Dos limites ao exercício das servidões – uma visão privatista

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Resumo: Entre as limitações ao direito absoluto de propriedade, na categoria dos iura in rebus alienis, está o instituto da servidão, que se apresenta como um direito real e acessório, segundo o qual se estabelece um encargo que é suportado por um fundo serviente, em favor de outro fundo, o dominante. É certo, de outra parte, que o proprietário do prédio dominante deve exercer o seu direito de servidão nos limites que ele comporta, sendo de irrefragável importância saber quais são eles e quais as conseqüências de sua não observância. O trabalho que se segue procura estudar os limites do exercício das servidões no direito romano, seus variados conceitos, caracteres de formação, natureza jurídica, princípios, finalidade, classificação e elementos constitutivos, para realizar, em seguida, sob o triangular prisma da doutrina, lei e costumes, uma análise minudente desses limites e as ocasiões que eles ensejam o exercício abusivo de direito, alcançando, por esse meio, a desanuviada conclusão que o uso civiliter modo, o objeto, a finalidade e a necessidade são os elementos que restringem o exercício das servidões e servem, outrossim, como parâmetros na verificação dos atos abusivos. Urge, pois, que se proceda à analise desses limites no escopo de facilitar a solução dos  litígios que envolvem o assunto.


Palavras-chave: iura in re aliena – servidões – limites – exercício.


Résumé: Entre les limitations au droit absolu de propriété, dans la catégorie du iura in rebus alienis, existe l’institut de la servitude, qui se présente comme un droit réel et accessoire, selon lequel s’établit une charge qui est supportée par un fond servant, en faveur d’autre fond, le dominant. Il’est correct, d’autre partie, que le propriétaire de l’immeuble dominant doit exercer son droit de servitude dans les limites qu’il comporte, en étant d’indéniable importance quelles sont les conséquences de son inobservance. Le suivant travail essaye d’étudier les limites de l’exercice des servitudes dans le droit romain, leurs concepts, éléments de formation, nature jurdique, principes, finalité, classement et éléments constitutifs, pour réalizer, ensuite, sous l’accord de la doctrine, loi et habitudes, une analyse détaillée de ces limites et les occasions qul’ils produisent l’exercice abusif de droit, en atteignant, par ce moyen, la correcte conclusion que l’utilisation civiliter modo, l’objet, la finalité et la nécessité sont les éléments qui restreignent l’exercice des servitudes et servent, aussi, comme des paramètres dans la vérification des actes abusifs. Il incite, donc, que se procède l’analyse de ces limites dans le but de faciliter la solution des litiges qu’ impliquent le sujet.


Mots-clé: iura in re aliena – servitudes – limites –  exercice .


Sumário: Introdução. 1. Brevíssima notícia dos limites das servidões no Direito Romano. 2.  Conceito. 3. Elementos constitutivos ou de caracterização. 3.1 Instituição sobre prédios distintos. 3.2. Prédios vizinhos. 3.3. Obrigação negativa. 3.4. Direito estabelecido em proveito de um prédio 4. Natureza jurídica.  5. Princípios fundamentais. 5.1. Inseparabilidade. 5.2. Perpetuidade. 5.3. Indivisibilidade. 5.4. Inalienabilidade. 5.5. Impresumibilidade. 6. Finalidade.  7. Espécies de servidão. 7.1. Quanto à forma. 7.1.1 Urbanas ou rústicas. 7.1.2 Contínuas e descontínuas. 7.1.3 Aparentes e não aparentes. 7.2 Quanto à espécie. 7.2.1 Positiva e negativa 8. Constituição das servidões. 8.1 Constituição por atos voluntários. 8.1.1. Contrato (ato bilateral). 8.1.2. Testamento (ato unilateral). 8.1.3. Destinação do proprietário ou do pai de família. 8.2. Constituição por atos externos. 8.2.1. Usucapião. 8.2.2. Sentença Homologatória. 9. Limites no exercício das servidões. 9.1. O objeto e o exercício civiliter modo. 9.2. A finalidade e a necessidade. 9.2.1. O elemento finalidade e a sua função limitadora. 9.2.2. O princípio do limite ao necessário. 9.2.3 Necessidade x adminicula servitutis. 9.3 Os costumes são elementos que limitam o exercício da servidão? 10. Legislação comparada. 10.1 Os limites da servidão no Código Civil francês. 10.2 Os limites da servidão no Código Civil italiano. 10.3 Os limites da servidão no Burgiliches Gesetcbuch. 10.4 Os limites da servidão no Código Civil português. 11. Julgados. 12. Abusos no exercício das servidões. Conclusão.


INTRODUÇÃO


O tema que será desenvolvido na presente pesquisa diz respeito aos limites no exercício das servidões sob uma visão privatista.


Freqüentemente apontado como um direito que está sendo a cada dia constitucionalizado, o instituto da servidão ainda pode ser visto, ao menos sob o prisma do direito privado, de maneira restritiva, adquirindo status de um direito real sobre coisa alheia que condiciona a utilização de um prédio (serviente) a suportar determinados comportamentos (não fazer) praticados por outro prédio (dominante). 


Não obstante, em razão de ser a servidão direito que restringe o uso “absoluto” da propriedade, questão que se impõe é a de saber quais os limites do uso da servidão e até aonde vai a sua extensão, posto que, assim como um prédio (serviente) deve sofrer restrições a sua disponibilidade, o dono do prédio dominante deve exercer a servidão valendo-se de determinados parâmetros para que não ultrapassasse o seu direito.


Destarte, para responder a essa indagação é necessário que o trato do assunto se desenvolva metodicamente, impondo-se, dessa forma, uma sistematização em Capítulos que facilitem o seu entendimento.


Assim, o Capítulo I dessa pesquisa tem caráter propedêutico e consiste numa breve notícia histórica das servidões no Direito Romano, na qual se abordará, ligeiramente, a origem do instituto da servidão e dos elementos que, àquela época, limitavam o seu exercício.


No Capitulo II, na esteira da mais abalizada doutrina, serão assentados os diversos conceitos acerca das servidões, buscando-se, em seguida, ressaltar os elementos que dão existência a este instituto e que o situam no mundo da sistemática jurídica, não deixando de levar em conta seus princípios norteadores, bem como a sua classificação e modo de constituição.


No Capítulo III, desenvolve-se o cerne do trabalho, destacando-se, segundo a doutrina dominante, quais os elementos que limitam o exercício das servidões. Procura-se realçar, neste Capítulo, os artigos que ditam algumas limitações ao seu exercício, observando-se o assunto no fulgor da legislação alienígena e buscando substrato na jurisprudência dos pretórios pátrios.


Por fim, no Capítulo IV, comparam-se os elementos que limitam o exercício da servidão com o instituto do abuso de direito, trazendo à tona o pensamento da doutrina brasileira e o entendimento dos Tribunais nacionais.


Bem da verdade é que, não envolvendo a tese qualquer polêmica e pretendendo apenas devassar os limites da servidão no âmbito doutrinário, legislativo e jurisprudencial, nesta pesquisa monográfica procura-se, tão-somente, delinear quais os limites para o exercício de uma servidão e se estes servem como craveiras para configuração do abuso de direito.


Em sendo assim, almeja-se, em primeiro, tracejar a origem histórica da servidão no intuito de esclarecer em que critérios se pautavam os povos antigos para permiti-la e delimitá-la. Segundo, pretende-se conceituar o instituto da servidão no desiderato de contextualizar os elementos que restringem o seu exercício. Terceiro, procura-se trazer a lume os elementos limitadores do uso das servidões, ambicionando verificar quais são eles e como vêm sendo tratados pela doutrina, legislação e jurisprudência. Quarto, indica-se quais as normas brasileiras e estrangeiras que tratam do tema, com a pretensão de explicitar os artigos que realçam algumas limitações ao uso da servidão. E, por derradeiro, dentro desse quadro específico, delineia-se como os componentes limitadores ao exercício das servidões servem para constatar um eventual uso abusivo desse direito.


É de bom talante precisar, desde já, que a importância da presente pesquisa verifica-se em razão dos litígios que envolvem o uso das servidões, e das dificuldades práticas em utilizar-se dos elementos que compõem os seus limites para constatação do abuso de direito.


A propósito, autores do mais alto quilate procuraram discorrer acerca do assunto ora em análise, sendo o brilhante Pontes de Miranda (1957) um dos que muito demoraram no seu trato, registrando em seu clássico Tratado de Direito Privado que devem os juristas ater-se com maior atenção na distinção entre o conteúdo e exercício das servidões, para só depois indicar quais os limites no seu exercício e em que momento esses passam a ser abusivos.


Por sua vez, o preclaro Carvalho Santos (1991) aborda em seus comentários ao Código Civil de 1916 que na observação dos limites da servidão o ponto nevrálgico que se deve realçar é o da extensão dos atos necessários ao seu exercício, passando a preceituar, em seguida, que a não observância dessa extensão conduz ao uso abusivo desse iura in re aliena .  


Já Clóvis Beviláqua (1979), civilista que desfruta de largo prestígio, é enfático ao indicar as maneiras de como exercer uma servidão e as conseqüências de sua inobservância.


Apesar das luzes que irradiam da autoridade desses eminentes juristas, para a elaboração do trabalho em apreço, assenhoreou-se, também, dos escritos daqueles que no estrangeiro foram e continuam sendo os grandes especialistas na matéria: Roberto de Ruggiero (1999); Aubry e Rau (1935) e Colin e Capitain (1919).


 Por fim, diga-se que, para atingir os objetivos propostos, a presente investigação monográfica se deu em três etapas, em que, num primeiro momento, trabalhou-se em pesquisa bibliográfica nas doutrinas pátria e estrangeira especializadas; pesquisando-se na biblioteca do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, na biblioteca da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, na biblioteca da Faculdade Natalense para Desenvolvimento do Rio Grande do Norte e na biblioteca do prof. Giuseppi da Costa.  


Numa segunda etapa, valeu-se de uma análise na legislação nacional e alienígena na qual observaram-se os artigos 702 e 704 do Código Civil Brasileiro de 1916; o artigo 1.385 do Código Civil Pátrio de 2002; os artigos 637 e 702 do Código Civil Francês; os artigos 1.119 e 1.020 do Código Civil Alemão; os artigos 1564° e 1565º do Código Civil Português; e, por fim, o artigo 1038 do Código Civil Italiano. Para esse levantamento serviu-se, mais uma vez, da biblioteca do professor Giuseppi da Costa. 


Numa terceira e última etapa, voltou-se para análise jurisprudencial no âmbito dos pretórios pátrios, em que foram utilizadas como fontes de repositório jurisprudencial a Revista Síntese de Direito Civil e Processo Civil, a Revista dos Tribunais, o Cd room júris síntese millennium e a Internet.


São estes, pois, os instrumentos metodológicos que julgou-se adequado ao cumprimento da tarefa alhures referida.


1. BREVÍSSIMA NOTÍCIA DOS LIMITES DAS SERVIDÕES NO DIREITO ROMANO


O instituto da servidão, no sentido jurídico em que é concebido modernamente, nasceu com o surgimento do direito das XII tábuas, quando ocorre a dessacralização da propriedade, com a inserção desta no âmbito do ius (do direito) e a conservação apenas do sepulchrum, na esfera da faz (da religião), o que não significa que inexistisse anteriormente vestígios da sevitutibus[1], pois onde quer que exista propriedade privada, existem limites ao seu exercício pleno. O que ocorre é que tais limites dimanavam mais em virtude da religião do que especificamente do direito de propriedade.


Nesse sentido é que Fustel de Coulange (1998), historiador de incontrastável autoridade, dizia que a lei romana determinava que a partir do momento em que alguma família vendesse o campo onde se localizava o seu túmulo, ela deveria, ainda assim, permanecer proprietária do mesmo, conservando sempre o poder de atravessar o terreno, a fim de cumprir o cerimonial do culto.


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Nos períodos pré-clássico e clássico romano, as servidões encontraram ambiente propício para o seu desenvolvimento. Foi a época da ampliação das lex romanas, em que se buscou a expansão do instituto da servidão através dos diversos tipos que foram surgindo. Nesse tempo, seguindo a esteira dos ensinamentos de Moreira Alves (2002), a servitutes abrangia exclusivamente a servitutes praediorum.


Em vista da referida tipicidade, as servidões prediais se classificavam em duas grandes espécies; as rústicas e as urbanas.


As servidões dos prédios rústicos eram as de passagem (iter), de caminho (actus), de estrada (via) e de aqueduto (aquae ductus). Servidão de passagem (iter) era o direito do homem de ir e vir sem conduzir jumento ou veículo. A de caminho (actus) era o direito de conduzir jumento ou veículo. Assim, quem tinha passagem (iter) não tinha caminho (actus), mas quem tinha caminho (actus), tinha passagem (iter), e podia usar esta mesmo sem jumento. Estrada (via) era o direito de ir, vir e passar, compreendendo as servidões de passagem (iter) e de caminho (actus). A de aqueduto era o direito de conduzir água através de prédio alheio.


As servidões de prédios urbanos eram as inerentes aos edifícios, e, por isso, chamados prédios urbanos a todos os edifícios, ainda mesmo os construídos numa vila. Eram servidões de prédios urbanos as de vizinho suportar o peso do prédio vizinho, a de pregar tábuas no prédio contíguo, a de receber ou não receber as goteiras ou águas no edifício, no quintal ou no esgoto e a de não levantar mais alto, para não tirar a luz do vizinho.


 Entre as servidões dos prédios rústicos, com razão, incluíam-se a de tirar água, a de levar o gado para beber, a de fazer pastar, a de queimar cal e a de tirar terra.


Com o passar do tempo, conta-nos Ebert Chamou (1951), mais especificamente no período pós-clássico, o direito justinianeu põe fim ao princípio da tipicidade, se estendendo a expressão “servidão” a outros direitos reais sobre coisa alheia, dividindo-se, então, em duas categorias; as servitutes praediorum e a servitutes personarum.


Neste sentido, o jurisconsulto Marciano citado por Del Conral (1889) já dizia que “Las servidumbres ó son personales, como el uso y el usufructo, ó reales, como las servidumbres de los predios rústicos y urbanos” (D. L.8.1; fr. 1).


 Ainda no chamado período clássico, houve preocupação dos legisladores em limitar o modo de exercício da servidão. Como assinala o sempre citado José Carlos Moreira Alves (2002), no Digesto, em seu título VIII, encontrava-se regra ditando que constituída a servidão predial, o proprietário do prédio dominante poderia exercer todas as faculdades que integram o conteúdo desse direito, pois no ato constitutivo das diversas servidões se podia determinar, precisamente, o modo de seu exercício.


É o que, mutatis mutandis, proclamava Papiniano (PAPINIANO apud DEL CONRAL, 1889):


Las servidumbres no pueden ciertamente constituir-se en estricto derecho ni desde cierto tiempo, ni hasta cierto tiempo, ni bajo condición, ni hasta cierta condición, por ejemplo; hasta cuando yo quiera; pero, se embargo, si se añadieran estas cosas, se opondrá la excepción del pacto ó la del solo al que contra lo establecido vindicase la servidumbre y esto referio Cassio que respondió también Sabino, y que à él le parece bien.


 Parágrafo 1º – Es sabido que puede añadírseles modo à la servidumbre, por ejemplo, con que género de vehículo so transporte, ó no se transporte, ó bien que la conducción se haga solamente con caballo, ó de cierto peso, ó que se lleve de transito determinado rebaño, ó que se portee carbón” (D. 8. 1; fr. 4).  


Faz ver, ainda, Moreira Alves (2002), em seqüência, que há uma outra forma de limitação encerrada no mesmo diploma, indicando que o titular da servidão deve utilizar-se  de seu direto de modo que cause o menor transtorno ao prédio serviente. Destarte, em sendo estabelecido o local onde deve ser exercido o direito de servidão (lócus serruitutis) no prédio serviente, somente aí deverá ser exercida a servidão; de outra forma, todo o prédio serviente está a ela subordinado.


Como comentava o jurisconsulto Celso citado por Del Conral (1889):


“Si à alguien se lê cediera ò dejase simplemente camino por el fundo de cualquiera, le será licito pasar y conducir por tiempo indefinido, à saber, por cualquier parte del mismo, con tal que sea con arreglo à derecho. Porque en la expresión se exceptúan tácitamente algunas cosas, pues no se ha de dejar pasar, ni conducir por la misma casa, ni por medio de las viñas, como quiera que pueda hacer esto con igual comodidad por otra parte con menor daño del fundo sirviente. Pero fue constante, que por donde primeramente hubiese dirigido el camino, por allí debiese pasar y conducir en lo sucesivo, sin que tuviera facultad para cambiarlo otra vez según así parecía también á Sabino, que se valía del argumento de la corriente de agua, la que en un principio había sido lícito conducirla por cualquier parte, y después que hubiese sido guiada no era lícito cambiarla; lo cual es verdad que también se ha de observar respecto à un camino” (D. 8, 1; fr. 9).


É de ressaltar-se que, além das supracitadas limitações, os romanos obedeciam regra de limitação relativa aos elementos dominiais em geral, que incluía, por certo, as servidões (GERIGE, 2004). Tratava-se do exercício civiliter modo das servidões, ou seja, os antigos povos da península itálica  preocupavam-se em exercer a servidão de modo a não agravar a situação daqueles que as sofressem.


