Resumo: O presente artigo trata de duas variáveis para a tipificação de homicídios cometidos no trânsito: a culpa consciente e o dolo eventual. Procura estabelecer de forma objetiva a relação entre o aumento da punição e a modificação do entendimento dos magistrados. Traz à tona a divergência entre a doutrina do direito penal e os julgados dos tribunais pátrios.Propõe-se a discutir a aplicabilidade do dolo ou da culpa do agente tendo em vista a realidade fática e a possibilidade ou não da assunção do risco de causar o resultado.[1]
Palavras-chave: Direito penal. Acidente de trânsito. Dolo eventual. Culpa consciente.
Abstact: Thisarticledealswithtwovariablestocharacterizehomicides in traffic: theconsciousguiltandthe eventual intention. It seekstoestablishobjectivelytherelationshipbetweentheincreaseofpunishmentandjudiciaryunderstandingchanges. It brings out thedifferencebetweenthedoctrineof criminal lawandtheveredictsofpatrioticcourts. Itproposestodiscusstheapplicabilityofintentionorguiltytotheagentsearching for aviewtoreality ofthefactsandthepossibilityornotoftheassumptionoftheriskofcausingthe result.
Keywords: Criminal law; Eventual Intention; ConsciousGuilt; trafficaccident
Sumário:1. Crimes dolosos. 2.As teorias sobre o dolo. 3.Crimes culposos. 4.A culpa consciente e a culpa inconsciente. 5.Análise da Jurisprudência
Introdução
Na última década, com o avanço econômico e o incentivo à compra de veículos automotores, o Brasil teve um salto no número de veículos nas ruas, passou de 24 milhões em 2001 para 50 milhões em 2012.[2] Aliado a isso, a falta de incentivo e investimento no transporte público trouxe consequências graves à nossa sociedade. Uma delas está em grande evidência nos últimos meses: os acidentes de trânsito envolvendo motoristas embriagados. Esses acidentes se multiplicaram nos últimos anos, o que fez com que o poder legislativo, apoiado no clamor punitivista da sociedade, editar, em 19 de junho de 2008, a Lei n. 11.705, popularmente conhecida como “lei seca”. O rigor aumentou abruptamente, impondo a chamada “tolerância zero” a motoristas que costumavam misturar direção com bebida.
No entanto, o maior rigor da lei não foi suficiente para diminuir, de forma significativa, os acidentes e as mortes cometidas por motoristas alcoolizados. A pressão da mídia, da sociedade e do governo fez o Congresso Nacional endurecer ainda mais a punição a esses condutores. A Lei n. 12.760, de 20 de dezembro de 2012, deu nova redação ao artigo 308 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), introduzindo-se, assim, um novo tipo penal. Na redação da lei:
“Art. 308. Conduzir veículo automotor com a capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:
I – Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”.
Contudo, a maior restrição da lei não foi o suficiente para que os motoristas resolvessem não mais misturar álcool e direção. Mais uma vez, a sociedade brasileira tenta encontrar uma saída para a carnificina que se tornou o trânsito no Brasil. Somos hoje um dos países que mais mata no trânsito e a grande parte dos acidentes com morte estão relacionados a motoristas conduzindo sob influência de drogas ou bebidas alcoólicas.
Mais uma vez surgem campanhas para aumentar o rigor nas penas cominadas a crimes de trânsito. Percebe-se ser cada dia maior o clamor da sociedade para aumentar a punição, pois há no senso comum a ideia de que quanto mais se punir menos os “crimes” irão ocorrer. A imprensa, diariamente, traz novos casos de pedestres, ciclistas que são mortos por motoristas que conduzem seus veículos de forma irresponsável, abusando da imprudência, colocando assim a vida de inocentes em risco.
Com a ineficiência da lei, mesmo que o rigor tenha aumentado, passou-se a utilizar uma nova maneira de imputar os crimes de trânsito a esses motoristas: a denúncia por dolo eventual. Muitos delegados e promotores de justiça estão pedindo a aplicação do tipo penal de homicídio doloso para condutores que praticam crimes ao dirigirem bêbados. Eles têm como base o caput do artigo 18 do Código Penal, que trata como crime doloso quem ou queria o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo. Munidos de provas do momento do acidente, os promotores podem oferecer a denúncia por dolo eventual e assim pleitear uma pena maior do que o judiciário tem o costume de aplicar.
