Disciplina e normalização: um diálogo com André Berten acerca da disciplina à autodisciplina em Michel Foucault

Resumo: Ao longo da história verificamos diferentes formas de disciplina e poder, desde o medievo até a sociedade dita pós-moderna, parece haver algo em comum a ameaça às liberdades individuais, em especial pelas mutações de biopoderes a que são submetidos os indivíduos até o alcance da normalização.  Nesse sentido a lei se traduz no mais refinado instrumento de controle social.

Palavras-chave: Disciplina. Normalização. Poder.

Abstract: Throughout history we find different forms of discipline and power, from the medieval to the postmodern society dictates, there seems to be something in common the threat to individual liberties, especially by mutations biopower that individuals are subjected to the scope of standardization. In this sense the law translates into more refined instrument of social control.

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Keywords: Discipline. Standardization. Power.

Sumário: 1. A Disciplina nas relações de poderes: da autonomia às mutações existenciais. 2. Da fé à razão: a lei e a normalização do indivíduo. Conclusão.

Introdução           

Na genealogia discute-se o poder pelo desejo de verdade traduzido no discurso. Do ponto de vista interno do discurso destacamos a disciplina como técnica que permite a classificação, a ordem. Por outro lado a “vontade de verdade” pode ser traduzida na desconstrução das formas de exclusão e compreensão da relação entre saber e poder enquanto campo da normatização. Essas reflexões extraídas da ordem do discurso enquanto método genealógico ganha sentido em vigiar a punir quando estudamos o posicionamento disciplinar do poder na relação entre o sujeito e o objeto da normalização que conduz a “autonomia” forjada sobre o corpo. Assim aos poucos os castigos físicos vão sendo refinados pelo castigo psíquico, repressivo, orgânico substituído pelo olhar do panóptico que vê em minúcias como sobre a luz, num olhar profundo ocorre à disciplina pelo gesto que une ou separa, pelo quadriculamento que examina em minúcias nas teias do poder (microfísica).

1. A Disciplina nas relações de poderes: da autonomia às mutações existenciais

A técnica disciplinar na modernidade se constitui na normalização do sujeito pela produção de uma individualidade marcante que condena o criminoso, aponta suas características peculiares, rotula, julga e pune severamente.

O poder normalizador define o lugar do sujeito na sociedade pelas qualidades ou defeitos que marcam sua autonomia de parte orgânica do corpo social e pressupõe a vontade, o querer, o poder-saber, a consciência de si.

A técnica-ciência interfere na subjetividade e organicidade do tempo-espaço das disciplinas normalizadoras na produção e reprodução de poderes, a norma jurídica é uma das técnicas refinadas de definição das posições sociais, econômicas, políticas enquanto ferramenta nas mãos de quem sabe e pode fazer o direito (valoração do fato em norma). Por isso o direito serve a quem pode fazê-lo na hierarquia social.

A vontade de verdade é libertação ou prisão, absolvição ou condenação na luta interna das partes que unem o corpo social. A hierarquia definidora no big brother é um exemplo de como se exerce o biopoder, pelo olhar através da luz de quem vê nas entrelinhas normativas.

O quadriculamento nas relações sociais ocorre de dentro para fora e de fora para dentro no que a autonomia é produzida nessa teia de relações de poderes, portanto as relações de poderes são cíclicas, costuradas pelo saber-poder que define o lugar de cada indivíduo enquanto membro do grande corpo da anatomia política. O ser projeta-se com vigor pela ascese do querer enquanto força pulsante. Por isso a história da sexualidade é tão relevante na descoberta do corpo pelo entendimento do saber-poder e seus limites, na descoberta do desejo permitido ou reprimido, mas que permite a liberação de sentimentos íntimos do ser, talvez a parte mais prazerosa do corpo em que podemos exprimir emoções inimagináveis. E ao mesmo tempo a disciplina sobre o desejo e a vontade de querer pode ser uma técnica magnífica de poder individual e social. Não por acaso a confissão foi bastante utilizada no medievo, pois era reveladora das intimidades que condenam multidões e minuciosamente a quantidade e qualidade dos pecadores, são segredos de vida e de morte numa sociedade estamental. Não por acaso a igreja não revelava seus segredos carnais apenas os espirituais.

2. Da fé à razão: a lei e a normalização do indivíduo

A técnica da confissão enquanto técnica de poder e individualização definiam salvações ou condenações ao fogo do inferno. A reflexão subjetiva direta entre o pecador e Deus vai permitir a libertação do jugo opressor da sentença eclesiástica.

A possibilidade da verdade construída pela fé racional se constitui em novas formas de poder pelos costumes sociais e pela relação íntima do indivíduo com sua espiritualidade, seria preciso uma nova disciplina sobre o desejo, o sexo, para além da função reprodutora, mas por permitir que parte do desejo fosse reprimida e parte permitida até certo ponto a disciplina vai se refinando enquanto um discurso racional capaz de mostrar outras qualidades humanas, e outras funções de desejo sexual, por isso a confissão liberta multidões em especial pelo protestantismo fomentador de uma nova concepção individual que pelas práticas dos eleitos, pelas qualidades, pelo desejo de servir sem intermediários e a salvação reside nas ações e na fé individual, uma autonomia, poder e descoberta de outras verdades possíveis enquanto ideal ascético.    .

Porém essa teia de poderes burgueses a partir da confissão não passa como bem esclarece Foucault de um ritual de discurso e de poder a partir de novas técnicas disciplinares, e acrescento em especial sobre o corpo individual e social.

