de Juízes de Menores, foi aprovado nas Comemorações relativas ao Ano Internacional da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU). A nova lei institui a denominada doutrina da situação irregular no Brasil, da qual os maiores expoentes são os juristas Allyrio Cavallieri e Ubaldino Calvento. A proposta tem origem nas doutrinas da Organização dos Estados Americanos (OEA) e do Instituto Interamericano del Niño. Nesta época já havia clareza sobre as diferentes concepções em torno do tema, pois
“No I Congresso Ibero-Americano de Juízes de Menores, realizado neste ano [1979] na Nicarágua, juristas do porte de JOSÉ MANOEL COELHO, JOSÉ PEDRO ACHARD, RAFAEL SAJÓN, PEDRO DAVID e LUIZ MENDIZÁBAL OSES aceitaram a colocação feita por UBALDINO CALVENTO, civilista argentino e assessor jurídico da OEA, relativa à existência de três escolas em torno do Direito do Menor. Aqui estão elas:
1ª – Doutrina da proteção integral – partindo dos direitos das crianças, reconhecidos pela ONU, a lei asseguraria a satisfação de todas as necessidades das pessoas de menor idade, nos seus aspectos gerais, incluindo-se os pertinentes à saúde, educação, recreação, profissionalização etc.
2ª – Doutrina do Direito Penal do Menor – somente a partir do momento em que o menor pratique um ato de delinqüência interessa ao direito.
3º – Doutrina intermediária da situação irregular – os menores são sujeitos de direito quando se encontrarem em estado de patologia social, definida legalmente. É a doutrina brasileira.” (CAVALLYERI apud ALENCAR, Ana, LOPES, Carlos Alberto, 1982, p. 85)
A visão da situação irregular proposta no Código de Menores de 1979, desde a sua concepção foi objeto de profundas críticas no Brasil. NOGUEIRA lembra:
“Quando foi discutido o Código de Menores, o Senador José Londoso, em parecer sobre o Projeto, de autoria do Senador Nelson Carneiro, salientava que: ‘dentro desse contexto, o menor deve ser considerado como vítima de uma sociedade de consumo, desumana e muitas vezes cruel, e como tal deve ser tratado e não punido, preparado profissionalmente e não marcado pelo rótulo fácil de infrator, pois foi a própria sociedade que infringiu as regras mínimas que deveriam ser oferecidas ai ser humano quando nasce, não podendo, depois, agir com verdadeiro rigor penal contra um menor, na maioria das vezes subproduto de uma situação social anômala. Se o menor é vítima, deverá sempre receber medidas inspiradas na pedagogia corretiva […]’” (1998, p. 4).
Em que pese uma leve percepção em torno das contradições da própria proposta, pode-se observar a permanência dos mitos em torno da profissionalização redentora, das perspectivas limitantes de compreensão do menor como infrator ou subproduto, e da insistência em relacionar à idéia de que a exclusão social consistia em uma situação social anômala, quando já poderia ser verificada que a regra geral no modelo capitalista brasileiro era e sempre foi a total exclusão.
Assim, o Código de Menores foi aprovado com a proposta de estabelecer o disciplinamento jurídico sobre “assistência, proteção e vigilância a menores” considerando-os como aqueles até 18 anos de idade caracterizados como em situação irregular e, excepcionalmente, até os 21 anos nos casos previstos na própria lei. É de se anotar que
“Ainda na fase de estudos para a elaboração de um novo Código de Menores, a Juiz e Professor ALLYRIO CAVALLIERI propôs ‘a eliminação das denominações abandonado, delinqüente, transviado, infrator, exposto etc. para a rotulação de menores’, sugerindo ‘a adoção da expressão situação irregular para todos os casos em que for competente o Juiz de Menores ou aplicável o Direito do Menor.” (ALENCAR, LOPES, 1982)
De qualquer forma, a condição de situação irregular foi expressamente classificada a partir dos mesmos estigmas. Nesse sentido, o art. 2º da lei determinava expressamente os critérios para a determinação da situação irregular:
“Art. 2º Para os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor:
I – privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las;
Il – vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável;
III – em perigo moral, devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes;
IV – privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável;
V – Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária;
VI – autor de infração penal.
Parágrafo Único. Entende-se por responsável àquele que, não sendo pai ou mãe, exerce, a qualquer título, vigilância, direção ou educação de menor, ou voluntariamente o traz em seu poder ou companhia, independentemente de ato judicial.”
A Doutrina do Menor em Situação Irregular não representou real ruptura em relação ao modelo anterior. Ao contrário foi uma configuração jurídica precisa do se almejada desde o golpe de 1964. Nesse sentido o art. 4º do Código é expresso ao recomendar que a aplicação da lei deva considerar “I – as diretrizes da Política Nacional do Bem Estar do Menor, definidas pela legislação pertinente.”
As entidades consideradas como de assistência e proteção ao menor eram classificadas entre àquelas criadas pelo poder público e as entidades particulares. As entidades criadas pelo poder público para assistência ou promoção continuaram submetidas às diretrizes da Política Nacional do Bem-Estar do Menor, que propunham a implantação de centros especializados e destinados à recepção, triagem, observação e permanência dos considerados menores.
A inserção no sistema incluía estudo de caso nos centros de recepção, triagem e observação que deveria ser realizado num prazo médio de três meses considerando-se os aspectos sociais, médicos e psicopedagógicos, ou seja, puro controle disciplinar. Nos centros de permanência, a escolarização e a profissionalização eram obrigatórias, sendo oferecidas em regra uma escolarização de péssima qualidade e uma precária profissionalização.
O sistema de identificação era despersonalizante com anotações sobre as datas, circunstâncias dos motivos que provocaram a institucionalização e mantidas todas as informações controladas em fichas que tornassem possíveis o controle individualizado e absoluto dos corpos.
O controle do Estado sobre as entidades particulares também continuou absoluta, pois precisavam de registro nos órgãos estaduais responsáveis pelos programas para poderem funcionar, sendo comunicados à autoridade judiciária local e à Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor. As entidades que não estivessem adequadas às diretrizes da Política Nacional do Bem-Estar do Menor tinham seus registros negados, com base no Art. 10 do Código de Menores.
