Resumo: Dentre as diversas discussões atinentes à relação entre diversidade humana e direitos humanos, a questão de gênero desponta como ululante e fundamental. Através de uma reflexão que historiciza as relações de gênero sob um olhar antropológico, torna-se possível compreender a evolução formal de garantias jurídicas positivadas como produtos de intensas lutas por reconhecimento, inseridas na dinâmica dos conflitos sociais que marcaram a modernidade recente. Assim, este artigo intenta lançar olhares mais lúcidos sobre questões que permanecem propositadamente obscurecidas ao longo dos séculos, a fim de evidenciar que construções simbólicas e discursivas engendram processos perversos e desumanos de discriminação. Desmistificando-se, inclusive, a supremacia de conquistas feministas do ocidente sobre o oriente, é preciso amadurecer a visão crítica, para que possamos avançar nas reflexões e promover transformações substanciais no seio da sociedade.
Abstract: In the midst of several discussions related to the relation between human diversity and human rights, the gender questioning shows up as obvious and fundamental. Throughout a reflexion that historicizes the gender relations, under an anthropological look, it becomes possible to understand the formal evolution of positivated law warranties, like products of intense struggle in search for recognition, inserted in the social conflict dynamics, which bookmarked the recent modern era. In this manner, this article intents to overthrow a pellucid look on the questionings that seem to stay, on purpose, obscured across the centuries, to bring up that symbolic and discursive constructions, assemble evil and non-human discriminating processes. In need to move forward on the reflexions and to promote substantial modifications on societies’ pale, there’s a need to overgrow critical vision, demystifying western over eastern women’s conquests supremacies societies’.
1.Introdução
Mais de sessenta anos após a Declaração Universal das Nações Unidas, as discussões acerca dos direitos humanos ainda permanecem contundentemente insubsistentes, especialmente, quando nos desafiam a provar que os processos discriminatórios permanecem, em meio a discursos de que a pretensa egalité iluminista já fora alcançada. Ironicamente, quando se trata da maioria dos construtos de marcadores sociais da diferença, há um respaldo ideológico que obscurece a verdadeira face da discriminação. É pungente reconhecer que, nos discursos de defesa dos direitos humanos, é sempre preciso justificar a necessidade de reconstrução das relações sociais, comprovando-se que há desigualdade e que esse debate é importante. No Brasil, isso é ainda mais sintomático, quando se crê que vivemos numa sociedade sem conflitos, sem diferenças, de ampla aceitação nas relações e cordialidade nos tratamentos.
Ainda, no que concerne ao sexismo, com todas as práticas e discursos que suportam a exclusão e a desigualdade, a questão é ainda mais clara. Nesse caso, não se faz necessária a elaboração sistemática de discursos biologistas escalafobéticos para justificar uma discriminação que é claramente social, como no caso dos racismos ou da homofobia, pois a mulher é, de fato, biologicamente distinta do homem, em suas especificidades. Assim, parece óbvio estabelecer uma diferenciação social, pois a natureza já a estabelecera a priori. As práticas de subjugação da mulher remontam a tempos imemoriáveis e remanescem mesmo após a modernidade capitalista e a todas as promessas do esclarecimento racionalista. Ainda que a dinâmica das lutas sociais, principalmente, durante o século XX, tenha logrado êxito no que diz respeito à positivação jurídica de garantias formais, como a própria declaração de 1948, Oe as convenções internacionais, as proposições semióticas que perfazem a cultura das relações intersubjetivas continuam situando a mulher em patamares de inferioridade.
Enquanto se preconiza que a mulher já se equiparou ao homem, socialmente reconhecida como igual, os saberes e culturas ainda evidenciam que essa suposição é falsa, e, muito provavelmente, propositadamente sustentada. Basta-nos uma breve consulta ao dicionário, seja ele de qualquer autor ou editora, para encontramos as verdades ocultas que sustentam a diferença. Enquanto para o verbete “homem” temos:
“1. Qualquer indivíduo pertencente à espécie animal que apresenta maior grau de complexidade na escala evolutiva. 2. A espécie humana; a humanidade. 3. Ser humano. 4. Ser humano do sexo masculino que atingiu a idade adulta ou adolescente que atingiu a virilidade. 5. Homem dotado das chamadas qualidades viris, como coragem, força e vigor sexual; macho. 6. Marido ou amante: “ela vive bem com seu homem”. 7. O que apresenta os requisitos necessários para um empreendimento: “esse é o homem!”. 8. Indivíduo, sujeito, camarada. 9. Soldado.