Vê-se, assim, abraçando doutrina de Roberto de Ruggiero (1999), que no fundo, os legisladores romanos partiram da idéia de que as servidões, implicando uma limitação aos poderes normais absolutos do domínio, deveriam conter-se dentro das necessidades de gozo de um prédio. Sendo, então, muito mais útil, sob o ponto de vista social, a liberdade  total das propriedades do que os vários e particulares serviços em que aqueles se pudessem transformar. Da mesma maneira que acontecia com o homem, assim, também, nos prédios deveria ser defendida a  liberdade, que prevalecia sempre sobre a da sujeição, de modo que, quando não havia uma necessidade essencial, o direito ilimitado à propriedade era o  que preponderava.


Na realidade, os limites ao exercício das servidões eram preteridos em eventos especialíssimos, e caso fossem desempenhados fora desses parâmetros estipulados, com a intenção de prejudicar, os romanos reprimiam esses abusos utilizando-se do princípio segundo o qual nemini laedit qui jure suo utitir (aquele que age dentro de seus direitos a ninguém prejudica), que, de acordo com o conspícuo Aguiar Dias (1983), em interpretação a contrario sensu, expressava a moderna teoria do exercício abusivo de direito.


Todavia, como informa-nos Carlos Roberto Gonçalves (2003), por se mostrar esse princípio injusto em certos casos em que era patente o animus laedendi, embora não ultrapassasse o agente os limites de seu direito subjetivo, passou a ser substituído por outros princípios: o nemini ladere e o sumummum jus, summa injuria, que posteriormente foram universalmente aceitos, pois é preceito basilar de toda a coletividade civilizada o dever de não prejudicar a outrem.


Assim, rematando estas afoitas linhas históricas, pode-se dizer, seguramente, que os limites e abusos no exercício da servidão nasceram, com tratamento jurídico específico, no período clássico romano, sendo exato que no Direito Romano já despontavam leis nesse sentido.


Primitivamente, como visto, a propriedade tinha cunho genuinamente religioso, o que, de certo, impossibilitou o surgimento da servidão como instituto jurídico.


No período clássico, com as sensíveis alterações na sociedade e na família romana, brotou a necessidade de edição de leis que regulamentassem o arquétipo do direito de servidão, qual seja, a propriedade.


Essa tendência de se legislar sobre a propriedade desembocou, por ricochete, na regulamentação da servidão, que passou a receber tratamento específico, possuindo princípios e uma faceta limitadora ao seu exercício.


Além disso, como se pôde notar, na ocorrência de excessos no exercício de quaisquer direitos, o que por certo incluía o da servidão, vislumbrava-se, na antiga cidade da Península Itálica, ainda que de maneira rudimentar, uma concepção da doutrina do abuso de direito.


Portanto, à guisa de noções propedêuticas, esta primeira parte do trabalho teve por escopo, fundamentalmente, o de situar a servidão no contexto em que foi concebida, o que pode e deve auxiliar na sua conceituação.


2. CONCEITO


A propriedade, sob uma perspectiva privatista, deve ser entendida como um direito subjetivo do qual se vale um indivíduo para garantir o privilégio exclusivo da exploração de um bem e de impor esta faculdade contra os que eventualmente queiram a ele se opor.


Por outro lado, é certo que os proprietários, desde os mais remotos tempos, não podem utilizar-se desse direito irrestritamente, devendo abster-se da prática de determinados atos e consentir o exercício de tantos outros. Assim, os direitos dos proprietários padecem de restrições nas suas propriedades naturais ou nas faculdades de uso, fruição e disposição (PEREIRA, 2002).


Conseqüência disso é a existência de institutos que derivam do gênero restrição ao uso da propriedade, como é o caso da servidão, que se caracteriza como uma condicionante ao exercício ilimitado da propriedade, ou seja, que reduz o pleno uso desta.


Nesse sentido, os clássicos autores Baudry e Lacantinerie ([19-?], p. 34) afirmam que “la parola servitú ha desgnato anzitutto la restrizione portata alla libertà delle persone, poi quella recata alla libertà die fondi. Il fondo serviente non è leibero, perché il suo proprietario è tenuto a soffrire o a non fare una data cosa, nell’interesse de fondo dominant”.


Em magistério que afina, ponto por ponto, com esse entendimento, os brilhantes Aubry e Rau (1935, p. 629), entendem que “les servitudes (sensu lato), sont des droits réels em virtu desquels une personne est autorisée à tirer de la chose d’autrui une certaine utilité”.


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De maneira semelhante, todavia, buscando dar maior importância à submissão do prédio serviente ao dominante, a autoridade de Alberto Trabucchi (1967, p. 508) revela que “el contenido del derecho de servidumbre se concreta siempre em uma venteja a favor de um fundo y em la restricción del goce de outro; ventaja y restricción constituyen, por tanto, dos aspectos correlativos de la servidumbre”.


Ao revés, na esteira da escola moderna, Windscheid, citado por José Serpa Santa Maria (1998), considera as servidões como direitos reais que sujeitam à coisa, não na totalidade de suas relações, mas apenas em uma ou alguma de suas relações singulares.


No mesmo sentido, Sohn apud Tobenãs (1951) define as servidões como direito limitado de gozo e desfrute da coisa alheia por um sujeito determinado.


No direito pátrio, Lafayette Pereira (1956), ao enfatizar  que a servidão é o direito real constituído em favor de um prédio (o dominante) sobre outro prédio pertencente a dono distinto (o serviente), abraçou a corrente clássica em seu aspecto passivo.


Já Pontes de Miranda (1957), civilista por excelência, ao detectar que as servidões são os direitos reais que conferem ao dono do prédio dominante o exercício de algum dos direitos provenientes do domínio, ou o retiram do proprietário do prédio serviente, pôs em evidência o caráter ativo desse direito acessório.


Ninguém, porém, conceituou o assunto com melhor visão que Spencer Vampré (SPENCER apud CARVALHO; 1991, p. 112), quando, por meio de uma fórmula conciliadora, escreveu que a servidão


“é um direito real, voluntariamente imposto a um prédio (o serviente) em favor de outro (o dominante), em virtude do qual o proprietário do primeiro perde o exercício de algum dos seus direitos dominicais sobre o seu prédio, ou tolera que dele se utilize o proprietário do segundo, tornando este mais útil, ou pelo menos mais agradável.”


Muito embora incline-se pela límpida definição de Vampré, bem da verdade é que, acolha-se a orientação que se acolhe, ou não, a importância dessas acepções estão somente na possibilidade de separação de uma série de elementos que especializam o instituto.


Portanto, desse lapidar conceito, podem-se abstrair os elementos que constituem a servidão, a sua natureza jurídica, os seus caracteres norteadores e a sua finalidade. É o de que cuidar-se-á, por miúdo, nos tópicos seguintes.  


3. ELEMENTOS CONSTITUTIVOS OU DE CARACTERIZAÇÃO


Como entidade jurídica instituída e regulamentada por um conjunto orgânico de normas, a servidão possui e necessita da presença de determinados elementos para que passe a ter existência jurídica. Em outras termos, os seus elementos de caracterização ou constituição são condições indispensáveis para a sua formação e conseqüente validade.


A  propósito de quais sejam esses elementos, a doutrina é, na sua maioria, firme em dizer que a servidão deve ser instituída sobre prédios distintos e vizinhos, que se trate de uma obrigação negativa e que seja estabelecida em proveito de um prédio, sendo, portanto


fato isolado os autores que não diferenciam os elementos constitutivos da servidão dos seus princípios ou regras gerais[2].


 Destarte, em simetria com a melhor doutrina, os elementos configuradores da servidão, como antes anotado, podem resumir-se nos seguintes:


3.1 Instituição sobre prédios distintos


Toda servidão supõe a existência de dois prédios, onde um (prédio serviente) é gravado em proveito de outro (prédio dominante), no intuito de aumentar a utilidade desse último. É impossível a instituição de qualquer servidão quando os prédios não pertençam a proprietários diversos. Com efeito, se uma mesma pessoa possui dois prédios, a ela é franqueado o direito de  utilizá-los da maneira que melhor lhes aproveite.


Essa, aliás, é a idéia que está embutida nas considerações expendidas por Colin e Capitan (1919, p. 834):


“quand une même personne posside deux fonds, ele est libre d’en faire ce qu’elle veut, de se servir de l’un et de l’autre comme elle l’entend, et de créer entree eux tel aménagement qu’elle juge utile. Mais cette utilisation de l’un des fonds pour l’autre n’est pás une servitude. Nemini res sua servit, disaient les jurisconsultes romains”.


Como faz notar Arnaldo Rizzardo (2002), se ambos os imóveis pertencessem ao mesmo dono, desapareceria o ônus, já que o proprietário usufrui na sua totalidade os direitos decorrentes do domínio.


Deste modo, os prédios dominante e serviente, contínuos ou não, mas vizinhos, devem pertencer a proprietários diferentes, sob pena de não ter objeto a servidão (FULGÊNCIO, 1984).


3.2 Prédios vizinhos


O prédio serviente e o prédio dominante devem achar-se  próximos um do outro para que se  exerça a servidão, embora não seja necessária a contigüidade entre os prédios, pois, apesar de não serem vizinhos, um imóvel pode ter servidão sobre outro, desde que se utilize daquele de alguma maneira, ou seja, desde que a servidão, nos dizeres de Aubry e Rau ( 1935), ofereça ao proprietário do prédio dominante uma vantagem apreciável.


É de ressaltar-se, por outro lado, como na maior parte dos casos sucede, que as servidões se estabelecem exatamente entre prédios adjacentes e que para algumas não se concebe situação diversa da contigüidade imediata (RUGGIERO, 1999). Apesar disso, a contigüidade não é, em regra, necessária, devendo os prédios ser vizinhos, no sentido de guardarem tal proximidade que a servidão se exerça em efetiva utilidade do prédio dominante.


Haverá, pois, uma necessidade de vizinhança entre os prédios para que se caracterize a servidão.


2.3 Obrigação negativa


O conteúdo da servidão não pode consistir numa ação humana, isto é, não pode ser um fazer. Como se sabe, um dos critérios que serve de base à distinção entre direitos reais e de crédito consiste, na verdade, em que o fazer é o objeto próprio das obrigações e não dos direitos reais, que para a sua atuação não exige uma atividade de pessoas determinadas, mas implica apenas um dever negativo de todos. Segundo Ruggiero (1999), este dever, que nas servidões pertence principalmente ao proprietário do prédio serviente, exterioriza-se quando a servidão confere ao titular do prédio dominante o direito de exercer alguma faculdade sobre aquele, ou em um não fazer quando a servidão consiste no direito de impedir que determinados atos sejam praticados.


Com base em Coelho da Rocha, José Serpa Santa Maria (1998) recorda que legislação alguma arquiteta a servidão no sentido in agendo por parte do prédio serviente, ainda que admita certas anomalias de serviço ou utilidades a prestar. O encargo, entretanto, pressupõe um crédito, de sorte que o proveito granjeado pelo senhorio do prédio dominante é a contrapartida do encargo.


Tem-se, por conseguinte, que a servidão gera direitos e deveres, mas estes ou consistem numa abstenção, ou em tolerar o exercício de algumas faculdades do dono do prédio beneficiado sobre o prédio subordinado ou serviente (PEREIRA, 2002).


Desnaturar-se-ia, pois, a relação real, mudando-se em relação de obrigação, se dissesse respeito a um facere por parte do prédio serviente.


2.4 Direito estabelecido em proveito de um prédio


Se é certo que a servidão consiste em um dever negativo, mais certo ainda é que ela deve ser estabelecida em proveito do fundo dominante. A servidão é constituída não para a serventia de uma pessoa, mas de um prédio.


Com efeito, para a sua caracterização,  a pessoa que dela se  beneficia é indiferente. Isto porque, o direito à servidão continuará a existir mesmo quando os proprietários tenham mudado, tanto que o prédio dominante e serviente continuarão a subsistir independente de quem tenha a sua propriedade .


Neste sentido manifestam-se Colin e Capitan (1932, p. 686), ao asseverar que “La servitude ne peut être imposée ni à la personne, ni em faveur de la personne, mais seulement à un fond et pour un fond” .


Não será mesmo possível a constituição desse direito em proveito de um proprietário ou de seus sucessores. A servidão não tem por objeto vantagens pessoais, é estabelecida para utilidade do prédio, devendo visar ao valor econômico do fundo dominante e não às vontades individuais dos seus donos.


Aliás, este é um dos motivos porque se diz ter a servidão natureza jurídica de direito real sobre coisa alheia, ou seja, por se tratar de uma relação entre imóveis e não entre pessoas, já que, no concernente à servidão, o ser humano atua apenas por meio de certos atos destinados à conservação.


4. NATUREZA JURÍDICA


Definir a natureza jurídica de um instituto é identificar o seu significado do ponto de vista do direito, determinando a sua identidade e estabelecendo a sua posição no mundo jurídico. Com relação à servidão, trata-se de um“calidoscópio de mil faces” tendo em vista a vacilação da doutrina quanto à fixação dos caracteres necessários à sua compleição.  


Em razão disso, elementos como a perpetuidade, indivisibilidade e inalienabilidade são alçados, pelos mais renomados escritores, ora à categoria de elementos essenciais para que se determine a posição da servidão no direito vigente, ora à qualidade de regras norteadoras do instituto, provocando um verdadeiro “imbróglio” jurídico em torno do assunto. 


José Serpa Santa Maria (1998), civilista por excelência, entende que, além de ser um direito real, a servidão apresenta a natureza de direito acessório, perpétuo e indivisível. Sendo, pois, de estranhar a repetição do requisito “indivisibilidade” quando discorre sobre os postulados fundamentais do instituto.


De maneira semelhante, Maria Helena Diniz (1997) faz alusão a um direito de gozo ou fruição sobre imóvel alheio, de caráter acessório, perpétuo e indivisível, acrescendo, ainda, a condição de inalienável.


Nesse diapasão, Pedro Simões Neto e Joventina Simões Oliveira (1998) vislumbram na servidão um direito real imobiliário, inalienável, indivisível e perpétuo.


Com a devida vênia, inobstante o autorizadíssimo parecer dos eminentes juristas, nota-se que, em alguns aspectos, essas classificações são imprecisas, uma vez que deve haver, por definição, uma diferença entre natureza jurídica e caracteres norteadores. 


Como já dito, discorrer sobre a natureza jurídica da servidão é articular a respeito da sua essência ou substância, posicionando-a na sistemática jurídica. Nesse sentido, não há dúvidas de que a servidão encontra-se situada na esfera dos direitos reais acessórios sobre coisa alheia. Direito real porque se trata de relação entre coisas apropriáveis pelos sujeitos de direito; acessório devido à sua impossibilidade de subsistir independentemente da existência do direito principal de propriedade; e sobre coisa alheia porquanto refere-se a uma relação entre prédios de proprietários distintos.


Sobrepuja-se e realça-se, deste modo, no mais alto grau, a natureza real e acessória desse iura in re aliena (VENOSA, 2002).


Destarte, os caracteres de perpetuidade, indivisibilidade e inalienabilidade são, na verdade, elementos que irradiam da natureza jurídica de direito real que possui o instituto, servindo, apenas, como noções principiológicas de orientação.


Assim, na rima dessa inteligência, Orlando Gomes (1978) pronuncia que a servidão é direito real imobiliário e acessório, tendo em vista onerar prédios independentemente das pessoas a que pertençam e não ter existência autônoma, decorrendo dessa sua condição, a inalienabilidade, a indivisibilidade e a perpetuidade.


Na mesma acepção, em hermenêutica a contrario sensu, o conspícuo Caio Mário da Silva Pereira (2003) pondera que a indivisibilidade, a perpetuidade e a inalienabilidade são “características da servidão”.


Ademais, como logo após será observado, esses caracteres norteadores são uma conseqüência da servidão, passando a existir, tão somente, a partir do momento em que esta restar constituída.


5.  PRINCÍPIOS  FUNDAMENTAIS


Como anteriormente visto, o desapego da doutrina civilista para com alguns conceitos essenciais tem contribuído para o agravamento das imprecisões antes mencionadas. Em geral, não tem sido dada importância a uma rigorosa determinação semântica dos termos empregados, ou, o que é pior, têm-se usado definições erradas para enquadrar determinados fenômenos.


Devem, pois, os princípios ou postulados da servidão ser entendidos como forças orientadoras a que o legislador se sujeita para a solução das controvérsias submetidas a juízo. São regras incorporadas ao instituto, constituindo o substrato das diversas normas positivas que o regem.


Não são, portanto, características que enquadram o instituto da servidão em determinada posição no sistema jurídico, nem muito menos elementos que o constituem, mas sim, idéias básicas que o presidem, atuando apenas secundariamente como elemento definidor da sua essência ou substância.


Desse modo, procurando esquivar-se do conteúdo específico e da disciplina particular que regem as servidões verifica-se que todas elas são conduzidas por diversos postulados que podem ser resumidos, de maneira brevíssima, nos à seguir mencionados. 


5.1 Inseparabilidade


Intimamente relacionado à natureza acessória da servidão está o princípio da inseparabilidade. As servidões ligam-se por vínculo real a imóvel alheio. Destarte, não podem ser destacadas dos prédios, sob pena de se tornarem instituto distinto da servidão.