Enfim, a doutrina da situação irregular caracterizou-se pela imposição de um modelo que submetia a criança à condição de objeto, estigmatizando-as como em situação irregular, violando e restringindo seus direitos mais elementares, geralmente reduzindo-as a condição de incapazes, aonde vigorava uma prática não participativa, autoritária e repressiva representadas pela centralização das políticas públicas.
Houve um controle social por parte de um Poder Judiciário onipotente e assessorado pelas práticas policiais mais violentas, no qual a institucionalização era a regra para o menino e a menina, simplesmente porque nasceram pobres e destituídos das condições básicas de exercer seus poderes políticos e ter uma vida digna como deveria ser o direito de toda a criança. Sobre este tema VIEIRA destaca:
Impressionante como a ideologia da Ditadura Militar caminhava na contramão da história, inclusive quanto à regulação normativa das condições de vida da população infanto-juvenil. Em 1979, mesmo ano em que se iniciavam as discussões internacionais acerca da necessidade de se repensar a condição da infância no mundo (discussões estas que culminaram com a aprovação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança em 1989), o Brasil editava seu novo Código de Menores baseado na Doutrina da Situação Irregular. Enquanto o mundo começava a compreender que a criança não é mero objeto, mas pessoa que tem direito à dignidade, ao respeito e à liberdade, a legislação brasileira perpetuava a visão de que crianças e adolescentes se igualavam a objetos sem autonomia, cujos destinos seriam traçados pelos verdadeiros sujeitos de direitos, isto é, pelos adultos. (2005, p. 22)
Resta destacar que, invariavelmente na análise da produção do Direito do Menor e da Doutrina da Situação Irregular no Brasil, alguns aspectos comuns são observados como característicos de todo o período, tais como: 01) visão estigmatizada da infância pela produção do conceito de “menoridade” ou simplesmente pelo conceito de “menor”; 02) tratamento da “menoridade” como objeto de políticas de controle social; 03) atuação estatal direcionada para a violação e restrição dos direitos humanos; 04) (re)produção da condições de exclusão, com base em critérios individuais, econômicos, políticos, sociais, jurídicos que acentuavam as práticas de discriminação racial e de gênero; 05) definição da infância pelo o que ela não tem e não é, ou seja, a afirmação da teoria jurídica das incapacidades; 06) gestão das políticas governamentais de forma centralizada, autoritária, não-participativa; 07) controle centralizado e repressivo das ações associativas e dos movimentos sociais; 08) atuação dos poderes de Estado, principalmente Executivo e Judiciário, justificado pelas condições idealizadas de risco ou perigo; 09) responsabilização individual do menino e da menina à condição de irregularidade; 10) atuação do Judiciário no campo da gestão direta das ações sociais produzindo o juiz-assistente-social e o juiz-policial; 11) garantias oferecidas ao Estado e a Sociedade contra o menino e a menina; 12) institucionalização como prática dominante e freqüente.
A constatação deste quadro provocaria significativas resistências às concepções vigentes e com o fortalecimento dos movimentos sociais diversos setores começavam a exigir mudanças no início da década de oitenta, pois não era mais admissível conviver com o velho modelo.
Tais práticas foram favorecidas, à época, por uma conjunção de fatores: as precárias condições de vida da maioria das crianças e dos adolescentes; as contundentes críticas às diretrizes e ao conjunto de práticas governamentais de assistência; o acentuar-se das discussões sobre direitos da criança e do adolescente, formalizadas na CNUDC; o contexto sociopolítico propício à reivindicação e reconhecimento legal de direitos; e a articulação de setores da sociedade civil, concretizada no movimento em defesa da criança e do adolescente. Iniciativas de afirmação de direitos também emergiram no espaço governamental. É exemplo a campanha Criança e Constituinte, desencadeada no Ministério da Educação e Cultura (MEC), em 1986, presente na ANC, através das possibilidades de participação de que dispunham outros atores sociais, além dos Parlamentares. (PINHEIRO, 2004, p. 346)
Era o início de um complexo processo de transição que resultaria na superação do Direito do Menor pelo Direito da Criança e do Adolescente, e consequentemente, na substituição correspondente da Doutrina da Situação Irregular para a Doutrina da Proteção Integral.
Com segurança, pode-se afirmar que a transição da “doutrina da situação irregular do menor” para a “doutrina da proteção integral” estabeleceu-se gradativamente a partir da consolidação dessas práticas e experiências ocorridas durante toda a década de oitenta, com ênfase no processo de elaboração da nova Constituição, que, posteriormente, seria o elemento constitutivo da afirmação histórica dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes no Brasil.
6. A afirmação histórica dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes.
6.1 Os fundamentos da doutrina da proteção integral.
Para encontrar as bases da Doutrina da Proteção Integral das Nações é necessário resgatar a Declaração de Genebra, de 26 de setembro de 1924. A Declaração reconhece pela primeira vez em um documento internacional os direitos da criança. Este importante documento foi proposto pelo Conselho da União Internacional de Proteção à Infância (Save the Children International) e estabeleceu: 01) a proteção à criança, independente de qualquer discriminação de raça, nacionalidade ou crença, 02) o dever de auxílio à criança com respeito à integridade da família, 03) o oferecimento de condições de desenvolvimento de maneira normal com condições materiais, morais e espirituais, 04) que a criança deve ser alimentada, tratada, auxiliada e reeducada e 05) a primazia de receber socorro em quaisquer circunstâncias. Como síntese, pode-se afirmar que a declaração afirmava concepções oriundas das teorias positivistas e higienistas nos campos da educação e saúde, como se pode notar com os conceitos de tratamento e normalidade.
Em 1948, a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esta declaração afirmou direitos de caráter civil e político, incluindo os direitos econômicos, sociais e culturais de todos os seres humanos, envolvendo, portanto, as crianças. No seu artigo 25 estabeleceu cuidados e assistência especiais à maternidade e à infância. Para as crianças reconheceu uma proteção social, independentemente se nascidas dentro ou fora do matrimônio.
