A figura da intervenção foi introduzida na Constituição Federal de 1934 como sucedâneo de ação direta de inconstitucionalidade.
Desde o advento da Constituição Federal de 1946, quando surgiu a ação direta de inconstitucionalidade (representação) o instituto da intervenção caiu em desuso. Hoje, seu emprego está praticamente restrito ao campo concernente ao cumprimento de decisões judiciais, notadamente, como meio de forçar o ente político devedor a solver os precatórios judiciais.
Trata-se de uma medida extrema que deve ser utilizada apenas nas hipóteses de graves irregularidades como nos casos de recusas sistemáticas no cumprimento de precatórios, criando situações que podem conduzir ao estado de total insolvência do ente político. Por conta dessa cultura do descrumprimento de decisões judiciais, até hoje, três moratórias constitucionais já foram decretadas. A continuar esse clima de impunidade a tendência será a de continuar repetindo as moratórias ao longo do tempo, fazendo com que as dívidas públicas cresçam cada vez mais.
Estados e Municípios vêm ignorando as condenações judiciais de longa data sempre esperando por novas facilidades propiciadas pelo Legislativo. Apenas o governo federal vem cumprindo os precatórios judiciais. Essa cultura do calote e da impunidade precisa ser revertida.
A intervenção estadual no Município está prevista no art. 35, da CF:
“Art. 35. O Estado não intervirá em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em Território Federal, exceto quando: (…)
IV – o Tribunal de Justiça der provimento a representação para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição Estadual, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial.”
Atualmente, não mais se discute que o precatório é uma ordem judicial de pagamento. Portanto, seu descumprimento, no prazo constitucional (art. 100, § 5°, da CF) enseja representação de intervenção.
Qualquer credor por precatório está legitimado a requerer a representação interventiva, sendo dispensável a representação da Chefia do Ministério Público. Basta que o Tribunal de Justiça, por seu Órgão Especial, dê provimento à representação formulada pelo interessado.
Quando o descumprimento de precatório assume característica de algo planejado e programado, mediante esvaziamento sistemático das dotações orçamentárias consignadas ao Poder Judiciário, como vem acontecendo no Município de São Paulo, nos últimos quinze anos, talvez como consequência da primeira moratória constitucional (art. 33 do ADCT), que deu a certeza de impunidade aos maus governantes, outro remédio não há senão o de valer-se da via interventiva para afastar e punir o governante que incorporou em sua rotina de trabalho o ato de desviar as verbas destinadas ao cumprimento de decisões judiciais.
Após a terceira moratória constitucional, esta última apelidada de “Emenda do Calote” que se materializou na EC n° 62/2009, houve mobilização das instituições jurídicas do País contra a premiação dos maus governantes. Nada menos que três Adins contra a EC n° 62/2009 foram ajuizadas no STF.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, por sua vez, vem afastando a aplicação da EC n° 62/2009 em relação aos precatórios antigos, por representar violação da coisa julgada, e vem decretando a intervenção Estadual nos diversos Municípios, inclusive, no Município de São Paulo: IE n° 994.09.00.2451-6, Rel. Des. Ivan Santori; IE n° 994.09.223334-4, Rel. Des. Penteado Navarro; IE n° 994.09.229279-4, Rel. Des. Ivan Santori; IE n° 994.08.008471-3, Rel. Des. Laerte Sampaio e IE n° 994.09.229903-5, Rel. Des. Penteado Navarro.
Uma vez provida a representação interventiva é oficiado o Governador para nomeação do interventor. Discute-se a natureza jurídica da decisão judicial que defere a intervenção. Muitos entendem que a decretação de intervenção estadual no Município não tem eficácia vinculativa, baseada na prática consistente na costumeira inércia do governador.
Discordamos desse posicionamento. A intervenção não tem o sentido meramente autorizativo, mas o sentido de ordem judicial emanado do Plenário do Tribunal, representado pelo seu Órgão Especial, para fazer cumprir a decisão judicial descumprida. É o que se depreende pela leitura sistemática dos textos constitucionais concernentes ao regime de pagamento das condenações judiciais contra a Fazenda em conexão com o princípio da independência e harmonia dos Poderes.
Entender o contrário seria o mesmo que aderir à tese de que decisão judicial contra o poder público tem eficácia relativa, à medida que depende da boa vontade do governante para o seu cumprimento.
Não faz sentido algum o Poder Judiciário gastar tempo e recursos financeiros para decretar a intervenção como última medida para fazer cumprir suas decisões se esse decreto interventivo tiver mera natureza autorizativa.
Na verdade, a omissão do Chefe do Executivo Estadual na nomeação de interventor no Município, em cumprimento de ordem emanada do Tribunal de Justiça, caracteriza crime de responsabilidade política (art. 85, V e VII, da CF).
Ante a decisão interventiva proferida pelo Tribunal de Justiça, impõe-se, portanto, a nomeação de interventor pelo prazo necessário ao cumprimento do precatório judicial que ensejou a representação interventiva, não só para conferir efetividade ao princípio da separação dos Poderes, inserto no art. 2° da CF, como também para conferir caráter educativo ao governante que vem impunemente planejando e programando desvios de verbas destinadas ao pagamento das condenações judiciais, para satisfação de outros interesses públicos que rendem projeções na mídia.
Informações Sobre o Autor
Kiyoshi Harada
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.