Uso popular: homem da lei – magistrado, advogado; homem da rua – do povo, comum; homem de bem – honrado, probo; homem de Deus – o santo; homem de empresa – negociante, empreendedor; homem de espírito – inteligente; homem de Estado – Estadista; homem de letras – intelectual; homem de palavra – cumpre o que promete; homem de prol – nobre; homem de pulso – enérgico; homem do mundo – da sociedade; homem do povo – representativo do bem comum”.[1]
Para o substantivo mulher, há:
“1. O ser humano do sexo feminino capaz de conceber e parir outros seres humanos, e que se distingue do homem por essas características. 2. Esse mesmo ser humano considerado como parcela da humanidade: “os direitos da mulher”. 3. A mulher na idade adulta ou adolescente do sexo feminino que atingiu a puberdade; moça. 4. Mulher dotada das chamadas qualidades e sentimentos femininos (carinho, compreensão, dedicação ao lar e à família, intuição). 5. Parceira sexual do homem. 6. Ser frágil, dependente, interesseiro (deprec.). 7. Cônjuge do sexo feminino, esposa. 8. Amante, companheira, concubina.
Uso popular: mulher à toa – meretriz; mulher da comédia – meretriz; mulher da rótula – meretriz; mulher da rua – meretriz; mulher da vida – meretriz; mulher da zona – meretriz; mulher de amor – meretriz; mulher do fado – meretriz; mulher do fandango – meretriz; mulher de má nota – meretriz; mulher do pala aberto – meretriz; mulher do mundo – meretriz; mulher do piolho – muito teimosa; mulher errada – meretriz; mulher fatal – mulher particularmente sedutora e sensual, capaz de provocar tragédias; mulher perdida – meretriz; mulher pública – meretriz; mulher do povo – meretriz; mulher vadia – meretriz.”[2]
Homem é um substantivo identificado com a humanidade toda. Homem e ser humano são sinônimos segundo a visão dicionarista. Assim, a espécie humana, na sua máxima expressão, é representada pelo homem. A mulher seria apenas uma versão desse ser, capaz de conceber ou parir outros homens – e essa, além de sua característica mais relevante, é também sua função existencial, juntamente com ser parceira sexual do homem (cônjuge, esposa, amante, companheira, concubina). Imprescindível ressaltar que o dicionarismo reproduz a tradição enciclopedista do iluminismo, para a qual era possível, na mais genuína ideia de racionalismo moderno cartesiano, estabelecer-se uma compilação de conceitos sobre todas as coisas, pois, se a razão é capaz de conhecer a verdade sobre todas as coisas que há, seria perfeitamente possível positivar tais verdades num rol de verbetes sistematizado.
Portanto, o dicionário, que comporta as verdades racionais modernas, as mesmas que sustentam a formalização das declarações de direitos humanos e de igualdade, traz, em si, a verdade que subjaz sob discursos falaciosos. Quando o dicionário conceitua, leva em consideração semântica todos os usos e crenças culturais que emprestam significado aos significantes. Por isso, reproduz com cautela a semiótica lexical. Eis que “homem” e “mulher” estão colocados em seus devidos lugares nas definições objetivas do dicionário.
Quando lemos aquilo que Aurélio Buarque chama de uso popular, escancara-se essa constatação, pois, enquanto à palavra “homem” somente se incorporam adjetivos enaltecedores de sua honra, inteligência, integridade e força; à mulher, as expressões popularescas só acrescem aquilo que pode exacerbar sua qualidade de meretriz, pois esta é sua única expressão possível, caso não seja apenas esposa e mãe.
