Este artigo tem por objetivo apresentar as principais formas de degradação encontrada nos autos de processos judiciais, bem como as influências das mesmas, nos processos de análise pericial de documentos apensos nos mesmos. A abordagem adotada nesse artigo estabelece um panorama da realidade brasileira, em relação aos processos judiciais os quais, em sua grande maioria, sofrem algum tipo de perícia documentoscópica. O artigo apresenta e discute exemplos reais de documentos questionados, fornecendo as informações técnicas sobre os procedimentos periciais, bem como as influências sofridas pelos mesmos, em decorrência das degradações presentes.
1. Introdução
No Brasil, freqüentemente, documentos oficiais, papel-moeda e outros, sofrem algum tipo de falsificação ou adulteração com fins ilícitos. Muitos destes documentos podem estar apensos como provas documentais em Autos de processos judiciais. Em alguns casos, a documentoscopia, ciência que trata das questões relacionadas com a análise de documentos questionados, é utilizada com o objetivo de determinar a presença de algum tipo de adulteração ou falsificação. Muitas vezes, o procedimento pericial está associado à análise de um manuscrito ou de uma assinatura. Neste caso, a Grafoscopia, uma subárea da Documentoscopia, é requerida.
Nesse contexto, os peritos se deparam com os mais diversos documentos e estados de conversação dos mesmos. Assim, a degradação presente nos documentos a serem periciados pode, muitas vezes, dificultar ou até mesmo impossibilitar a execução dos procedimentos necessários. A Figura 1 exemplifica os Autos de um único processo judicial.
Figura 1: Autos de um processo judicial
O presente artigo trata da análise documentoscópica pericial de documentos degradados, apresentando exemplos reais de degradação em documentos apensos em Autos de processos judiciais brasileiros. O escopo do presente artigo não inclui métodos ou técnicas para tratamento de degradação oriunda dos métodos de aquisição de imagens de documentos [13,14].
Assim, o presente artigo está organizado como segue: A Seção 2 descreve as formas de degradação dos documentos e sua influência na análise pericial de documentos; A Seção 3 apresenta resumidamente a teoria da análise de documentos, descrevendo o esquema geral de um sistema computacional para apoio a análise e tratamento de documentos questionados; A Seção 4 descreve casos reais de documentos questionados degradados, com diferentes níveis de interferência. A Seção 5 apresenta orientações para minimizar a degradação em documentos apensos nos autos. Por fim, a Seção 6, apresenta e discute as conclusões obtidas com o presente trabalho, bem como, aponta para trabalhos futuros.
2. Degradação em Documentos
O Poder Judiciário brasileiro enfrenta diversos problemas decorrentes do acúmulo de documentos apensos em Autos de processos judiciais. Um dos mais importantes problemas é a fragilidade de tais documentos, destacando-se o risco de degradação dos documentos originais (questionados ou não), devido a sua manipulação direta e freqüente. A degradação em documentos questionados, os quais constituem provas documentais, pode ser oriunda de diferentes fontes, a saber:
1. Natural: degradação gerada ao longo do tempo ou envelhecimento natural do documento. Este tipo de degradação é proveniente da deterioração do papel (mídia), da infiltração e manchas provenientes da tinta, mofos e proliferação de fungos (Figura 2);
2. Armazenamento: degradação decorrente da forma incorreta de armazenamento dos documentos. São comuns os problemas oriundos da umidade e variação de temperatura do local de armazenamento (Figura 3);
3. Intencional: degradação proposital com o objetivo de encobrir informações ou dificultar a análise pericial do documento. A degradação autorizada judicialmente é outra forma de degradação intencional, muitas vezes associada a uma análise destrutiva do documento. Por exemplo, para a análise química ou datagem da tinta da caneta (Figura 4);
4. Manuseio: degradação decorrente do manuseio inadequado e freqüente dos Autos. São comuns manchas provenientes de sujeira, gordura ou água e, ainda, danos provocados por grampos (clipes ou grampeador), colagem, carimbos, anotações e rubricas (Figura 5);
5. Métodos de Reprodução Fotostática: degradação decorrente de métodos de reprodução fotostática de imagens dos documentos questionados, usualmente apensos nos Autos com carimbos de autenticação. Essa classe de equipamento é capaz de incluir um alto nível de ruído ou elementos espúrios, excluir ou atenuar significativamente informações relevante para a análise pericial, tais como elementos da grafocinética do traçado (Figura 6).
Figura 2: Degradação natural
Figura 3: Degradação por armazenamento
(a) | (b) | (c) |
Figura 4: Degradação intencional: a) obliteração, b) rasura, c) retirada de amostra para datagem de tinta
(a) | (b) |
(c) |
Figura 5: Degradação por manuseio: a) carimbos e rubricas, b) rasuras e amassados, c) furos para inserção do documento nos Autos
Em função de cada uma das fontes de degradação podem-se identificar níveis de interferência na análise e no reconhecimento de documentos questionados. Os níveis de interferência podem ser definidos como a seguir:
1. Baixo: não interfere nas atividades de análise e reconhecimento do documento questionado;
2. Médio: interfere ou impossibilita parcialmente a análise e o reconhecimento do documento questionado;
3. Alto: interfere a ponto de impossibilitar a análise e o reconhecimento do documento questionado.
Figura 6: Degradação por Reprodução Fotostática (somente parte da assinatura)
3. Teoria: Análise de Documentos Questionados Degradados
A análise de documentos questionados pode estar relacionada com diferentes aspectos do documento, podendo-se citar:
a) análise grafotécnica [7,9,12];
b) datagem de tinta [1,2];
c) análise da mídia (papel), do formato e da estrutura do documento [8];
d) análise tipográfica [8].
De um modo geral, a área de análise e processamento digital de imagens tem como objetivo alcançar a capacidade humana de processar e interpretar imensas quantidades de informações manuscritas. Para atingir essa meta, é extremamente importante desenvolver soluções computacionais automatizáveis, de maneira à adequada para se ter uma imagem do documento como objeto de análise.
Os documentos manuscritos possuem as mais variadas características, exigindo assim, soluções computacionais distintas. Portanto, um sistema de análise de documentos questionados pode ser esquematizado como na Figura 7, sendo composto pelas etapas descritas a seguir:
1.Aquisição de Imagem: Esta primeira etapa envolve a aquisição do documento questionado ou genuíno através de equipamentos que geram a imagem do mesmo, podendo-se citar: scanner, máquina fotográfica digital, câmera de vídeo e web câmera. Busca-se, então, estabelecer os parâmetros adequados no que se refere à: resolução, colorido ou níveis de cinza ou preto-branco, contraste e brilho;
2. Pré-processamento: Os documentos apresentam os mais diversos estilos (formato, textura, cor, tipo de caneta, tipo do papel, entre outros). Assim, torna-se necessário conhecer o contexto do documento e desenvolver aplicações automáticas ou semi-automáticas para realce das imagens, eliminação de ruídos, correção da inclinação do documento, eliminação de objetos indesejáveis (traços, carimbos, selos, entre outros);
3. Segmentação: A etapa de segmentação consiste em localizar automaticamente o objeto de análise, por exemplo, a assinatura aposta em um contrato. Neste caso, encontram-se diversos problemas que dificultam a etapa de segmentação, tais como: a não existência de um padrão nos documentos e a dificuldade de sucesso na etapa de pré-processamento em relação à correção da inclinação do documento e a eliminação de objetos indesejáveis (traços, carimbos, selos, entre outros). Deste modo, desenvolver uma solução genérica é irrealista, sendo necessário lançar mão de processos semi-automáticos ou desenvolver técnicas específicas para cada tipo de documento;
4. Extração de Primitivas: Todos os trabalhos associados ao reconhecimento de padrões e mais especificamente de objetos manuscritos (assinatura, palavras, dígitos) têm seu ponto forte na seleção de conjuntos de características capazes de representar e discriminar as diferentes formas encontradas. A tarefa de escolher características ditas “ótimas” não é uma tarefa fácil ou trivial, assim, muitas técnicas de extração das mesmas têm sido desenvolvidas e aplicadas. Entre outras estão: características baseadas em transformadas global e séries de expansão [4], características baseadas na distribuição estatística dos pontos [4], características geométricas e topológicas [4,10], características perceptivas [3], características pseudo-dinâmicas [6] e características baseadas na grafoscopia [6];
5. Interpretação: Essa etapa representa a parte mais “inteligente” de um sistema e deve permitir o reconhecimento/verificação automático dos elementos de um documento manuscrito, por exemplo, uma assinatura. No Brasil, pesquisas têm sido realizadas com sucesso apresentado soluções para a verificação de assinaturas [12], para reconhecimento de palavras manuscritas [7] e para reconhecimento de dígitos manuscritos [9]. As dificuldades encontradas nestes processos advêm da variabilidade dos estilos de escrita, da existência de cadeias de dígitos conectados ou fragmentados, do número de escritores a considerar, do tamanho do léxico ou dicionário de palavras a reconhecer, da qualidade dos instrumentos da escrita (papel e caneta) e, ainda, fatores humanos, tais como: inclinação horizontal e vertical da escrita e erros de ortografia. Nesta etapa podem ser aplicados diferentes métodos de classificação para a determinação do que está escrito (reconhecimento de uma palavra ou cadeia de dígitos) e para verificação de uma assinatura (verificação automática de assinaturas). Entre estes métodos, destacam-se: Redes Neurais (NN – Neural Networks) [15], Modelos Escondidos de Markov (HMM – Hidden Markov Models) [11], Máquinas de Suporte Vetorial (SVM – Suport Vector Machine) [5]. O objetivo final desta etapa é fornecer uma taxa de acerto ou uma probabilidade de acerto para o objeto analisado.
4. Experimentos
Essa seção descreve dois experimentos que demonstram que a análise em documentos degradados pode ser realizada com sucesso quando os materiais e procedimentos adequados são empregados. Os estudos de casos abordados neste artigo referem-se à análise e verificação de assinaturas. Os tipos de degradação encontrados nos documentos são ambos intencional, sendo o 1º caso de obliteração e o 2º caso de mutilação.
4.1. Materiais Utilizados
Equipamentos:
a) scanner HP ScanJet 5550c, 256 níveis de cinza, 300 dpi;
b) máquina fotográfica digital Olympus C-720, zoom ótico 8x, luz halógena, lentes close-up, iluminação por transferência através de mesa de luz apropriada.
Documentos Degradados: Imagens das assinaturas apostas em documentos conforme mostrado na Figura 8 (Método 1) e na Figura 11 (Método 2).
Figura 7: Etapas de um sistema de análise e reconhecimento de documentos manuscritos
4.2. Experimento 1: Obliteração de Assinatura
O documento questionado em questão apresenta uma assinatura obliterada com a intenção de ocultar a mesma, dificultando o processo de perícia. Inicialmente, pode-se classificar o nível de interferência da degradação como alto. Pois, a primeira vista pode-se considerar a impossibilidade de análise tendo em vista o tipo da degradação.
A Figura 8 apresenta a imagem da assinatura adquirida com o auxílio de uma máquina fotográfica digital. Tal dispositivo reduz consideravelmente o nível de ruído durante a aquisição e conseqüentemente produz uma imagem de melhor qualidade, em comparação aos meios de aquisição tradicionais, como por exemplo, scanners.
Com base na imagem adquirida por fotografia digital pode-se aplicar um procedimento de pré-processamento para realizar a segmentação (separação) da assinatura e da obliteração. Este tipo de procedimento é inviável em imagens adquiridas pelo scanner, pois neste último, não é possível a análise pelos canais de cores. A Figura 9 apresenta o resultado da segmentação a partir da foto digital convertida do sistema de cor RGB (red, green, blue) para o sistema CMYK (cyan, magenta, yellow e black), fazendo uso somente do canal amarelo. Observa-se que a assinatura aposta foi completamente recuperada, podendo-se realizar os procedimentos periciais referente a grafoscopia.
Figura 8: Assinatura obliterada adquirida com o auxílio de uma câmera fotográfica digital
Figura 9: Segmentação da assinatura e da obliteração
A Figura 10 destaca algumas características comumente observadas pelos peritos em casos de verificação de autenticidade de assinaturas. Estes aspectos são os seguintes:
· Ataque: traço inicial da assinatura (Figura 10a);
· Remate: traço finalizador da assinatura (Figura 10b);
· Bucles: são todos os traços ascendentes (perfis) das hastes e das laçadas inferiores e, por extensão, todo movimento que ascende cruzando a haste e unindo-se a ela formando círculo (Figura 10c).
Como se pode observar, apesar da degradação causada pela obliteração, as características supracitadas estão bem visíveis na imagem processada, possibilitando assim a análise pericial.
(b) | (c) |
Figura 10: Características: a) ataque, b) remate, c) bucle
4.3. Experimento 2: Mutilação em Assinatura
O documento em questão apresenta uma assinatura mutilada com a intenção de inviabilizar a perícia grafotécnica. Pode-se classificar o nível de interferência da degradação como médio, uma vez que existe um elemento de complexidade na análise da assinatura aposta no documento, tendo em vista o tipo de degradação. A Figura 11 apresenta a imagem da assinatura adquirida com auxílio de uma câmera fotográfica digital.
Figura 11: Assinatura mutilada adquirida com o auxílio de uma câmera fotográfica digital
Como se pode observar na Figura 12, ao contrário do scanner, a câmera digital fornece recursos que possibilitam a análise da assinatura através das características grafocinéticas do traçado, mesmo que parte da mesma tenha sofrido um alto nível de degradação.
Figura 12: Elementos grafocinéticos do traçado: estrias, sobreposição do traçado e descontinuidades
5. Orientações para Minimizar a Degradação em Documentos Questionados
Considerando-se que as degradações podem influenciar o processo de análise e reconhecimento de documentos manuscritos e, portanto, gerar distorções no processo decisório judicial, pode-se enumerar orientações para minimizar as degradações:
· Remover grampos, clipes, elásticos e prendedores dos documentos, pois estes sofrem deterioração (por exemplo, ferrugem) e causam danos aos documentos;
· Manusear os documentos o mínimo possível e se necessário utilizar luvas de algodão (não plásticas ou cirúrgicas);
· Armazenar os documentos horizontalmente em local escuro com temperatura e umidade estáveis (35% de umidade relativa e abaixo de 22°C);
· O papel é muito suscetível à ação dos raios UV, portanto, não permitir que os documentos fiquem expostos à luz solar;
· Ao manusear os documentos questionados esteja com as mãos limpas e secas;
· Evitar comer e beber próximo aos documentos questionados;
· Não utilizar grampos, clipes, durex, fita crepe ou outro tipo de fita adesiva para fixar os documentos aos Autos. Solicitar a guarda dos documentos no cofre do Juiz;
· Solicitar a guarda dos documentos no cofre do Juiz para evitar degradações intencionais;
· Poluentes, tais como, ozônio e fumaça provenientes das máquinas fotocopiadoras, carros e sistemas de aquecimento podem causar danos ao papel. Materiais de armazenagem alcalina podem prover uma proteção contra este tipo de poluente;
· Proteger os documentos contra roedores e insetos (traças), portanto, manter os locais de armazenagem de documentos questionados limpos.
6. Conclusão
O presente artigo classifica e descreve os tipos de degradações que os documentos questionados podem sofrer e, ainda, associa uma classificação do nível de interferência causada pela degradação no processo de análise pericial. Dois estudos de casos com degradação por obliteração e mutilação, são apresentados, respectivamente. Mostra-se que quando a técnica de coleta da imagem do documento degradado é feita adequadamente o nível de interferência no processo de análise é atenuado.
Os experimentos discutidos nesse trabalho mostram que, apesar do nível de interferência das degradações serem alto (Experimento 1) e médio (Experimento 2), aplicando-se corretamente técnicas de aquisição de imagens, as quais permitem uma melhor representação da informação, pode-se realizar eficazmente os procedimentos grafoscópicos. Nestes casos, destaca-se a aquisição das imagens com máquina fotográfica digital utilizando-se lentes close-up, luz halógena e iluminação por transferência através de mesa de luz apropriada.
Finalmente, são apresentadas orientações para minimizar a degradação em documentos questionados. Sabe-se, portanto, que um eficiente armazenamento e manuseio dos documentos preservam as evidências a serem periciadas. Para tal, necessita-se desenvolver no Brasil uma cultura de cuidados com os documentos questionados, permitindo que os processos judiciais realmente possam ser auxiliados pelos procedimentos de perícia.
Grupo de Pesquisa em Computação Forense e Biometria – Pontifícia Universidade Católica do Paraná – LabDOC – Laboratório de Documentoscopia
Grupo de Pesquisa em Computação Forense e Biometria – Pontifícia Universidade Católica do Paraná – LabDOC – Laboratório de Documentoscopia
Grupo de Pesquisa em Computação Forense e Biometria – Pontifícia Universidade Católica do Paraná – LADITEC – Laboratório de Dirieto e Tecnologia dos Programas de Pós-Graduação em Direito e Informática Aplicada.
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