Proclama nossa Constituição Republicana de 1988 que a Defensoria Pública é Instituição permanente essencial à função jurisdicional do Estado, sendo expressão e instrumento do regime democrático. Cabendo-lhe, entre outras diversas atribuições, exercer a defesa especializada dos direitos e interesses individuais e coletivos da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado.
Para tanto, no sentido de se efetivamente alcançar tal elevada missão institucional, a Emenda Constitucional n. 45, de 2004, finalmente assegurou à Defensoria Pública autonomia funcional, administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária. Copiando, em suma, o mesmo exitoso e fantástico modelo traçado pelo constituinte originário para o Ministério Público.
Atenta a estas extraordinárias transformações na ordem constitucional do País no que se refere à Defensoria Pública e após a edição da Lei Maria da Penha, o Congresso Nacional e as Assembléias Estaduais viram-se compelidos a promover drástica atualização e modernização da legislação que rege as atribuições e funcionamento desta Instituição.
No plano infraconstitucional o primeiro passo foi dado com a sanção da Lei Complementar Federal n. 132, de 2009, que preconiza que a organização da Defensoria Pública deverá incluir atendimento interdisciplinar. Confira-se:
“Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: (…)
IV – prestar atendimento interdisciplinar, por meio de órgãos ou de servidores de suas Carreiras de apoio para o exercício de suas atribuições”.
E, ainda:
“Art. 106-A. A organização da Defensoria Pública do Estado deve primar pela descentralização, e sua atuação deve incluir atendimento interdisciplinar, bem como a tutela dos interesses individuais, difusos, coletivos e individuais homogêneos”.
Operadores do Direito – Defensores Públicos, Promotores de Justiça e Juízes de Direito – que militam diuturnamente na complexa e sinuosa seara da violência familiar já descobriram que fórmulas positivistas e silogismos legais nada (ou quase nada) podem fazer para solução desse drama que tanto assombra e corrói a estrutura da sociedade brasileira atual. A ciência do Direito, mormente o ramo do Direito Penal, na grande maioria dos casos de violência doméstica e suas conseqüências devastadoras, mostra-se como inconveniente, prolixo e sisudo intruso para atendimento e tratamento desse mal, que possui em sua profunda raiz diversas causas e efeitos que tangenciam e acionam outras Ciências e, assim, outros profissionais especializados. Afinal, um psiquiatra domina a teoria e prática da modulação dos efeitos da decisão no controle concentrado de con stitucionalidade tanto quanto um jurista sabe das alterações somáticas em pacientes com transtornos psicóticos, seu diagnóstico e tratamento medicamentoso.
A própria jovem Lei Maria da Penha, diploma de vanguarda, desautoriza a elucubração e a especulação em torno da problemática vivenciada pela mulher vítima da cotidiana violência doméstica e familiar. Determina seu texto vigente que a política pública que visa a coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo como uma de suas diretrizes a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação.
Destarte, o Defensor Público, na sua sagrada missão constitucional, como fator de eliminação, prevenção e erradicação da violência familiar contra a mulher não deve, em hipótese alguma, ser um eremita no seu Núcleo especializado de atendimento a essas vítimas, muito menos ter a pretensão de avocar para si poderes sobrenaturais para solitariamente decifrar e ditar milagrosa profilaxia para a odisséia da violência familiar ou mesmo exorcizar o agressor. Deve o Defensor Público, em verdade, ser coadjuvado por uma equipe interdisciplinar de apoio, integrante dos quadros da própria Instituição, composta por profissionais das mais variadas áreas afetas à questão da violência familiar contra a mulher e suas recidivas, recrutados através de concurso público, para que o problema não sofra mera solução paliativa.
Oportuno se faz aqui transcrever as considerações de GLÁUCIA RIBEIRO STARLING DINIZ, Professora Adjunta da Universidade de Brasília no Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Clínica, e FÁBIO PEREIRA ANGELIM, Doutorando na Universidade de Brasília – Instituto de Psicologia, in “Violência doméstica – Por que é tão difícil lidar com ela?”, publicado na Revista de Psicologia da UNESP, in litteris:
“A violência não pode ser vista como um ato ou fenômeno isolado, e que nem tampouco pode ser reduzida a um processo policial ou judicial destinado a punir o autor do ato violento. Parte da dificuldade de lidar com os casos de violência está relacionada a um processo de simplificação que permite configurar o agente agressor como criminoso ou psicopata e/ou mesmo as pessoas agredidas como portadoras de algum tipo de transtorno psiquiátrico.
A violência doméstica tem uma dimensão de gênero. Ela ocorre num contexto social onde a mulher ainda é vista como inferior, ou seja, ela não tem o mesmo status, poder e direitos que o homem. Mudanças vêm ocorrendo nesse cenário, mas ainda existem muitos mitos, preconceitos e desafios que dificultam a compreensão da violência e a intervenção. A natureza da violência doméstica e os estigmas associados a ela muitas vezes impedem que mulheres procurem ajuda. Esta dificuldade em procurar ajuda exige dos profissionais reflexão, cuidado e formação continuada.
Assumimos ao longo do texto a posição de que refletir sobre a violência implica, entre outras coisas, entendê-la como parte da condição humana. Isso quer dizer que mesmo terapeutas e outros profissionais de saúde podem participar de um sistema violento. Essa compreensão afeta a maneira como vivenciamos a violência dos outros na medida em que nos leva a perceber que ela não é tão estranha a nós mesmos.
Conceber a violência em sua complexidade exige atenção à articulação entre sistemas sociais, histórias pessoais, histórias transgeracionais, o papel dos profissionais e os limites das intervenções. Exige, portanto, da parte dos profissionais disposição para lidar com o desafio de não simplificá-la”.
Enfim, a Lei Complementar Federal n. 132, de 2009, ao exigir que a Defensoria Pública também preste atendimento interdisciplinar, por meio de órgãos e de servidores de suas carreiras de apoio para o exercício de suas atribuições, atende diretamente aos anseios da Lei Maria da Penha e de todos os setores do Estado e da sociedade organizada comprometidos com a questão da eliminação da violência doméstica e familiar contra a mulher. Pelo que sonegar ou retardar a concreta e real autonomia funcional e administrativa da Defensoria Pública e a iniciativa de sua proposta orçamentária traz reflexos diretos e trágicos na perpetuação do drama das mulheres vítimas do holocausto familiar, reduzindo a cinzas o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Informações Sobre o Autor
Carlos Eduardo Rios do Amaral
Defensor Público do Estado do Espírito Santo