O dicionário é nosso primeiro livro escolar, e reforça as construções culturais arraigadas na sociedade. Suas proposições são sintomáticas daquilo que há no cotidiano, eis que não podemos nos escusar, nem mesmo pela data da publicação, pois as edições atuais assim se apresentam, do mesmo modo em que a sociedade assim se apresenta até agora. Não é possível cremos fantasticamente que o sexismo é uma prática passada e superada, ou algo que só existe no oriente.
Trata-se, portanto, de reconhecer para transformar, e reconhecer tanto no sentido de lançar olhares mais sensíveis sobre a questão, admitindo-se a existência da desigualdade, quanto no sentido de acolher, amparar e respeitar a mulher enquanto ser humano íntegro e completo, e não apenas como uma versão subserviente, inferior, um repositório de desejos, ou instrumento de procriação, a serviço do ser humano do gênero masculino.
2.Discriminação de Gênero: uma questão histórico-cultural
No intento de emprestar radicalidade ao estudo do sexismo no ocidente, no sentido de buscar historicizar a discriminação, numa arqueologia do presente foucaultiana, cumpre-nos investigar qual a gênese dos processos de inferiorização do feminino. Eis um desafio, uma vez que não há estudos historiográficos ou antropológicos que situem precisamente a questão. Com base em algumas evidências culturais pré-históricas, tem-se, por hipótese, que, nos primórdios dos agrupamentos humanos, a mulher era reverenciada como um ser mítico. A escultura batizada de “Vênus de Willendorf”, encontrada na Áustria, que data de cerca de 24.000 a 22.000 a.C. (período paleolítico), é a expressão artística da imagem feminina mais antiga já encontrada no mundo. Acredita-se que a escultura, que mede onze centímetros, era usada em rituais de fertilidade, introduzida no canal vaginal. Caracteriza-se por exacerbar significativamente todas as formas da mulher que expressam o feminino reprodutor, como seios, nádegas, quadris e vulva. Num período em que os homens não podiam compreender a força inexorável da natureza pela especulação filosófica ou pelo método racional, todas as causas da existência eram buscadas magicamente, numa metafísica que não se explica pela lógica. No período primitivo, do totem e tabu, as próprias forças da natureza eram deuses em si, por sua mágica incompreensível. O vento, o sol, a chuva, o mar eram expressões de poderes incontroláveis, e, na mesma lógica, o surgimento da vida, pela fertilidade, era cultuado totemicamente. A mulher gerava a vida espontaneamente, magicamente; por isso, podia ser equiparada a uma deusa. Assim, primitivamente, o feminino é identificado com o mítico e não com o inferior.
Conquanto, quando o homem nômade se sedentariza, passando de homo erectus para homo habilis, e, deste, para o homo sapiens, passa a praticar agricultura e pecuária, e aprende como se dão os processos de reprodução. Assim, conclui que a mulher não gerava a vida sozinha voluntariamente, mas que isso dependia de um processo no qual a participação masculina é crucial. Inclusive, deve-se a tal a transposição da tradição familiar matrilinear para patrilinear. Se a mulher perde seu status de mito, somente lhe sobram as possibilidades de interação comunitária conforme suas aptidões. Numa sociedade regida pelas relações de forma, é natural que os papéis de liderança se consubstanciassem como masculinos, consolidando-se o patriarcalismo. No entanto, o estabelecimento diverso de papéis sociais não necessariamente se faz acompanhar de subjugação nas relações de gênero, pois, segundo a antropologia atual, os procederes humanos são culturalmente construídos, bem além das questões biológicas. A inferiorização e o controle da mulher perpassam por outros mecanismos, especialmente, religiosos, já na antiguidade.