A maioria dos casos de homicídio no trânsito são classificados como culposos, no argumento da culpa inconsciente ou consciente. Nesse último o agente apesar de poder prever o resultado acreditava piamente que ele não aconteceria. Além disso, ele se importa com o resultado final (neste caso, o homicídio), característica diferenciadora do dolo eventual.
Como exposto alhures, a tentativa de aumentar a punição passou à aplicação do dolo eventual nos crimes de trânsito. Argumenta-se, por exemplo, que ao dirigir embriagado, o motorista assume o risco de causar a morte da vítima. As circunstâncias complicam-se ainda mais se, além de estar alcoolizado, o motorista, por exemplo, está em excesso de velocidade em via pública. A matemática da junção de motoristas alcoolizados e velocidade excessiva leva à aplicação das penas do dolo eventual.
O presente trabalho inicia com uma análise das modalidades culposas e dolosas dos crimes em geral, inclinando-se à investigação dos crimes de trânsito, transpassando-se sob as teorias do dolo recepcionadas pelo Código Penal.
Ao final, uma pesquisa jurisprudencial nos Tribunais Superiores e no Tribunal de Justiça de Santa Catarina busca os entendimentos recorrentes sobre o tema.
1. Crimes dolosos.
O dolo, segundo lição de Damásio de Jesus, é “o elemento subjetivo do tipo. Integra a conduta, pelo que a ação e a omissão não constituem simples formas naturalísticas de comportamento mas ações ou omissões dolosas.”[3]
O crime é considerado doloso, seguindo-se a redação do Código Penal, quando “o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”. Em regra, todo o crime é considerado doloso, a exceção aplica-se aos culposos, que devem ser expresso em lei. Diz o parágrafo único do artigo 18 do estatuto repressivo: “Parágrafo único: Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente”.
Assim, corrobora-se a informação da especialidade dos crimes culposos em relação aos dolosos.
Como será examinado posteriormente, a parte geral do código penal, reformada em 1984, recepcionou duas teorias do dolo: a teoria da vontade e do assentimento (ou da consciência). Logo, surgem os dois elementos para a caracterização da conduta dolosa. Na lição de Mirabete e Fabrini:
“São elementos caraterizadores do dolo, portando, a consciência (conhecimento do fato que constitui a ação típica) e a vontade (elemento volitivo de realizar esse fato). A consciência do autor deve referir-se a todos os elementos do tipo, prevendo eles os dados essenciais dos elementos típicos futuros em especial o resultado do processo causal. A vontade consiste em resolver executar a ação típica, estendendo-se a todos os elementos objetivos conhecidos pelo autor que servem de base a sua decisão em praticá-la.”
Concluem os autores:
“O dolo inclui não só o objetivo que o agente pretende alcançar, mas também os meios empregados e as consequências secundárias de sua atuação. Há duas fases na conduta: uma interna e outra externa. A interna opera-se no pensamento do autor (e se não passa disso é penalmente indiferente)[…]
A segunda fase consiste em exteriorizar a conduta, numa atividade em que se utilizam os meios selecionados conforme a normal e usual capacidade humana de previsão. Caso o sujeito pratique a conduta nessas condições, age com dolo e a ele se podem atribuir o fato e suas consequências diretas […]”6
O estatuto repressivo, ainda no artigo 18, faz a diferenciação entre o dolo direito e o dolo eventual. Aquele, como admitido na teoria penal, é tido quando o agente tem a vontade e consciência de praticar a infração previamente tipificada pelo legislador. Este, por sua vez, acontece quando agente “assume o risco” de praticar a infração penal, quando o indivíduo pôde prever o resultado, mas não se importa se este ocorrer.
Eugenio RaúlZaffaroni e José Henrique Pierengeli tratam das obscuridades do tema na esfera do direito penal e processual penal:
“O dolo eventual, conceituado em termos correntes, é a conduta daquele que diz a si mesmo “que aguente”, “que se incomode”, “se acontecer, azar”, “não me importo”. Observa-se que aqui não há uma aceitação do resultado como tal, e sim sua aceitação como possibilidade, como probabilidade.[…]
O limite entre o dolo eventual e a culpa com representação é um terreno movediço, embora mais no campo processual do que penal. Em nossa ciência, o limite é dado pela aceitação ou rejeição da possibilidade de produção do resultado, e, no campo processual, configura um problema de prova que, em caso de dúvida sobre a aceitação ou rejeição da possibilidade de produção do resultado, imporá ao tribunal a consideração de existência de culpa, em razão do benefício da dúvida: in dubio pro reu.”[4]
Destarte, esta interpretação tem o condão de ampliar o rol de possibilidades de condenação por crimes dolosos. Situações que antes eram tidas como culpa consciente passaram a ser tratadas como dolo eventual, alcançando-se a assim o clamor social pelo aumento do rigor legal. No entanto, esse entendimento não é pacífico e muitas dúvidas restam ao poder judiciário.