Estas transformações provocaram a edição da Declaração Universal dos Direitos da Criança, aprovada por unanimidade na Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1959, que traz em seu conteúdo, o primeiro conjunto de valores da Doutrina da Proteção Integral. A Doutrina da Proteção Integral foi constituída por princípios fundamentais reconhecidos para todas as crianças, tais como: 01) o reconhecimento de direitos sem distinção ou discriminação; 02) a proteção especial; 03) a identidade e a nacionalidade; 04) a proteção à saúde e à maternidade, 05) à alimentação, à habitação, à recreação e à assistência médica; 06) ao tratamento e aos cuidados especiais à criança incapacitada; 07) ao desenvolvimento sadio e harmonioso com amor e compreensão com a proteção da família, da sociedade e das autoridades públicas; 08) à educação; 09) o melhor interesse da criança; 10) a primazia de socorro e proteção; 09) a proteção contra quaisquer formas de negligência, crueldade e exploração e 10) a proteção contra atos de discriminações raciais, religiosas ou de qualquer outra natureza.
A Declaração Universal dos Direitos da Criança afirma os direitos humanos, com base no princípio da dignidade e o valor do ser humano, visando atingir melhores condições de vida para a população infantil, mediante o exercício de direitos e liberdades, protegidos contra qualquer espécie de discriminação, reconhecendo a condição peculiar de pessoa em processo de desenvolvimento, que necessita de cuidados e direitos especiais, antes e depois do nascimento, visando o bem-estar da criança, a quem a humanidade deve o melhor de seus esforços.
No entanto, o marco discursivo das declarações somente ganhará força a partir instituição de um Grupo de Trabalho na Comissão de Direitos Humanos da ONU, em 1979, com a finalidade de iniciar os estudos visando à construção de uma proposta de Convenção Internacional dos Direitos da Criança. O grupo de trabalho desenvolveu suas atividades durante toda a década de oitenta. Neste momento, acontecia o processo de abertura democrática no Brasil e a discussão de uma nova Constituição.
Em 1987, a Emenda Popular denominada Criança Prioridade Absoluta, com milhares de assinaturas, proposta por organizações não-governamentais, foi adotada pela Assembléia Nacional Constituinte. No ano seguinte, promulgou o novo texto, e adotou a Doutrina da Proteção Integral na Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art. 227, do seguinte modo:
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (BRASIL, Constituição, 1988)
No ano seguinte, o Grupo de Trabalho da Comissão dos Direitos Humanos da ONU encerra suas atividades e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança é aprovada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989. O Brasil ratificou a convenção logo após, em 21 de novembro de 1990 e incorporou definitivamente a Doutrina da Proteção Integral no corpo normativo brasileiro. Para o educador Antônio Carlos Gomes da Costa:
“Esta doutrina afirma o valor intrínseco da criança como ser humano; a necessidade especial de respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento; o valor prospectivo da infância e da juventude, como portadora de continuidade do seu povo e da espécie e o reconhecimento da sua vulnerabilidade o que torna as crianças e adolescentes merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atuar através de políticas específicas para promoção e defesa de seus direitos.” (COSTA, 1992, p. 19)
A Doutrina da Proteção Integral foi o fundamento basilar para a consolidação de um novo ramo do direito no Brasil: o Direito da Criança e do Adolescente. Segundo AMARAL E SILVA, a partir daí é:
“Muito mais adequado falar-se em Direito da Criança e do Adolescente, um novo ramo mais científico, mais jurídico, dirigido a todas as crianças e adolescentes, com denominação correspondente ao conteúdo da matéria por ele tratada. A nova doutrina evoluiu ‘da situação irregular do menor’ para a situação irregular da família, da sociedade e do Estado, preconizando novas medidas, também para os responsáveis ativos da situação irregular.” (AMARAL E SILVA, 2005)
A construção do Direito da Criança e do Adolescente proporcionou significativo processo de reordenamento institucional com reflexos de grande importância, tais como: 01) a desjudicialização das práticas de caráter administrativo; 02) mudanças de conteúdo, método e gestão; 03) a integração dos princípios constitucionais da descentralização político-administrativa e da democratização na efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente e 04) o reconhecimento do status de sujeito de direitos para toda a infância. Esse reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos garantiu, pelo menos no plano formal, o irrestrito, amplo e privilegiado acesso à Justiça. (ROCHA & PEREIRA, 2005)
O art. 227 da Constituição da República Federativa do Brasil ao reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de direitos não se reduz a uma declaração meramente formal; mas envolve uma perspectiva mais ampla ao substituir a menoridade enquanto categoria conceitual.
No Brasil, a Doutrina da Situação Irregular do Menor consolidou uma prática discriminatória e estigmatizante da população empobrecida, submetida ao controle repressivo, através de um sistema centralizado e fundamentado na velha Doutrina da Segurança Nacional, que vitimizou a população brasileira nos anos da ditadura. Com o processo de abertura democrática, a proposta menorista reprodutora das desigualdades sociais brasileiras, já não encontrava mais fundamentos.
A própria expressão “menor”, que ao longo de século XX, foi habitualmente relacionada à condição de abandono ou delinqüência serviu, principalmente, para distinções arbitrárias entre crianças favorecidas e desfavorecidas. Isso provocou uma dualidade, na medida em que às crianças eram reconhecidas em sua condição de infantes e os menores eram submetidos à condição de objeto de políticas, geralmente repressivas, punitivas e negadoras da sua condição de sujeito histórico. Nas discussões da década de oitenta, a expressão será questionada como portadora de forte estigma, pois foi geralmente utilizada como forma de discriminação. No Brasil, os próprios meninos e meninas reivindicaram o direito de serem reconhecidos universalmente como crianças e adolescentes.
Por isso, a nova Constituição da República do Brasil revogou a expressão “menor” do ordenamento jurídico brasileiro e reconheceu crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. É preciso destacar, que embora, nos textos das declarações e convenções internacionais o termo utilizado seja “criança”, o Brasil optou por uma distinção de acordo com a etapa de desenvolvimento fazendo a distinção entre crianças e adolescentes.
Para o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990, criança é a pessoa com idade até doze anos incompletos e, adolescente, aquele com idades entre doze e dezoito anos. Além da importante mudança terminológica, que reconhece a criança e o adolescente como “sujeitos”, a Constituição foi além ao garantir a condição de “sujeito de direitos”. O reconhecimento desta condição consolida uma nova lógica de compreensão e pensamento em relação à infância e a adolescência no Brasil.