A tradição de discriminação feminina que se reproduz simbolicamente no ocidente até hoje tem seus fundamentos na visão judaica arcaica acerca de sexualidade e do feminino. Em diversas civilizações do mundo antigo, a mulher não estava restrita a determinados papéis, podendo ocupar cargo e funções de comando. Mutatis mutandis, com exceção de Esparta, por sua tradição belicosa, e das limitações da democracia Ateniense, temos em diversas culturas possibilidades variadas à mulher na sociedade. Exemplos históricos contundentes são: Berenice, que reinou em Cirene (abaixo de Alexandria) em 210 aC.; Safo, que deve ter vivido entre 610 a 560 a.C., foi poetisa, escreveu nove livros de poesias dos quais ainda restam alguns fragmentos, e, devido à sua importância, ela foi cunhada em moedas datadas do século III d.C., novecentos anos depois de sua morte, e também teve seu retrato e seu nome gravados em vasos e bronzes, vindo a estar presente em grande parte da arte romana; Ester, que governou a Pérsia em 460 a C.; Vasti, que reinou da Índia à Etiópia em 480 aC.; Hipácia (370 – 415 a C), que estudou filosofia, religião, matemática, poesia e artes, vindo a completar sua educação superior na Academia Neoplatônica com Plutarco, ensinou geometria, astronomia, filosofia e matemática; e as diversas rainhas egípcias, como Cleópatra, Nefertari, Nefertite e Hatshepsut.
De fato, não se pode afirmar que a mulher foi sobrepujada na antiguidade, pois as construções culturais eram as mais diversas e possuíam dinâmicas muito ímpares. Porém, entre os povos monoteístas, orientados pelos seus livros religiosos, a mulher era especificamente identificada como uma expressão do mal. Tanto no islamismo quanto no judaísmo antigos, o livro do Gênesis representa a criação do mundo pelo deus único e onipotente. Há uma diferença preconizada pelos muçulmanos, de que, no Alcorão, mulher e homem são criados por Alá simultaneamente e sucumbem juntos ao pecado original. Trata-se de um divergência salutar, pois a mulher criada ao mesmo tempo, é um ser completo, e não fragmentário, como aquela que é feita de uma costela apenas, como afirma o judaísmo. Ainda, se a concessão à tentação é compactuada, a mulher deixa de aparecer como veículo do pecado.
Na Torá, há a presença de Lilith, inspirada na deusa da noite do povo Sumério. Ao tomar contato com a cultura babilônica, os hebreus teriam aproveitado essa figura mítica suméria para simbolizar a primeira mulher de Adão. Jeová teria criado Adão e Lilith juntos, porém, quando esta se recusa a se submeter, deus a expulsa do paraíso e faz uma nova companheira para o homem a partir de uma de suas costelas: Eva. Lilith volta como uma serpente traiçoeira e convence Eva a pecar. Nesse sentido, a mulher que se recusa a se submeter ao homem deve ser extirpada de seu convívio e passa, então, a simbolizar o mal. A mulher é portadora do mal, e desvirtua a integridade natural masculina, mas, para tanto, precisa servir-se do intermédio de outra mulher, falível, pois, pelo feminino, já possui traços do mal dentro de si.
Essa simbologia alegórica do judaísmo denota a relação desajustada e problemática que os hebreus possuíam com a sexualidade. Nessa concepção, o sexo é o ícone da impureza, por ser aquilo e aproxima o homem de sua animalização instintiva e, por isso, o afasta do divino. O homem que se purifica é aquele que resiste à tentação do sexo pecaminoso. O pecado original é a relação sexual, à qual o homem sucumbe apenas porque a sedução da mulher é irresistível. Assim, o homem é puro, e somente se corrompe por culpa da mulher. Por isso, a mulher considerada adúltera ou libertina era apedrejada até a morte. O mal precisava ser combatido com veemência, e o único sexo permitido era o marital com vistas à procriação.
Ao transportar essa crença arcaica dos judeus para o cristianismo, convertendo Torá em Velho Testamento Bíblico, a Igreja Católica reformulou algumas passagens, retirando a figura de Lilith, e incrementando a tradição cultural da diferença. De outro lado, o judaísmo, na redação do Talmude, ao interpretar a Torá, reviu alguns dogmas, inclusive, transportando a ocorrência do pecado original para o fratricídio entre Caim e Abel.
