Resumo: A legalidade, como concebida no Estado Democrático e Social de Direito, garante aos cidadãos em geral a liberdade de agir e de exercitar as suas vontades sem interferência do Poder Público, salvo as restrições previstas em lei. O decreto federal n.º 8.124, de 17 de outubro de 2.013, que regulamenta a lei federal n.º 11.904/09 instituidora do Estatuto dos Museus e a lei federal n.º 11.906/09 criadora do Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM, apresenta diversas ilegalidades não só por extrapolar as competências legais atribuídas ao Instituto, mas também por criar limitações administrativas aos proprietários de bens culturais que denominou “musealizados” e “passíveis de musealização”[i] sem qualquer base legal. Também por não observar os limites materiais do poder regulamentar, já que afronta alguns princípios gerais de direito, o decreto possui vícios de ilegalidade e inconstitucionalidade que devem ser sanados por medidas administrativas e/ou judiciais necessárias a resguardar a higidez do ordenamento jurídico brasileiro e preservar a democracia do país.
Palavras-chave: Legalidade. Ofensa. Decreto federal n.º 8.124/13
Abstract: The concept of “legality”, as conceived in a Democratic and Wellfare State, ensures its citizens the freedom to act and to exercise their will without government interference , except as otherwise provided by law. Federal Decree 8.124, of October, 17TH, 2013, which regulates Federal Laws 11.904/09, the Museums Statute, and 11.906/09, which creates the Brazilian Institute of Museums – IBRAM, presents a number of illegalities not only related to the extrapolation of the legal competence of IBRAM, but also for creating administrative limitations to the proprietors of arts assets therein denominated "musealized" and "likely to musealization" without legal basis. Additionally, the Decree does not comply with material boundaries of the regulatory duties of the Executive, as it defies certain general principles of law. The Decree’s illegalities shall be cured by administrative and/or judicial measures which shall secure the transparency and health of the Brazilian legal system, as well as to preserve the country's democracy and rule of law.
Key-words: Legality. Offense. Federal Enact # 8.124/13".
Sumário. 1. Introdução. 2. Das ilegalidades e inconstitucionalidades do decreto. 2.1. A regra da legalidade e os limites do poder-dever regulamentar do executivo. 2.2. As leis federais n.º 11.904/09 e n.º 11.906/09 que instituíram o Estatuto dos Museus e o Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM. 2.3. O decreto federal n.º 8.124, de 17 de outubro de 2.013. 2.4. Das ilegalidades do decreto federal n.º 8.124/13. 2.4.1. Da inobservância dos limites formais relativos à competência, a hierarquia normativa e ao procedimento a ser adotado para a produção do regulamento. 2.4.2. Da inobservância do limite material relativo ao respeito aos princípios gerais do direito. 3. Conclusões.
1. Introdução.
Desde o ato administrativo mais concreto e individual possível, como a lavratura de um auto de infração, até os princípios jurídicos estabelecidos na Constituição da República, sabe-se que o ordenamento deve obedecer a uma lógica de validade material e formal na qual o ato jurídico de menor grau deve respeitar os limites impostos pelo ato jurídico imediatamente superior, chegando-se até os termos constitucionais.
Tal assertiva, por mais que pareça óbvia, é fruto de um longo processo histórico que buscou equilibrar diversos interesses antagônicos surgidos no desenvolver do Estado e que permitiu, ainda sem uma conclusão definitiva, estabelecer conceitos sobre a legalidade e os limites do poder-dever regulamentar do executivo.
Para analisar tecnicamente o decreto federal sob n.º 8.124, de 17 de outubro de 2.013, duas premissas foram adotadas, quais sejam, a legalidade trata-se de regra jurídica que exprime um direito a ser integralmente satisfeito pelo Estado, não admitindo ponderação de valores no momento da aplicação – como ocorre com os princípios – e, ainda, que os decretos possuem limites formais e materiais previstos nas leis e na Constituição da República a serem observados pelo poder executivo, sob pena de nulidade do ato.
Objetivando avaliar, em especial, as disposições do decreto que possibilitam ao Poder Público declarar como de interesse público os bens passíveis de musealização, bem como aquelas que impõem uma série de consequências e obrigações aos proprietários de tais bens, o foco deste artigo é demonstrar que no ordenamento jurídico brasileiro todas elas devem ter disposição legal e que não cabe ao executivo defini-las através de decreto.
Sem prejuízo do objeto central da pesquisa, outras questões polêmicas introduzidas no decreto foram rapidamente abordadas, na medida em que poderão ensejar uma série de questionamentos sobre a excessiva intervenção do Poder Público na propriedade privada e a falta de proporcionalidade entre as medidas adotadas e a finalidade pública que se pretende atingir.
Em conclusão, após discorrer sobre os termos do decreto regulamentar n.º 8.124/13 em cotejo com as leis federais n.º 11.904/09 e 11.906/09 e com as previsões constitucionais pertinentes à matéria, a pretensão final deste artigo é apontar os abusos cometidos pelo poder executivo.
2. Das ilegalidades e inconstitucionalidades do decreto.
2.1. A regra da legalidade e os limites do poder-dever regulamentar do executivo.
Depois de longo processo histórico, atualmente a legalidade pode ser entendida como regra jurídica que contém como antecedente e consequente jurídicos comandos concretos de dever-ser, implicando ao Estado a obrigação de cumpri-la integralmente.
Como cediço, a vinda do neoconstitucionalismo e o marco filosófico do pós-positivismo acabaram por atribuir eficácia normativa aos preceitos constitucionais, erigindo a norma à categoria de gênero, do qual são espécies as regras e os princípios jurídicos.