A titularidade de direitos resguardada pela legalidade formal apresenta-se como reflexo ideológico do momento histórico vivido, construído pelas forças sociais representativas do discurso do poder, que encerra em si, um universo de possibilidades latentes, almejando real capacidade de efetivação.
“A idéia de titularidade corresponde ao reconhecimento da dignidade humana, isto é, à possibilidade de reconhecer o direito, de lutar por seus direitos. Esta possibilidade é identificada mediante a própria consciência de cidadania civil, política e social. Quando a cidadania está em crise não há identificação dos direitos de cada pessoa.” (COSTA & LIMA, 2005)
A racionalidade formal do direito circunscreve o limite do possível, sem ao mesmo tempo, limitar as forças emancipatórias que desestabilizam as relações de poder em busca da superação das condições materiais e concretas de existência. Por outro lado, a condição de sujeito de direitos altera a relação tradicional de controle e vigilância do Estado sobre a infância deslocando o campo de exigibilidade de direitos para o universo difuso da população infanto-juvenil. Assim, procurou fortalecer os movimentos sociais e a condição de cidadania como forma de garantir a exigência permanente de novas conquistas no campo de serviços públicos e, que sejam capazes de efetivar as promessas jurídicas inscritas na lei.
O reconhecimento universal de crianças e adolescentes na condição de sujeitos de direitos pretende assegurar um status social para que seja possível nas mesmas condições o exercício efetivo e pleno destes direitos. Embora o reconhecimento da titularidade dos direitos fundamentais seja uma conquista do frágil e tardio liberalismo brasileiro, que talvez nunca tenha se efetivado concretamente, é importante destacar que mesmo a garantia formal desses direitos à criança e ao adolescente foi reconhecida apenas no final do século XX, com o amparo constitucional e, por isso, reveste-se de caráter inovador.
Portanto, para além das suas possibilidades em garantir a efetivação dos direitos fundamentais, seu maior significado está na superação da posição predominante no século XX, que reduziu a criança a objeto de tutela, incapaz ou menor. O reconhecimento como sujeito de direitos implica num desenlace libertário da criança das amarras institucionais que cultivavam as obrigações de obediência e submissão. Neste contexto, não interessa mais o estigma justificativo da intervenção estatal imposto à criança, mas sim, na possibilidade concreta e objetiva da criança e do adolescente exigir a efetivação de seus direitos.
Deste modo, o reconhecimento da condição de sujeitos de direitos implica na universalização do conceito de direitos de cidadania, que qualifica os espaços de participação no controle público do Estado como forma de direcionar sua atuação na perspectiva de efetivação dos direitos, ultrapassando uma concepção meramente normativa de direitos humanos, transformando-se em instrumentos concretos de ação política orientadora de políticas públicas. (BRASIL, Comissão de Direitos Humanos, 2003, p. 08)
Trata-se da abertura de um novo espaço jurídico-participativo dos agentes sociais na medida em que se reconhece a possibilidade do direito a ter direitos, que surge a partir do exercício dos direitos já conquistados. É neste sentido, que o sujeito transfigura-se no sujeito cidadão. (VERONESE, 1997, p. 14)
O Direito da Criança e do Adolescente afirma-se no contexto jurídico brasileiro como instrumento para transformações. Não se tratam de mudanças apenas do campo da organização burocrática do Estado, mas antes de tudo, representa a consolidação de uma base de sustentação para numa nova ética, uma nova técnica e uma nova estética. A nova ética, proposta pelo Direito da Criança e do Adolescente, desloca seu campo de percepção não apenas para uma nova etiologia, mas essencialmente para a dimensão do reconhecimento da dignidade humana como elemento axiológico orientador de todo o ordenamento jurídico. Isso se pretende com nova técnica jurídica e com mudanças de conteúdo, método e gestão. (COSTA, 1994, p. 25)
As transformações estruturais do novo direito trazem em seu corpo uma potencialidade de re-significação estética da infância. É a superação da imagem simbólica abstrata do menor como “portador de futuro em risco”. O desafio é alcançar a realidade concreta da criança e do adolescente como “detentores de presente como sujeito de direitos”. Trata-se de nova descoberta da infância como período próprio e particular de desenvolvimento. No Brasil, é segunda tentativa histórica de superação do sentimento de indiferença em relação à infância.
O estabelecimento da Doutrina da Proteção Integral como elemento basilar do novo sistema jurídico implica no reconhecimento da criança e do adolescente como pessoas em condições peculiares de desenvolvimento; mas também no valor presente e prospectivo da infância e nas suas condições especiais de vulnerabilidade. Por isso, o reconhecimento dos direitos humanos para todos e um conjunto de direitos especiais destinados à ampliação das possibilidades e capacidades de proteção à criança e ao adolescente.
No Brasil, o reconhecimento dos direitos fundamentais da criança e do adolescente se fez acompanhar também por uma verdadeira política de direitos com um sistema próprio e particular destinado à sua efetivação. É por meio de uma práxis jurídica e uma ação transformadora da sociedade civil que se pretende estimular capacidade de transformação.
Neste contexto, o Direito da Criança e do Adolescente promove o reordenamento institucional atribuindo responsabilidades à família, à sociedade, ao mercado e ao Estado. O objetivo é a construção de uma nova cultura de proteção à infância e à adolescência.
Esses novos compromissos éticos, jurídicos e políticos constituídos nas práticas sociais, mas também no sistema normativo, fortalece o papel do Estado democrático e de direito, como agente de efetivação dos direitos fundamentais, orientados por uma teleologia diferente e inerente aos novos princípios, regras e valores em construção. Contudo é preciso lembrar que:
“Um dos grandes mitos contemporâneos é o de que os direitos humanos estão assegurados quando inscritos em uma Constituição democrática. O Estado de Direito ocidental aparece como o único garantidor dos direitos humanos. E a existência destes é a garantia da existência da própria democracia.