As servidões, como anteriormente visto, são direitos reais acessórios, que não subsistem sem os prédios. É sua característica, portanto, a inseparabilidade (VENOSA, 2002).


Assim sendo, como gravame imposto sobre um prédio, a servidão necessariamente deve estar condicionada à existência deste, posto que, extinta a propriedade a qual se une,  não mais há de se falar em servidão.


Em outras palavras, esse iura in re aliena une-se de modo duradouro e indeterminável aos prédios.


5.2 perpetuidade


Subsistindo em quanto não ocorrer uma causa legal de extinção, nada mais impede a perpetuidade das servidões. Como prescreve Jéferson Daibert (1973), é ela perpétua no sentido de que tem duração indefinida, ou seja, por prazo indeterminado, perdurando enquanto subsistirem os prédios aos quais se adere. Entretanto, segundo os sempre citados Aubry e Rau (1935), as servidões são perpétuas somente em sua natureza e não em sua essência. Coisa nenhuma impede que se limite a duração deste direito real.


Nesse diapasão, bem explica Roberto de Ruggiero (1999) que apesar da possibilidade de se extinguir esse iura in re aliena por meio de convenção, certo é que a duração da causa da servidão deve ser considerada como requisito para a sua existência, e embora seja conferida extensa liberdade aos proprietários de estabelecerem o que quiserem a cargo ou a favor dos seus prédios, repugna à própria natureza do instituto que uma propriedade (prédio serviente) seja onerada somente pela existência de um serviço passageiro e que atenda necessidades apenas transitórias do prédio dominante.


Em abono, informa-nos Tito Fulgêncio (1984) que podem as servidões se extinguir por convenção, e certos fatos necessariamente as extinguem. 


Portanto, postulado geral que deve ser observado é o da perpetuidade do instituto, posto que, enquanto não ocorrer uma causa legal que o extinga, ele deve  subsistir. 


5.3 Indivisibilidade


 Outra propriedade da servidão é a sua indivisibilidade[3]. Informou Pomponius, em célebre fragmento do Digesto, a fim de se referir à impossibilidade de divisão desse direito real, que “Et servitutess dividi non possijnt; nam earum usus ita conexus est, ut qui eum partiatur, naturam eius corrumpat” (GERIGE, 2004).


De fato, a servidão consiste no direito de fazer ou abster-se  de certos atos absolutamente indivisíveis. Já articulava Tito Fulgêncio (1984) que não se concebe a existência ou o exercício parcial de uma servidão: ou passa-se pelo caminho ou não se passa.


Consoante essa inteligência, dão-nos conta Aubry e Rau (1935)  que


“les servitudes réelles sont indivisibles comme droits et comme charges, em ce sens qu’elles ne peuvent ni s’acquérir ni se perdre par quotes-parts idéales; et em ce que, d’une autre côté, elles sont dues à chaque partie de l´héritage dominant, et affectent également chaque partie de l’héritage servant.”


Assim, tal como resulta dos termos do artigo 1.386 do Código Civil pátrio (BRASIL, 2002), as servidões são indivisíveis e subsistem, no caso de divisão dos imóveis, em benefício de cada uma das porções do prédio dominante, e continuam a gravar cada uma das porções do prédio serviente, salvo se, por natureza, ou destino, só se aplicarem a certa parte de um ou de outro, isto é, se não for instituída apenas em favor de uma parte do dominante, ou se não recair sobre local determinado (BEVILÁQUA, 1979).


5.4 Inalienabilidade


Advindo do condicionamento da servidão a uma constante necessidade do prédio dominante, é inaceitável a cessão da servidão para um outro prédio. Decorre daí, que o proveito retirado da servidão jamais pode ser alargado em benefício de outros prédios, ainda que seja um prédio próprio, caso contrário, como bem faz notar Venzi in Pacifici citado por Ruggiero (1999), desnaturar-se-ia o seu conteúdo, posto que, assim como o uso e a habitação têm em atenção a necessidade e as condições pessoais de quem usa ou habita, da mesma forma as várias servidões recebem um caráter especial, dado pelo prédio a que prestam um serviço. De tal maneira que, como salienta o brilhante Caio Mário da Silva Pereira (2002), o titular do direito de servidão não pode agregar outra pessoa ao seu exercício ou sobre ele constituir novo direito real.


Sendo assim, conforme assinala W. Barros Monteiro (1997), não se pode de uma servidão constituir outra, logo, o titular do domínio do imóvel dominante não tem o direito de ampliar a servidão a outros prédios.


5.5 Impresumibilidade


O último dos aspectos que cumpre analisar, para completar-se o quadro dos princípios que regem as servidões, é o da impresumilidade.


O direito de propriedade, sendo pleno e ilimitado, deve preponderar sobre qualquer forma de limitação que a ele se insurja. Destarte, é a propriedade junto com os direitos que dela derivam sempre presumível.


Por outro lado, como instituto que restringe o seu exercício pleno, a servidão deve ser sempre impresumível. Entendendo-se, assim, que no conflito de provas apresentadas pelo autor e réu, deve-se decidir contra a servidão, porque a interpretação necessita ser stricti juris.


Em acordo com esse juízo, o eminente Silvio Rodrigues (1997) escreve que presumível é a plenitude do domínio. O domínio presume-se pleno, de sorte que a pessoa que alega a servidão deve provar a maneira legal como obteve.


Nesse panorama, o Código Civil brasileiro de 1916 (BRASIL, 2002) estabelece, em seu artigo 696, que “a servidão não se presume”. Inferindo-se, pois, consoante doutrina de Bevilaqua (1979), que como direito real sobre imóvel alheio, a servidão constituída ou transmitida  por atos entre vivos, só se adquire depois da transferência no registro de imóveis.


Desta feita, conclui-se que a servidão possui como uma de suas características norteadoras a impresumibilidade, haja vista ser um direito que tem como uma de suas finalidades a limitação ao uso pleno da propriedade, como em seguida se constatará.


6. FINALIDADE


Descritas a traços largos as idéias basilares que dão prumo ao instituto e delineados a sua natureza jurídica e os seus elementos estruturais, pode-se então esquadrinhar sobre sua finalidade. Pelo já versado, a servidão é um direito real limitativo, porquanto restringe o pleno exercício da propriedade. Nada obstante, ao lado desse desmembramento da propriedade, o qual encerra uma diminuição do seu valor econômico e do seu rendimento possível e normal, ela também confere um certo benefício ao fundo dominante, um aumento de seu valor econômico.


Nesse diapasão, o mestre italiano Roberto de Ruggiero (1999) observa que


“o conceito de limitação não esgota, na verdade, todo o conteúdo jurídico e econômico da servidão, nem se deve tomar como seu aspecto principal, mas antes como a conseqüência necessária do poder conferido a alguém sobre a propriedade de outrem. A servidão – ainda quando tem por causa a lei e mais parece assemelhar-se aos limites legais da propriedade, principalmente naqueles casos que constituem os chamados direitos de vizinhança – distingue-se nitidamente deste e configura-se econômica e juridicamente como uma qualidade das propriedades, vantajosas para aquele que se beneficia do serviço e desfavorável para o que o presta, pelo que na limitação legal faz falta, a par do fenômeno da dependência e da sujeição de uma propriedade à outra, o de um direito real a favor do proprietário do prédio dominante. São pois o incremento e a restrição momentos correlativos, efeito esta daquele.”


De fato, a servidão é um elemento indispensável à organização jurídica da propriedade. Ela facilita a exploração do prédio dominante, permitindo o aumento de sua utilização e ensejando sua conseqüente valorização. Como bem lembra J.W. Hedemann (1955. p. 346), as servidões prediais são “uma pieza imprescindible em el aprovechamiento de la tierra”.


Além disso, as servidões também têm por fim corrigir as desigualdades naturais entre os prédios. Como esclarece Jefferson Daibert (1973), elas devem promover uma presumível igualdade de direitos sobre imóveis, para que a sua utilização  social e econômica seja mais ou menos harmônica. Trata-se, pois, de um elemento de pacificação social.


Destarte, a servidão reduz sobremodo o uso ilimitado da propriedade, se propondo a facilitar a utilização e melhor aproveitamento de um prédio, o que implicará, sempre, em gravame a um outro. Em determinação mais rigorosa, trata-se do resultado da necessidade ou da conveniência do comércio social (ESPINOLA apud PEREIRA, 2002).


Tem-se firme, assim, que seja qual for a espécie de servidão, é da sua essência o aumento da utilização de um prédio, e a diminuição da de outro, o que acarreta a valorização econômica e enseja um aproveitamento eqüitativo.


7. ESPÉCIES DE SERVIDÃO


A classificação dos vários tipos de servidões não se impõe tranqüilamente na doutrina, quer pátria, quer alienígena. Percorre um labiríntico caminho, variando ao sabor da metodologia abraçada ou mesmo em razão da corrente jurídica a que se acompanha[4].


Apesar disso, diversos autores admitem que essas diferenças na classificação não possuem qualquer importância, posto que nelas estão envolvidas as mais freqüentes e de maior importância prática.


Por outro lado, em vez de deixar a questão ao azar da compreensão ou convicção própria, é de bom talante adotar a escorreita classificação do professor Nelson Nery Junior (2002), a qual notabiliza-se pela sua clareza e simplicidade.


Destarte, em conformidade com doutrina do mencionado autor, pode-se classificar a servidão: segundo a forma como é exercida ou de acordo com a espécie de submissão que impõe ao dono do prédio serviente. Assim, quanto à forma, as servidões são urbanas ou rústicas; contínuas ou descontínuas e aparentes ou não aparentes. E quanto à espécie de submissão imposta ao titular do prédio serviente, elas são classificadas em afirmativas ou negativas (NERY, 2002).


7.1 Quanto à  forma


7.1.1 Urbanas ou rústicas


Proveniente do Direito Romano onde possuía grande importância, nos dias de hoje essa classificação é de pouco interesse prático. Não obstante, urbanas são as servidões exercidas no perímetro da cidade. Ou, como preferem Aubry e Rau (1935), quando se constituem em favor de um prédio edificado que encontra-se situado na cidade. Já rústicas são as servidões que campeiam a região rural, ou seja, as que se encontram localizadas fora do perímetro urbano.


7.1.2 Contínuas e descontínuas


Uma servidão contínua é, não aquela que tem seu exercício ou uso continuado, mas aquela que existe independente de um ato humano. Com bastante acuidade, anota Roberto de Ruggiero (1999) que o critério sobre o qual repousa essa distinção é, pois, a continuidade do exercício independentemente de um fato do homem, e não a continuidade ou descontinuidade da posse, que consiste em definição distinta.


Ao contrário, uma  servidão descontínua é aquela que para o seu exercício é necessário um fazer humano, que é forçosamente intermitente. Em outras palavras, seu exercício consiste num fazer sucessivo por parte do proprietário do prédio dominante sobre o serviente. É exemplo dessa espécie, a servidão de passagem.


7.1.3 Aparentes e não aparentes


As servidões aparentes são as que se exteriorizam por meio de atos visíveis, ou seja, são as que se anunciam por sinais exteriores (servidão de aqueduto). A servidão não aparente é a que, ao contrário, não se revela por atos visíveis (a servidão de não construir a certa altura).


Do mesmo modo, prescinde também esta distinção da aparência ou da falta de aparência da posse, não existindo relação alguma entre a aparência da servidão e a publicidade da sua posse; tudo se fundamentando sobre elemento material, a existência ou não-existência de sinais exteriores e visíveis, que segundo a natureza da servidão poderão encontrar-se no prédio dominante ou no serviente (RUGIERRO, 1999).


Esclarece José Serpa de Santa Maria (1998), com muita propriedade, que a classificação das servidões em aparentes e não aparentes pode combinar com a divisão das servidões em contínuas e descontínuas, resultando em outras espécies: a) servidão contínuas aparentes ( aqueduto); b) contínuas e não-aparentes (o de não construir a certa altura); c) descontínuas e aparentes (servidão de trânsito); e d) as descontínuas e não aparentes (a retirada de água, sem via própria visível).


Diga-se, desde já, que essa combinação de classes terá importância capital na  constituição e extinção das servidões.


7.2 Quanto à espécie


7.2.1 Positiva e negativa


Por fim, as servidões são, segundo sua espécie, afirmativas ou negativas. São positivas quando autorizam o proprietário do prédio dominante a praticar determinados atos sobre o prédio serviente. Ao revés, serão negativas quando impossibilitam o proprietário desse último prédio de exercer certos atos de propriedade. Em resumo, a servidão positiva seria o direito de praticar atos sobre outros prédios, e a negativa seria o benefício através de uma abstenção.


Sucede, assim, que a distinção dessas espécies assume, como antes dito, relevante interesse, notadamente sob o aspecto das peculiaridades de que se reveste cada espécie. Isso porque, como adiante se verá, regras dessemelhantes serão adotadas quanto à sua constituição.


 Deste modo fixado, segundo o mais abalizado entendimento, para  a classificação das servidões, parece oportuno tecer determinadas considerações sobre a sua constituição.


8. CONSTITUIÇÃO DAS SERVIDÕES


Como instituto que restringe e limita o direito de propriedade em razão da sua finalidade econômica ou social, a constituição das servidões, à luz da dogmática moderna, deve ser sempre vista com reservas. Em razão disso, como já visto, o direito a este ônus real é impresumível, de sorte que, para possuir validade erga omnes deve ter a sua composição registrada.


Assim sendo, independentemente da espécie de servidão, deve-se procurar aplicar as regras comuns do Registro de Imóveis, já que a sua constituição é sempre uma alienação parcial do direito de propriedade (PEREIRA, 2002)[5].


Destarte, seguindo caminho tracejado pela doutrina e pelo atual Código Civil[6], a constituição da servidão pode ocorrer através de atos voluntários ou externos. Os primeiros compreendem a constituição por meio de contrato (ato bilateral), testamento (ato unilateral) e por destinação do proprietário. Os segundos abrangem a constituição por sentença homologatória e através da prescrição aquisitiva.


8.1 Constituição por atos voluntários


8.1.1 Contrato (ato bilateral)


Observadas a capacidade genérica para contratar e a capacidade de dispor sobre um determinado bem, qualquer pessoa pode, mediante contrato levado a registro, convencionar a respeito desse direito real limitado. Seja qual for a sua espécie, todas as servidões podem ser constituídas por contrato, que é, no estado atual do direito, o modo mais prático e usual de aquisição.


Colin e Capitan (1932), em lição por toda axiomática, entendem ser condições específicas para que haja a instituição da servidão por contrato: que o alienante seja proprietário da coisa transferida, pois o contrato firmado sobre  propriedade de outrem é irrealizável; e que a propriedade seja ao menos determinável, porquanto se for o bem indeterminável há uma impossibilidade natural de que o efeito translativo de domínio se produza.


Por outro lado, adverte Maria Helena Diniz (1997) que tal ato jurídico deve ser sempre oneroso, porquanto o proprietário do prédio serviente é indenizado pela restrição que é imposta ao seu domínio.


Em igual sentido, argumentam os precitados A. Colin e H. Capitan (1932) que “la constitution d’une servitude contre argent au profit d’un fonds voisin n’est pas autre chose qu’une vente de servitude. S’il y avait constitution de servitude à titre gratuit, ce serait une donation”.


Com a devida vênia, pelos termos desenganados com que os eminentes juristas concluem o seu raciocínio, qualquer contrato a título gratuito estaria fadado à inexistência, se tornado mera doação. Destarte, melhor se procede acolhendo entendimento que sufraga pela constituição gratuita ou onerosa desse ato bilateral[7].


8.1.2 Testamento (ato unilateral)


A constituição desse iura in re aliena também pode ser levada a efeito através de um ato unilateral, ou seja, por testamento. Tal ato constitutivo ocorre quando o testador deixa gravado ao beneficiário a constituição de uma servidão.


Segundo a doutrina, existem dois modos de se efetivar a constituição da servidão por testamento: o primeiro modo é quando a peça testamentária defere a um beneficiário a titularidade de um prédio e, em função disso, o direito de exercitar servidão sobre um outro; e o segundo modo ocorre quando se estabelece, no testamento, uma servidão em benefício do prédio vizinho.  


É de acrescentar-se que o beneficiário não recebe o imóvel gravado, pois em tal caso trata-se de servidão já existente que se mantém perpétua. 


8.1.3 Destinação do proprietário ou do pai de família


Essa forma de constituição ocorre quando um primitivo proprietário, que é dono de dois prédios gravados por uma serventia, aliena um deles, passando, então, a constituir verdadeira servidão o que antes era  uma mera serventia.


Como salienta Lafayette Pereira (1956), se o senhor de dois prédios estabelece sobre um deles serventias visíveis em favor de outro e posteriormente aliena um deles, ou um e outro passam por sucessão a pertencer a donos diversos, as serventias estabelecidas assumem a natureza de servidões, salvo cláusula expressa em contrário. 


A lei brasileira não tem um dispositivo que especificamente regule o assunto, o que, de certo, não impediu que a maioria da doutrina[8] conjecturasse e aceitasse a existência dessa espécie de instituição no direito pátrio. Todavia, uma minoria de juristas apegada ao esmero entende não criar a destinação do pai de família (como prefere chamar a doutrina francesa) uma verdadeira servidão, ao argumento de que esta só se constitui quando há a separação do domínio entre proprietários diferentes, após a sucessão ou a alienação.[9]


Por sua vez, segundo Maria Helena Diniz (1997), a jurisprudência pátria tem reivindicado como requisito para que se adquira a servidão por esse meio, que esta seja aparente, no intuito de proteger a boa fé do adquirente do imóvel dominante. 