Na tradição católica, a mulher não só é um ser fragmentário e incompleto, como impuro, portador do pecado e somente pode se redimir pela procriação bendita. A figura de Maria, maior símbolo católico, desloca da mulher seu potencial maligno e, pela virgindade maternal, transforma-a em representação cândida do amor divino. A concepção da mãe de Jesus pelo Espírito Santo somente reforça a idéia de que a mulher possui apenas duas dimensões, uma boa, outra má, quais sejam, a maternidade e o meretrício (ou a mera sexualidade); e que a má deve ser apartada da mãe do filho de Deus para que ela possa ser a mais santa dentre as mulheres, digna de tal propósito. Essas representações de Maria e essa identificação do sexo com a perversidade marcarão toda a política de empoderamento dos corpos na idade média, pelo controle da sexualidade.
A imposição da castidade ao clero, que interessa economicamente à Igreja, vai beber nessa fonte segura, assim como todas as políticas religiosas de controle social e docilização corporal de comportamentos. No medievo tomista, com a exacerbação da ideologia dogmática como sustentáculo racional para a supremacia católica, isso se torna assustador, como se denota no trecho de Aquino:
“A mulher está em sujeição por causa das leis da natureza, mas é uma escrava somente pelas leis da circunstância… A mulher está submetida ao homem pela fraqueza de seu espírito e de seu corpo… É um ser incompleto, um tipo de homem imperfeito (…). A mulher é defeituosa e bastarda, pois o princípio ativo da semente masculina tende à produção de homens gerados à sua perfeita semelhança. A geração de uma mulher resulta de defeitos no princípio ativo.” (Thomas de Aquino, Summa Theologica)
A mulher é, então, definitivamente inferior, pior. Isso justifica quaisquer perseguições inquisitórias, e toda manifestação das potencialidades do feminino seria, então, bruxaria. Daí, toda a barbárie engendrada contra as mulheres pelo Santo Ofício.
A despeito do que promulgam os liberais entusiastas, essa discriminação não desparece modernamente. Na modernidade renascentista, o cartesianismo não inclui a mulher no cogito. Se só há sujeitos e objetos, resta-lhe o segundo papel. E a mulher, representada na arte apenas de forma mitificada para o resgate da tradição cultural antropocêntrica clássica, é, ainda, uma Vênus ou uma Santa. O Iluminismo, com seu trinômio promissor de liberdade, igualdade e fraternidade, foi capaz de guilhotinar Olympe de Gouges, mulher ativista da Revolução Francesa, porque esta propusera uma “Declaração Universal da Mulher e da Cidadã” como adendo à original. Afirmam categoricamente os mais eminentes pensadores iluministas:
“Esperar que elas [as mulheres] não mais se preocupem com os homens é esperar que elas para mais nada sirvam.” Rousseau, Jean-Jacques, Émile)
“É verdade que a mulher que abandonasse os deveres de seu lar para cultivar as ciências seria condenável.” (Voltaire. L´´Education des filles)
E a ideologia alemã kantiana e hegeliana reforça essa visão, como nos ensina Khel:
“(…) Kant considerava a ´incapacidade civil` e a ´dependência natural` das mulheres. Embora considerasse Kant que, se a mulher é um ´ser de razão`, deve necessariamente ser livre em suas escolhas, esta mesma razão, escreveu ele na ´Antropologia`, destinará a mulher a seu papel de submissão de seus interesses particulares, aos da espécie, representada pela família. (…) Ao conceber uma respeitabilidade ao espaço doméstico, sobre o qual as mulheres deveriam ´reinar`, Hegel reconheceu um estatuto de sujeito às mulheres ´do lar`, mas por outro lado as exclui de qualquer participação na construção das civilizações (…) .” (grifos nossos). [3]
Com a evolução do capitalismo após a Revolução Industrial, a mulher é absorvida pelo mercado como mão-de-obra de fácil exploração, por ser já culturalmente subserviente, e aceitar remunerações muito menores, com maior potencial de gerar mais-valia. Na modernidade, a mulher é absorvida pelo mercado, pelo capitalismo; porém, socialmente, permanece com apenas as duas possibilidades existenciais de sempre. No desenvolvimento de sua afetividade, ou é esposa e mãe, ou é “puta”, “vadia”, nos sentidos culturais mais amplos da palavras.