Esta pseudo-relação entre direitos humanos, Estado de Direitos e democracia liberal, omite o fato de que estes últimos também sustentam o sistema econômico capitalista, que, na prática, impede a efetivação de uma grande parcela daqueles. Omite ainda que o Estado de Direito burguês também garante os direitos do capital e da exploração do trabalho.” (RODRIGUES, 2005, p. 23)
Entretanto, é exatamente neste contexto que emerge o Direito da Criança e do Adolescente, frutificando como um sistema aberto, potencialmente contraditório, materialmente valorativo e teleológico, inacabado e dinâmico. Enfim, comprometido com o processo histórico, pois tem como base uma justiça material, não formal, para além da lógica, com caráter axiológico, com tendência à generalização, que pretende alcançar a igualdade material. “[…] o Estado social não é artigo ideológico, nem postulado metafísico, nem dogma religioso, mas verdade da Ciência Política e axioma da democracia.” (BONAVIDES, 2003, p. 45)
Para que sua realização esteja próxima ao possível, exige um pensamento jurídico crítico, comprometido com uma sociedade em mudança. A efetivação do Direito da Criança e do Adolescente implica na superação do modelo liberal clássico, não intervencionista, para um modelo de intervenção social democrático-participativo. Resgata-se o essencial papel da política como forma de realização das necessidades mediante o exercício da subjetividade, do restabelecimento dos vínculos comunitários com a realidade concreta apresentando um amplo campo de infinitas possibilidades de ação.
Por isso, o desafio da efetividade dos direitos está proposto em torno de um sistema próprio denominado Sistema de Garantias de Direitos da Criança e do Adolescente, que pretende deslocar o direito do campo das idéias para a realização prática na realidade social. É, portanto, um sistema com as ligações complexas da vida social estabelecendo relações essencialmente contraditórias e tensas.
Enfim, a compreensão teórica do Direito da Criança e do Adolescente exige a articulação entre princípios, regras e valores próprios, mas que apenas encontram sentido na medida em que estão co-relacionados com as demandas concretas e necessidades de transformação social. De acordo com MENDEZ, “A nova relação infância-lei implica uma profunda revalorização crítica do sentido e da natureza do vinculo entre a condição jurídica e a condição material da infância.” (2001, p. 25)
6.2 O Sistema de Garantias de Direitos da Criança e do Adolescente.
Neste momento, o grande desafio é como fazer o Direito da Criança e do Adolescente transformar o mundo da vida. Quando se afirma: “o Direito da Criança e do Adolescente é inovador porque garante muitos direitos”. É preciso reconhecer que o Direito da Criança e do Adolescente apenas afirma o universo dos Direitos Humanos para a população infanto-juvenil. Na verdade, o Direito da Criança e do Adolescente é inovador porque pela primeira vez na história brasileira houve uma declaração de direitos acompanhada de um sistema de garantias que possibilita a realização concreta destes direitos.
Como os direitos fundamentais da criança e do adolescente têm seu campo de incidência amparado pelo status de prioridade absoluta, ele requer uma hermenêutica própria comprometida com a proteção integral e o melhor interesse da criança.
“O modelo hermenêutico apropriado ao Direito da Criança e do Adolescente deve partir de premissas epistemológicas e metodológicas que o reconheçam como um direito garantista, eticamente comprometido com a cidadania infanto-juvenil, implicando na subordinação da sociedade e do Estado à democracia como um valor universal, com um regime de direitos, liberdades e garantias localizados como eixo central da ordem política e social.” (LIMA, 2001, p. 456)
O direito da criança e do adolescente como um sistema de garantia dos direitos fundamentais ampara a proteção integral num sistema lógico, organizado sob a perspectiva de redes com responsabilidades compartilhadas entre família, sociedade e Estado.
O sistema de garantias de direitos da criança e do adolescente foi constituído com base em princípios norteadores da ação estatal, tais como a descentralização, o reordenamento e a integração operacional do sistema. A proposta está orientada por uma dinâmica que se afasta das tradicionais intervenções, restritas a imposição das práticas de governo, bem como, das lógicas lineares de ação que transferem responsabilidades de um órgão para outro, burocratizando o sistema, e historicamente atingindo poucos resultados. Mas, é preciso ressaltar que a integração das diversas esferas e órgãos do sistema ainda é uma realidade distante no Brasil.
Um dos aspectos fundamentais desse novo sistema foi a criação de duas instituições básicas: os Conselhos de Direitos e os Conselhos Tutelares. Os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente são órgãos responsáveis pelo planejamento, controle, deliberação e monitoramento das políticas públicas.
Já, os Conselhos Tutelares são órgãos compostos por representantes da sociedade civil com a atribuição de agir sempre que os direitos forem ameaçados ou violados, pela família, pela sociedade, pelo Estado e, até mesmo, pelas próprias crianças e adolescentes. Diante de situações como estas, os Conselhos Tutelares aplicam medidas de proteção às crianças e adolescentes e, também, aos pais ou responsáveis. Os Conselhos Tutelares são órgãos que devem funcionar em todos os municípios brasileiros. Já os Conselhos de Direitos, além de funcionar nos municípios, tem instâncias em outras esferas, tais como a estadual e a nacional.
Em síntese, o sistema de garantias de direitos pretende provocar transformações estruturais a partir do entrelaçamento de quatro dinâmicas específicas, que envolvem: a política de atendimento, a política de proteção, a política de promoção e a política de justiça.
6.3 Apontamentos sobre a política de atendimento.
A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente realiza-se por meio do conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais nos três níveis de governo, mediante a colaboração recíproca entre os municípios, os Estados, o Distrito Federal e a União. Na proposta do Estatuto da Criança e do Adolescente, a política de atendimento envolve linhas de ação, diretrizes e responsabilidades relativas aos programas e entidades de atendimento.
As linhas de ação da política de atendimento envolvem: políticas sociais básicas; políticas e programas de assistência social; serviços especiais de prevenção, atendimento, identificação e localização dos pais ou responsáveis, bem como, proteção jurídica e social prestada por entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente.