A liberdade enquanto fetiche se constitui em instrumento de dominação pela acumulação de qualidades físicas, sociais, econômicas e de opressão normatizadas de uns sobre os outros, refinando-se características que distingue, por exemplo, os eleitos e não eleitos, e legitimam relações de poderes numa teia de expiação das virtudes e defeitos, o maniqueísmo se revela com outros biopoderes, são novas técnicas disciplinares que visam normatizar e conferir autonomia dentro de certos padrões burgueses de medições por novos panópticos modernos. E vamos mais além, se a característica da solidariedade cristã e a demografia populacional permitia uma rede de solidariedade e cuidado com os pobres no medievo, na modernidade a prosperidade com a ética protestante passa a ser sinal de virtude divina e a pobreza sinal de afastamento das qualidades dos eleitos. Legitima-se ainda mais as desigualdades, as injustiças sociais e rompem-se de vez os laços de solidariedade. A separação dos tipicamente estranhos enquanto negação do outro, do mais vulnerável e fora dos padrões burgueses se constitui num dilema dos séculos seguintes só se agravando até nossos dias.

A lei a partir do estado de direito enquanto invenção burguesa vem dar as garantias necessárias ao funcionamento da imensa engrenagem da propriedade privada dos meios de produção. A expulsão dos camponeses das terras comunais pelos cercamentos para a criação de ovelhas destinadas a produção de lã para as indústrias são exemplos materiais dessas transformações e normalizações disciplinares da modernidade.

A lei como ciência e técnica se constitui na mais poderosa engrenagem burguesa de biopoderes da nossa sociedade ocidental amarrando por pactos sociais limites ao Estado Soberano e conferindo proteção à propriedade privada dos meios de produção, conferindo liberdade para vender a força de trabalho mediante um salário miserável. Tudo sob as bênçãos de Deus. A vida e a morte passam das mãos da inquisição para os examinadores especializados na técnica do julgamento. Do corpo como máquina domesticada, dócil, submisso. Pela disciplina se forma nas palavras de Foucault, uma ‘anatomia-política do corpo humano’. E o controle e regulamentação da reprodução, do nascimento, da mortalidade, da saúde, enquanto biopoder típico do capitalismo. A noção temporal, existencial, do bem e do mal, do pertencer e do ser rejeitado, do ser feliz ou infeliz, da perda e da vitória no capitalismo muitas vezes tem um preço que significa um ter em detrimento do ser.  A lei terá uma função primordial de garantir uma ordem e progresso para poucos. Seu caráter corretivo, repressivo, utilitarista, do castigo físico sanguinário até a morte para a racionalização dos comportamentos sexuais dos saberes e poderes individuais e sociais.  As relações sanguíneas no plano psíquico vão se forjando desde os laços familiares do que é proibido ou permitido, desejos proibidos ou reprimidos como caso do incesto considerado proibido. As normalizações sociais e a concepção da família monogâmica no ocidente como base do Estado de Direito são exemplos das normalizações que se constituem da lei à norma. A própria concepções do homem como chefe de família hoje modificada pela grande inserção da mulher e seu poder na sociedade se constituem em normalizações disciplinares que nos remete a discussão porque não o outro, homossexual nas relações familiares, eis o grande desafio do nó a ser desatada nas normalizações a vontade de verdade que rompa com a própria concepção judaico-cristã de vida em sociedade e passa-se à pluralidade de atores sociais. Novas configurações, mutações burguesas das uniões homoafetivas ou poliafetivas no plano normativo enquanto formas de liberdade e resistências de poder. Essas questões dizem respeito à história da sexualidade. E os desejos permitidos ou reprimidos, a felicidade humana, os valores como dignidade e solidariedade precisam ser resgatados no presente rompendo-se com a tradicional família patriarcal e monogâmica nas relações saber-poder, e de dominação na constituição de biopoderes uma técnica disciplinar para além do si do cuidado de si e que diga respeito ao nós.

Conclusão

As disciplinas assumem novas configurações mutacionais nas teias de poderes, na fluidez da modernidade, porém estará à ética protestante aberta ao diálogo do si para com o outro? A história da sexualidade, dos desejos, sensações, felicidade para além do aspecto religioso, parece indicar uma mudança normalizadora inclusiva dentro do panóptico burguês, consumista como plástica, moldável, o problema diz respeito no plano da predestinação realmente a questão das diferenças enquanto sinal que define a posição no corpo social, no plano das desigualdades culturais, sociais, étnicas a ser superado.

Nesse sentido da lei à norma revela a criminalização dos pobres, pelas características que definem descritivamente esses como “ameaça ao corpo social”, inicialmente proibindo a mendicância posteriormente transformando a ociosidade enquanto valor moral num mal a ser combatido e o trabalho num bem e sinal de que com este se alcançará a salvação e será sinal de prosperidade aos que exploram e lucram com a miséria alheia. Legitima-se pela normalização as desigualdades sociais, econômicas, políticas a partir das leis que separa ou aproxima valores morais marcadamente burgueses.

 

Referência
BERTEN, André. Michel Foucault: Da disciplina à autodisciplina. In Modernidade e Desencantamento. Saraiva. São Paulo. 2011

Informações Sobre o Autor

Afonso Soares de Oliveira Sobrinho

Doutor em Direito – FADISP. Mestre em Políticas Sociais – UNICSUL. Advogado


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