8.2 Constituição por atos externos


8.2.1 Usucapião


O Código Civil vigente, que regula a hipótese de usucapião, dispõe em seu art. 1379, que “o exercício incontestado e contínuo de uma servidão aparente, por dez anos, nos termos do art. 1.242, autoriza o interessado a registrá-la em seu nome no Registro de Imóveis, valendo-lhe como título a sentença que julga consumado a usucapião”(BRASIL, 2002). Necessário, pois, para que a posse dê lugar à aquisição da servidão por usucapião, os mesmos elementos levados a cabo para a aquisição ad usucapionem da propriedade. 


Do mesmo modo, o mencionado artigo induz a admitir, também, que só as servidões aparentes e contínuas são passíveis de aquisição por usucapião. Isso porque apenas a posse  pública pode ser percebida e, conseqüentemente, ser capaz de ensejar  aquisição desse direito real pelo usucapião.


De tal maneira que, não se manifestando por sinal visível incessante, a servidão não-aparente repele a idéia de posse, condição fundamental de todo usucapião (FUGÊNCIO, 1984).


Aliás, segundo Arnoldo Wald (1995), a jurisprudência tem entendido, numa interpretação construtiva, que as servidões não-aparentes apenas podem existir quando registradas, sendo insuscetíveis de usucapião; e as servidões aparentes necessitam ser registradas mas, quando oriundas de usucapião ou de direito hereditário, o registro é exclusivamente probatório e não constitutivo do direito.


Noutra marcha, objeções foram lançadas no passado sobre a possibilidade de caber, no caso das servidões de trânsito,  a constituição por usucapião. Estas, por se limitarem ao direito de passar, seriam não aparentes e, como tais, suscetíveis de se constituírem tão-somente por título inscrito (PEREIRA, 2002).


Na verdade, o assunto ou pendência não resistiu a uma análise minudente, sendo hoje acolhida expressamente a regra de que a servidão de trânsito não titulada, mas tornada permanente, sobretudo pela natureza das obras realizadas, considera-se aparente, conferindo direito à proteção possessória (súmula 415 do STF).


8.2.2 Sentença Homologatória.


As servidões procedentes de atos externos podem ser estabelecidas não somente por usucapião, mas, também, pela sentença homologatória de divisão e demarcação de terra.


A sentença homologatória do processo de divisão de imóveis irá pôr fim à comunhão hereditária, criando, regra geral, uma divisão na antiga propriedade, que desaguará, após transcrição, no surgimento de novíssimos direitos reais.


Nada obstante, antes da referida homologação, deverá ser observada, na chamada “divisão geodésica do imóvel”, a possibilidade de se estabelecerem servidões prediais. Estas terão lugar quando imprescindíveis para o melhor aproveitamento do prédio que tenha, porventura, o seu uso limitado em virtude da composição dos quinhões. [10]


O artigo 979, II, do Código de Processo Civil (BRASIL, 2002), é o fulcro dessa inteligência, pois determina que serão instituídas as servidões que forem indispensáveis, em favor de uns quinhões sobre os outros, incluindo o respectivo valor no orçamento para que, não se tratando de servidões naturais, seja compensado o condômino aquinhoado com o prédio serviente.


A sentença homologatória, portanto, em face da lei invocada, poderá, nos casos em que for indispensável, instituir servidão.


Por fim, não é indispensável indicar, com apoio nos artigos 1.387, 1.388 e 1.389 do Código Civil pátrio (BRASIL, 2002), que as servidões podem se extinguir: a) quando o titular houver renunciado a sua servidão; b) quando tiver cessado, para o prédio dominante, a utilidade ou a comodidade, que determinaram a constituição da servidão; c) quando o dono do prédio serviente resgatar a servidão; d) pela reunião dos dois prédios no domínio da mesma pessoa; e) pela supressão das respectivas obras por efeito de contrato, ou de outro título expresso; e f) pelo não uso.[11]  


Portanto, constituída a servidão, seja pela forma que for, cumpre observar que o seu exercício nunca deverá ser praticado sem qualquer parâmetro. Com efeito, em sendo a servidão uma espécie de limitação ao uso pleno da propriedade, ela deve ser exercida, sempre, em harmonia com esta, sob pena de comprometer o seu uso e tornar injusto o direito de propriedade. Assim, logo adiante, serão esmiuçados os limites que balizam o exercício da servidão, que é a  pedra de toque da presente pesquisa monográfica.


9. LIMITES NO EXERCÍCIO DAS SERVIDÕES


Conforme antes esclarecido, a propriedade, numa concepção clássica, deve ser entendida como um direito absoluto[12] de uso, gozo e disposição sobre um bem, em que há uma subordinação de uma coisa a uma pessoa.


É certo, de outra parte, que a sociedade reconhece, modernamente, ao lado desse direito pleno e individual, um direito social da propriedade sem o qual não se pode viver harmonicamente, devendo aquele (direito individual), por isso, ser exercido com cautela para que não venha tolher as mesmas faculdades que assistem a coletividade. Por este modo é que a linha limítrofe do direito de cada um é o direito dos outros e todos esses direitos são respeitados por força dos deveres que lhes correspondem (RÁO, 1999)  .


Planiol e Ripert (1952, p. 802),  juristas que o tempo valoriza, já ressalvaram, em meados do século passado, que


“La société, a-t-on dit, reconnaît des drois à l’individu, mais la collectivité, sans laquelle il ne peut vivre. Elle lui reconnaît des droits parce qu’elle, de son côté, a besoin des individus, mais ils doivent les exercer conformément à leur but social, et comme des fonctions sociales. La loi précise dans une certaine mesure leur portée et leur fixe des limites. Les droits d’1ailleurs, ne sont pas sans limites.”


Destarte, dentro desses limites impostos ao direito absoluto de propriedade está inserto o direito de servidão, que condiciona a utilização do prédio serviente a suportar determinados comportamentos (não fazer) praticados pelos usuários do prédio dominante, ou seja, que lhes facultam exercer sobre o fundo serviente certos atos de uso, em razão do atual fim social que resguarda a propriedade.


Jefferson Daibert, (1973) a respeito, preleciona que o exercício das servidões estabelece aos donos do prédio dominante e do prédio serviente direitos e obrigações que ao mesmo tempo restringem ou diminuem o uso e gozo do direito de propriedade do dono do prédio serviente e aumentam e facilitam o uso e gozo do dono do prédio dominante.


Diante disso, como instituto que limita um direito que é “absoluto”, a servidão deve ser contemplada restritivamente, decorrendo, daí, que os pilares[13] sustentadores deste direito real estão postos, de um lado, no sentido de reduzir o uso integral do prédio serviente sem que recaia sobre este um demasiado prejuízo, e, de outro, no desígnio de ampliar a utilização do prédio dominante sem causar excessivas perdas ao fundo serviente.


A esse respeito, aliás, é de clareza ímpar os ensinamentos de Arnaldo Rizzardo (2002) ao escrever que se deve procurar onerar com o menor encargo possível o prédio serviente. O imóvel, em tese, se presume livre, o que leva a exigir maior respeito da parte de outrem. O titular do benefício encontra percalço legal para o emprego da servidão em outras finalidades, dada esta presumida liberdade, que se afirma como princípio inspirador dos direitos do proprietário de usar, gozar e dispor de seus bens da maneira que melhor lhe prouver.


 Entretanto, pode ocorrer que o proprietário do prédio serviente tenha o seu direito lesado pelo do prédio dominante quando este exceder o seu direito de exercício de servidão, ou, em outras palavras, quando agravar o encargo sobre o serviente sem que tal lhe seja permitido. Dessa assertiva, pois, cabe indagar: até onde pode-se limitar o direito de propriedade em benefício de uma servidão? Ou melhor, quais os limites no exercício de uma servidão?


Vislumbrando a possibilidade do exercício da servidão ultrapassar as raias do normal, a doutrina, legislação e jurisprudência têm procurado traçar limites ao uso das servidões com o propósito de assegurar a função econômica e social da propriedade, ou mesmo no intento de evitar atos ilícitos ou abusivos.


Nesse sentido, há tempos os juristas das mais diversas quadras têm doutrinado sobre o assunto, sendo uma verdade irreplicável que já no direito romano eram concebidas algumas formas através das quais podia ser limitado o exercício das servidões.


À época, como se pôde constatar nos prolegômenos, a utilização da servidão de acordo com o menor transtorno (uso civiliter modo) e a previsão do conteúdo no seu ato constitutivo eram as formas previstas para contornar as dificuldades de um demasiado embaraço sofrido pelo titular do fundo serviente no seu direito de propriedade.


Com o passar dos séculos, surgiu a necessidade de se aperfeiçoar a abrangência desses limites, no escopo de absorver uma nova gama de situações exigidas pelo progresso da sociedade, pois, como bem escreve Tercio Sampaio Ferraz Jr. (2003), o sistema jurídico tem caráter dinâmico, captando as normas dentro de um processo de contínua transformação. Normas são promulgadas, subsistem no tempo, atuam, são substituídas por outras ou perdem sua atualidade em decorrência de alterações nas situações normadas. O sistema é apenas uma forma técnica de conceber os ordenamentos, que são um dado social. Em outros termos, o direito enquanto um sistema social, essencialmente decorre da natureza humana, é uma força social em sua origem, em sua essência e em sua finalidade.


Hoje em dia, analisando os limites ao exercício da servidão à luz da cumulação dos conhecimentos surgidos ao longo dos séculos, vê-se que eles são, com algum desenvolvimento de fundo, quase os mesmos existentes em períodos passados, razão pela qual se faz necessário analisar, primeiramente, a instituição do objeto (conteúdo) da servidão e o seu exercício de modo civiliter, para só depois se tecerem algumas considerações sobre os novos componentes que deles advieram.


9.1 O objeto e o exercício civiliter modo


Como se viu, no Direito romano, o proprietário do prédio dominante poderia exercer todas as faculdades que integrassem o conteúdo do direito de servidão, pois no seu ato constitutivo podia-se determinar, precisamente, o modo de seu exercício.


 Aí a semente de uma proteção que sempre se deveu à propriedade, e que  proliferou-se por todos os sistemas jurídicos advindos posteriormente, tanto que, atualmente, esse elemento limitador das servidões é encontrado positivado nas mais diversas legislações. 


 O conteúdo, ou como se prefere, o objeto da servidão, é tudo aquilo cujo exercício se permite. Nele está inserto, explicitamente, para que serve a servidão e, implicitamente, qual a maneira que se deve exercê-la, emergindo daí que as servidões não têm seu objeto ou conteúdo ilimitado, não se podendo, por meio deste, extrair um aproveitamento pleno e irrestrito do seu exercício.


Como bem explica o festejado jurista alemão J. W. Hedemann (1955, p. 345), “las servidumbres prediales tienen limitado su contenido; no hay un aprovechamiento pleno, sino orientado solo en una dirección determinada, por ejemplo, un derecho de paso. Es decir, la limitación se produce aquí en cuanto al contenido”.


É preciso deixar ressaltado, e aqui são aplicados os ensinamentos de José Serpa de Santa Maria (1998), que sendo a servidão constituída para beneficiar prédio alheio, o objeto de seu exercício se encerra dentro de sua delimitada natureza, definida pelo título de sua constituição. De tal modo que, através desse objeto, pode-se, por ilação, definir a maneira como deve a servidão ser exercida, como também, deduzir ser o conteúdo elemento limitador do exercício, posto que este só pode ir até os limites assentados naquele[14].


Válido, neste passo, que se tragam as observações de Pontes de Miranda ( 1957) sobre o assunto, pois segundo o eminente jurista, o objeto (conteúdo) enche o direito, ao passo que o exercício projeta-o. O exercício pode não ser correspondente a todo o objeto, todavia, não deve excedê-lo. No título ou na posse delimitam-se o objeto e o exercício da servidão; mas este há de conter-se naquele, posto que para além da projeção normal do objeto da servidão, o exercício é ilícito ou abusivo.


Bem verdade que tudo pode parecer um jogo de palavras, mas não há dúvida ser fundamental notar que o objeto da servidão está regulado pelo título ou pela posse, que, por conseqüência, também lhe regula o exercício. Como bem escreve o antes mencionado Miranda (1957), os limites do objeto podem não ser os do exercício mas os do exercício deverão de estar dentro daqueles.


A conclusão, portanto, é a seguinte: devendo a servidão ser exercida nas cercanias do seu objeto, que é estabelecido pela posse ou ato constitutivo, infere-se, exceptis excipiendis[15], que o objeto limita o seu exercício.


É ainda importante lembrar, com apoio na doutrina romanista, que sendo esse  direito real sobre coisa alheia exercido em compasso com o seu objeto, o dono do prédio dominante estará agindo conforme lhe é de direito, ou seja, dentro dos fins previstos e necessários. Assim, quando se atua dessa forma, diz-se que a servidão foi exercida de modo civiliter, ou seja, causando o menor prejuízo possível.


 Nesse sentido é que J. W. Hedemann (1955, p. 350), a quem a questão interessou, aponta que “en cuanto a fijar el alcance de sus facultades, habrá que estar al deber de observar uma conducta ordenada establecido por el princípio civiliter uti”.


Não é outro o ensinamento de Alberto Trabucchi (1967), ao asseverar que em todo caso aplicar-se-á o critério de que a servidão será exercitada civiliter, isto é, da melhor maneira que se possa satisfazer ao fundo dominante, causando, ao mesmo tempo, o menor prejuízo ao  serviente. [16]


Durante a vigência do Código Civil de 1916 (BRASIL, 2002), o exercício civiliter uti sujeitava-se à regra do art. 704 daquele diploma, situado sob o capítulo “da constituição das servidões”, cujo teor era o seguinte: “Art. 704. Restringir-se-á o uso da servidão às necessidades do prédio dominante evitando, quanto possível, agravar o encargo ao prédio serviente” (acrescentado) .


Pelo Novo Código (BRASIL, 2002), a referida questão passou a ser tratada sob a rubrica “do exercício das servidões”, no art.1.385, in verbis: “Art. 1.385. Restringir-se-á o exercício da servidão às necessidades do prédio dominante, evitando-se, quanto possível, agravar o encargo ao prédio serviente” (grifo nosso).


Como se vê, o artigo 1.385 do Código Civil de 2002 possui o mesmo conteúdo do seu arquétipo de 1916, havendo, apenas, uma alteração metodológica quanto ao seu enquadramento no sistema, já que foi criado um capítulo específico sobre o exercício da servidão. No que se  refere ao termo “uso”, adotado pelo Código de 1916, o legislador de 2002, por amor à melhor técnica, achou por bem substituí-lo pelo vocábulo “exercício”. No mais, tanto o Código revogado quanto o vigente buscaram nos aludidos dispositivos fazer menção ao exercício civiliter quando encartaram nos núcleos respectivos a intenção de se evitar, quanto possível, o agravamento  do encargo ao prédio serviente. 


Clóvis (1979), em seus Comentários ao Código Civil, diz, a propósito do artigo 704, o seguinte: a servidão deve ser exercida civiliter, como prescreviam as fontes romanas. Restando claro que sendo ela uma restrição ao direito de propriedade do dono do prédio serviente, não poderia ficar ao arbítrio do titular ampliá-la, segundo melhor lhe parecesse.


Denota-se, pois, que não basta que a servidão seja exercida de acordo com o objeto para que foi instituída, é necessário, ainda, que o dono do prédio dominante atue procurando, sempre, causar o menor transtorno possível ao prédio serviente. Destarte, ao não exercer a servidão suo iure civiliter uti, estará o proprietário do fundo dominante ultrapassando o limite do “exercício menos oneroso”, e atingindo, conseqüentemente, a esfera do ilícito.


À vista do exposto, pode-se, então, estabelecer que o exercício da servidão de modo civiliter, bem como, o seu objeto são, desde tempos antigos até os dias atuais, elementos que limitam o exercício das servidões.


9.2 A finalidade e a necessidade


Uma vez estabelecidos os iniciais elementos demarcadores do exercício das servidões, é adequado discorrer, nesse momento, a respeito do surgimento de outros que deles derivaram e que são de fundamental importância para se especificarem todos os componentes restritivos ao uso da servidão.


A doutrina, após análise da forma e do exercício civiliter, encontrou neles presente, intrínseca e extrinsecamente, a existência dos elementos “necessidade” e “finalidade” que independentes daqueles poderiam ser utilizados no momento da verificação dos  limites da servidão. 


Compreendeu-se, assim, que o seu exercício deveria ficar adstrito às necessidades para que foi instituída, como também à finalidade a que se propôs.


Apesar disso, em razão da tênue linha que os diferençava e colocava-os em posição similar, a tarefa de distingui-los foi bastante árdua, dando ensejo a nebulosas e por vezes ineficazes conceituações, o que, por certo, fez com que a doutrina moderna se ressentisse desse racha, não sendo poucos os autores que, ainda hoje, se embaraçam no trato do assunto.


Nesse sentido é que, procurando afastar-se desse movediço campo conceitual, traz-se à baila, em preliminar escusatória, exemplo prático que se pretende esclarecedor do tema em apreço.