As políticas sociais básicas estão direcionadas para a efetivação direta e imediata dos direitos fundamentais, previstos na Constituição da República Federativa do Brasil, no artigo 227. As políticas sociais básicas envolvem:
“Os benefícios ou serviços de prestação pública dos quais podemos dizer: ‘isto é direito de todos e dever do Estado’, ou seja, as políticas sociais básicas dirigem-se ao universo mais amplo possível dos destinatários, sendo, portanto, de prestação universal. Educação e saúde, por exemplo, são direitos de todas as crianças e dever do Estado. Não pode, portanto, existir criança ou adolescente, independente da sua condição, que esteja legalmente privado do direito à educação e à saúde. Trata-se de um direito de todos, reconhecido e prestado ao conjunto da população infanto-juvenil sem distinção alguma.” (COSTA, 1994, p. 43)
Sob esta perspectiva a política social básica incluiu os programas de atendimento articulado com a prestação de serviços especializados como forma de garantia e efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, mas também, estabelecer uma política subsidiária de Assistência Social para àqueles que dela necessitem, visando promover a emancipação da criança, do adolescente e de sua família. Trata-se, portanto, de uma política do agir estatal. Para LIMA,
“[…] uma política do agir estatal é uma macro-política que impõe ao Estado um Agir, por dever de agir, tendo em vista que o Estado é instrumento à disposição da sociedade para que o processo social centrado na pessoa humana seja permanente e não fique à mercê da caridade, da filantropia, da concessão, nem dependa de eventuais crises sistêmicas que possam abalar a estabilidade social ou política, a governabilidade, ou fenômeno desse gênero.” (LIMA, 2001, p. 322)
Entretanto, o Estatuto da Criança e do Adolescente também se preocupou com a necessidade de atendimento às condições especiais que possam ameaçar ou violar os direitos da criança e do adolescente ao prever a garantia de oferecimento de serviços especiais que façam prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão. Estes serviços especiais destinam-se, inclusive, a proteção da criança e do adolescente, quando vítimas de negligência e maus-tratos e, muitas vezes, com crueldade e opressão. Daí a necessidade do atendimento especializado, que compreenda suas conseqüências e esteja preparado para perceber os danos ao desenvolvimento físico e psicológico da criança e do adolescente oferecendo alternativas concretas àquela condição.
Os serviços especiais devem estar preparados para atender as crianças e adolescentes vítimas, independentemente de qualquer condição, preocupando-se sempre com o restabelecimento dos laços familiares, o amparo e a proteção. Por isso a importância da manutenção de serviços para a identificação dos pais ou responsáveis, possibilitando a efetiva reintegração familiar e, evitando-se desta forma o rompimento dos vínculos afetivos e sociais da criança e do adolescente, desde que estas medidas venham acompanhadas de um suporte assistencial visando atender as necessidades da família, da criança e do adolescente.
Os serviços especiais de atendimento à criança e ao adolescente reservam um papel importante, mas que isoladamente apresentam pouco efeito, ou seja, precisam estar acompanhados de um conjunto integrado de políticas públicas básicas de caráter universal e acessível para todos.
A crítica produzida pela verificação do limites das tradicionais políticas sociais brasileiras de caráter centralizador, burocrático e compensatório e, que sem dúvida, além de deixarem poucos resultados contribuíram decisivamente para o aprofundamento do processo de exclusão social, possibilitou uma nova concepção relativa à política de atendimento, hoje já consolidada no Estatuto da Criança e do Adolescente.
A política de atendimento aos direitos da criança e do adolescente está amparada por um conjunto de diretrizes que trouxeram um verdadeiro reordenamento institucional,
“[…] de forma a re-situar os serviços, regionalizar ações e estabelecer funções compartilhadas pelas diferentes instâncias e setores da sociedade (governamentais e não-governamentais, no sentido de viabilizar a atenção em rede através de ações integradas.” (OBSERVATÓRIO DOS DIREITOS DO CIDADÃO, 2004, p. 24-25)
Isso representa uma profunda ruptura com os modelos anteriores, orientados pelo estigma da menoridade, da situação irregular e do falacioso Bem Estar do Menor. Nesse sentido, foram estabelecidas a municipalização do atendimento, a criação dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, a mobilização e participação da sociedade civil, a descentralização, a criação de fundos vinculados aos conselhos, a integração operacional dos órgãos do sistema de garantias de direitos.
As diretrizes dedicam atenção especial aos programas e entidades de atendimento, definindo regimes dos programas, procedimentos para registro e autorização de funcionamento às entidades não-governamentais e programas governamentais, bem como, atribuiu uma sistemática para a fiscalização das entidades, promovendo a participação ativa da sociedade na política de atendimento.
A construção de uma política de atendimento requer a integração de uma rede de organizações de atendimento, governamentais e não-governamentais, que colaboram para a produção de diagnósticos, controles, monitoramentos e avaliações, com vistas a uma melhoria qualitativa dos serviços prestados.
Além das diretrizes previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, nos últimos anos foram estabelecidas novas estratégias de ação nas Conferências Municipais, Estaduais e Nacionais dos Direitos da Criança e do Adolescente, ambas amparadas pelos princípios da Doutrina da Proteção Integral. As Conferências dos Direitos da Criança e do Adolescente são realizadas no interstício de dois anos com a finalidade de avaliar as ações realizadas e apontar diretrizes de ação para os próximos dois anos nos três níveis com ampla participação da sociedade civil e os representantes de governo.
A comunidade encontra nas Conferências dos Direitos da Criança e do Adolescente um novo espaço de participação e de interferência no sentido dos caminhos desejados para a política de atendimento à criança e ao adolescente representando uma oportunidade de verdadeira relação do Estado com os Movimentos Sociais. Para BARBALET,
“[…] os movimentos sociais, ao contrário dos movimentos políticos, não são
vocacionados para tomar o poder político, mas parar exprimir as aspirações, interesses, valores e normas – das colectividades sociais. O movimento, social está portanto ligado à mudança social através da modificação das expectativas e dos costumes que influenciam as relações sociais. Como meio de mudança cultural, os movimentos sociais reformulam em que pode consistir a participação social. Assim os movimentos sociais podem apressar o desenvolvimento da cidadania, os direitos de cidadania facilitam o aparecimento dos movimentos sociais.” (BARBALET, 1989, p. 149-150)
A construção da Política de Atendimento aos Direitos da Criança e do Adolescente tem como pressuposto a participação da comunidade, daí a necessidade de municipalização do atendimento. A municipalização do atendimento é decorrente do princípio da descentralização político-administrativa com vistas a garantir o atendimento à criança e ao adolescente no lugar em que vivem. A experiência histórica brasileira demonstrou que a concentração de recursos públicos nas esferas mais elevadas sempre apresentou alto custo, baixo nível de eficiência, demora no atendimento e, como se não fosse suficiente, ainda dava margem para o desvio de recursos, o clientelismo e a corrupção.
