Dosimetria extraprocessual e auto de prisão em flagrante delito

1 Noções Introdutórias:


Com o movimento de especialização da violência promovida a partir da década de 90, considerável parte dos delitos migram do Código Penal para a Legislação esparsa e, com isso, a tentativa de inauguração de microssistemas normativos, a exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente, Código de Defesa do Consumidor, Lei dos Crimes Ambientais, Código de Transito Brasileiro, dentre outros.


Nessa toada, a Lei 9.099/95 de inegável contribuição para a efetividade da prestação jurisdicional, com institutos de vanguarda como a transação penal, a composição civil dos danos, suspensão condicional da pena, além de regras pertinentes a ação penal, ao mesmo tempo em que lançam luz ao fim do acúmulo de processos do Judiciário Brasileiro, incluem delitos que, malgrado de preceito secundário objetivamente adequado aos Juizados, são de extraordinária repercussão social, porquanto motivos de política criminal recomendem a preservação do bem jurídico tutelado.


E, corrigindo distorção pontual, exsurgem os crimes hoje sob as regras do Estatuto do Idoso e de Leis que disciplinam a violência de gênero, como a Lei Maria da Penha, no que poderíamos denominar de fase de adequação a injustiças verificadas.


Com efeito, se primeiro se especializa e depois se corrige, em curto espaço de tempo, vislumbramos evidente violação ao princípio da segurança jurídica, função que não se desincumbe o legislador por pressão momentânea, sanáveis, contudo, com a exasperação da pena no caso concreto, sempre que a preservação do bem jurídico admitir. Portanto, é cabível a aplicação da dosimetria no auto de prisão em flagrante delito ou isso deve ser analisado tão-somente na sentença condenatória?


2 Dosimetria endoprocessual e extraprocessual:


Definimos dosimetria endoprocessual como aquelas decisões do juiz que utilizam do cálculo da pena, tanto na sentença condenatória, quanto em quaisquer momentos processuais em que a dosimetria é valorada e analisada, a exemplo do acertamento de competência.


Nesse passo, para evitar aparência de impunidade, principalmente na primeira fase da persecução criminal, vale a colação regras de aplicação de pena, ou seja, regras que a autoridade policial tem o dever-poder de fazer atuar, como a aplicação das causas de aumento de pena no auto de prisão em flagrante delito (extraprocessual).


Nos atos processuais ou policiais, enquanto analisada a pena em abstrato, como na decisão do delegado de polícia em autuar alguém em flagrante, seja para efeitos de transação e suspensão condicional do processo afetas ao Ministério Público e, nos atos judiciais ainda que não relativos à pena em concreto, aplicar-se-ão as causas de aumento e diminuição de pena ou a exasperação do concurso de crimes.


Nesse sentido, a Súmula 243 do STJ: O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um (01) ano.


3 Causas de aumento e diminuição da pena:


Conhecidas como majorantes e minorantes, são aplicadas na terceira fase do sistema trifásico desenvolvido por Nelson Hungria e, estabelecidas em quantidades fixas ou variáveis.


Valoradas sobre o resultado da pena resultante da segunda fase da dosimetria, pode decorrer resultado acima ou aquém do preceito secundário.


Observe-se, contudo, que para definição de competência e efeitos no auto de prisão, não incidem sobre a pena base (art.59 do Código Penal), atenuada ou agravada, mas exatamente sobre a pena in abstrato, em seu grau máximo, aumentada no máximo ou diminuída do mínimo, cujo resultado será objeto de cotejo com a Lei 9.099/95.


Decerto, por indução, delitos como o pernicioso “tráfico de animais” podem fazer defluir resposta estatal adequada, ao passo que retira do Legislador a necessidade de especialização desmesurada da violência, evitando-se, desse casuísmo, menção expressa de proibição de institutos da Lei dos Juizados, como previsto na Lei Maria da Penha ou a fixação desarrazoada de penas que venham a ferir o princípio da proporcionalidade.


Se por um lado o Direito Penal é a ultima ratio, em nome do princípio da ofensividade, como bem defende o professor Luiz Flávio Gomes (nota) na interpretação do delito como ofensa ao bem jurídico, por outro, o Direito Penal Objetivo há que ser interpretado com a máxima efetividade, ainda que nos delitos de menor potencial ofensivo.