Rogério Greco faz uma crítica incisiva à perspectiva matemática de embriaguez ao volante ou velocidade excessiva ter como resultado sempre o dolo eventual:
“A questão não é tão simples quanto se pensa. Essa fórmula criada, ou seja, embriaguez + velocidade excessiva = dolo eventual, não pode prosperar. Não se pode partir do princípio que todos aqueles que dirigem embriagados e com velocidade excessiva não se importam em causar a morte ou lesões em outras pessoas. O dolo eventual, como visto, reside no fato de não se importar o agente com a ocorrência do resultado por ele antecipado mentalmente, ao contrário da culpa consciente, em que este mesmo agente, tendo a previsão do que poderia acontecer, acredita sinceramente, que o resultado lesivo não venha a ocorrer. No dolo eventual, o agente não se preocupa com a ocorrência do resultado por ele previsto porque o aceita. Para ele, tanto faz. Na culpa consciente, ao contrário, o agente não quer nem assume o risco de produzir o resultado porque se importa com a ocorrência dele. O agente confia que, mesmo atuando o resultado previsto será evitado”.[5]
A questão da imputação por dolo eventual torna necessário um estudo aprofundado das modalidades culposas de crime, buscando-se a diferenciação entre os tipos de culpa e a sua repercussão nas esferas penais.
2. As teorias sobre o dolo
São três as principais teorias a respeito do dolo em Direito Penal: teoria da vontade, a teoria do assentimento (ou para Bittencourt, consentimento) e a teoria da representação[6]. Ressalta-se que o Código Penal brasileiro recepcionou apenas as duas primeiras teorias citadas.
Com base na teoria da vontade, segundo lição de Rogério Greco, o dolo seria “tão somente a vontade livre e consciente de querer praticar a infração penal, isto é, de querer levar a efeito a conduta prevista no tipo penal incriminador” [7]. Na mesma forma, César Roberto Bittencourt faz a correlação entre essa teoria e a equivalência ao dolo eventual.In verbis,
“A vontade, para essa teoria, como critério aferidor do dolo eventual, pode ser traduzida na posição do autor de assumir o risco de produzir determinado resultado representando como possível, na medida em que “assumir” equivale a consentir, que nada mais é do que uma forma de querer”[8].
Em outro giro, a teoria da representação mostra que, para a existência do dolo, é suficiente a representação subjetiva ou a previsão do resultado como certo ou provável.A teoria do assentimento ou consentimento faz a diferenciação entre a própria culpa consciente e o possível dolo eventual, ponderando-se a assunção do risco de produzir o resultado. Conforme Greco:
“Já a teoria do assentimento diz que atua com dolo aquele que, antevendo como possível o resultado lesivo com a prática de sua conduta, mesmo não o querendo de forma direta, não se importa com a sua ocorrência, assumindo o risco de vir a produzi-lo. Aqui o agente não quer o resultado diretamente, mas entende como possível e o aceita.”[9]
O próprio autor supracitado, mencionando José Cerezo Mir, afirma “se o sujeito considerava provável a produção do resultado estaremos diante do dolo eventual. Se considerava que a produção do resultado era meramente possível, se daria imprudência consciente ou com representação”[10].
Diz o artigo 18 do Código Penal em vigor:
“Art. 18. Diz –se o crime
I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu a risco de produzi-lo[…]”
O código repressivo é claro ao assumir a teoria da vontade e a do assentimento, respectivamente na primeira e segunda parte do referido inciso. Este é, também, o entendimento da doutrina majoritária. No entanto, seguindo a doutrina pátria minoritária, Damásio de Jesus admite a recepção somente da teoria da vontade. Preleciona esse autor:
“É aceita a teoria da vontade. Dolo não é simples representação do resultado, o que constitui um simples acontecimento psicológico. Exige representação e vontade, sendo que esta pressupõe aquela, pois o querer não se movimenta sem a representação do que se deseja […]. Assim, não basta a representação do resultado; exige vontade de realizar a conduta e de produzir o resultado (ou assumir o risco de produzi-lo).”[11]
Ressalta-se ser um entendimento particular do referido autor, ao passo que a grande parte da doutrina e da jurisprudência acolhe a teoria da vontade e do assentimento no ordenamento pátrio.