Nesse sentido, em que pese tanto as regras como os princípios poderem ser formulados por meio das expressões deônticas básicas do dever, da permissão e da proibição[ii], podemos diferenciá-los pelos seguintes aspectos:
Os princípios podem ser aplicados em diversos graus, a depender das condições fáticas do caso concreto, e as regras devem ser aplicadas integralmente sem qualquer tipo de ponderação. Os princípios, enquanto mandamentos de otimização, garantem direitos prima facie que devem ser aplicados por meio do sopesamento, e as regras garantem direitos definitivos que devem ser realizados totalmente por meio da subsunção.
Na hipótese de conflito entre regras parcialmente incompatíveis, a solução ocorre por meio da instituição de uma cláusula de exceção entre ambas e, em sendo absoluta a incompatibilidade, a solução se dá pela declaração de invalidade de uma delas. No caso de conflito entre princípios, a solução dependerá das condições do caso concreto que implicarão na prevalência de um princípio em detrimento dos demais, sem que seja necessária a exclusão do mundo jurídico daqueles que não foram aplicados.
Por fim, os princípios contém em seu antecedente jurídico uma descrição abstrata de determinada competência normativa a ser exercida pelo sujeito passivo da norma, diferente das regras que contém uma descrição precisa acerca da conduta a ser praticada.
O sentido deôntico-jurídico retirado da norma constitucional da legalidade pode ser expressado da seguinte forma: dada a ocorrência de imposição de obrigação de fazer ou deixar de fazer algo a qualquer indivíduo, deve ser que a mesma seja criada em virtude de lei.
Conforme lançada em termos constitucionais, o conteúdo da legalidade não só exprime um comando de dever-ser como também descreve precisamente qual a conduta a ser praticada pelo Estado, não havendo qualquer grau de abstração no antecedente jurídico da norma.
A legalidade não admite ponderação mediante as circunstâncias do caso concreto. Ao contrário, ela exprime um direito que deve ser totalmente satisfeito pelo Poder Público, não visando concretizar um valor na maior medida possível, como mandado de otimização.
Nesse sentido, FERNANDO CANHADAS[iii] destaca:
“Quando falamos em legalidade, estamos nos referindo ao mandamento segundo o qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. O efeito imediato propagado por esta proposição prescritiva é objetivo: se não há lei prevendo determinada obrigação, o jurisdicionado não tem o dever de adimpli-la. Não há uma obrigação que possa ser parcialmente prevista em lei: ou ela está integralmente prevista e deve ser adimplida, ou não está e seu adimplemento não poderá ser validamente exigido. Nesse sentido, a legalidade não deve ser buscada na maior medida possível, ela deve ser simplesmente obedecida, em caráter definitivo. E sendo assim, em que pese sua extrema relevância dentro do sistema jurídico, a legalidade seria, para os adeptos dessa doutrina a que estamos a chamar de terceira fase, verdadeira regra jurídica e não um princípio”.
Diante da regra da legalidade tal como lançada no ordenamento jurídico brasileiro, bem como levando em consideração os preceitos constitucionais que tratam do tema – artigo 84, inciso IV da Constituição da República e artigo 25 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias -, o poder-dever regulamentar do executivo está sujeito a alguns limites que há muito tempo são reconhecidos pela melhor doutrina administrativa.
Segundo a doutrina de ENTERRÍA[iv], que com as devidas adaptações pode ser aproveitada no sistema brasileiro, tais limites podem ser elencados nos seguintes termos.
Como limites formais, a competência do ato regulamentar, a observância hierárquica aos termos da lei e ao procedimento democrático na produção do ato, tanto na fase inicial como na conclusiva, em vista dos princípios da publicidade e do devido processo legal.
Como limites materiais, o respeito e a observância aos princípios gerais de direito, à matéria que pode ser inserida no ato – restrita a temas administrativos e instrumentais – e a necessária irretroatividade dos termos regulamentares, que deverão ser aplicados apenas a situações futuras.
Sendo assim, o decreto regulamentar é de competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo, não pode inovar a ordem jurídica criando obrigações aos administrados e, tampouco, contrariar os termos da lei.
Na elaboração do decreto deve ser assegurada a participação popular para que setores da sociedade ligados ao conteúdo do ato possam legitimar a sua produção.
As disposições regulamentares devem observar os princípios gerais de direito, tornando possível o controle do decreto através de ação direta de inconstitucionalidade, bem como devem se limitar a temas que envolvam a Administração Pública para que esta possa dar “fiel execução à lei”.
Portanto, partindo da legalidade como regra jurídica e dos limites acima apontados, passa-se à análise do decreto federal n.º 8.124/13 e das leis n.º 11.904/09 e n.º 11.906/09.
2.2. As leis federais n.º 11.904/09 e n.º 11.906/09 que instituíram o Estatuto dos Museus e o Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM.
A lei n.º 11.904, de 14 de janeiro de 2.009 institui o Estatuto de Museus e, como não poderia deixar de ser, traz diversas normas jurídicas a serem por eles observadas, passando a defini-los nas disposições gerais como todas as “instituições sem fins lucrativos que conservam, investigam, comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento”.
Portanto, como premissa fundamental, temos que o objeto da lei federal citada é impor normas de conduta a serem observadas exclusivamente pelas instituições sem fins lucrativos que, de uma maneira geral, venham a gerir conjuntos e coleções de bens culturais abertos ao público.
Na sequência, o artigo 5.° dispõe que os bens culturais dos museus, em suas diversas manifestações, podem ser declarados como de interesse público, no todo ou em parte, ressaltando o seu § 2.° que ocorrerá tal declaração sempre que a proteção a seu acervo – isto é, ao acervo dos museus – representar um valor cultural de destacada importância para a nação.