A modernidade da conquista civilizatória expansiva, progressista, que pretende ir sempre adiante e além, é uma modernidade fálica, que tem na torre Eiffel seu símbolo máximo concretizado, do que a razão moderna pode erigir, para o alto. A aventura do sujeito moderno é uma aventura masculina, pois o sujeito universal, o sujeito de direitos, o sujeito cartesiano, é um sujeito masculino. Quando a mulher deseja viver a aventura da modernidade, frustra-se, pois não há lugar para si nessa lógica. Eis a causa da histeria diagnosticada pelo Dr. Freud em suas pacientes, e tão presente nas literaturas de Flaubert, Eça de Queirós ou Vírgínia Woolf, a qual percebe:
“A very queer, composite begins thus emerges. Imaginatively she is of the highest importance; practically she is completely insignificant. She pervades poetry from cover to cover; she is all but absent from history. She dominates the lives of kings and conquerors in fiction; in fact she was the slave of any body whose parents forced a ring upon her finger.” (Virginia Woolf, A Room of One´s Own)
Por isso, para Freud, a mulher tem “inveja” do falo, ou seja, desse potencial masculino de conquista e desbravamento, que lhe possibilita construir caminhos, fazer seu próprio destino. A mulher, desprovida, fica com a falta, que precisará ser preenchida pelo desejo de um homem, pois será através dos olhos dele que ela verá o mundo, e viverá a fáustica aventura moderna. Lacan, desenvolvendo pontualmente essa reflexão, dirá:
“… se a libido é apenas masculina, a querida mulher, não é senão de lá onde ela é toda, quer dizer, lá de onde o homem a vê, não é senão de lá que a querida mulher pode ter um inconsciente. E de que lhe serve isto? (…) para fazer falar o ser falante, aqui reduzido ao homem, quer dizer- não sei se vocês chegaram a notar na teoria analítica – a só existir como mãe.” [4]
Assim, a mulher moderna desenvolve uma neurose em agradar o homem e corresponder às suas expectativas, e o capitalismo, através da indústria cultural, serve-se disso com maestria, explorando padrões de consumo em roupas, cosméticos, tratamentos estéticos, alimentos etc. Além disso, a indústria cultural cria padrões de consumo personificados através das artistas do cinema, e as mulheres precisaram ser como as atrizes de Hollywood para despertar o interesse masculino, serem aceitas, desejadas, amadas e realizadas. Porém, se um dia o ideal de beleza foram as curvas suntuosas de Marylin Monroe; hoje, como a intervenção estética as pode mimetizar, o padrão de beleza ideal é esquelético, antibiológico, pois a industria cultural precisa operar com ideiais de consumo inalcançáveis.
No pós-segunda Guerra, quando se elabora a Declaração da ONU, o mundo ocidental acredita que conquistou, enfim, suas garantias e direitos fundamentais de dignidade humana. Entretanto, sessenta anos depois, ainda estamos sofrendo as vicissitudes de uma sociedade que reifica os seres humanos e lhes esvazia de qualquer subjetividade. Apesar das garantias formais, a exclusão remanesce, e a perversidade das imposições culturais achaca as possibilidades de dignidade humana feminina. Os ocidentais acreditam que suas conquistas formais representam absoluta evolução em relação à tradição oriental, e, entretanto, é questionável mensurar qual sociedade sobrepuja mais a mulher. Enquanto no oriente vicejam padrões estéticos relacionados à delicadeza do feminino, e a beleza da mulher pode estar nos gestos de sua dança e no modo como serve chá; na cultura consumista do ocidente, aquela que não possui um acessório de determinada grife e que não pesa tantos quilos, não pode ser amada e aceita, e a mulher precisa se tornar um objeto de consumo desejável, capaz de atrair fregueses.