3. Crimes culposos
Na mesma toada do artigo 18 do Código Penal, têm-se os crimes tidos como culposos. Na interpretação de César Roberto Bittencourt:
“Culpa é a inobservância do dever objetivo de cuidado manifestada em conduta produtora de resultado não querido, objetivamente previsível. A estrutura do tipo de injusto culposo é diferente do tipo injusto doloso: neste é punida a conduta dirigida a um fim ilícito, enquanto no injusto culposo se pune a conduta mal dirigida, normalmente destinada a um fim penalmente irrelevante, quase sempre lícito. O núcleo do tipo de injusto nos delitos culposos consiste na divergência entre a ação efetivamente praticada e a que deveria realmente ter sido realizada, em virtude da observância do dever objetivo de cuidado.”[12]
Os delitos culposos são classificados doutrinariamente como de tipo aberto, pois não existe uma definição típica, completa e precisa. O contrário ocorre com os delitos dolosos. Assim, por estarem as condutas culposas descritas em tipos abertos, os magistrados devem avaliar a situação fática de cada caso e preencher as “lacunas” no caso concreto.
4. A culpa consciente e a culpa inconsciente
Como já citado anteriormente, nos casos de homicídio praticado no trânsito, criou-se uma enorme divergência entre a possibilidade de imputação por dolo eventual ou culpa. O problema reside na interpretação legal da chamada culpa consciente e, contrario sensu, da culpa inconsciente. Na definição de Zaffaroni e Pierangeli:
“Chama-se culpa com representação, ou culpa consciente, aquela em que o sujeito ativo representou para sim a possibilidade da produção do resultado, embora tenho rejeitado, na crença de que, chegando o momento, poderá evitá-lo ou simplesmente não ocorrerá. Este é o limite entre a culpa consciente e o dolo. Aqui há um conhecimento efetivo do perigo que correm os bens jurídicos, que não se deve confundir com a aceitação da possibilidade de produção do resultado, que é uma questão relacionada ao aspecto volitivo e não ao cognoscitivo, e que caracteriza o dolo eventual. Na culpa com representação, a única coisa que se conhece efetivamente é o perigo.
Na culpa inconsciente, ou culpa sem representação, não há conhecimento efetivo do perigo que, com a conduta, se acarreta aos bens jurídicos, porque se trata da hipótese em que o sujeito podia e devia representar-se a possibilidade de produção do resultado e, no entanto, não o fez. Nestes casos há apenas um conhecimento “potencial” do perigo aos bens jurídicos alheios”[13].
Esses mesmos autores trazem um interessante exemplo de quando a vontade, a consciência do agente e o fundamento fático têm o condão de caracterizar a culpa ou o dolo da conduta lesiva:
“Se tomamos como exemplo a conduta de quem conduz um veículo automotor em excesso de velocidade, por uma rua percorrida por crianças que saem da escola, ele pode não representar-se a possibilidade de atropelar alguma criança, caso em que haverá culpa inconsciente ou sem representação; pode representar-se a possibilidade lesiva, mas confiar em que a evitará, contando com os freios potentes do seu veículo e sua perícia ao volante, caso em que haverá culpa consciente ou culpa com representação. Por outro lado, se, ao representar para si a possibilidade de produção do resultado, aceita a sua ocorrência (“pouco me importa!”), o caso seria de dolo eventual”[14].
Mirabette e Fabbrini têm o mesmo entendimento a respeito da proximidade do dolo eventual e da culpa consciente. Não obstante, trazem elementos comparando os “tipos” de culpa e dolo na lei penal:
“A culpa consciente avizinha-se do dolo eventual, mas com ele não se confunde. Naquela o agente, embora prevendo o resultado, não o aceita como possível. Neste, o agente prevê o resultado, não se importando que venha ele ocorrer. Pela lei penal estão equiparadas a culpa inconsciente e a culpa com previsão. “pois tanto vale não ter consciência da anormalidade da própria conduta, quanto estar consciente dela, mas estar confiando, sinceramente, em que o resultado lesivo não sobrevirá”. Já quanto ao dolo eventual, este se integra por estes dois componentes – representação da possibilidade do resultado e anuência a que ele ocorra, assumindo o agente o risco de produzi-lo. Igualmente, a lei não o distingue do dolo direto ou eventual, punindo o autor por crime doloso’[15].