A municipalização do atendimento, que se entende, como aliada indispensável à descentralização dos recursos, pretende tornar sua aplicação mais segura, facilitando o controle social sobre sua aplicação e ampliando as possibilidades de influência e controle da comunidade local sobre o destino dos recursos e as necessidades efetivas de atendimento à criança e ao adolescente.
A municipalização visa aproximar os níveis de decisão e execução das políticas de modo que os programas estejam sintonizados com as necessidades das comunidades, permitindo que as mesmas possam fazer o controle das ações e influenciando na consecução de alternativas mais efetivas de atendimento às crianças e aos adolescentes mediante a criação e manutenção dos programas. (LIMA, 2001, p. 271)
Os recursos públicos para o atendimento à criança e ao adolescente não seriam suficientes se não houvesse mecanismos específicos de deliberação, controle e monitoramento das políticas de atendimento nos municípios. Isso se fez necessário, diante da desastrosa experiência do sistema da Política Nacional do Bem-Estar do Menor, que não garantia a participação popular, sendo mantido pelo controle centralizado de um pequeno grupo dirigente e, na maioria das vezes, reproduzido nas instâncias locais.
Para resolver esta questão foram criados os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente como órgãos, deliberativos e controladores, nos níveis municipal, estadual e nacional promovendo a primeira grande alteração nas relações hierárquicas de gestão da política pública de atendimento, pois até então as esferas nacionais e estaduais detinham poder de intervenção nos níveis inferiores, sedimentando o controle hierarquizado das ações. Atualmente, “[…] a Constituição estabelece bases jurídicas para a construção de um novo formato de cidadania, agora contemplando o ramo social como direito do cidadão e dever do Estado. Mas não apenas isto; agora a cidadania política transcende os limites de delegação de poderes da democracia representativa e expressa-se por meio da democracia participativa, da constituição de conselhos paritários, que se apresentam como novo lócus de exercício político.” (CAMPOS & MACIEL, 1997, p. 145)
Com a criação dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, essa relação hierárquica sofre uma ruptura, já que os conselhos são autônomos em seus respectivos níveis, estando unicamente submetido às leis, ou seja, as deliberações e resoluções dos conselhos hierarquicamente superiores não vinculam os conselhos locais que devem deliberar e resolver de acordo com a sua própria realidade.
O caráter deliberativo dos conselhos vincula a administração pública que deve, necessariamente, atender aos comandos emitidos por esta instância, ocorrendo, portanto, a substituição da arbitrariedade do governante em relação às políticas públicas, devendo agora se restringir à execução das deliberações propostas.
Aos Conselhos de Direitos compete deliberar e controlar o conjunto de políticas públicas básicas, dos serviços especializados e de todas as ações governamentais e não-governamentais, direcionadas para o atendimento da criança e do adolescente. Para Vanderlino Nogueira,
“Os Conselhos de Direito surgiriam assim como espaços públicos institucionais ‘pontes’, entre a sociedade política e a sociedade civil. O espaço do teste das possibilidades de uma mista democracia representativo-participativa. Aí seriam testados os trabalhos de formação dos gestores públicos comunitários. (Conselheiros não-governamentais). Aí, estariam eles sendo desafiados para o mister de articulação/integração,
com os representantes do Estado-governo: para o trabalho de formulação/normatização geral das políticas públicas, o controle das decorrentes ações governamentais e comunitárias e a mobilização social.” (NOGUEIRA, 1997, p. 29-30).
Nos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, a lei assegura a participação da sociedade civil na sua composição. Os membros são escolhidos pelos Fóruns Permanentes de Entidades Não-governamentais em Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA). Os Fóruns DCA são constituídos pelas organizações não-governamentais, mas também por pessoas da comunidade que podem sugerir, decidir, encaminhar e acompanhar suas demandas e necessidades junto aos seus representantes Conselheiros de Direitos, mas também, participar ativamente de todo o processo de consolidação dos direitos da criança e do adolescente, já que
“A lei maior consagrou-nos o direito de participação na definição e controle das políticas públicas em todos os níveis. Dessa forma, a cidadania da criança, do adolescente e de qualquer adulto presume participação, materializando a condição de sujeitos de direitos, ou seja, agentes ativos e não objetos de intervenções, como estabelecem as velhas tradições. “(MOTTI, 2005, p. 56).
Os Conselhos de Direitos precisam do apoio da comunidade para a definição de suas ações, tais como a formulação de diagnóstico da situação das crianças e adolescentes, o planejamento das políticas públicas necessárias para efetivação do atendimento de acordo com as diversas necessidades; O monitorando e o controle co funcionamento operacional do sistema.
Deste modo, o princípio-fim estabelecido pelo Direito da Criança e do Adolescente transfigura-se numa estratégia de empoderamento local. Para que isso seja possível é necessário:
– Criação de espaços institucionais adequados para que setores excluídos participem na elaboração das políticas públicas;
– Formalização de direitos legais e cuidados no seu conhecimento e respeito;
– Fomentos de organização para que as pessoas que integram o capital social excluído possam efetivamente participar e influir nas estratégias adotadas pela sociedade. Esta influência se dá quando a organização permite estender e ampliar a rede social das pessoas que a integram;
– Transmissão de capacidades para o exercício da cidadania e da produção, incluindo os saberes instrumentais essenciais além de ferramentas para analisar dinâmicas econômicas e políticas e políticas recentes;
– Criação de acesso e o controle de recursos e ativos (materiais, financeiros e de informação) para possibilitar o efetivo aproveitamento de espaços, direitos, organização e capacidades, em competência e articulados com outros atores;
– Uma vez construída essa base de condições facilitadoras do empoderamento e da constituição de um ator social, dá-se relevância aos critérios de participação efetiva, com a apropriação de instrumentos e capacidades propositivas, negociativas e executivas. (BARTHOLO JÚNIOR, R. S., MOTA, C. R., FERREIRA, G. S., MEDEIROS, C. M. B., 2003, p. 04)
Para viabilizar o complexo conjunto de ações e responsabilidades dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente foi criado, em todos os níveis, o Fundo da Infância e da Adolescência (FIA), vinculado aos respectivos conselhos. O FIA é um fundo especial, nos termos previstos na Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964: “Art. 71 – Constitui fundo especial o produto de receitas especificadas que, por lei, se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação.”