Frases como “tudo se resolve em cesta básica” de notória finalidade desmoralizadora das instituições e do próprio bem jurídico, são afastadas sempre que aplicadas as regras extraídas da dosimetria, na adequada individualização e respeito ao princípio da proporcionalidade da pena, de viés garantista.


Para casos que destoam ao bom senso, com insuficiência da intervenção estatal, a despeito da gravidade, como no transporte de centenas de aves sem autorização, cuja regra geral seria a lavratura de um Termo Circunstanciado – existindo causas de aumento de pena –, perfeitamente possível o afastamento de parte dos institutos da Lei 9.099/95. In casu, considerando o concurso material entre os delitos do art. 29 (detenção, de seis meses a um ano) e art. 32, §2º (detenção, de três meses a um ano), da Lei 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais), majorada pela causa de aumento de pena em seu grau máximo (1/3), chega-se a pena em abstrato de 2 anos e 4 meses de detenção, o que afasta a aplicação da Lei 9.099/95 na fase policial da persecução.


Exemplo cotidiano, ainda, verifica-se com o crime previsto no Código de Trânsito Brasileiro. Vale dizer, no crime de lesão corporal culposa na direção de veículo automotor, mesmo sem considerar as hipóteses do art. 291, §1º, incisos I a III que expressamente já afastam a aplicação da Lei 9.099/95, incidindo as causas de aumento de pena referidas no parágrafo único do art. 303 do CTB, no seu grau máximo (metade), a pena máxima em abstrato será de 3 anos de detenção, hipótese em que não há falar no procedimento do termo circunstanciado, mas sim, em auto de prisão em flagrante delito, malgrado mantenha a representação como condição de procedibilidade. Lapidar nesse sentido o entendimento expendido pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso:


 “EMENTA. APELAÇÃO CRIMINAL – RECEBIMENTO COMO RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE RECURSAL – DELITO DE TRÂNSITO – LESÃO CORPORAL CULPOSA E OMISSÃO DE SOCORRO – AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO – SENTENÇA QUE DECRETOU A EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE POR TER RECONHECIDO A DECADÊNCIA DO DIREITO DE REPRESENTAÇÃO – INCONFORMISMO DA VÍTIMA – DECRETAÇÃO INDEVIDA – REPRESENTAÇÃO APRESENTADA NO MOMENTO OPORTUNO – INTELIGÊNCIA DO ART. 291 E SEU PARÁGRAFO ÚNICO DO CTB – RECURSO PROVIDO. Embora o crime de lesão corporal culposa com causa de aumento de pena em razão da omissão de socorro (art. 303, parágrafo único c/c art. 302, parágrafo único – pena máxima de 3 anos de detenção) não seja considerado como de menor potencial ofensivo e por isso, não sujeito ao processamento no Juizado Especial Criminal, há previsão legal para composição civil e eventual renúncia do direito de representação consoante dispõe o art. 291 do CTB, o que se torna necessário reconhecer que a apresentação da representação criminal logo após a realização dessa audiência preliminar de composição é suficiente para afastar a decadência.” (SEGUNDA CÂMARA CRIMINAL. RECURSO DE APELAÇÃO CRIMINAL Nº 111939/2007  – CLASSE I – 13 – COMARCA DE RONDONÓPOLIS. Data de Julgamento: 07-5-2008)


“EMENTA. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – SUPOSTO CRIME CONTRA A HONRA – CALÚNIA E INJÚRIA – CONCURSO MATERIAL – OFENDIDA NA CONDIÇÃO DE FUNCIONÁRIA PÚBLICA – AUMENTO DA PENA – EXCLUSÃO PREMATURA DE DETERMINADO ILÍCITO – SOMATÓRIA DAS PENAS ULTRAPASSAM OS LIMITES DOS CRIMES CONSIDERADOS DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM PARA O PROCESSAMENTO DO FEITO – RECURSO PROVIDO. Compete ao Juizado Comum, e não ao Juizado Especial, processar e julgar crimes que, isoladamente considerados, classificam-se como infrações penais de menor potencial ofensivo, mas que, ligados pelos laços do concurso material, formal ou pela continuidade delitiva, como no caso, pela soma ou exasperação das penas cominadas, seus limites ultrapassam 02 (dois) anos, desfigurando aquela categoria jurídica.” (TERCEIRA CÂMARA CRIMINAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 78599/2006 – COMARCA DE VÁRZEA GRANDE. Data de Julgamento: 04-12-2006)