Pois bem, imagine-se que o dono de um prédio “A” (prédio dominante) para chegar a um povoado “C”, sem percorrer longuíssima distância, deve passar pelo prédio “B” (prédio serviente), supondo-se que, para tanto, foi instituída uma servidão de passagem.


 Pergunta-se, então: Para qual necessidade e para que finalidade foi constituída essa hipotética servidão ?


Em resposta a essas indagações, ter-se-ia como necessidade da mencionada servidão de passagem o encurtamento da distância percorrida pelo dono do prédio “A” (dominante) para se chegar ao povoado “C”, e como finalidade  o deslocamento para o povoado no menor tempo.


Assim, para se atingir a finalidade pretendida, qual seja, chegar ao povoado “C” sem percorrer longuíssima distância, é necessário que o dono do prédio “A”(dominante) atravesse a menor extensão existente, que é, no caso, a traspassada pela propriedade do dono do prédio “B”(serviente) por meio de uma servidão de passagem.


Trazida a lume essa distinção, percebe-se, ainda que de forma precária, que os elementos finalidade e necessidade, de uma maneira ou de outra, servem de parâmetros para que se exerça uma servidão. Sucede, entretanto, que só uma análise penetrante de cada um deles pode indicar em quais perspectivas e extensão  isso acontece.


9.2.1 O elemento da finalidade e a sua função limitadora


Percutindo sobre a finalidade, enxerga-se que a sua importância está em saber para que foi constituída a servidão, e qual o benefício obtido pelo prédio dominante. Quando, por exemplo, o dono do prédio dominante tem o direito, de acordo com o título constitutivo, a servidão de água para regar cultura, salta à vista que essa servidão foi instituída com a única finalidade de regar cultura. E caso ocorresse que além de regar cultura o dono do prédio dominante estivesse se utilizando d’água para regar plantas ornamentais, o fim para a qual foi constituída estaria sendo extravasado.


  Ora, não é possível que uma servidão estabelecida para um determinado fim se exerça além desse, ou seja, para um outro fim que não o previsto. Como copiosamente explicitado, a servidão é instituto limitador do direito “absoluto” de propriedade, devendo seu uso ocorrer de maneira restritiva sem que onere excessivamente o prédio serviente.


Com efeito, Arnoldo Wald  (1995) entende que não pode existir mudança na intensidade nem na finalidade no exercício das servidões. A servidão constituída para um fim não pode ser utilizada para outro.


 Tal matéria, tratada no Código Civil de 1916 (BRASIL, 2002), no parágrafo único do artigo 704, vem agora disciplinada no parágrafo 1º do art. 1385, do novo Código Civil, com a seguinte redação: “Art. 1385 (…) § 1° constituída para certo fim, a servidão não se pode ampliar a outro”.


Nessa previsão, outro não pode ser o entendimento senão o que proferiu Pontes de Miranda (1956), no sentido de afirmar ser fim o elemento limitador do exercício da servidão, porquanto se diz, dentro do que é útil, o que, concretamente, interessa ao prédio dominante.


 Dessa forma, o exercício das servidões deve alcançar a finalidade para a qual foi estabelecida e nada mais além. 


9.2.2 O princípio do limite ao necessário


No que tange ao elemento necessidade, urge destacar que devem as servidões ser exercidas até os limites da sua razão de ser, ou seja, de acordo com as necessidades sem as quais a servidão seria impossível.


No caso, por exemplo, da servidão de água antes figurada, viu-se que ela foi instituída com a finalidade de regar cultura. Suponha-se que para atingir esse desiderato, fossem necessários  3.000 litros d’água. Ora, esses 3.000 litros d’água são o que necessita o dono do prédio dominante para atingir o fim desejado (necessidade), e sem os quais seria impossível alcançá-la de forma eficaz.


Como se vê, se não fosse facultado ao dono do prédio dominante atuar em conformidade com o necessário, a servidão afigurar-se-ia incompleta ou mesmo inexistente, pois  a necessidade consiste na sua razão de ser.


 Por outro lado, não sendo limitado o exercício da servidão ao necessário, ela estaria a onerar demasiadamente o prédio serviente, indo de encontro ao direito “absoluto” de propriedade. 


Dessa forma, percebe-se, sem maiores dificuldades, que  o pressuposto da utilidade ou da necessidade se apresenta fundamental, pelo que não se aconselha sua dispensa (MIRANDA, 1956).


Esse, aliás, é o fulcro da inteligência do art. 1.385, caput, do Código Civil atual (BRASIL, 2002), que possui a seguinte redação: “Art. 1.385. Restringir-se-á o exercício da servidão às necessidades do prédio dominante, evitando-se, quando possível, agravar o encargo ao prédio serviente” (acrescido).


Na verdade, é manifesto o propósito desse dispositivo, pois, como esclarece Clóvis Beviláqua (1979) em escólio ao idêntico artigo 704 do velho estatuto[17], sendo a servidão uma restrição ao direito de propriedade, o dono do prédio serviente terá de exercê-la, segundo o seu título, dando-lhe, restritivamente, a extensão exigida pelas necessidades do prédio dominante.


Assenta-se, pois, que a necessidade também limita o exercício da servidão, porquanto não é crível nem tão pouco provável que se diminua o valor do prédio serviente, sem que disso obtenha qualquer vantagem o fundo dominante. A necessidade deve ser sopesada quanto ao conteúdo da servidão e quanto ao seu exercício.


Portanto, na rima das lições de Laurent, citado por Carvalho Santos (1991), a servidão poderá ser usada para todas as necessidades que tiverem sido previstas no ato constitutivo e aquelas outras resultantes de uma aplicação virtual, oriundas de fatos ou circunstâncias que as partes deveriam prever no seu ato constitutivo.


Digna de nota, nesse momento singular, é a observação feita por Pacifici e Mazzoni, citados por Carvalho Santos (1991), relativamente ao estabelecimento das servidões em termos gerais, pois, segundo os mencionados juristas, se a servidão é constituída de maneira genérica, poderá ser exercida para todas as necessidades do prédio dominante. Donde se conclui que, em casos tais, a servidão poderá ser usada seja para as necessidades mais extensas do gênero para as quais foi estabelecida, seja para as necessidades diversas a que a servidão possa, por sua natureza, satisfazer.


Pois bem, analisada a questão da necessidade como limite ao exercício da servidão, há de se ter em conta como fixar a extensão daquelas necessidades do prédio dominante.


Na rima da lição de Aubry e Rau (1935), carece ser  examinada, para ser fixada a extensão das necessidades, a época em que a servidão foi constituída, pois  o benefício de uma servidão não deverá ser aplicado por via de extensão a prédios que o proprietário do dominante haja a este ulteriormente reunido.[18] [19]


Pacifici e Mazzoni, citados por Santos (1991) com o mesmo fito, porém sob outra perspectiva, argumentam que as partes contratantes ou o disponente só podem contratar a respeito das necessidades do prédio existente no tempo da constituição da servidão, não se conhecendo que sua vontade alcance coisas ignoradas. [20]


Nesse sentido é que Pontes de Miranda (1957, pág. 370), com o brilho de sempre, proferiu lição cujo teor é o seguinte: “a extensão da servidão precisa ser determinada, para que sobre ela não haja dúvida. Se se lhe atribuir conteúdo maior do que aquele que se deduzira do direito de propriedade, agrava-se a servidão”.


Todavia, por esmero, é bom expor, na esteira do sempre referido Pontes (1957), que a extensão e o modo de exercício podem mudar com as circunstâncias, sempre que respeitados os princípios norteadores das servidões, e que na dúvida sobre a extensão ou a forma do uso, tem-se de procurar conhecer quais as necessidades do prédio dominante e qual o ponto em que se começa a prejudicar o prédio serviente.


Desse modo, exceções à parte, vê-se que o tempo em que ficou instituída a servidão é elemento categórico para determinar a extensão das suas necessidades.


9.2.3 Necessidade x  adminicula servitutis


É importante ressalvar  que há uma  distinção entre  a necessidade da servidão e os atos necessários ao seu exercício (adminiculas servitutis). Aquela diz respeito ao motivo de se constituir a servidão, já esta refere-se aos atos indispensáveis ao seu uso.


Quando, por exemplo, é necessário para o exercício de uma servidão d’água que o dono do prédio dominante tenha que passar por caminho dentro da propriedade serviente a fim de que possa retirar a necessária água para regar suas culturas, diz-se que esse ato de utilizar uma acessória servidão de caminho para conseguir retirar a água é uma adminiculas servitutis.


Veja-se que não se trata de um limite ao exercício da servidão, mas apenas de um  meio acessório e necessário que possui o dono do prédio dominante para atingir o fim pretendido, pois se lhe fosse  negado praticar tal ato seria impossível, ou ao menos dificultoso, atingir a finalidade almejada.


Robustecendo tal convicção jurídica, o artigo 1.380, do Código Civil vigente (BRASIL, 2002) preceitua que: “Art. 1.380. O dono de uma servidão pode fazer todas as obras necessárias à sua conservação e uso, e, se a servidão pertencer a mais de um prédio, serão as despesas rateadas entre os respectivos donos[21].


Em brilhante passagem de seus comentários ao Código Civil de 1916, Clóvis Bevilaqua (1979) é categórico ao dizer que o dono da servidão tem o direito a tudo quanto é necessário ao exercício dela. São as adminicula servitutis.


Raciocinando de igual forma, Washington de Barros Monteiro (1997) entende que para o dono do fundo dominante atingir os fins pretendidos com o estabelecimento da servidão, se torna preciso que lhe concedam também os meios necessários. Mais uma vez presentes as adminicula servitutis. [22]


Articulando as últimas palavras sobre o assunto, pode-se concluir, com apoio em José Lopes Oliveira (1980), que o direito real de servidão deve ser exercido em consonância com a finalidade para a qual foi estabelecida. Isso significa dizer que o direito de servidão compreende tudo quanto se afigura necessário ao seu exercício. Assim, o dono de uma servidão tem o direito de fazer todas as obras necessárias à sua conservação e uso. Mas, para atingir o fim desejado pela servidão, devem ser fornecidos ao dono do prédio dominante os meios adequados. De novo as adminicula servitutis.


Enfim, nada mais são do que os atos necessários para se alcançar o correto uso das servidões. E pensar de outra forma seria pensar errado.


9.3 Os costumes são elementos que limitam o exercício da servidão?


Algumas mentes mais antigas puseram os costumes no rol dos elementos limitadores do exercício das servidões, o que, de certo, representou um descuido. Afirmaram autores de alto quilate que além do objeto, do uso civiliter modo, da finalidade e da necessidade, os costumes seriam elementos restritivos, pois em se tratando de atos que devem ser praticados conforme a moral, a razão e a ordem pública (bons costumes), necessitam ser observados no momento do exercício das servitudines.


Nesse caso estão os costumes entendidos não como fontes do direito em sentido objetivo, em que o uso e as práticas repetitivas de certa conduta são elementos constitutivos, mas sim na sua concepção subjetiva de convicção ou consciência que tem a comunidade de se adequar à conduta praticada (MACHADO, 2004).


Para melhor compreensão, tome-se um excêntrico exemplo de uma servidão de passagem onde os pedestres sempre andem vestidos e que em determinado momento alguém resolva percorrê-la sem roupa. Como parece, os bons costumes locais não foram observados, razão pela qual o exercício da servidão excedeu os limites do razoável.


Na defesa dessa tese, deve-se trazer a lume as palavras arrojadas de Aubry e Rau (AUBRY e RAU, 1935, p. 128), seus artífices, segundo os quais: “le proprietaire de l’héritage dominant, peut exercer son droit dans toute l’étendue que comportent, d’aprés l’usage local, les servitudes du genre de celle qui se trouve établie au profit de cet héritage”.


No direito pátrio, o ilustre Lafayette Pereira (1956), abraçando a doutrina dos mencionados juristas franceses, escreve que o senhor do prédio dominante pode usar da servidão em consonância com a latitude que permite a natureza dela, com o título de sua constituição e com os costumes do lugar.


A conclusão a que chegaram os distintos mestres é irreplicável, se apreciada a questão isoladamente, pois é certo não se tratar de nenhum despropósito alçar à categoria de elementos limitadores do exercício das servidões os costumes, já que, da forma como foi posto, ou seja, no intuito de afastar tudo aquilo que traz “caráter animalesco”[23], o costume pode ser perfeitamente  um elemento limitador do uso das servidões.


Todavia, após uma análise mais acurada, vê-se que esse componente encontra-se  implícito no uso suo iure civiliter uti das servidões, pois, em não sendo observados os bons costumes do local, estar-se-á exercendo a servidão de forma irregular e em desrespeito aos direitos do proprietário do prédio serviente, isto é, contrário ao exercício de modo civilizado.


Além do mais, é atitude retrógrada frente ao direito contemporâneo querer tipificar excessivamente as regras de conduta social, visto que, atualmente, deve-se privilegiar as cláusulas gerais que buscam a formulação da hipótese legal mediante o emprego de conceitos cujos termos têm significado intencionalmente vagos e abertos.


O legislador não pode nem deve ser casuísta. Se o fosse, a lei haveria de se tornar por demais minuciosa, descendo a particularidades de toda ordem, para poder envolver as numerosas hipóteses que surgem na prática. Um código se transformaria, por certo, em assombroso conjunto de disposições regulamentares. Isso não se harmonizaria com o pensamento que a respeito tem preponderado através dos séculos (PICANÇO; 1996).


Assim sendo, não procede, nos dias de hoje, a opinião difundida de que os costumes sejam elementos que limitam o exercício das servidões, o que pode ser perfeitamente confirmado através de uma sucinta análise nos principais ordenamentos jurídicos alienígenas de origem romano-germânica, bem como, passando vistas nas decisões dos tribunais pátrios.


10.  LEGISLAÇÃO COMPARADA


A análise de um instituto jurídico não pode se limitar às fronteiras de um só país. É absolutamente necessário situá-lo num quadro mais vasto que compreenda ao menos a “família jurídica[24]” que lhe deitou  influências. É imperioso o esforço de cada nação em melhorar as condições de suas leis, solvendo em outras o que puder ser útil à civilização, com reverência aos bons princípios e sem nunca romper com as tradições do próprio Direito, cujas raízes se alongam por um passado verdadeiramente remoto (PICANÇO, 1996). A própria existência do Direito assenta-se numa comparação bastante primitiva, é verdade, entre legislações diversas.


Mas não é apenas isso. Com o moderno fenômeno da globalização e seus desdobramentos, em que há intensificação de fluxos, perda de controle do Estado sobre esses fluxos e diminuição da distância espacial e temporal, o jurista contemporâneo pode defrontar-se na prática com institutos de outros Estados e, aí, não há dúvidas de que uma visão bifocal ajudará sobremaneira nas soluções dos litígios.


O direito brasileiro, assim como o da maioria dos Estados latinos, faz parte da família dos direitos ditos romanistas, ou seja, dos sistemas jurídicos influenciados pelo direito romano da antiguidade, razão pela qual a maioria das suas legislações, mais especificamente o seu Código Civil, acolheu uma vasta orientação dos direitos de estirpe romano-germânica, notadamente das idéias francesas (Código de Napoleão), portuguesas (Ordenações do Reino) e, principalmente, alemãs ( BGB)[25]. De tal forma que nada mais apropriado que engendrar, nessa quadra, um exame legislativo-comparativo sobre os limites no exercício das servidões, utilizando-se como parâmetro a legislação civil francesa, o Código Civil Italiano, o Código Civil alemão e o Código Civil português. 


10.1 Os limites da servidão no Código Civil francês[26]


Legislação jusracionalista que projetou regras pautadas sobretudo na evidência e na exatidão, o Código Civil francês regulamentou com pouco rigor metodológico, em seu livro segundo, título IV “ Des servitudes ou services fonciers”, os direitos de vizinhança e de servidão, classificando com desnecessária minúcia os seus tipos específicos.[27]


Apesar disso,  ao  tratar dos limites das servidões, dispôs o Código de Napoleão, em seu artigo 702, sob a seção III “Des droits du propriétaire du fonds auquel la servitude est due”, que :


“Art. 702. De son coté, celui qui a um droit de servitude ne peut en user que suivant son titre, sans pouvoir faire ni dans le fonds qui doit la servitude, ni dans le fonds à qui elle est due, de changement qui agrave la condition du premier” (FRANÇA, 1984).


Segundo os comentadores mais seguidos desse artigo, o legislador francês procurou, através dele, determinar que as obrigações do fundo dominante cingem-se em usar a servidão até os limites do seu título, sem poder praticar qualquer mudança que constitua um agravamento. Como exemplo, pode-se considerar como uma agravação da servidão o ato de se substituir uma servidão contínua por outra descontínua, sem a autorização do proprietário do fundo serviente .


Vê-se que, diferentemente do que dispõe o Código Civil pátrio, a lei francesa faz expressa menção ao exercício da servidão nos limites do título constitutivo.


No que diz respeito às adminiculas servitudes, o artigo 1.380 do Código Civil brasileiro (2002) é quase que idêntico ao art. 697 do Código de Napoleão que assim dispõe: “Art. 697. Celui auquel est due ube servitude, a droit de faire tous le ouvrages nécessaires pour en user et pour la conserver”(FRANÇA, 1984).


Como se pode ver, o supracitado dispositivo estabeleceu que é direito do proprietário do prédio, ao qual a servidão é devida, praticar todos os atos necessários para o seu uso e conservação.