A composição do FIA é bastante diversificada incluindo as multas judiciais previstas no art. 213, de Termos de Ajustamento de Conduta propostos pelo Ministério Público, da contribuição decorrentes de dedução do imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas, conforme o art. 260, ou recursos provenientes de dotação orçamentária ou repasse da União, estados e municípios.
Neste contexto, é o Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente que têm a competência para fixar os critérios de utilização dos recursos através de planos de aplicação, com a ressalva que os recursos do FIA não se destinam apenas ao financiamento da política de atendimento, pois o Poder Público deve garantir os recursos para suas políticas públicas mediante previsão orçamentária e as organizações não-governamentais, mediante seus próprios orçamentos e estratégias de mobilização de recursos. Os recursos do Fundo da Infância e da Adolescência destinam-se, prioritariamente, ao diagnóstico, ao planejamento, ao monitoramento e à avaliação das políticas públicas, possibilitando ao Conselho de Direitos a realização efetiva de seu papel institucional.
Além disso, cabe ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente identificar nas ações governamentais o conjunto de recursos destinados para a política de atenção à criança e ao adolescente, avaliando o grau de prioridade estabelecido na distribuição dos recursos públicos, monitorar a implementação das diretrizes emanadas pelas Conferências de Direitos da Criança e do Adolescente e contribuir na avaliação dos programas de atendimento.
No entanto, os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente como instância inovadora no quadro jurídico institucional brasileiro enfrenta diversos obstáculos. Júlio Manoel Pires observou que:
“- Há uma sobreposição no caráter deliberativo do CMDCA em relação ao poder executivo municipal; da mesma forma que há também com relação ao caráter de formulação de políticas públicas em relação a Câmara Municipal;
– Não existem critérios claros para a escolha dos conselheiros, sendo esta uma situação que varia para cada município; – Não existe uma homogeneização de conhecimento do sistema jurídico relativo à criança e ao adolescente por parte dos conselheiros, acarretando uma não implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente; – Não é ação comum dos conselhos realizarem um diagnóstico de necessidades e prioridades do município, no que se refere à situação da criança e do adolescente, de maneira a nortear as ações do CMDCA; neste caso a defesa de interesses pessoais ou classistas se torna constante; – A troca de membros do conselho conforme o estatuto, muitas vezes acarreta a descontinuidade das ações; da mesma maneira a sucessão de prefeitos que podem definir novas diretrizes de ação das políticas públicas para o município.” (PIRES, 2006, p. 7-8)
A superação dos obstáculos apontados exige uma efetiva mobilização da opinião pública e a participação da sociedade civil na discussão sobre o necessário papel institucional do Conselho de Direitos e, especialmente, dos conselheiros, pois sua legitimidade deve estar amparada pelo compromisso com a realização dos direitos da criança e do adolescente.
Por outro lado, a promoção dos direitos da criança e do adolescente, com a sensibilização das próprias crianças e adolescentes, das famílias e das comunidades pode operar um papel importante na construção de um processo democrático de controle social e, além disso, de todo um significado positivo em torno da infância, superando os valores tradicionais que atribuem à infância uma conotação negativa, que na maioria das vezes, se presta a legitimação de múltiplas condições de exclusão, tais como a violência e a exploração.
Construir uma política pública de caráter efetivamente participativo, que considere os próprios desejos e necessidades de crianças e adolescentes, valorizando-os como sujeitos de direitos e cidadãos, implica em ruptura com a tradição autoritária sempre presente no sistema político brasileiro.
7. Considerações Finais
A emergência do Direito da Criança e do Adolescente representou a radical ruptura com as concepções obsoletas da doutrina da situação irregular e seu correspondente jurídico: o ultrapassado Direito do Menor. A base conceitual do novo direito teve por fundamento a afirmação dos princípios da doutrina da proteção integral que, além de promover mudanças de conteúdo, método e gestão nas políticas na área da infância, garantiu um novo conjunto de referenciais teóricos em relação ao tema, que podem ser sintetizados da seguinte forma: a) garantia de proteção integral à infância; b) reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeito de direitos; c) promoção da integração e universalização dos direitos, ou seja, independentemente de sua condição toda criança ou adolescente são portadores dos mesmos direitos; d) reconhecimento da criança e do adolescente como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento; e) garantia dos princípios da participação e da descentralização nas políticas públicas, estabelecendo a responsabilidade à família, à sociedade e ao Estado em garantir os direitos fundamentais inscritos na Constituição; f) reconhecimento da irregularidade dos adultos, da sociedade e do Estado quando ameaçados ou violados os direitos da criança e do adolescente; g) desjurisdicionalização das políticas sociais, restando ao Poder Judiciário o papel de prestação jurisdicional no reconhecimento e efetivação dos direitos, no qual o magistrado, agora Juiz-Técnico, está limitado pelas garantias jurídicas; h) superação da discriminação jurídica que segmentava a infância em (ir)regulares amparando garantias universais à criança e ao adolescente; i) desinstitucionalização e o fortalecimento dos vínculos familiares como regra da política pública.
Todavia, as profundas transformações jurídicas descritas precisam superar o plano meramente jurídico-formal para alcançar a realidade sócio-cultural brasileira. Contudo, o que se pode observar durante os anos de vigência do Direito da Criança e do Adolescente são principalmente tentativas de desconstituí-lo dando margem ao re(estabelecimento) das práticas autoritárias e centralizadas do passado recente, pois lamentavelmente a lógica dos “deveres” fundamentada na intimidação, no pensamento autoritário e na punição ainda vigora no imaginário e nas práticas do senso comum jurídico-institucional.
Doutor em Direito (CPGD/UFSC), Supervisor de Pesquisa do Departamento de Direito da Unesc, Pesquisador do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Estado, Política e Direito (NUPED/UNESC) financiado pelo PG/Unesc, Professor no Curso de Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense, Coordenador Executivo do Instituto Ócio Criativo, Presidente do Conselho Científico da Revista Amicus Curiae e Pesquisador do Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente (NEJUSCA/UFSC).
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