Por conseguinte, ressalte-se que esse não é um entendimento doutrinário totalmente aceito pela nossa jurisprudência. Uma análise mais precisa mostra que os tribunais estão trazendo elementos de inobservância do dever de cuidado (exemplo: excesso de velocidade em via pública, motoristas alcoolizados ou a conjugação dos dois) para caracterizar o dolo eventual e afastar a aplicabilidade da culpa consciente.
5. Análise da Jurisprudência
Realizada essa descrição, segue-se à análise da jurisprudência pátria sobre o tema. Como já elucidado, nos casos de homicídio praticado na direção de veículo automotor, a tipificação entre culpa e dolo (eventual ou não) é uma tarefa hercúlea.
Trata-se de um óbice com os quais os nossos tribunais confrontam-se diariamente e a jurisprudência não está consolidada. Advém da necessidade de avaliar o caso concreto, com todas as suas especificidades e não achar uma solução matemática ou uma verdade absoluta para todos os casos.
Extrai-se o julgado do Supremo Tribunal Federal (STF):
“HABEAS CORPUS. PENAL. CRIME DE HOMICÍCIO PRATICADO NA CONDUÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. PLEITO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO PREVISTO NO ARTIGO 302 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. DEBATE ACERCA DO ELEMENTO VOLITIVO DO AGENTE. CULPA CONSCIENTE X DOLO EVENTUAL. CONDENAÇÃO PELO TRIBUNAL DO JÚRI. CIRCUNSTÂNCIA QUE OBSTA O ENFRENTAMENTO DA QUESTÃO. REEXAME DE PROVA. ORDEM DENEGADA. I – O órgão constitucionalmente competente para julgar os crimes contra a vida e, portanto, apreciar as questões atinentes ao elemento subjetivo da conduta do agente aqui suscitadas – o Tribunal do Júri – concluiu pela prática do crime de homicídio com dolo eventual, de modo que não cabe a este Tribunal, na via estreita do habeas corpus, decidir de modo diverso. II – A jurisprudência desta Corte está assentada no sentido de que o pleito de desclassificação de crime não tem lugar na estreita via do habeas corpus por demandar aprofundado exame do conjunto fático-probatório da causa. Precedentes. III – Não tem aplicação o precedente invocado pela defesa, qual seja, o HC 107.801/SP, por se tratar de situação diversa da ora apreciada. Naquela hipótese, a Primeira Turma entendeu que o crime de homicídio praticado na condução de veículo sob a influência de álcool somente poderia ser considerado doloso se comprovado que a embriaguez foi preordenada. No caso sob exame, o paciente foi condenado pela prática de homicídio doloso por imprimir velocidade excessiva ao veículo que dirigia, e, ainda, por estar sob influência do álcool, circunstância apta a demonstrar que o réu aceitou a ocorrência do resultado e agiu, portanto, com dolo eventual. IV – Habeas Corpus denegado’[16].
No caso supracitado, a decisão do pretório excelso foi de negar o habeas corpus e, portanto legitimar a sentença pela qual o tribunal do júri condenou o réu por homicídio doloso, por estar dirigindo sob influência de álcool e em velocidade excessiva.
Em outro giro, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) desclassificou o crime de homicídio com dolo eventual, afirmando que o simples estado de embriaguez não tem o condão de qualificar o crime de culposo para doloso. Eis a ementa:
“PENAL. HOMICÍDIO. ACIDENTE DE TRÂNSITO. EMBRIAGUEZ. PRESUNÇÃO SIMPLÓRIA DE DOLO EVENTUAL. IMPOSSIBILIDADE SEM MAIORES DEMONSTRAÇÕES QUE LEVEM A CONCLUIR PELO ELEMENTO VOLITIVO. IMPETRAÇÃO NÃO CONHECIDA. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO PARA RESTABELECER A DECISÃO DO JUÍZO SINGULAR. 1 – Não descritos na denúncia elementos que demonstrem o dolo, ainda que na forma eventual, não se pode ter por escorreito o acórdão que encampa acusação nesses moldes deduzida. 2 – A embriaguez, por si só, sem outros elementos do caso concreto, não pode induzir à presunção, pura e simples, de que houve intenção de matar, notadamente se, como na espécie, o acórdão concluiu que, na dúvida, submete-se o paciente ao Júri, quando, em realidade, apresenta-se de maior segurança a aferição técnica da prova pelo magistrado da tênue linha que separa a culpa consciente do dolo eventual. 3 – Impetração não conhecida, mas concedida a ordem de ofício para restabelecer a decisão de primeiro grau que desclassificou a conduta para homicídio culposo de trânsito”[17].