10.2 Os limites da servidão no Código Civil italiano


Amostra significativa da positivação do instituto da servidão encontra-se no Codice Civile italiano, que sob o título VI “Delle servitù prediali” passa a tratar do assunto de maneira detalhada tal qual sucede no estatuto francês, ou seja, procurando assentar, além de disposições gerais, disposições específicas acerca dos diversos tipos de servidão, o que pode ser perfeitamente explicado pelo fato de ter a Itália absorvido, além da influência particular do seu antigo gênio jurídico, influência direta da codificação napoleônica.[28]


Nada obstante, relativamente aos limites no exercício das servidões, a legislação italiana procurou  ressaltar a importância do elemento “utilidade”, encartando nos artigos 1027  e 1028 o seu conceito e abrangência. A saber:


1027. Contenuto del diritto. – La servitù prediale consiste nel peso imposto sopra un fondo per l’utilità [1028] di un altro fondo appartenente a diverso proprietario [1072].


1028. Nozione dell’utilità. – L’utilità può consistere anche nella maggiore comodità o amenità del fondo dominante. Può del pari essere inerente alla destinazione industriale del fondo” (ITÁLIA, 1983).


Destarte, com base nos mencionados artigos, a servidão predial é um encargo imposto sobre o prédio serviente para a utilidade do prédio dominante, consistindo essa utilidade numa maior comodidade ou aproveitamento do fundo dominante.


Comparando com a legislação brasileira, trata-se, com a devida alteração de pormenores,  do exercício das servidões nos limites da sua “necessidade”.


2.3 Os limites das servidões no Burgiliches Gesetcbuch (BGB)


Máxime arquétipo do Código Civil pátrio, visto que a legislação nacional aproveitou a sua taxinomia, o BGB, situado na esfera rigorosamente conceitual e sistemática da pandectística, prima, através de uma renúncia quase total à casuística, pelas suas famosas clareza e coerência, motivo pelo qual consegue, por meio dos  seus arts. 1019 e 1.020,  abranger uma enormidade de regras limitantes do exercício das servidões. 


“Art. 1.019.Una servidumbre predial solo puede consistir en un gravamen que ofrezca ventaja para el aprovechamiento de la finca del titular – de la servidumbre – . El contenido de la servidumbre no puede exceder de la medida derivada de esto. 


Art. 1.020. En el ejercicio de una servidumbre predial el titular há de respetar lo más posible interés del propietario de la finca gravada. Si para el ejercicio de la servidumbre tiene una instalación en la finca gravada, ha de conservala en estado reglamentario en la medida que lo exija el interés del propietario” (ALEMANHA, 1950).  


Parece que o artigo 1.019 contém regra que estabelece, de modo iniludível, que  a servidão deve conter-se nos limites do necessário, pois, segundo dispõe a regra mencionada, uma servidão predial só pode consistir num encargo que ofereça vantagem para o aproveitamento do prédio titular da servidão. O conteúdo da servidão não pode exceder da medida derivada disto.


Já o artigo 1.020, buscou evidenciar, pelo visto, o exercício civiliter modo das servidões ao prescrever que no uso de uma servidão o seu titular deve respeitar, ao máximo, os interesses da propriedade gravada, devendo ser conservados os direitos do senhor do prédio pertinente.


10.4 Os limites das servidões no Código Civil português


Em que pese o atual Código Civil de Portugal não ter deitado influências no seu similar brasileiro, posto que à época da elaboração do Código Civil de 1916 o Brasil  já era um Estado independente, é oportuna uma rápida análise na legislação civil lusitana, uma vez que o seu Código vigente, datado de 1963, é marcado, como sucede com o Código Civil pátrio, pela influência Alemã.


Desse modo, o Código lusitano  estabelece no seu livro III, sob a epígrafe “Direito das Coisas”, o título VI “ Das servidões prediais”, que, por sua vez, assenta no capítulo IV “exercício das servidões”, os limites ao seu exercício.


Nesse sentido, os artigos 1564° e 1565° tratam de regular o exercício das servidões através do seu título constitutivo, da sua necessidade e por meio do exercício civiliter modo. Senão, vejam-se:


 “Artigo 1564.º Modo de exercício.


As servidões são reguladas, no que respeita à sua extensão e exercício, pelo respectivo título; na insuficiência do título, obter-se-á o disposto nos artigos seguintes.


Artigo 1565.º Extensão da servidão.


1. O direito de servidão compreende tudo que é necessário para o seu uso e conservação.


2. Em caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício, entender-se-á constituída a servidão por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o menor prejuízo para o prédio serviente” (PORTUGAL, 1983).


Tal qual resulta dos termos dos mencionados artigos, o exercício das servidões no Direito lusitano encontra-se positivado nos mesmos termos do Direito brasileiro, ou seja, fixando regras no sentido de enfatizar objeto instituído no momento da constituição do seu título, a finalidade estabelecida, o exercício de acordo com o menor transtorno, ou seja, civiliter uti e compreendendo todos os atos necessários para o seu uso e conservação (adminicula servitudes).


Portanto, das observações que encerram os parágrafos anteriores decorre a constatação de que é vitoriosa, em todo o sistema romano-germânico, a doutrina dos limites ao exercício das servidões nos contornos em que ficou revelado no capítulo antecedente, sendo consagrado no próprio direito legislado de vários países todos os elementos  mencionados, quais sejam, o objeto, a necessidade, a finalidade e o exercício civiliter.


11. JULGADOS


Como visto, a doutrina majoritária e a lei, caminhando no mesmo sentido, vislumbram como limites ao exercício das servidões a raia espectral constituída pelo objeto, necessidade, finalidade e exercício civiliter, elementos que traduzem a busca por uma utilização igualitária da propriedade e que nada mais são que um reflexo do almejado ideal de justiça.


Apesar de tudo, para se tornar completa a tríade que dá contornos finais ao assunto, é necessária, ainda, a análise da jurisprudência, inegável fonte de Direito que orienta os tribunais na decisão dos casos idênticos.


Em sendo assim, apesar da notória falta de julgados a respeito dos limites ao exercício das servidões, procurar-se-á colacionar, junto ao judiciário nacional, sínteses de acórdãos que lhes sejam pertinentes, no intento de propiciar o conhecimento exato de como os magistrados brasileiros têm aplicado a matéria na prática forense. Veja-se, então:


“EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. SERVIDÃO. CONSTRUÇÃO.


Ao direito de uso e gozo da servidão, corre paralelo o dever de nada fazer que o embarace ( artigo 702 do C. Civil). Mesmo possa o dono do prédio serviente removê-la de um lugar para o outro, não lhe é licito diminuir as vantagens do dominante (artigo 703 Código Civil). a construção da nova ponte, por isso, se contém nos estritos limites do que dispõe o título constitutivo da servidão, sem lhe atribuir maior largueza ou resultar modificação. Apelo não provido (Grifado).” (TJRS. AC nº 598598548. Primeira câmara de férias cível. Relator: Juiz Genaro José Baroni Borges. Julgado em 20/04/1999).


Analisando-se ligeiramente o supracitado julgado, não se pode chegar a outra ilação que não seja a que vislumbra no “objeto” instituído por meio do título constitutivo uma forma limitadora do exercício da servidão.


Isso porque, como bem se verifica na hipótese em análise, a construção de uma ponte no prédio serviente deve ser feita em consonância com o disposto no título, que nada mais é que o objeto da servidão.


No mesmo sentido:


“SERVIDÃO DE PASSAGEM – LIMITE – ABUSO DE DIREITO – A servidão é uma restrição que se impõe ao pleno exercício da propriedade, devendo ser utilizada nos estritos limites para os quais foi constituída. Se, na servidão de trânsito, se permitiu a passagem de pedestres, não pode ser utilizada para automóveis e muito menos pode o beneficiário arrancar cercas ou deixar abertas partes móveis destas, sob pena de configurar abuso de direito, que deve ser coibido pela ordem jurídica(Grifado).” (TAMG. AC. nº 0218275-6. 2ª C.Cív. Relator: Juiz Caetano Levi Lopes. Julgado em 25/06/1996).


 No que tange ao exercício civiliter modo, não há a menor sombra de dúvida acerca da sua utilização para limitar o uso das servidões, e a jurisprudência dos pretórios pátrios vem assim utilizado-o para decidir os litígios:


“REINTEGRAÇÃO DE POSSE – REQUISITOS – PROVA TESTEMUNHAL – SERVIDÃO DE PASSAGEM – PROVA No exercício do interdictum recuperandae possessionis, cumpre ao autor demonstrar os requisitos essenciais a tutela possessória, como a posse anteriormente exercida e sua perda pela pratica do esbulho. O depoimento testemunhal é a prova por excelência, nas questões possessórias, para se comprovar a posse do autor, a pratica da turbação ou do esbulho, como para a identificação do agente e da data em que se praticou o ato que a molesta ou a perde, requisitos da custódia possessória. A servidão deve ser exercida civiliter, dentro dos limites das necessidades que se proponha a satisfazer, devendo persistir se não há prova que dela se utiliza por comodidade o proprietário do prédio dominante” (grifado) (TAMG.  A C. nº 0245612-6. 3ª C.Cív. Relator: Juiz Duarte de Paula. Julgado em:  03/12/1997).


Quanto ao exercício de acordo com o seu fim, os Tribunais têm sistematicamente delimitado o conteúdo das servidões, merecendo colação, nesse sentido, pronunciamento do Tribunal de Alçada Civil de São Paulo:


“POSSESSÓRIA – MANUTENÇÃO DE POSSE – SERVIDÃO DE PASSAGEM. Caminho vicinal utilizado para passagem de pedestres e cavaleiros, transformado em estrada para veículos – inadmissibilidade – desconformidade com a finalidade aceita – impossibilidade do prédio dominante ampliar os ônus decorrentes da servidão – obras ditas de conservação que traduzem atos de verdadeira turbação da posse – legítima interdição do caminho não traduzindo esbulho à posse dos autores – improcedência mantida” (TacivSP, [s.d]).


Decidindo sobre o mesmo assunto, o eminente Desembargador Artur Mafra prolatou decisão nos seguintes termos:


“SERVIDÃO DE PASSAGEM – UTILIDADE E PROVEITO DO PRÉDIO DOMINANTE – ABERTURA DE ESTRADA PÚBLICA – EXTINÇÃO DA SERVIDÃO  A finalidade da servidão é proporcionar utilidade ou proveito ao prédio dominante. Se se abre estrada pública acessível ao prédio dominante, já não será necessária a servidão, cujo pressuposto é a falta de estrada pública, salvo se esta não suprir a função da estrada aberta através do prédio serviente” (Grifado) (TJMG. AC. n° 76.328. 5ª C.  Relator: Desembargador Artur Mafra . Julgado em 23/12/1988).


Como se vê, a jurisprudência acerca da finalidade é conclusiva e não deixa margem a maiores discussões.


Em sentença que representa verdadeira lição sobre a “necessidade” no exercício das servidões, o Desembargador Hélio Mosimann proferiu decisão ímpar, ressaltando a importância desse elemento. Observe-se parte da aula magistral:


“EMENTA. PASSAGEM POR SIMPLES COMODIDADE. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. SERVIDÃO. REQUISITOS NÃO DEMONSTRADOS. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO REINTEGRATÓRIO. Constituindo a servidão uma restrição imposta a um prédio para o uso e utilização de outra propriedade, pertencente a proprietário diverso, limita-se às necessidades do prédio dominante, evitando-se, quando possível, agravar o encargo do prédio serviente. Assim sendo, não se justifica a reclamação de passagem por simples comodidade ou capricho” (Grifado). (TJSC. AC nº20. 905. Relator: Desembargador Hélio Mosimann).


A propósito, em hipótese semelhante à anteriormente mencionada, veja-se como decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:


“EMENTA: SERVIDÃO DE PASSAGEM.Colocação de cercas e porteiras nas sua extremidades constitui direito do dono do prédio serviente, quando o imóvel pretende dar destinação econômica, especialmente quando nele irá explorar pecuária, consoante a regra do CC-588. O uso da passagem deve-se circunscrever aos limites da necessidade comprovada dos donos do prédio dominante (CC-704). Natureza dúplice dos interditos possessórios que permite outorgar proteção a apelante (CPC-922). Apelação provida” (Grifado). (TJRS. AC nº 197066582. sexta câmara cível. Relator: Nelson Antônio Monteiro Pacheco. julgado em 18/09/1997)[29].


Questão relacionada ao elemento “necessidade” que tem suscitado vivíssimas controvérsias nos tribunais pátrios, dando azo a opiniões diametralmente opostas, é a que diz respeito à necessidade ou não do encravamento do prédio dominante para instituição de uma servidão.


Sustentam alguns que o prédio serviente só pode ter o seu direito de propriedade mitigado por necessidade extrema (encravamento absoluto do prédio dominante), em razão de ser a servidão um elemento limitador do direito de propriedade. Por outro lado, luzes mais brilhantes insurgem-se contra esse entendimento ao argumento de duas ordens: primeiro, que encravado não é só o prédio sem saída, mas, também, aquele cuja única via de acesso é excessivamente onerosa, impraticável ou perigosa. Segundo, o direito real de servidão, ao contrário do direito de vizinhança à passagem forçada, dispensa o encravamento do imóvel dominante, sendo necessário para  o direito de servidão, apenas,  a dificuldade no exercício do direito de propriedade.


Afirmando que quando ausente o encravamento da propriedade não há que se falar em servidão, o ilustre magistrado Rômulo Taddei sentenciou nos autos do AI, nº 35019002274, da seguinte forma:


“AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO NEGATÓRIA DE SERVIDÃO – PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE DE PARTE – REJEITADA – PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA – REJEITADA – MÉRITO – EXISTÊNCIA DE OUTROS MEIOS PARA OS AGRAVANTES ALCANÇAREM A SAÍDA DE SUA PROPRIEDADE – AUSÊNCIA DE ENCRAVAMENTO – RECURSO IMPROVIDO – PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE DE PARTE – DIRECIONANDO-SE O OBJETO DE AÇÃO NEGATÓRIA DE SERVIDÃO AO EXERCÍCIO INDEVIDO DE SERVIDÃO DE PASSAGEM PELOS AGRAVANTES, TOLHIDO INJUSTAMENTE O PLENO EXERCÍCIO DA PROPRIEDADE PELOS AGRAVADOS, EXSURGE A PERTINÊNCIA SUBJETIVA PASSIVA DOS PRIMEIROS – MESMO PORQUE, AS INDAGAÇÕES REFERENTES À NECESSIDADE E LEGITIMIDADE DA ABERTURA DA ESTRADA, A QUEM APROVEITA OU A QUEM MOSTRA-SE POSSÍVEL IMPUTAR A RESPONSABILIDADE PELAS EVENTUAIS RESTRIÇÕES EM PROPRIEDADE ALHEIA SÃO QUESTÕES MERITÓRIAS E NO MOMENTO OPORTUNO SERÃO ENFRENTADAS PELO JUÍZO MONOCRÁTICO APÓS CABAL INSTRUÇÃO – PRELIMINAR REJEITADA – PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA.  Para a antecipação de tutela não se impõe sempre o efetivo e prévio contraditório, o qual pode restar postergado para o momento oportuno, desde que presentes os requisitos que autorizam o expediente, elencados no artigo 273, caput, incisos I ou II, e parágrafos 2º e 3º, todos do Código de Processo Civil, sem que de tanto se possa argüir cerceamento de defesa. A isso deve-se agregar que, a mera ausência de intimação de uma parte para que pudesse se manifestar sobre petição protocolada pela parte adversa não constitui cerceamento quando não demonstrado qualquer efetivo prejuízo para a defesa. Preliminar rejeitada. Mérito. Restando inatacado a motivação do decisum consistente na existência de outros meios para os agravantes alcançarem a saída de sua propriedade, assim não se prestando para infirmá-la a desjudicializada declaração ineficaz à comprovação da identidade do trecho ali referido com a via retratada pelas fotografias e considerada pelo Juízo monocrático, apresenta-se como injustificada a servidão de passagem, porquanto não lhe enseja a mera aspiração de encurtamento do caminho, a título de comodidade, quando ausente o encravamento da propriedade, o que restará definitivamente acertado quando da realização de prova pericial já deferida e com realização iminente. Recurso improvido” (Grifado). (TJES. AI 35019002274. 3ª C.Cív. Relator: Desembargador Rômulo Taddei. Julgado em 25/02/2002)


No mesmo sentido:


“EMENTA: SERVIDÃO DE PASSAGEM. IMÓVEL ENCRAVADO. ESTRADA ENTRE DUAS GLEBAS. INEXISTÊNCIA DE SERVIDÃO. Imprescindível à configuração da servidão de passagem seja o imóvel encravado, de modo a impossibilitar o acesso a lugares públicos” (Grifado). (TJDF. AP Cível nº 3263494. 3º Turma. Relator Juiz Nívio Gonçalves. Julgado em 17/08/94).


“Para conhecimento de servidão de trânsito é condição essencialíssima o encravamento do prédio e só se justifica frente a indeclinável necessidade, necessidade absoluta” (Grifado). (Revista de Jurisprudência Mineira, Vol. VII, pág. 127, citado por TJRN. AC nº 02.003417-2 .  Relator:  Desembargador Armando da Costa Ferreira).


Decidindo sobre o tema, a Ministra Nancy Andrighi prolatou decisão acolhendo a tese da desnecessidade do encravamento do prédio em decisão que representa verdadeira lição acerca do assunto. A saber:


“RECURSO ESPECIAL – PROCESSUAL CIVIL E CIVIL – PREQUESTIONAMENTO – AUSÊNCIA – DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL – COMPROVAÇÃO – REEXAME DE PROVA – SERVIDÃO DE TRÂNSITO – OBRAS – CONTÍNUA E APARENTE – PROTEÇÃO POSSESSÓRIA – POSSIBILIDADE – ENCRAVAMENTO DO IMÓVEL DOMINANTE – DESNECESSIDADE Não se conhece o recurso especial quanto a questões carentes de prequestionamento. A ausência da confrontação analítica dos julgados, assim como dessemelhança dos casos confrontados, enseja o não-conhecimento do recurso especial pela letra “c” do permissivo constitucional. Na via especial, é inadmissível a alteração das premissas fático-probatórias estabelecidas pelo tribunal a quo. É passível de proteção possessória a servidão de trânsito tornada contínua e aparente por meio de obras visíveis e permanentes realizadas no prédio serviente para o exercício do direito de passagem. O direito real de servidão de trânsito, ao contrário do direito de vizinhança à passagem forçada, prescinde do encravamento do imóvel dominante, consistente na ausência de saída pela via pública, fonte ou porto” (Grifado). (STJ. Resp.  nº 223590. 3ª T. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 17/09/2001)


Em igual sentido :


“POSSESSÓRIA. Reintegração de posse. Servidão instituída em contrato, com registro. Inocorrência de renúncia tácita a sua utilização, haja vista não ter se completado o prazo previsto na Lei. Artigo 710, III, do Código Civil. Irrelevância ademais, do encravamento, que não é o substrato único da instituição da servidão. Ausência dos pressupostos da extinção da servidão, merecendo os autores serem reintegrados na posse. Impossibilidade, ainda, do impedimento da passagem dos proprietários do prédio dominante, erguendo cerca. Infringência ao artigo 702 do Código Civil. Recurso improvido” (Grifado). (1º TACSP. AP nº 0810531-9. 5ª C. Relator: Juiz Manoel Mattos.  Julgado em 27.09.2000).


Pelo que parece, os seguidores da corrente que impõe a necessidade do absoluto encravamento do prédio emprestaram demasiada importância ao direito pleno de propriedade, esquecendo de analisar a questão à luz da Constituição Federal e do próprio Código Civil, que são bastante claros no trato do assunto.


O caput do artigo 1.228 do Novo Código Civil (BRASIL, 2002) assegura que o proprietário pode usar, gozar  e dispor dos seus bens, mas deve fazê-lo de modo a não colocar em risco a promoção do bem comum. Mesma preocupação teve o legislador constitucional, ao destacar no art. 5º, XXIII da Magna Carta pátria (BRASIL, 2002) a moderna concepção da função social da propriedade, pois ao mesmo tempo em que  consagrou o direito de propriedade como fundamental (art. 5º, XXII), deixou de caracterizá-lo como incondicional e absoluto (MORAIS, 2002).


Ademais, não é dispendioso notar que  através de uma interpretação bastante lógica do art 1.384 do Código Civil atual (BRASIL, 2002), pode-se inferir muito bem que não é necessário o encravamento do prédio para constituição de servidão. Isso porque se a servidão pode ser removida de um local para outro pelo dono do prédio serviente se em nada diminuir as vantagens do prédio dominante e houver considerável incremento da utilidade, pode-se dizer que para o seu exercício pode haver mais de uma forma, bastando que uma delas seja necessária ou útil. 


Assim, os adeptos da corrente que reza pelo necessário encravamento absoluto do prédio para instituição da servidão vêem pouco e  de perto.


 Por derradeiro, sobre as adminiculas servitudes observe-se caso em que o Juiz  Palma Bisson, do Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, entendendo improcedente a alegação da parte apelante, sentenciou no sentido de ser necessária para o uso da servidão  a pratica de atos acessórios. Veja-se:


“DIREITO DE VIZINHANÇA – DEMOLITÓRIA – SERVIDÃO DE PASSAGEM – PORTÃO ELETRÔNICO QUE IMPEDE O EXERCÍCIO DO DIREITO DE IR E VIR – OBRA NECESSÁRIA À CONSERVAÇÃO, SEGURANÇA E USO DA SERVIDÃO – DESCABIMENTO – APLICAÇÃO DO ART. 699 DO CÓDIGO CIVIL. Os donos da servidão que estalam portão para evitar que a presença de vadios terceiros, na rua particular destinada à passagem, a dificulte, agem de conformidade com o disposto no artigo 699 do CC, isto é, empreendem obra necessária à conservação e o uso da servidão em seu favor instituída. Ademais, se, o proprietário do prédio gravado com servidão de passagem conservar a faculdade de fechá-la, de maneira que não prejudique o exercício da servidão, bastando, para tanto, que ofereça uma chave ao seu titular, não podendo este ser impedido por aquele de proceder do mesmo modo, destinando-se o fechamento à maior segurança de ambos.” (TacivSP. AP nº 619.749-003. 12ª Câm – Relator: Juiz Palma Bisson. Julgado em: 13.12.2001). 


De maneira idêntica:


“POSSESSÓRIA – INTERDITO PROIBITÓRIO – FUNDADO RECEIO DE TURBAÇÃO OU ESBULHO – AUSÊNCIA DE PROVA – SERVIDÃO – REALIZAÇÃO DE OBRAS DE MANUTENÇÃO E USO – IMPROCEDÊNCIA DA DEMANDA. Na ação de interdito proibitório, cabe ao autor da demanda demonstrar, de forma satisfatória, um fundado receio contra atos de turbação ou esbulho por parte de terceiros, sob pena de improcedência da demanda. Constituída servidão, tem direito o possuidor de realizar obras necessárias à sua conservação e uso, sem que tal ato se constitua em turbação ou esbulho da posse do proprietário do prédio serviente.” (TAMG. AP nº 0345687-5. 4ª C.Cív. Relatora: Juíza Maria Elza. Julgado em 17.10.2001).


Diante de tudo quanto exposto, vê-se que a matéria em apreço já foi discutida e sua plausibilidade editada nos Tribunais, o que permite, remansosamente, para arremate do assunto, concluir que a jurisprudência sanciona a doutrina majoritária e a legislação unânime, comprovando que os limites no exercício das servidões constituem-se nos seguintes: objeto (conteúdo) da servidão; uso civiliter modo; finalidade e necessidade (utilidade).


12. ABUSOS NO EXERCICIO DAS SERVIDÕES


Superado qualquer percalço quanto aos limites no uso das servidões, é de bom talante observar, em vista dos litígios que envolvem o seu exercício, quais as hipóteses em que estes se verificam abusivos e contrários aos seus fins.


Não vem ao caso aqui embrenhar-se em movediças considerações acerca das  correntes diametralmente opostas que se digladiam em torno da teoria do abuso de direito[30], sendo necessária, apenas, para os fins pretendidos, uma rápida conceituação do instituto em sintonia com o positivado pelo Código Civil de 2002. 


Pois bem, é princípio assente em toda sociedade moderna o de não prejudicar  outrem, devendo as pessoas agirem no estreito caminho da boa-fé e em compasso com os ditames da ética. Essa rudimentar forma moral é marco limitador das faculdades que o exercício da liberdade individual comporta (DIAS, 1983), impondo uma verdadeira conciliação entre a utilização do direito próprio e o  respeito  à esfera jurídica alheia.


Procurando um equilíbrio entre esses direitos, a ordem jurídica passou a considerar os atos com desvios de conduta, egoísticos e tendentes a prejudicar, abusivos, mesmo quando exercidos nos contornos de direito legítimo. De tal modo que entendeu-se por abuso no exercício de direito quando apesar de lícito o objeto, ultrapassa a pessoa, os limites impostos pela regularidade, provocando resultado que o direito arrepia, ou seja, a pessoa tem o direito, mas, pelo excesso na utilização, arca com as conseqüências correspondentes (BITTAR, 1994)


Segundo Carlos Roberto Gonçalves (2003), o abuso de direito acontece a partir do instante em que o agente, operando dentro dos contornos da lei, deixa de considerar a finalidade social de seu direito subjetivo e o exorbita ao exercê-lo, causando prejuízo a outrem. Embora não haja, em geral, violação ao limites objetivos da lei, o agente desvia-se da finalidade social a que esta se destina.


No mesmo diapasão, preceitua Paulo Nader (2004) que o abuso de direito é espécie de ato ilícito, que tem como pressuposto a violação de direito alheio mediante conduta intencional que exacerba o regular exercício de direito subjetivo.


Com isso, parece razoável entender-se que o sujeito que pratica ato abusivo é titular de um direito irregularmente exercido, o que difere do ato considerado ilícito (em sentido estrito), já que neste o sujeito não pode alegar em seu favor nenhum direito, posto que transgride o direito de outrem sem qualquer razão juridicamente apreciável.


São, pois, o ato abusivo e o ilícito em sentido estrito ejusdem generis, ou seja, pertencentes ao gênero dos atos ilícitos em sentido amplo. 


Válido nesse sentido, face à inequívoca relevância, trazer a lume as palavras do eminente Carlos Barbosa Moreira (2003) que, discorrendo sobre o tema, vislumbra ser possível, do ponto de vista teórico, distinguir o ato ilícito do abuso de direito. De acordo com o autor, uma é a situação de quem sem poder evocar a titularidade de direito algum simplesmente viola direto alheio. Seria esse o autêntico perfil do ato ilícito strictu sensu. Outra situação é a daquele que sendo titular de um direito irregularmente o exerce. Assim, ao contrário do que se dá no ato ilícito, no ato abusivo não há a violação de um direito de outrem, mas o exercício anormal de um direito próprio.


O estatuto civil pátrio, ao tratar desse assunto, o fez incorrendo  nessa mesma doutrina, pois dispõe, em seu artigo 186, que quem por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. E em seguida reza o seu art. 187 que também comete ato ilícito o titular de um direito que ao exercê-lo excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes (BRASIL, 2002).


  Dessa forma, o elemento fundamental para que se caracterize o abuso do direito, como se depreende do mencionado dispositivo, é a ultrapassagem de determinados limites no respectivo exercício, sendo tais limites impostos em razão do fim social, da boa-fé ou através dos bons costumes.


A propósito do exercício abusivo do direito de servidão, é componente capital para a sua caracterização que sejam suplantados os limites preestabelecidos pela lei, doutrina e jurisprudência, ou seja, os limites do uso civiliter, da necessidade e da finalidade, que encontram-se postos, justamente, no escopo de proteger o fim econômico ou social, a boa fé e os costumes no exercício do direito de propriedade.


Note-se que o componente “objeto” (conteúdo) alhures indicado como limitador ao exercício da servidão não serve para estabelecer, como num primeiro momento poderia parecer, o exercício abusivo do direito. Isso porque sendo ultrapassado esse  elemento no uso da servidão, estar-se-á violando direito alheio (ato ilícito), e não sendo exercido de modo anormal direito próprio (abuso de direito).   


Essa questão é muito bem abordada por Clóvis Beviláqua (2003) quando doutrina que a servidão deve ser exercida civiliter e limitando-se às necessidades do prédio dominante, pois qualquer excesso praticado pelo dono deste constitui ou ato contra o direito, se exceder os limites do título constitutivo da servidão, ou ato abusivo de direito, se embora não excedendo aqueles limites, contrariar os fins para que a servidão foi constituída.


Assim, ainda na esteira dos ensinamentos  do autor, se o proprietário do prédio dominante retira do prédio serviente 15.000 litros d’água quando seu direito de acordo com o título constitutivo da servidão era o de retirar 5.000 litros, seu ato é contra o direito por se chocar com os termos do contrato. Mas, se embora sem dela necessitar retira os 5.000 litros d’água que o contrato lhe conferia para desperdiçá-la, seu ato é  abusivo de direito. O que, sem qualquer embargo, não deixa de ser ilícito, pois, segundo o já mencionado artigo 187 do Código Civil de 2002, também comete ato ilícito o titular de um direito que ao exercê-lo excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.


Ao revés, não vendo qualquer diferença nas conseqüências dos atos praticados além dos limites, seja do “objeto constituído” seja do “necessário”, o brilhante comentador Carvalho Santos (1991) entende ocorrer o abuso no exercício da servidão sempre que o dono do prédio dominante extrapole as necessidades de seu prédio ou os limites da sua constituição, com prejuízo do prédio serviente.


Já Pontes de Miranda (1957), em harmonia com a doutrina de Clóvis, afirma que se a servidão vem a ser exercida além das necessidades do prédio, embora se trate de utilitas fundi, isto é, de utilização que poderia ser conteúdo de servidão, é irregular o exercício da servidão. Ressaltando, logo em seguida, que o agravamento da servidão por lhe exceder o conteúdo é ilícito e ofende o prédio serviente, podendo mudar, todavia, respeitados os princípios da servidão e as circunstâncias, a extensão e o seu modo de exercício. 


Apesar disso, vê-se que as conseqüências dos atos ilícitos em sentido estrito ou abusivo são as mesmas, tendo em vista serem todos os dois espécies do gênero ilícito. De tal modo que, como bem pontua Silvio Venosa (2002), verificado e declarado um ato como havendo sido cometido com abuso de direito, esse fato provoca os efeitos de todos os atos ilícitos, quais sejam a obrigação de reparar os danos por ele causado e a nulidade do ato.


Sendo importante saber, exclusivamente, que qualquer excesso é incursão ilícita na esfera jurídica do dono do prédio serviente, não tolerando a lei que a agravação exceda, sem necessidade, os limites da restrição resultante da imposição da servidão, acarretando prejuízo ao dono do prédio serviente.[31] 


Portanto, o abuso de direito no exercício das servidões encontra os seus termos e latitude nos limites do uso civiliter modo, da finalidade e da necessidade, sendo o seu objeto constituído limitador dos atos ilícitos em sentido estrito.


Dito isso, mister se faz analisar uma pequena massa de acórdãos, que,  à sombra do assunto ora em análise, elucida quais os contornos que vêm sendo dados pelos Tribunais brasileiros a esse respeito.


Manifestando-se sobre o abuso de direito no exercício das servidões, o Tribunal de Alçada Cível de Minas Gerais, representado pelo Juiz Caetano Levi Lopes, em acórdão já mencionado, mas que se aplica de igual modo ao assunto vertente, concluiu por ato abusivo de direto a não observância do objeto para o qual foi a servidão constituída, determinando a sua utilização nos estritos limites do seu conteúdo. A propósito:


“SERVIDÃO DE PASSAGEM – LIMITE – ABUSO DE DIREITO – A servidão e uma restrição que se impõe ao pleno exercício da propriedade, devendo ser utilizada nos estritos limites para os quais foi constituída. Se, na servidão de trânsito, se permitiu a passagem de pedestres, não pode ser utilizada para automóveis e muito menos pode o beneficiário arrancar cercas ou deixar abertas partes móveis destas, sob pena de configurar abuso de direito, que deve ser coibido pela ordem jurídica” (Grifado). (TAMG. Ap nº 0218275-6. 2ª C.Cív. Relator: Juiz Caetano Levi Lopes. Julgado em 25.06.1996).


No que respeita aos atos praticados no intuito de conservar a servidão (adminicula servitudes ),  as cortes nacionais têm entendido que, se exercidos dentro do seu objeto, não há que de se cogitar em abuso de direito. A esse respeito, observe-se o seguinte decisum:  
“APELAÇÃO CÍVEL-AÇÃO CAUTELAR INOMINADA – ABUSO DE DIREITO DE POSSE EM SERVIDÃO- PLANTIO DE ÁRVORES E FOLHAGENS- EMBELEZAMENTO E CONTENÇÃO DE CHUVAS E EROSÃO-OBRAS REALIZADAS DENTRO DO LIMITE TERRITORIAL DA SERVIDÃO – PERMISSIVO DO ART. 1380, CC-ABUSO NÃO CONFIGURADO-DECISÃO-REFORMADA-RECURSO-PROVIDO Não comete abuso de direito de posse sobre servidão aquele que, detentor da mesma, realiza obras dentro de seu limite territorial com a finalidade de embelezar, restaurar a natureza e o meio ambiente e conter erosão e chuvas, eis que sua conduta está protegida pelo artigo 1380 do CC.” (omissis).


Dando relevância ao fato de ser a necessidade elemento limitador do exercício da servidão, o Tribunal de Alçada Civil de Minas Gerais qualificou  aos atos que ultrapassam o limite do necessário de abusivos ao direito. Observe-se como se pronunciou a sua Primeira Câmara:


“AÇÃO DE SERVIDÃO NATURAL DE ÁGUAS – ÔNUS DA PROVA. Os atos que ultrapassam os limites do uso normal às necessidades de consumo das águas pelo prédio superior devem ser repelidos, sob pena de prejuízo ao proprietário do prédio inferior, que tem o direito ao uso das sobras. ‘Como disse acima, o proprietário do prédio inferior, ao mesmo tempo que tem a obrigação de receber as águas que fluem naturalmente do prédio superior, tem o direito aos sobejos. Pois, o dono da fonte não captada, satisfeitas as necessidades de seu consumo, não pode impedir o curso natural das águas pelos prédios inferiores (Cód. Civ., art. 565). Trata-se da antiga servidão legal de águas supérfluas, segundo a qual o prédio inferior tem direito às mesmas’. A regra que impera mesmo em processo é a de que ‘quem alega o fato deve prová-lo’. O fato será constitutivo, impeditivo, modificativo ou extintivo do direito, não importando a posição das partes no processo. Desde que haja a afirmação da existência ou inexistência de fato, de onde se extrai situação, circunstância ou direito a favorecer a quem alega, dele é o ônus da prova.” (TAMG. AP nº 0357226-3. 1ª C.Cív. Relator: Juiz Gouvêa Rios. Julgado em 30.04.2002).