No Dia 8 de março de 1857, operárias de uma fábrica de tecidos, situada na cidade norte americana de Nova Iorque, fizeram uma grande greve. Ocuparam a fábrica e começaram a reivindicar melhores condições de trabalho, tais como, redução na carga diária de trabalho para dez horas (as fábricas exigiam 16 horas de trabalho diário), equiparação de salários com os homens (as mulheres chegavam a receber até um terço do salário de um homem, para executar o mesmo tipo de trabalho) e tratamento digno dentro do ambiente de trabalho. A manifestação foi reprimida com total violência. As mulheres foram trancadas dentro da fábrica, que foi incendiada. Aproximadamente 130 tecelãs morreram carbonizadas. Esse episódio que sustenta, hoje, a existência do “Dia Internacional da Mulher” exemplifica magistralmente que as conquistas de direitos pelas mulheres são produtos de intensas lutas sociais, e não meros desdobramentos de um processo civilizatório modernizante. O feminismo ocidental é sociologicamente dividido em três grandes “ondas”: A primeira onda do feminismo refere-se a um período extenso de atividade feminista ocorrido durante o século XIX e início do século XX, no Reino Unido e nos Estados Unidos, que tinha, originalmente, o foco da promoção de igualdade nos direitos contratuais e de propriedade para homens e mulheres, e na oposição de casamentos arranjados. No entanto, no fim do século XIX, o ativismo passou a se focar principalmente na conquista de poder político, especialmente, o direito ao sufrágio por parte das mulheres. A segunda onda do feminismo representa o período da atividade feminista que teria começado no início da década de 1960 e durado até o fim da década de 1980, com o Women’s Liberation Front (Frente de Liberação das Mulheres), a queima de sutiãs e os protestos por liberação sexual. A terceira onda do feminismo começou no início da década de 1990, com uma interpretação antropológica pós-estruturalista do gênero e da sexualidade, enfatizando-se a “micropolítica”, e procurarando-se negociar um espaço dentro da esfera feminista para a consideração de subjetividades relacionadas a outras demandas sociais, como questões raciais, religiosas e de opção sexual/afetiva.
Em última análise, trata-se de uma luta por serem reconhecidas como seres humanos, como sujeitos, e não apenas como objetos. Segundo Khel:
“O que é específico no caso das mulheres, tanto em sua posição subjetiva quanto em sua condição social, é a dificuldade que enfrentam em deixar de ser objetos de uma produção de saberes de grande consistência imaginária, a partir da qual se foi estabelecendo a verdade sobre sua ´natureza`. Não foi possível àquelas mulheres tomar consciência de que aquela era a verdade do desejo de alguns homens, sujeitos do discurso médico e filosófico que participaram das formações ideológicas modernas. A esta produção de pensamentos foi se contrapondo uma grande produção literária ao público feminino, expressão imaginária dos anseios reprimidos de grande parte das mulheres que sonhavam viver, a seu modo, ´a grande aventura burguesa`, para além do papel honroso que lhes era concedido, de mães virtuosas e rainhas do lar.” [5]
Qualquer luta social não é meramente uma luta por conquistas legais formais, mas, antes de tudo, uma luta subjetiva, que Axel Honneth desenvolve enquanto luta por reconhecimento, traçando um estudo profundo sobre como as reivindicações são, na verdade, necessidade de afeto:
“A formação do Eu prático está ligada à pressuposição do reconhecimento recíproco entre dois sujeitos: só quando dois indivíduos se vêem confirmados em sua autonomia por seu respectivo defronte, eles podem chegar de maneira complementaria a uma compreensão de si mesmos como um Eu autonomamente agente e individuado.(…) Porque dependem de critérios socialmente generalizados, segundo o seu modo funcional inteiro; à luz de normas como as que constituem o princípio da imputabilidade moral ou as representações axiológicas sociais, as experiências pessoais de desrespeito podem ser interpretadas e apresentadas como algo capaz de afetar potencialmente também outros sujeitos. (…) Só graças à aquisição cumulativa de autoconfiança, auto-respeito e auto-estima, como garante sucessivamente as experiências das três formas de reconhecimento, uma pessoa é capaz de se conceber de modo irrestrito como um ser autônomo e individuado e de se identificar com seus objetivos e seus desejos”.[6]
Em meio a este period a que Norberto Bobbio denomina “Era dos Direitos”, ou que Lyotard e outros autores críticos chamarão de “pós-modernidade”, as conquistas jurídicas por normas de direito positivas não são cortesia da boa administração estatal, tampouco descobramentos naturais do ideal democratico liberal-iluminista. Na pós-modernidade, quando as promessas da modernidade se mostraram falaciosas e irrealizáveis, o que resta é a luta constant por emancipação e reconhecimento de direitos. E os direitos humanos são um reflex do paradox modern, que formaliza garantias e jamais as efetiva. Ademais, uma discussao cosnciente de direitos humanos precisa se desapegar dos mitos universalizantes da racionalidade instrumental para caminhar em direção ao multiculturalismo, compreendendo os processos discruminatórios antropologicamente. No caso do sexismo, isso é ainda mais premente, poi strata-se de questão culturalmente constituída, de modo que o mero processo normative nunca sera capaz de dirimir, e sequer mitigar os conflitos daí decorrentes. Assim, é preciso pensar a exclusao da mulher de forma cultural, para, então, reconhecer um direito.