Em outra toada, regras de diminuição de pena, com aplicação do mínimo previsto (vg.no crime tentado), poderão determinar à competência do Jecrim, em crimes cuja pena máxima in abstrato ultrapassam inicialmente os dois anos.


4 Analogia à fiança:


Vale mencionar aplicação por interpretação analógica, do entendimento quanto à aplicação da fiança pelo juiz no concurso de crimes. Nesse contexto, HC 105171/ SE (publicado em 08/09/2008) e Súmula 81 do STJ: Não se concede fiança quando, em concurso material, a soma das penas mínimas cominadas for superior a dois anos de reclusão.


5 Circunstâncias legais e aplicação das regras da Prescrição. Não incidência:


As causas atenuantes e agravantes, verificadas na segunda fase do sistema trifásico e, disciplinadas pela parte geral do Código Penal, cuja característica principal é incidir sobre a pena-base, sem patamar definido, pena de violar o princípio da individualização da pena, não se aplicam ao cálculo da pena com repercussão na Lei dos Juizados.


Cabe tão-somente ao juiz, no exercício do prudente arbítrio, à fixação desse quantum.


Ademais, o presente estudo se dissocia da disciplina da prescrição, que não admite a valoração da exasperação da pena do crime continuado no cálculo da prescrição, conforme enunciado sumular 497 do STF: Quando se tratar de crime continuado, a prescrição regula-se pela pena imposta na sentença. Não se computando o acréscimo decorrente da continuação.


Ainda, Súmula 220 do STJ: A reincidência não influi no prazo da prescrição da pretensão punitiva.


Por expressa previsão legal, o cálculo na prescrição não leva em conta a soma resultante do concurso de crimes consoante a dicção do art. 119 do Código Penal.


6 Síntese Conclusiva:


Nessa dinâmica, as importantes consequências advindas da aplicação de regras de dosimetria em momento extraprocessual impõem, em nome da segurança jurídica e preservação dos direitos fundamentais, a adequada e necessária fundamentação na sentença penal condenatória, no auto de prisão em flagrante delito e, para efeito da transação e da suspensão condicional do processo (nota MPSP).


A individualização da pena, conquista do Iluminismo, tem assento constitucional (art.5º, XLVI, da CRFB/88) e constitui uma das chamadas garantias criminais repressivas conforme Cezar Roberto Bitencourt, preconizando a absoluta e completa fundamentação.


Posto isso, mister a aplicação de institutos da dosimetria da pena –individualização da pena em momento extraprocessual, vale dizer, fora da sentença penal condenatória –, como importante fator de difusão e respeito a ordem jurídica nos delitos de menor potencial ofensivo, cujos bens jurídicos tutelados suplantam empiricamente a valoração da pena máxima cominada – ratio da majorante ou minorante –, alinhando-se a aplicação da pena como premissa e objetivo do direito penal moderno.


 


Referências bibliográficas:

GOMES, Luiz Flávio. Princípio da ofensividade no Direito Penal. São Paulo, RT, 2002. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. São Paulo, Saraiva, 2009. v. 1, p. 636.

Nesse sentido a tese 107 da reunião ordinária do Setor de Recursos Extraordinários e Especiais do Ministério Público do Estado de São Paulo, de 08/05/2003: “Para efeito da transação e da suspensão condicional do processo, previstas na Lei n.9.099/95, levam-se em conta as causas de aumento e de diminuição de pena”.

Cancelado o Enunciado 11 do FONAJE: “Não devem ser levados em consideração os acréscimos do concurso formal e do crime continuado para efeito de aplicação da Lei n. 9.099/95”.


Informações Sobre o Autor

Éverson Aparecido Contelli

Delegado de Polícia


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