Merece destaque a seguinte passagem do voto da ministra relatora, Maria Thereza de Assis Moura:
“Esta Corte já se manifestou sobre o tema, decidindo que a embriaguez, por si só, não é motivo suficiente para concluir pelo dolo eventual em homicídio de trânsito, devendo serem aclaradas características concretas do caso sub judice que possam fazer concluir pelo elemento volitivo, o que, a meu sentir, não está na espécie demonstrado.”
A questão é controversa, também, nos tribunais de justiça. Extraem-se de julgados do Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina:
“APELAÇÃO CRIMINAL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. SENTENÇA DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA LESÃO CORPORAL CULPOSA (ART. 303 DO CTB). INSURGÊNCIA DA ACUSAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. EMBRIAGUEZ QUE POR SI SÓ NÃO CARACTERIZA DOLO EVENTUAL. CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO EM CONCRETO QUE NÃO APONTAM PARA A EXISTÊNCIA DE DOLO EVENTUAL. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA DE DESCLASSIFICAÇÃO.RECURSO DA DEFESA. PLEITO ABSOLUTÓRIO POR AUSÊNCIA DE PROVAS. MATERIALIDADE E AUTORIA DEVIDAMENTE COMPROVADAS. DEPOIMENTOS DOS POLICIAIS RODOVIÁRIOS FEDERAIS QUE DEMONSTRAM A CULPABILIDADE DO RÉU NO ACIDENTE DE TRÂNSITO. INDÍCIOS DE QUE A VÍTIMA ESTAVA EMBRIAGADA E NÃO POSSUÍA HABILITAÇÃO PARA DIRIGIR QUE NÃO AFASTAM A CULPABILIDADE. INEXISTÊNCIA DE CONCORRÊNCIA DE CULPA NA SEARA PENAL. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA QUE SE IMPÕE. DOSIMETRIA DA PENA. ADEQUAÇÃO DE OFÍCIO. APLICAÇÃO DA PENA BASE. DISCRICIONARIEDADE DO MAGISTRADO QUE DEVE SER DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA, E NÃO AFRONTAR O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. PENA MÍNIMA QUE FOI DOBRADA EM RAZÃO DE APENAS 2 CIRCUNSTÂNCIAS DESFAVORÁVEIS, QUE EMBORA GRAVES, NÃO SÃO SUFICIENTES PARA TAL ELEVAÇÃO. ADEQUAÇÃO DE 1/3 PARA CADA CIRCUNSTÂNCIA. PLEITO DEFENSIVO PARA REDUÇÃO DA PENA DE SUSPENSÃO DO DIREITO DE DIRIGIR. SIMETRIA COM A PENA CORPORAL. ADEQUAÇÃO QUE SE FAZ NECESSÁRIA.PEDIDO DE REDUÇÃO DA PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA FIXADA EM DOIS SALÁRIOS MÍNIMOS. ENTENDIMENTO DESTA CORTE DE JUSTIÇA DA IMPOSSIBILIDADE DE FIXAÇÃO EM PATAMAR SUPERIOR AO MÍNIMO LEGAL SEM A DEVIDA FUNDAMENTAÇÃO. REDUÇÃO QUE SE IMPÕE. RECURSO DA ACUSAÇÃO DESPROVIDO, E RECURSO DA DEFESA PARCIALMENTE PROVIDO.(TJSC, Apelação Criminal n. 2012.056626-8, de São Miguel do Oeste, rel. Des. Cinthia Beatriz da Silva Bittencourt Schaefer, j. 20-08-2013).”[18]
No mesmo sentido:
“RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO SIMPLES. CÓDIGO PENAL, ART. 121, CAPUT. DECISÃO DESCLASSIFICATÓRIA. RECURSO MINISTERIAL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. COLISÃO FRONTAL. PONTO DE IMPACTO NA PISTA CONTRÁRIA DOS ACUSADOS. MOTORISTA SOB A INFLUÊNCIA DE BEBIDA ALCOÓLICA. EXCESSO DE VELOCIDADE. DOLO EVENTUAL. AUSÊNCIA DE INDÍCIOS SUFICIENTES. IMPRUDÊNCIA CARACTERIZADA. DESCLASSIFICAÇÃO MANTIDA. A ausência de provas de o motorista ter agido com dolo eventual ao provocar o acidente automobilístico importa na desclassificação da conduta. A pronúncia do acusado, pela prática de homicídio doloso no trânsito, exige a presença de indícios suficientes de que tenha assumido o risco de causar a morte da vítima com o seu modo de agir. RECURSO NÃO PROVIDO. (TJSC, Recurso Criminal n. 2014.028263-6, de Xanxerê, rel. Des. Roberto Lucas Pacheco, j. 14-05-2015).”[19]