Sustentando a necessidade de se levar em conta os parâmetros do abuso de direito quando do exercício das servidões, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, em julgado com voto da lavra do Des. Armando da Costa Ferreira, prolatou decisão com o seguinte teor:


“EMENTA: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE NUNCIAÇÃO DE OBRA NOVA. SERVIDÃO DE PASSAGEM. NÃO CARACTERIZAÇÃO. IMÓVEL DESENCRAVADO. CONHECIMENTO E IMPROVIMENTO DO RECURSO. 1. É a servidão de passagem uma exceção à regra geral do domínio que deve ser interpretada restritivamente levando-se em conta os princípios gerais de direito de vizinhança e os parâmetros do abuso de direito. 2. Não se caracteriza a servidão de passagem em imóvel que possui outro acesso à via pública, ou seja, em imóvel desencravado” (TJRN. AC nº 02.003417-2 .  Relator:  Armando da Costa Ferreira). 


Na mesma linha, em caso análogo, traz-se à baila pronunciamento proferido pelo Desembargador Anselmo Cerello do Tribunal de Justiça de Santa Catarina nos termos seguintes:


“POSSESSÓRIA – SERVIDÃO PREDIAL DE PASSAGEM – ESCADA DE ACESSO AO ANDAR SUPERIOR – ÔNUS DECLARADO EM AVERBAÇÕES IMOILIÁRIAS – DESTRIÇÃO DO IMÓVEL – REFALIMENTO COM A PERSISTÊNCIA DESTE ÚNICO MEIO DE ACESSO – ALEGAÇÃO DE ESBULHO DO PROPRETÁRIO DO IMÓVEL SERVIENTE. IMPROCEDÊNCIA. Sendo destruído o imóvel serviente, nem por isso resta extinta a servidão de passagem titulada no Registro Imobiliário, por inocorrência de qualquer causa extintiva prevista no art. 769 e 710 do CCB. Reconstituído o prédio serviente deve ser restabelecida servidão de trânsito, ainda que com maior largura, a teor do art. 706 do CCB, salvaguardo ao proprietário do prédio serviente a devida separação nos termos do parágrafo único deste dispositivo, sendo inadmissível a alegativa de esbulho possessório, por força do restabelecimento da servidão, exceto duvidosa prova em contrário que ateste o abuso no aludido restabelecimento” (Grifado). (TJSC. AP. nº 88.088388-8; Relator: Desembargador Anselmo Cerello. Julgado em 30/06/1999).


Finalmente, cumpre ressaltar que o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal na AP 2001 031000265-8 retira qualquer margem de dúvida capaz de ensejar interpretação equivocada a respeito da aplicação do instituto do abuso do direito nos estritos contornos dos elementos limitadores do exercício da servidão. É o que se extrai da sinopse abaixo do acórdão aqui referido.


O dono do prédio “A” ajuizou ação ordinária com pedido de antecipação de tutela em desfavor do dono do prédio “B”, narrando que desde 1994 é proprietário de uma gleba de terras próxima a Ceilândia e que no ano de 1997 o réu adquiriu uma área contígua onde já existia uma servidão de acesso à chácara do autor, ocasião em que foi instalada uma porteira com cadeado e cada um dos litigantes ficou com uma cópia da chave. Aduz que o réu, alegando que a porteira não vinha sendo fechada pelo autor, trocou por conta própria o cadeado desta, impedindo o acesso à propriedade.


 O M.M Juiz de Primeira Instância achou por bem determinar a autorização do autor para utilizar a propriedade, deferindo o pleito e disciplinando a servidão.


Interposto recurso de apelação contra o julgado, foi- lhe dado provimento pela Segunda Turma do E. Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a qual  sob o argumento de que se o pedido formulado na peça de ingresso é no sentido de que o réu se abstenha de impedir o acesso do autor à sua propriedade, correta é a sentença que ao deferir o pleito autoral disciplina essa servidão, fazendo-a da forma menos onerosa.


Analisando o supramencionado caso, evidencia-se que a sentença, confirmada em grau de recurso, invoca, com razão para decidir a favor do demandante, que o réu no momento em que impedia o autor de ir e vir exercia o seu direito de propriedade de maneira excessivamente onerosa, ou seja, além dos limites do uso civiliter modo, o que caracteriza, sem sombra de dúvida, o abuso de direito no exercício da servidão.


Por fim, não dispendiosa a transcrição de alguns casos citados por C. Aubry e C. Rau (1935) e Arnoldo Wald (1995) que não constituem ilícito e de outros que a doutrina tem entendido que caracterizam o abuso. Veja-se:


Não constituem ilícito: A construção de um parapeito em terraço; abrir janelas em outro local para benefício do fundo dominante e desde que não prejudique o serviente; a mudança da forma do telhado, na servidão de escoar chuva, se tornar menos gravosa a situação do prédio serviente; colocar o titular de uma servidão de aqueduto sobre prédio de outrem, água de qualidade diversa daquela que introduzida a princípio, desde que não grave a condição do prédio serviente; na servidão de prospecto exercida por meio de uma janela, a transformação desta em uma sacada, substituindo-se o parapeito de tijolos por uma grade de ferro; estender o cano que conduz a água a outros cômodos da casa, a não ser que prejudique o prédio serviente; quando originalmente o prédio, a cujo proveito foi instituída a servidão, pertencia a um só proprietário e passou depois a pertencer a muitos, todos poderão usar da passagem de tirar água conforme a servidão, sem que nesta última sejam obrigados a gastar apenas a quantidade que gastava o primeiro proprietário.


Constituem abuso no exercício do direito de servidão: a extensão indevida da área da servidão; a prática dos atos nas servidões em horas impróprias; as desnecessárias intensificações do seu exercício; e a alteração do modo de exercê-la.


Portanto, acerca do assunto, a jurisprudência não tem sido diferente da orientação doutrinária, assentando em termos de quase unanimidade que o abuso de direito no exercício das servidões possui lastro nos elementos limitadores que lhe dá os parâmetros exatos para a sua aplicação nos casos concretos. 


CONCLUSÃO


Os limites ao exercício das servidões são, como ficou demonstrado, o objeto constituído, o uso civiliter modo, a necessidade e a finalidade que servem não apenas como linde ao uso desse direito real sobre  coisa alheia mas, também, como forma de caracterizar o exercício abusivo de direito.


Isso pode ser observado com base no antigo direito romano, onde foram identificados os primeiros elementos de limitação ao uso das servidões, quais sejam o uso civiliter modo e o objeto (conteúdo). Donde deduz-se, logicamente, que já nesse período havia uma preocupação em estabelecer balizas ao seu exercício no intuito de não onerar em demasia o direito de propriedade alheio.


Apesar disso, foi natural que no correr dos tempos esse iura in re aliena necessitasse de aperfeiçoamento, recebendo conceito próprio, elementos de formação, natureza jurídica, princípios, finalidade, classificação e formas de constituição, passando, a partir daí, a ganhar status de instituto jurídico.


Com efeito, é através desses elementos formadores das servidões que se pode entender por que elas possuem limites no seu exercício e por que sendo esses exorbitados caracteriza-se o ato abusivo e contrário ao direito.


Nesse sentido, a doutrina moderna alcançou o entendimento de que consistindo a servidão num ônus real ao direito de propriedade, seu uso há de conter-se nas cercanias da estrita necessidade do prédio dominante, do objeto constituído, da finalidade e do exercício civiliter, sendo, pois, esses quatro sinais suficientes para restringir a sua utilização.


Essa maneira de compreender os limites ao exercício das servitudes foi de abrangência palmar, tanto que os sistemas legislativos de origem romano-germânica são praticamente unânimes na positivação dos mencionados componentes, contribuindo para que a jurisprudência firmasse entendimento nessa direção e passasse a utilizá-los na solução dos litígios que evolvem o assunto.


Certamente, não se pode negar que a inobservância dos mencionados elementos na prática das servidões desemboca na esfera dos atos ilícitos ou do abuso de direito, visto que sendo eles suplantados estar-se-á exercendo direito de modo exorbitante, malicioso ou egoístico, e sobre isso a doutrina e jurisprudência não vacilaram em momento algum.


Portanto, pode-se  afirmar, sem receio de erro, que a servidão deve ser exercida civiliter modo, limitando-se às necessidades do prédio dominante, em consonância com o objeto, e no compasso com a finalidade para a qual foi instituída. Pois, qualquer descomedimento praticado pelo dono do prédio dominante constitui ou ato ilícito stricto sensu ou ato abusivo de direito. 


 


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Notas:

[1] O mesmo que servidão.

[2] O notável Roberto de Ruggiero (1999) qualifica o não fazer, a inalienabilidade, a titularidade diversa, a indivisibilidade, a perpetuidade da causa e a vizinhança, como “regras gerais” que norteiam o instituto da servidão.  

[3]Servidão de passagem – Ação visando divisão de servidão de passagem – Imóvel encravado na parte dos fundos utilizado par a estacionamento de veículos – Indivisibilidade das servidões prediais – Art. 707 do Código civil – Inadequação da via eleita – Indeferimento – Sentença mantida” (1º TACSP. AC. Nº 452219-3/00. 5ª Câmara Especial. Relator: Juiz Marcondes Machado.  9/1/91).

[4] Orlando Gomes (GOMES, 1997), em sua obra “Direitos Reais”, assinala que as servidões podem ser classificadas pela sua causa, objeto e modo de exercício. Ressaltando, em seguida, que a classificação das servidões pela causa ou origem é admitida em algumas legislações e repelida em outras, e, ainda, que a classificação das servidões pelo objeto carece de importância prática. 

[5] Conforme se observa no artigo 108. CC: “não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que vise à constituição, transferência, modificação ou renuncia de diretos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País (BRASIL, 2002)”.

[6] Art. 1.378. “A servidão proporciona utilidade para o prédio dominante, e agrava o prédio serviente, que pertence a diverso dono, e constitui-se mediante declaração expressa dos proprietários, ou por testamento, e subseqüente registro no Cartório de Registro de Imóveis”.

[7] Nesse sentido é a robusta lição de Venosa (2002), que percebe a possibilidade de constituir-se servidão por contrato, a título gratuito ou oneroso. 

[8] Defendem essa tese: Lafayette Pereira; Mazeaud e Mazeaud; Enneccerus, Kipp e Wolff; Washington de Barros; Philadelpho Azevedo e Roberto Ruggiero, dentre outros.

[9] Nesse sentido são as lições de Orlando Gomes e Clóvis Beviláqua.

[10] A respeito do assunto, ver os comentários de Hamilton de Morais e Barros ao artigo 979, II, do Código de Processo Civil.

[11] No que interessa neste trabalho, é fácil constatar ser supérfluo o detalhamento dos modos de extinção das servidões. 

[12] É o que Darcy Bessone denomina de princípio da causa da liberdade, pelo qual a propriedade presume-se plena e livre, até que o contrário se prove.

[13] É o caso, por exemplo, da necessidade, do registro em cartório imobiliário, do seu caráter impresumível e da sua finalidade econômica. 

[14]  Escrevem Aubry e Rau (1935) que o título e a aquisição podem ter os limites da servidão neles contidos, do que depreende-se que a forma de exercício já é um limite a servidão.  

[15] Excetuando o que deve ser excetuado.

[16]en todo caso, se aplicará el critério de que la servidumbre se ejercitará civiliter, isto es, de la mejor manera que se pueda satisfacer al fundo dominante causando al mismo tiempo el menor perjuicio al fundo sirviente” (TRABUCCHI; 1967, p. 517). 

[17] “Art. 704. Restringir-se-á o uso da servidão às necessidades do prédio dominante,  evitando, quanto possível, agravar o encargo ao prédio serviente”.

[18] “l’exercice de la servitude ne peut exceder les besoins de l’héritage dominant, eu égard à son étendue à l’epoque où elle a été constituée. Le bénefice d’une servitude ne saurait donc être appliqué par voi d’extension à des fonds que lê propriétaire de l’heritage dominant y aurait ultérieurement reunis”. (AUBRY e RAU, 1935, p. 128).

[19] Todavia, quanto a esse entendimento, admite o brilhantissimo Demolombe, citado por Carvalho Santos, que não constituir extensão abusiva a simples comunicação a outros prédios do benefício da servidão quando seja apenas conseqüência ou o resultado do exercício legítimo pelo prédio dominante (DEMOLOMBE apud SANTOS, 1991).

[20] Carvalho Santos entende que, em casos tais convém lembrar que o benefício da servidão não se estende, de forma alguma, aos fatos que importem em modificação, quer no fundo serviente, quer no dominante (SANTOS, 1991).

[21] O art. 699 é o arquétipo dessa inteligência.

[22] Não é outro o entendimento de Aubry e Rau: “Toute servitude emporte ave elle la faculte d’exercer les servitudes accessoires qui sont indispensables à l’usage de la servitude principale” (AUBRY e RAU, 1935, p. 128). 

[23] Expressão utilizada por Ihering (1979).na sua clássica obra “a finalidade do direito” .

[24] Termo utilizado por René David para conceituar “sistema jurídico”, que tornou-se bastante usual.

[25]Burgiliches Gesetcbuch”, famoso Código Civil da Alemanha.

[26] Apesar da  idéia geral de que o Código Civil francês influenciou marcadamente o Código Civil brasileiro, Franz Wieacker desmistifica esse pensamento quando adverte que a atual zona de influência da família românica francesa, engloba quase todos os paises românicos da Europa e da América latina, com certas reservas, sobretudo, no Brasil (WIEACKER, 1967).

[27] Isso ocorreu, provavelmente, em razão da marcante  influência romana.  

[28] Apesar de não parecer ter havido qualquer mudança de influência quanto ao assunto em análise, é válido notar que, com o novo ascenso da ciência jurídica na Itália, a teoria do direito aplicou-se cada vez mais ao mundo conceitual da pandectística alemã. Na época moderna, a política do direito desenvolveu também as modernas questões sócias para as quais o grande conservadorismo da legislação francesa não fornecia qualquer modelo, em razão do qual, o direito italiano é visto, na sistemática jurídica atual, numa posição intermediária muito própria. (WIEACKER, 1967).

[29] Nesse sentido, a jurisprudência tem-se manifestado reiteradamente: AC 35. 691-0/188 de Turvânia, DJE 12.066, pág. 12;  TAMG – AC 314. 272-1 2° C. Civ. – Rel. Juiz Edivaldo George – DJMG 17.11.2000;  TAMG – Ap 0242334-5 – 6ª C.Cív. – Rel. Juiz Belizário de Lacerda – J. 30.10.1997;  TAMG – Ap 0255190-8 – 1ª C.Cív. – Rel. Juiz Nepomuceno Silva – J. 05.05.1998; TAMG – Ap 0248518-5 – 3ª C.Cív. – Rel. Juiz Duarte de Paula – J. 11.02.1998;  TJMT – AC 23.643 – Classe II – 25 – Cáceres – 1ª C.Cív. – Rel. Des. Orlando de Almeida Perri – J. 08.05.2000; 1º TACivSP – RT 802/253; TACRJ – AC 3077/93 – (Reg. 4425-3) – Cód. 93.001.03077 – 6ª C. – Rel. Juiz Nilson de Castro Dião – J. 27.04.1993;  AgIn 1.043. 793-6º Câm-j. 13.11.2001. rel. Juiz Windor Santos. 

[30] Várias correntes surgiram ao final do século IXI e início do XX na tentativa de justificar o fenômeno.  A negativista, capitaneada por Planiol, entendia ser o abuso de direito uma logomaquia, já que, segundo esse autor, não seria possível um titular de um direito exercer e abusar dele ao mesmo tempo. “On parle volontiers de l’usage abusif d’un droit, comme si ces deux mots avaient un sens clair et certain. Mas il ne faut pas en être duple: le droit cesse où l’abus commence, et il ne peut pas y avoir l’usage abusif d’un droit quelconque, parce qu’un meme acte ne peut pas être tout à la fois conforme et contraire au droit” (PLANIOL, 1952, p. 870). Já a subjetivista, vislumbrava o abuso de direito quando havia intenção de provocar o dano. E por fim, a doutrina objetiva, seguida pelo atual Código Civil pátrio, procurava não se preocupar com a intenção, mais sim, com a finalidade econômica, social e moral. Para maiores informações ver: Fábio Ulhoa Coelho e Carlos Barbosa Moreira .

[31] Carvalho Santos, com acuidade peculiar, observa que o socorro ao prédio serviente só é possível quando a lesão produzida consista em um prejuízo apreciável. Desde que este não se verifique, a agravação da servidão permanece dentro dos limites da legalidade (SANTOS, 1991). 


Informações Sobre o Autor

Daniel F. O. Costa

Advogado. Assessor jurídico do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte. Especialista em direito processual civil


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