A lei, com redação deficiente, opta por excluir de seu âmbito de incidência as bibliotecas, os arquivos, os centros de comunicação e as coleções visitáveis, definindo estas últimas como os conjuntos de bens culturais abertos esporadicamente à visitação que sejam conservados por uma pessoa física ou jurídica que não museu, isto é, que não instituição sem fins lucrativos ocupada em gerir conjuntos e coleções de bens culturais.
Tratando sobre o regime aplicável aos museus, a lei estabelece que a criação, a fusão e a extinção dos mesmos deverão ser efetivadas por meio de documento público e registradas no respectivo órgão competente. Ainda neste capítulo, após definir o que são museus públicos e permitir que os mesmos celebrem convênios para a sua gestão, a lei estabelece uma série de obrigações a serem observadas tanto por museus públicos como por privados, dentre as quais se destaca a necessidade de: a) possuírem regimento interno; b) garantirem a conservação e segurança de seus acervos através de programas de segurança periodicamente testados para prevenir perigos; c) promoverem estudos de público, ações educativas e oportunidades de prática profissional aos estabelecimentos de ensino; d) regulamentarem o acesso público aos bens culturais e a política de gratuidade ou onerosidade do ingresso ao museu; e) formularem uma política de aquisição e descarte de bens culturais ligados à área de atuação do museu; f) manterem documentação sistematicamente atualizada sobre os bens culturais que integrem seus acervos, na forma de registros e inventários a serem conservados nas respectivas instalações dos museus; g) inserirem os dados sobre os seus bens culturais no inventário nacional coordenado pela União; h) facilitarem o acesso à imagem e à reprodução de seus bens culturais e documentos e, enfim; i) elaborarem o seu plano museológico.
No capítulo II, referente “a sociedade e os museus”, a lei procurou fomentar a participação da sociedade civil através de associações de amigos na gestão e na manutenção dos museus, além de criar o denominado “Sistema Brasileiro de Museus”, isto é, “uma rede organizada de instituições museológicas, baseado na adesão voluntária, configurado de forma progressiva e que visa à coordenação, articulação, à mediação, à qualificação e à cooperação entre os museus”.
Sobre referido sistema, a lei optou por permitir que dele façam parte os museus públicos e privados, as instituições educacionais relacionadas à área da museologia e as entidades afins, bem como criou o “direito de preferência em caso de venda judicial ou leilão de bens culturais” aos museus dele integrantes, desde que o bem cultural objeto da preferência se integre na política de aquisição do museu.
Por fim, elenca diversas penalidades àqueles que descumprirem as medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação, inutilização e destruição de bens dos museus.
Por sua vez, a lei 11.906, de 20 de janeiro de 2.009 tem por finalidade específica criar nova autarquia federal denominada Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM e, como qualquer lei criadora de autarquias comuns – entidades da administração indireta – define suas competências e objetivos públicos em vista dos quais está sendo criada.
Cumpre ressaltar, por demasiadamente oportuno, que a lei atribuiu apenas autonomia administrativa e financeira ao IBRAM, sendo certo que não se trata de autarquia em regime especial, uma vez que não lhe foram conferidos privilégios específicos para a consecução de seus fins, tais como mandato fixo de seus dirigentes ou poder regulatório.
Traçando o nítido âmbito de competência do IBRAM, a lei define inicialmente o que são instituições museológicas, bens culturais musealizados e atividades museológicas[v]. Posteriormente, estabelece quais as finalidades da autarquia, atrelando todas elas ao setor museológico.
Pelo resumo acima e pela mera leitura aos dispositivos das leis, é fácil concluir que a finalidade legislativa que se pretendeu atingir com a edição das mesmas foi a de regulamentar e fomentar o setor museológico, criar medidas de proteção e controle aos bens musealizados pertencentes aos acervos e, para isso, criar o IBRAM, cuja competência cinge-se, dentre várias perspectivas (segurança, fiscalização, promoção etc.), a um único objeto, qual seja, bens culturais musealizados ou em processo de musealização[vi].
Em síntese, são estas as leis que o decreto n.° 8.124/13 pretendeu regulamentar.
2.3. O decreto federal n.º 8.124, de 17 de outubro de 2.013.
Inicialmente, o decreto conceitua diversas expressões já previstas nas leis federais objeto da regulamentação[vii], dentre as quais se destaca o termo “bens culturais passíveis de musealização”, sem, contudo, estabelecer o que seriam bens culturais em processo de musealização.
A ausência de tal conceito é absolutamente relevante para este estudo, na medida em que, como já salientado, o âmbito de incidência das leis restringe-se ao setor museológico, à proteção e controle aos bens musealizados e, no que tange ao IBRAM, a gerir bens culturais musealizados ou em processo de musealização.
É de se notar, inclusive, que o termo “bens culturais passíveis de musealização” é utilizado apenas em uma única passagem da lei federal n.º 11.904/09, no § 1.° do artigo 5.° quando dispõe:
“Art. 5°. Os bens culturais dos museus, em suas diversas manifestações, podem ser declarados como de interesse público, no todo ou em parte.
§ 1° Consideram-se bens culturais passíveis de musealização os bens móveis e imóveis de interesse público, de natureza material ou imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência ao ambiente natural, à identidade, à cultura e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.
§ 2° Será declarado como de interesse público o acervo dos museus cuja proteção e valorização, pesquisa e acesso à sociedade representar um valor cultural de destacada importância para a Nação, respeitada a diversidade cultural, regional, étnica e linguística do País.”