Sem embargo, esse mesmo tribunal tem entendimento diverso em matérias semelhantes, ressaltando a importância da análise fática para a comprovação do dolo eventual ou a desclassificação para o artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) no caso de culpa consciente. Eis a decisão colegiada da Colenda Segunda Câmara Criminal da mesma corte estadual:
“APELAÇÃO CRIMINAL – CRIME DE TRÂNSITO – LESÃO CORPORAL CULPOSA NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR (CTB, ART. 303, PARÁGRAFO ÚNICO, C/C ART. 302, PARÁGRAFO ÚNICO, I E III) E EMBRIAGUEZ AO VOLANTE (CTB, ART. 306) – SENTENÇA QUE PROCEDE A EMENDATIO LIBELLI E DESCLASSIFICA OS CRIMES DENUNCIADOS PARA OS PREVISTOS NO ART. 129, § 1º, E CAPUT, DO CP E ART. 304 DO CTB.RECURSO DEFENSIVO.PLEITO ABSOLUTÓRIO COM BASE NA CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA – MATERIALIDADE E AUTORIA SOBEJAMENTE COMPROVADAS – CONDUTOR QUE, SEM CARTEIRA NACIONAL DE HABILITAÇÃO E SOB O EFEITO DE ÁLCOOL, DIRIGE NA CONTRAMÃO DE DIREÇÃO E COLIDE COM A MOTOCICLETA DA VÍTIMA – DOLO EVENTUAL VERIFICADO.PEDIDO DE AFASTAMENTO DAS CAUSAS DE AUMENTO REFERENTES À FALTA DE HABILITAÇÃO E DIREÇÃO SOB EFEITO DE ÁLCOOL – AUSÊNCIA DE INTERESSE RECURSAL – NÃO CONHECIMENTO NO PONTO – TESE DE NÃO CONFIGURAÇÃO DO DELITO DE OMISSÃO DE SOCORRO – PROVAS SUFICIENTES – RÉU QUE, APÓS O ACIDENTE, EVADE-SE DO LOCAL SEM PRESTAR ASSISTÊNCIA ÀS VÍTIMAS – RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E DESPROVIDO.”(TJSC, Apelação Criminal n. 2015.018852-0, de Imaruí, rel. Des. Getúlio Corrêa, j. 09-06-2015). [20]
E também da Primeira Câmara Criminaldo referido Tribunal de Justiça:
“PENAL. PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME DE TRÂNSITO. CONDUÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR COM CAPACIDADE PSICOMOTORA ALTERADA EM RAZÃO DO USO DE ENTORPECENTE E INGESTÃO DE ÁLCOOL (CTB, ART. 306). CRIME CONTRA A PESSOA. LESÃO CORPORAL SIMPLES E DE NATUREZA GRAVE (CP, ART. 129, CAPUT E § 2º, III E IV). SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA.PRELIMINAR. NULIDADE DO LAUDO PERICIAL. CONSTATAÇÃO DE ÁLCOOL E SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. ALEGADA AFRONTA AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO. INACOLHIMENTO. CONCORDÂNCIA DO RÉU. MATERIAL VOLUNTARIAMENTE FORNECIDO. TESE RECHAÇADA.MÉRITO. PEDIDO DE DESCLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES DE LESÃO CORPORAL LEVE E GRAVÍSSIMA PARA O TIPO PENAL DESCRITO NO ART. 303 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. IMPOSSIBILIDADE. DOLO EVENTUAL EVIDENCIADO. SOMATÓRIO DE SITUAÇÕES PROPENSAS A OCASIONAR GRAVES ACIDENTES DE TRÂNSITO. ASSUNÇÃO DOS RISCOS QUANTO À PRODUÇÃO DOS RESULTADOS. APLICAÇÃO DA CONSUNÇÃO DO CRIME DE EMBRIAGUEZ AO VOLANTE EM RELAÇÃO AO CRIME DE LESÃO CORPORAL. CRIME DE PERIGO ABSORVIDO PELO CRIME DE DANO (LESÃO CORPORAL). PENA DO ART. 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO AFASTADA. PREJUDICADA ANÁLISE DO PLEITO DE REDUÇÃO DA PENA-BASE DO REFERIDO DELITO. DOSIMETRIA. CRIME DE LESÃO CORPORAL DE NATUREZA GRAVE. PEDIDO DE FIXAÇÃO DA PENA-BASE AO MÍNIMO LEGAL. VIABILIDADE. CONSEQUÊNCIAS DO CRIME INERENTES AO TIPO PENAL. BIS IN IDEM CARACTERIZADO. SENTENÇA REFORMADA EM PARTE.- Havendo nos autos aparato probatório indicando que o réu forneceu, voluntariamente, material para realização de exames de sangue e toxicológico após o acidente, não prospera a alegação de afronta ao princípio da não autoincriminação. – À luz das circunstâncias concretas que envolveram o acidente, tem-se que o agente assumiu o risco da produção do resultado, nos termos do art. 18, I, do CP, ao trafegar em excesso de velocidade sobre rua sem pavimentação, sob efeito de bebida alcoólica e substância entorpecente (maconha), voluntariamente consumidas, não se importando com as nefastas consequências que poderiam advir do seu ato.