3.Conclusão
Refletindo no sentido sociológico de que a construção cultural de saberes sustenta poderes que se reproduzem em novos saberes, consequentemente, o racionalismo moderno não é idôneo a romper com processos culturais discriminatórios, mas, ao contrario, reformula racionalmente os saberes sociais, instrumentalizando a exclusão a serviço dos interesses do sistema econômico. Tentar desvencilhar-se da condição de objeto é uma tarefa muito sofrida para a mulher ocidental, numa época em que todos os sujeitos estão submetidos a um processo constante de reificação que suplanta o fetichismo da mercadoria marxiano em direção a um “consumo, logo sou”, na sociologia de Zygmunt Bauman, revendo Descartes. Em “Vida para Consumo”, ao “atualizar” o dogma cartesiano, Bauman nos mostra que as relações humanas são relações de oferta e demanda, onde todos nos tornamos mercadorias que desejam ser consumíveis. Para a mulher, isso é apenas a reprodução hiperbólica de algo que se arrasta desde o inicio do século XX, tornando-se, ora, escancaradamente aceito e usual. Ser uma “mulher-samabaia” ou uma “mulher-melancia”, posar ao lado de um automóvel ou de uma garrafa de cerveja, não parece contrário a uma luta por reconhecimento, mas sim o único caminho possível de resgate de um reconhecimento subjetivo, que passa necessariamente pela reificação. A mulher ocidental, a mulher brasileira, reconhece na sua coisificação um caminho adequado para o reconhecimento, numa modernidade líquida onde toda solidez axiológica se perdeu, e a única possibilidade de atrair atenção é ser um objeto atraente.
As construções simbólicas da linguagem encontram, agora, novas correlações entre significado e significante, e os conceitos de objeto “a” de Lacan ou de “objeto transicional” de Winnicot tornam-se quase obsoletos na reflexão sociológica, pois o sujeito é o próprio objeto, que se relaciona com outro sujeito coisificado. Se a luta por reconhecimento de Honneth dialoga com a psicologia de Winnicot, no sentido de que há um espaço entre o desejo e sua realização, representado pela simulação do desejo, a luta social seria um caminho para a verdadeira emancipação. Todavia, o que se vê hoje é uma sociedade cujo superego desfaz as possibilidades do ego. Há um projeto emancipatório possível, então? Se houver, ele passa necessariamente pela reflexão filosófica crítica, por uma discussão sistemática dos processos discriminatórios e dessubjetivadores, pela educação em direitos humanos, e pelo respeito ao multiculturalismo, em contraposição a universalização dos padrões de cultura.
No que se refere às lutas por emancipação feminina, há que compreender seus fundamentos históricos para denunciar que a subjugação da mulher não só ainda existe, como se agravou na sociedade de consumo, e, que, se as orientais possuem suas demandas de lutas emancipatória diante de sua cultura, nosso desafio não é menor e, passa, necessariamente, pelo debate ético, que possibilita a transformação.
FISCHER, Izaura Rufino; MARQUES, Fernanda. Gênero e Exclusão Social. In: Trabalhos para Discussão, n. 113/2001, agosto de 2001. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 200, pp. 01-10.
Informações Sobre o Autor
Taylisi de Souza Corrêa Leite
Advogada graduada pela Unesp, pós-graduada pela Escola Paulista de Direito, professora universitária nas cadeiras de Teoria do Estado, Filosofia, Antropologia Jurídica e Sociologia Jurídica, entre outras