Em que pese o conceito de bens culturais passíveis de musealização estar alocado no artigo 5.° da lei, que trata da declaração de interesse público, em leitura ao texto se conclui que tal declaração apenas incidirá aos bens culturais musealizados, na medida em que tanto o caput como o § 2.° deixam claro que “será declarado como de interesse público o acervo dos museus”.
Somada a esta conclusão, partindo do princípio de que as leis buscam criar normas de conduta ao setor museológico e proteger os bens culturais musealizados, natural que, também por uma interpretação teleológica, a declaração de interesse público mencionada recaia sobre o acervo dos museus.
De qualquer sorte, preferiu o decreto destacar o conceito de bens culturais passíveis de musealização e não tratar dos bens em processo de musealização, por nítidas razões intervencionistas que adiante serão destacadas.
Estabelecendo algumas competências aos museus, públicos e privados, o decreto dispôs que os atos de criação, fusão, incorporação, cisão ou extinção deverão ser registrados no órgão municipal, estadual, distrital, ou, na sua ausência, no IBRAM, que também ficou responsável por criar critérios e procedimentos para o registro através de ato normativo.
Aliás, sobre a competência normativa do IBRAM, diversos são os temas que foram relegados a serem por ele tratados, dentre os quais ressaltamos o processo administrativo de declaração de interesse público, as fases do procedimento administrativo do processo sancionador e as medidas de proteção aos bens declarados de interesse público.
Regulamentando o artigo 63 da lei n.º 11.904/09, o decreto trata sobre o direito de preferência em caso de venda judicial ou leilão de bens culturais a ser exercido pelos museus integrados ao Sistema Brasileiro de Museus – cuja participação dos museus públicos federais é obrigatória e, para os demais museus, públicos e privados, optativa – trazendo o seu procedimento.
Sem esclarecer em que termos o direito de preferência será exercido, se pelo valor da avaliação, se pelo lance final oferecido no leilão, o decreto apenas esclarece que o representante legal do museu que pretender exercer o direito de preferência deverá se fazer presente no ato do leilão ou venda judicial, sob pena de preclusão do direito. Nesse sentido, muito provavelmente, também o detalhamento do procedimento do direito de preferência virá por ato normativo do IBRAM.
Sobre o uso das imagens e reproduções dos bens culturais dos museus, o decreto condicionou a utilização das mesmas à autorização da instituição a que estejam vinculadas e, quando for o caso, do autor ou de seus sucessores, cabendo ao IBRAM regulamentar, uma vez mais, a autorização do uso de imagem e reprodução dos acervos dos museus que o integram.
Em seu título VI, o decreto trata sobre o ato de declaração de interesse público – previsto no artigo 5.° da lei n.º 11.904/09 – estabelecendo que a sua formação dependerá de homologação do Ministro da Cultura, após processo administrativo instaurado perante o IBRAM. Como objeto da declaração, destaca que poderão ser declarados de interesse público os bens culturais musealizados e passíveis de musealização, afirmando que poderá ser concedida cauterlamente pelo Ministro da Cultura em caso de risco à integridade do bem cultural.
Posteriormente, sem estabelecer requisitos minimamente objetivos a serem cumpridos para que um bem seja declarado de interesse público e, assim, tornando o ato absolutamente discricionário, o decreto trata do processo administrativo declaratório, bem como cria os efeitos da declaração de interesse público nos seguintes termos:
“Art. 40. Para concretizar o disposto no § 1º do art. 216 da Constituição e no art. 5° da Lei n° 11. 904, de 2009, o proprietário ou responsável pelo bem declarado de interesse público:
I – adotará as medidas de proteção e preservação do bem;
II – informará anualmente o IBRAM sobre o estado de conservação do bem, ou informará, imediatamente, os casos de danos, furto, extravio, ou outras ocorrências que ameacem a sua integridade;
III – comunicará ao IBRAM dificuldades de ordem econômica ou material que impossibilite a garantia da proteção e preservação do bem;
IV – intervirá no bem, somente com prévia anuência do IBRAM;
V – conferirá ao IBRAM direito de preferência em caso de alienação onerosa do bem, que não inibirá o proprietário de gravar livremente a coisa; e
VI – não procederá à saída permanente do bem do país, exceto por curto período, para fins de intercâmbio cultural, com a prévia autorização do Conselho Consultivo do Patrimônio Museológico ou, caso se destine a transferência de domínio, desde que comprovada a observância do direito de preferência do IBRAM.”
Sobre o poder punitivo, afirma o decreto que o proprietário ou responsável pelo bem cultural declarado de interesse público será responsabilizado nas esferas administrativa, civil e penal, pelos prejuízos causados pela omissão na prestação das informações decorrentes da declaração, delegando ao IBRAM a fiscalização e aplicação de sanções referente às atividades desenvolvidas pelos museus ou por responsáveis pelos bens declarados de interesse público, estabelecendo, por fim, o processo sancionador.
Em síntese, são estas as disposições do decreto.
2.4. Das ilegalidades do decreto federal n.º 8.124/13.
Como elucidado na introdução deste artigo, adotando a doutrina desenvolvida por ENTERRÍA a respeito dos limites ao poder-dever regulamentar do executivo, com as devidas adaptações, os requisitos formais e materiais a serem observados pelos regulamentos são os seguintes:
Como limites formais, a competência, a hierarquia normativa e o procedimento a ser observado para a produção do ato e como limites materiais, o respeito aos princípios gerais do direito, a matéria regulamentar que pode ser inserida no conteúdo e a irretroatividade de seus efeitos.
Partindo, então, de tais limites, passa-se à análise das ilegalidades contidas no decreto.
2.4.1. Da inobservância dos limites formais relativos à competência, a hierarquia normativa e ao procedimento a ser adotado para a produção do regulamento.
A)Se o âmbito de incidência das leis federais é o setor museológico e a gestão de seus bens, se a declaração de interesse público apenas pode recair sobre o acervo dos museus e, por fim, tendo sido excluída das esferas de abrangência das leis as coleções visitáveis, então não poderia o decreto regulamentar questões ligadas a bens culturais passíveis de musealização, tal como pretende o artigo 35.
Ao conceituar os bens culturais passíveis de musealização, o decreto preceitua serem os mesmos todos os “bens móveis e imóveis, de interesse público, de natureza material ou imaterial, considerados individualmente ou em conjunto, portadores de referência ao ambiente natural, à identidade, à cultura e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”.
Como se vê, o conceito é demasiadamente abstrato e abrange desde uma moeda de valor histórico até uma obra de arte realizada por Tarsila do Amaral.
Ao definir que bens culturais musealizados e passíveis de musealização podem ser declarados de interesse público, tal como definido no conceito acima, o decreto extrapola os termos das leis e passa a incidir, não só sobre os museus, mas também sobre os particulares proprietários de bens que o Administrador Público, sem critérios legais pré-definidos, venha a considerar como portadores de determinadas referências da sociedade brasileira.
É evidente que por respeito ao limite hierárquico que o decreto deve observar perante a lei, seu âmbito de incidência não pode afetar esferas jurídicas não tratadas por esta última, sob pena de ilegalidade do ato regulamentar.
B)Se a lei que cria o IBRAM, como autarquia comum, define taxativamente suas competências (art. 4.° da lei 11.906/09), então o decreto não poderia: d.1) conferir poder normativo ao IBRAM que extrapole o campo de sua supremacia especial atingindo particulares que nenhuma ligação possuem com museus, e; d.2) conferir competência ao IBRAM para intervir em bens culturais passíveis de musealização.
É cediço que o poder-dever regulamentar deve ser exercido exclusivamente pelo Chefe do Poder Executivo, nos termos do inciso IV do artigo 84 da Constituição da República. Ao optar por criar uma autarquia em regime comum, ou seja, sem prerrogativas das autarquias em regime especial, o executivo outorga a nova pessoa jurídica de direito público capacidade exclusivamente administrativa para titularizar atividades típicas da Administração, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada[viii].
Como nova pessoa jurídica de direito público, o IBRAM goza de liberdade administrativa nos limites da lei que o criou, sendo incontroverso que qualquer ato administrativo por ele produzido que exorbite a sua esfera de competência é ilegal e deve ser extinto do mundo jurídico.
No que tange ao poder normativo, pode-se argumentar que a lei federal n.º 11.906/09, ao outorgar poder normativo ao IBRAM e criá-lo como autarquia comum, sofre de vício de inconstitucionalidade por ofensa ao artigo 84, inciso IV da Constituição da República.
No entanto, não é objeto deste artigo tratar sobre eventuais inconstitucionalidades das leis regulamentadas pelo decreto n.º 8.124/13.
O que importa ressaltar aqui é que, mesmo considerando os limites da lei n.º 11.906/09, o decreto extrapola as competências legais do IBRAM, na medida em que o artigo 4.° não lhe confere a atribuição de gerir bens passíveis de musealização.
A possibilidade de editar normas abstratas e gerais pelo IBRAM, segundo a lei, cinge-se às seguintes hipóteses:
“Art. 4° Compete ao Ibram:
I – (…)
II – estabelecer e divulgar normas, padrões e procedimentos, com vistas em aperfeiçoar o desempenho das instituições museológicas no País e promover seu desenvolvimento;
III – fiscalizar e gerir técnica e normativamente os bens culturais musealizados ou em processo de musealização; (…)
XV – coordenar o Sistema Brasileiro de Museus, fixar diretrizes, estabelecer orientação normativa e supervisão técnica para o exercício de suas atividades sistematizadas;”
Note-se que o termo “bens culturais musealizados ou em processo de musealização” é completamente distinto e com infinita menor abrangência do que o termo “bens culturais passíveis de musealização” previsto no decreto.
Estar em processo de musealização significa que o bem já está em processo de aquisição por um determinado museu e apenas deve passar por trabalhos de pesquisa, conservação e documentação antes de sua comunicação final feita através da exposição.
Por outro lado, bem cultural passível de musealização, nos termos do decreto, é todo e qualquer bem de interesse público que venha a ser portador de determinadas referências da sociedade brasileira, restando claríssimo que a amplitude do termo é infinitamente maior.
O IBRAM, em resumo, não possui competência legal para gerir e tratar sobre bens culturais passíveis de musealização.
Como os proprietários de bens culturais passíveis de musealização passaram a se submeter à regulamentação em comento, o decreto não poderia, a uma, conferir poder normativo ao IBRAM para estabelecer normas gerais e abstratas sobre o processo administrativo de declaração de interesse público, as fases do procedimento administrativo do processo sancionador e as medidas de proteção aos bens passíveis de musealização declarados de interesse público na medida em que, em todas as hipóteses, são regulamentadas outras relações jurídicas que não aquelas firmadas exclusivamente por museus. Em segundo, conferir-lhe a incumbência de receber e presidir processos administrativos para a declaração de interesse público de bens passíveis de musealização e, ainda, em menor medida, de fiscalizar e penalizar os seus proprietários quando não observarem os termos do decreto.
C)Em observância à regra da legalidade, não poderia o decreto inovar a ordem jurídica e criar obrigações aos particulares administrados sem prévia previsão legal, como pretendeu realizar o artigo 40.
O artigo 40 do decreto, ao dispor sobre os efeitos da declaração de interesse público, dispõe, dentre outras medidas, que o proprietário ou responsável pelo bem declarado de interesse público restaure o bem somente com prévia anuência do IBRAM, confira direito de preferência ao referido instituto em caso de alienação onerosa do bem e, ainda, não procede à saída permanente do bem do país, exceto por curto período, para fins de intercâmbio cultural, com a prévia autorização do Conselho Consultivo do Patrimônio Museológico ou, caso se destine a transferência de domínio, desde que comprovada a observância do direito de preferência do IBRAM.
O que estabelece o dispositivo, em realidade, é verdadeiro rol de limitações administrativas ao direito de propriedade através de medidas intervencionistas nas atividades dos museus e de todos aqueles que venham a ser proprietários de bens culturais passíveis de musealização declarados de interesse público.
Ao criar tais medidas, é notório que o decreto intervém na propriedade privada e estabelece obrigações com absoluta ausência de prévia lei, o que é inconcebível em um Estado Democrático e Social de Direito.
Nos termos do que dispunha HELY LOPES MEIRELLES[ix], “limitação administrativa é toda imposição geral, gratuita, unilateral e de ordem pública condicionadora do exercício de direitos ou de atividades particulares às exigências do bem-estar social”.
Como esclarece a obra do citado mestre “em qualquer hipótese, porém, as limitações administrativas hão de corresponder às justas exigências do interesse público que as motiva sem produzir um total aniquilamento da propriedade ou das atividades reguladas. Essas limitações não são absolutas, nem arbitrárias. Encontram seus lindes nos direitos individuais assegurados pela Constituição e devem expressar-se de forma legal. Só são legítimas quando representam razoáveis medidas de condicionamento do uso da propriedade, em benefício do bem-estar social”.
Por induzir a restrição no uso pleno da propriedade dos bens culturais em apreço, sem analisar, por hora, a razoabilidade e proporcionalidade das medidas, é imprescindível concluir que tais limitações deveriam ter previsão legal, ao menos por conceitos indeterminados, para autorizar o executivo a estabelecer as citadas obrigações aos particulares.
D)Se a lei criou o direito de preferência aos museus pertencentes ao Sistema Brasileiro de Museus, sem mencionar qualquer ressalva aos museus do IBRAM (art. 63 da lei 11.904/09), então o decreto não poderia criar o direito de preferência aos bens declarados de interesse público a ser exercido primeiramente pelos museus do IBRAM (art. 40, inc. V).
O direito de preferência mencionado no artigo 63 da lei confere aos museus integrantes do Sistema Brasileiro de Museus a possibilidade de adquirir bens culturais postos à disposição em venda judicial ou leilão.
Por expressa disposição do decreto[x], os museus do poder executivo federal, dentre os quais estão os administrados pelo IBRAM, integrarão obrigatoriamente o Sistema Brasileiro de Museus.
Partindo de tais premissas, é obvia a conclusão que no caso de venda judicial ou leilão de bens culturais, os museus do sistema, dentre os quais já estão os do IBRAM, gozam do direito de preferência.
Não satisfeito com tal benefício legal, o decreto impôs como efeito da declaração de interesse público o direito de preferência ao IBRAM em caso de qualquer alienação onerosa de bens assim declarados (art. 40) e incluiu, no procedimento do direito de preferência do sistema previsto no artigo 20, o § 5.° dispondo que “em se tratando de bem cultural declarado de interesse público, terá preferência museu do IBRAM, caso a autarquia informe interesse na aquisição”.
Em resumo, em ofensa ao limite hierárquico, o decreto regulamentar deu maior abrangência aos termos legais e criou um direito de preferência mais amplo ao IBRAM do que aquele já previsto aos museus integrantes ao sistema brasileiro. Para estes, a preferência será exercida na venda judicial ou leilão de bens culturais. Para o IBRAM, sempre que o bem for declarado de interesse público, a preferência está acima à dos museus integrantes do sistema e abrange toda e qualquer alienação onerosa dos bens culturais assim declarados.
É evidente a ilegalidade.
Em ambos os casos, ou seja, quer na preferência dos museus integrantes do sistema, quer na preferência do IBRAM, questões importantíssimas sobre o seu exercício não poderiam deixar de constar nos termos legais e regulamentares.
Ora, pelos termos da lei ou do decreto, não é possível concluir quais serão os procedimentos a serem obedecidos para que validamente a preferência seja exercida. Questões relativas ao preço de aquisição do bem – se pelo valor da avaliação ou se pelo valor do lance final – e à forma de como se dará o pagamento realizado pelo Poder Público são fundamentais a serem esclarecidas e não foram tratadas pelas disposições regulamentares.
Admitir que problemas cruciais como os indicados sejam tratados por ato normativo do IBRAM é renunciar a qualquer regime democrático e concordar que o instituto defina unilateralmente em que termos desejará adquirir bens culturais declarados de interesse público.
E)O ato administrativo da declaração de interesse público deve possuir parte de seus elementos e pressupostos de existência e validade previstos em lei, sob pena de ser considerado um ato totalmente discricionário, o que não é admitido por nosso direito.
Como discorre a melhor doutrina administrativa, todo ato administrativo possui elementos intrínsecos (conteúdo e forma) e pressupostos de existência (objeto e pertinência ao exercício de função pública) e de validade (sujeito, motivo, requisitos procedimentais, finalidade, causa e formalização)[xi].
Sabemos que não existem atos absolutamente discricionários e que alguns de seus elementos e pressupostos devem estar estabelecidos em lei, sob pena de conferir ao poder executivo ampla margem de liberdade não recomendável ao controle dos atos administrativos.
Pois bem. Sobre a declaração de interesse público de bens culturais, o artigo 5.° da lei 11.904/09 apenas estabelece que “os bens culturais dos museus, em suas diversas manifestações, podem ser declarados como de interesse público, no todo ou em parte” e que “será declarado como de interesse público o acervo dos museus cuja proteção e valorização, pesquisa e acesso à sociedade representar um valor cultural de destacada importância para a Nação, respeitada a diversidade cultural, regional, étnica e linguística do País”.
A lei, em que pese ter definido o conteúdo do ato e seu objeto – declaração de interesse público sobre os bens culturais dos museus -, deixou de prever quem é o sujeito competente à sua produção. Por decreto, referida produção foi entregue à Presidência do IBRAM, ouvido o Conselho Consultivo do Patrimônio Museológico e os efeitos do ato condicionados à homologação do Ministro de Estado da Cultura (art. 35).
Ora, o sujeito competente, como pressuposto de validade, deve ser fixado em lei e não por decreto regulamentar do executivo. Nossa doutrina e jurisprudência são praticamente unânimes em afirmar que referido pressuposto é vinculado aos termos da lei, o que significa dizer que não resta ao executivo qualquer liberdade para estabelecer qual é o agente público responsável por editar o ato de declaração de interesse do bem cultural.
O mesmo é possível afirmar sobre o motivo do ato. Mesmo a lei tendo trazido os motivos da declaração de interesse público através de conceitos indeterminados, tais como “proteção e valorização que represente valor cultural de destacada importância para a nação”, é certo que o decreto não apresentou critérios minimamente objetivos do que possa vir a ser considerado como um bem de “valor cultural de destacada importância a nação”.
O que de fato deverá conter um bem cultural para que seja declarado de interesse público? Como será possível realizar o controle da referida declaração pelo Poder Judiciário e conter eventuais abusos cometidos pelo IBRAM?
Nenhuma destas questões pode ser respondida pelo atual decreto.
Por fim, cumpre ressaltar que, da mesma maneira, tanto a forma como a formalização do ato não foram definidas em lei, o que também pode ensejar a ausência de controle.
F)Se a lei estabelece que a criação, a fusão ou a extinção de museus deverá ser registrada por meio de documento público no órgão competente (art. 8.° da lei 11.904/09), então o decreto não poderia ditar que a incorporação e a cisão também sejam (art. 4.°).
Aqui, a razão da ilegalidade e a ofensa ao limite hierárquico são evidentes, pois o decreto prevê obrigações aos museus que a própria lei, literalmente, não previu.
G)Se a lei diz que os museus facilitarão o acesso à imagem e à reprodução de seus bens culturais e documentos conforme os procedimentos estabelecidos na legislação vigente e nos regimentos internos de cada museu (art. 42 da lei 11.904/09), então o decreto não poderia condicionar a utilização de tais imagens e reproduções a quaisquer prévias autorizações (art. 27).
Neste ponto, o decreto contraria frontalmente os termos da lei, razão pela qual também sofre vício de ilegalidade por não observar o limite hierárquico.
H)Se não houve participação democrática na fase instrutória do decreto, então não foi observado o limite formal relativo à observância de legítimo procedimento à sua produção.
Não há no sistema jurídico brasileiro uma lei que estabeleça o procedimento a ser observado para a produção de um decreto regulamentar.
No entanto, em um regime democrático de direito, os princípios da publicidade e do devido processo obrigam o executivo a assegurar a participação popular na elaboração do regulamento através de sua publicidade, tanto na fase inicial como na fase conclusiva, para que setores da sociedade ligados ao conteúdo do ato possam legitimar a sua produção.
Não foi o que ocorreu com o decreto ora em análise.
2.4.2. Da inobservância do limite material relativo ao respeito aos princípios gerais do direito.
Por uma análise constitucional dos termos do decreto, é possível questionar se houve proporcionalidade nas medidas por ele impostas em vista dos princípios de liberdade previstos na Constituição da República.
O Estado, para atingir os seus objetivos e necessidades, precisa deter verdadeiras prerrogativas que se fundamentam na supremacia do interesse público primário sobre o privado. Uma dessas prerrogativas resulta no poder de impor restrições ao exercício dos direitos dos indivíduos através de limitações administrativas.
Obviamente, tal intervenção só se justifica quando o Poder Público adentra a órbita do interesse privado para salvaguardar o interesse público primário, assegurando razoabilidade e proporcionalidade das medidas adotadas. Isso porque os direitos individuais apenas podem ser restritos na medida considerada indispensável para a satisfação do interesse público.
Sem prejuízo das ofensas aos limites formais do poder-dever regulamentar ocorridas com a expedição do decreto n.º 8.124/13, a questão que agora se coloca é sobre a adequação entre as restrições impostas ao proprietário de bens culturais musealizados e passíveis de musealização e a finalidade pública que o decreto pretende atingir. Em outras palavras, é proporcional impor aos particulares os deveres de requerer anuência ao IBRAM para restaurar uma obra ou prévia autorização para saída permanente do bem do país? É razoável que seja conferido ao citado instituto o direito de preferência no caso de alienação onerosa do bem?
Em síntese, os limites materiais do decreto foram respeitados ou ele ofende os princípios gerais de direito previstos na Constituição da República?
Nos termos do decreto, a finalidade pública que se pretende atingir com a instituição de todos os efeitos da declaração de interesse público é concretizar o disposto no § 1º do art. 216 da Constituição[xii]:
Em tese, portanto, as medidas impostas pelo decreto visam promover a proteção do patrimônio cultural brasileiro.
Para a devida análise da proporcionalidade entre as medidas restritivas e a finalidade pública perseguida, outros princípios e direitos devem ser levados em consideração para a aferição da validade da norma, dentre os quais se destacam o direito fundamental de propriedade, os princípios da livre iniciativa e da não intervenção do Poder Público na atividade econômica.
Sobre o direito fundamental de propriedade e os princípios gerais da atividade econômica, prevê a Constituição da República:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:(…)
XXII – é garantido o direito de propriedade;”
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:(…)
II – propriedade privada;(…)
IV – livre concorrência;
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”
Para a aplicação integral da regra da proporcionalidade no caso concreto, é preciso verificar: se as limitações administrativas impostas ao direito fundamental de propriedade dos indivíduos são adequadas, ou seja, se de fato são legítimas a proteger os bens culturais em apreço; se são necessárias, isto é, se não existem outras formas de se garantir tal proteção que ofendam em menor medida o direito fundamental de propriedade e, por fim; se são proporcionais em sentido estrito, ou seja, se as vantagens que se obtém pela intervenção no direito fundamental compensam os sacrifícios suportados na coletividade como um todo.
Se adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito, as limitações administrativas serão tidas como legítimas no ordenamento. Caso contrário, não atendido qualquer um dos critérios, serão inconstitucionais.
Ao que tudo indica, em que pese as medidas restritivas serem, sob o ponto de vista da eficácia, adequadas a proteger o patrimônio cultural brasileiro, parece que a mesma conclusão não é possível de se obter sob o ponto de vista da necessidade, já que existem outras medidas menos onerosas previstas em nosso ordenamento para cumprir a mesma finalidade, tal como o tombamento.
Ora, a própria Constituição da República menciona o tombamento como forma de proteção ao patrimônio cultural, mostrando-se desnecessárias – no sentido de demasiadamente onerosas – mais limitações que imponham outras restrições ao direito de propriedade, uma vez que o tombamento, de forma muito similar, já possui medidas para realizar a citada proteção.
3. Conclusões.
A legalidade, fruto de longo processo histórico de democratização do Estado de Direito, por ser garantia constitucional e cláusula pétrea, não pode sofrer qualquer tipo de mitigação.
Com o marco filosófico do pós-positivismo e a vinda do denominado neoconstitucionalismo, inicia-se a juridicidade dos princípios caracterizada pela normatividade e pelo reconhecimento de que tanto os princípios como as regras jurídicas possuem eficácia normativa.
Os princípios devem ser entendidos como mandamentos de otimização, razão pela qual a legalidade trata-se de regra jurídica.
Se o sentido deôntico-jurídico retirado da norma constitucional da legalidade pode ser expressado como: dada a ocorrência de imposição de obrigação de fazer ou deixar de fazer algo a qualquer indivíduo, deve ser que a mesma seja criada em virtude de lei, então a legalidade é regra jurídica pois possui em seu antecedente jurídico descrição precisa acerca da conduta que deverá ser observada pelo Estado.
A legalidade, como garantia constitucional e regra jurídica, impõe limites formais e materiais ao poder-dever regulamentar do executivo.
A lei federal n.º 11.904, de 14 de janeiro de 2.009 tem por objeto impor normas de conduta a serem observadas exclusivamente pelas instituições sem fins lucrativos que, de uma maneira geral, venham a gerir conjuntos e coleções de bens culturais abertos ao público, ou seja, aos museus;
Por sua vez, a lei n.º 11.906/09 tem por finalidade específica criar nova autarquia federal denominada Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM e, nesses termos, define suas competências e objetivos públicos, cingindo-os a um único objeto, qual seja, bens culturais musealizados ou em processo de musealização.
O decreto federal n.º 8.124/13, por extrapolar os limites formais e materiais do poder-dever regulamentar do executivo, possui as seguintes ilegalidades e inconstitucionalidades: a) trata sobre questões ligadas a bens culturais passíveis de musealização, ultrapassando o objeto das leis; b) acresceu que a incorporação e cisão dos museus dependem de registro por meio de documento público, inovando os termos da lei; c) condiciona a utilização de imagens e reproduções dos museus a prévias autorizações não previstas na lei; d) confere poder normativo ao IBRAM fora do âmbito de sua supremacia especial atingindo particulares que nenhuma ligação possuem com museus e confere competência ao IBRAM para intervir em bens culturais passíveis de musealização, ultrapassando as competências legais do IBRAM; e) inova a ordem jurídica criando limitações administrativas não previstas em lei, denominando-as como “efeitos da declaração de interesse público”; f) cria o direito de preferência aos bens declarados de interesse público a ser exercido primeiramente e com maior abrangência pelos museus do IBRAM, sem qualquer previsão legal; g) trata sobre matéria legal, na medida em que estabelece o sujeito competente para produzir o ato de declaração de interesse público dos bens culturais e, também, não determina os pressupostos objetivos, formais e formalísticos do ato; h) ofende os princípios de liberdade previstos em nossa Constituição da República, tais como os ligados ao direito fundamental de propriedade, os princípios da livre iniciativa e da não intervenção do Poder Público na atividade econômica; i) ofende a regra da proporcionalidade na medida em que as medidas de restrição impostas pelo decreto são desnecessárias frente a outros institutos já existentes em nosso ordenamento, tal como o tombamento.
Por todo o exposto, por ultrapassar os limites do poder-dever regulamentar do executivo, o decreto federal n.º 8.124/13 deve ser revisto pela própria Administração, através do exercício da autotutela ou, caso assim não ocorra, ser declarado inválido pelo Poder Judiciário tanto através de Mandado de Segurança, como por Ação Direta de Inconstitucionalidade, nos termos acima mencionados.
Informações Sobre o Autor
Kátia Regina Camila Catalano
Mestranda pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP e advogada no escritório Cesnik, Quintino & Salinas Advogados