- Em caso de concurso de circunstâncias qualificadoras, é possível a aplicação de uma delas para qualificar o crime, enquanto a outra pode ser utilizada como circunstância judicial desabonadora ou, quando prevista em lei, como circunstância agravante. Precedentes desta Corte e do Superior Tribunal de Justiça.- Reconhecida a embriaguez (crime de perigo) como fator preponderante, senão indispensável, para a ocorrência do delito de lesão corporal (crime de dano), incide sobre o art. 306 da Lei 9.503/1997 o princípio da consunção.- Inviável a exasperação da pena-base com fundamento nas consequências do crime quando são elas inerentes ao tipo penal.- Parecer da PGJ pelo conhecimento e parcial provimento do recurso.- Recurso conhecido e parcialmente provido.” (TJSC, Apelação Criminal n. 2014.029025-5, de Tubarão, rel. Des. Carlos Alberto Civinski, j. 30-06-2015).[21]
Colaciona-se o entendimento divergente do mesmo tribunal. É prova de que nem a doutrina nem mesmo a jurisprudência estão seguras na qualificação dos homicídios ou lesões corporais praticadas no trânsito.
Conclusão
O objetivo do presente artigo foi descrever posições divergentes entre os tribunais brasileiros a respeito da adequação ou não do dolo eventual e da culpa consciente nos crimes de trânsito além de investigar a sua aplicação perante os tribunais superiores e estaduais.
É certo que uma das maiores causas de morte no Brasil são os acidentes automobilísticos. Os números são comparáveis a países em estado de guerra.Só em 2015, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), ocorreram 41 mil mortes no trânsito brasileiro[22]. Não à toa, a sociedade se mobilizou para tentar mudar esses números. Com o constante posicionamento da mídia, o clamor social por mais punição foi aumentando.
O legislativo tratou de tornar as leis mais rígidas. Tinha-se como informação de que a maioria dos acidentes no Brasil era causada por motoristas embriagados ou sob o efeito de outras drogas que causassem dependência. Surgiu então a política de tolerância zero. A entrada em vigor da Lei n. 11.705/2009 e, posteriormente, da Lei n. 12.760/2012, fechou o cerco contra quem costumava dirigir bêbado.
O judiciário, contudo, não ficou alheio às discussões dos últimos anos. Passou a vislumbrar nos casos já mencionados a possibilidade de condenação por dolo eventual enquanto, na maioria dos casos, era reconhecida a culpa consciente. É uma forma que o sistema encontrou de tornar as punições mais rígidas utilizando-se de leis já existentes.
Entretanto, não se trata de questão pacífica na jurisprudência pátria. Magistrados, ou os que participam do processo em geral, têm muita dificuldade em distinguir a culpa consciente do suposto dolo eventual. No meio da efervescência punitivista da sociedade, e dos conceitos jurídicos plurais, os magistrados encontram-se sob a espada de Dâmocles, tendo que ponderar os fatores externos que podem influenciar sua decisão e a teoria penalista que, em determinadas situações, pode beneficiar o réu.
É uma dúvida que impõe discordância entre os que apoiam o in dubio proreu e os que, nos casos já expostos, acreditam ser necessária a aplicação do in dubio pro societate. Factível é a percepção de que a sociedade jurídica, a doutrina e a jurisprudência divergem muito sobre o tema, e discussões são necessárias para tentar adequar a realidade da sociedade com os preceitos jurídicos.
Informações Sobre o Autor
Gustavo G. Dagostim
Acadêmico de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC