Transação penal nos Juizados Especiais Criminais

Considerada por grande parte da doutrina como um marco
no direito penal-processual brasileiro, a Lei Federal n. 9.099/95, que criou os
Juizados Especiais Criminais, realmente introduziu um novo paradigma na ordem
jurídico-penal nacional: o da justiça criminal consensual.

Com efeito, a sanção da Lei dos Juizados Especiais,
cujo anteprojeto é produto do esforço de renomados juristas pátrios,
representou uma mudança sem precedentes no cenário penal-processual, sem
olvidar a importância dos seus efeitos e objetivos processuais civis e de
natureza cível material.

Fruto da feliz previsão constitucional do artigo 98,
inciso I, da Constituição de 1988, os Juizados Especiais Criminais foram
criados com competência para a “conciliação, o julgamento e a execução de
causas cíveis de menor complexidade” e, o que ora nos interessa, de
“infrações penais de menor potencial ofensivo”.

No citado dispositivo constitucional introduziu-se
conceito novo na cena criminal: o de infrações penais de menor potencial
ofensivo, que alguns autores assemelham à noção de delitos bagatelares,
enquanto outros doutrinadores os distinguem por considerar que os crimes bagatelares reclamam tão-somente a aplicação do princípio
da insignificância.

Além de estabelecer nova espécie conceitual no campo
penal, que só veio a ser conceituada pela Lei n. 9.099/95, o constituinte de
1987 permitiu, às expressas, a transação penal na forma da lei, preconizando a
utilização do procedimento oral e sumariíssimo e
permitindo, em mais uma inovação, o julgamento dos recursos por turmas de
juízes de primeiro grau.

O objetivo não declarado, mas implícito, da norma
constitucional foi o de propiciar uma justiça criminal mais ágil e mais
adequada à conjuntura social em
um Estado democrático, simplificando procedimentos e
impedindo a estigmatização do acusado pelo processo
penal, que tem em si as suas próprias agruras.

Concretizando o art. 98, I, da CF/88, veio a
lume em 1995 a
Lei dos Juizados Especiais, que no seu artigo 62 anuncia alguns de seus
princípios, tais como a oralidade, a informalidade, a celeridade, buscando, em
mais uma “novidade” no sistema penal, assegurar a reparação dos danos
materiais e morais sofridos pela vítima, quase sempre esquecida até então,
salvo no tocante à previsão da ação civil ex
delicto
no CPP e à permissão de atuação como
assistente de acusação nas ações penais.

No mesmo art. 62 da Lei n. 9.099/95, propugna-se pela
aplicação, sempre que possível, de pena não privativa de liberdade. Vale dizer,
em lugar da prisão simples, da detenção ou da reclusão, devia-se a partir dali
privilegiar sanções criminais que não limitassem drasticamente o ius libertatis
do suspeito ou indiciado, que, no regime da Lei, passou a ser chamado de
“autor do fato”, em respeito ao dogma constitucional da presunção de
inocência.

Essa opção pela descarcerização
acompanhada de objetivo despenalizador são traços
marcantes da nova justiça penal pactuada brasileira, inspirada em certa medida
em institutos do direito norte-americano, como a plea bargaining, mas não de todo assemelhada.

Foi da experiência do direito comparado e da
inventividade dos juristas nacionais que surgiu o instituto da transação penal
como veículo fundamental para a consecução dos objetivos da Lei n. 9.099/95 e
do art. 98, inciso I, da CF, no sentido da intervenção necessária (ou mínima)
do direito criminal. Para entender a transação penal, contudo, é necessário
averiguar o conceito das infrações penais de menor potencial ofensivo, que, na
escala de gravidade das ofensas penais, estão no pólo oposto aos crimes
hediondos. Interessante notar que, se, de um lado, a Lei n. 8.072/90 reflete
uma espécie de discurso penal, que pode ser chamado de Direito Penal do Terror
ou Direito Penal Midiático — parecendo querer
solucionar a problemática penal somente com sanções mais severas ou legitimando
a vingança privada —, do outro lado, surge a Lei dos Juizados Especiais Criminais mais afeiçoada ao discurso da intervenção
mínima e ao garantismo penal, do qual Ferrajoli
é uma das vozes altissonantes.

Retomando o fio condutor, vemos no artigo 61 da Lei n.
9.099/95 que infrações de menor potencial ofensivo são todas as contravenções
penais (previstas ou não no Decreto-lei n. 3.688/41) e os crimes a que a lei
comine pena máxima não superior a um ano de prisão (detenção ou reclusão),
desde que tais crimes não se sujeitem a procedimento
especial.

Este era o conceito de infrações penais de menor
potencial ofensivo quando da edição da Lei de 1995 e assim permaneceram as
coisas até a sanção da Lei Federal n. 10.259/2001, vigente a partir de janeiro
de 2002. E aqui é preciso abrir um parêntese para aclarar o conceito atual de
tais infrações, hoje alterado por força do art. 2º, parágrafo único, da Lei
10.259/2001, que instituiu os Juizados Criminais Federais, em razão da inserção
de parágrafo único ao art. 98 da CF, realizada pela Emenda Constitucional n.
22, de março de 1999.

A digressão é importante porque tem predominado na
doutrina a idéia de que a partir da Lei dos Juizados Federais houve ampliação
do conceito de infrações penais de menor potencial ofensivo. Agora, além das
contravenções (como antes), qualquer crime apenado com até dois anos de prisão
(e não mais até um ano) será considerado infração penal de menor potencial
ofensivo, independentemente de a lei prever procedimento especial. Esta é a
opinião de Damásio de Jesus, Luiz Flávio Gomes, César Bittencourt,
Mauro Leonardo, Fernando Capez e de muitos outros
doutrinadores, que entendem que o conceito de infração de menor potencial
ofensivo federal também valeria para os Juizados Estaduais.

Todavia, há posições contrárias à ampliação do
conceito de infrações penais de menor potencial ofensivo, fundada na idéia de
que o art. 2º, único, da Lei n. 10.259/2001 deve ser declarado
inconstitucional, por não poderem os tribunais atuarem
como legisladores positivos. As opiniões favoráveis a
predita ampliação conceitual ainda não foram acolhidas pacificamente e de forma
predominante pela jurisprudência nacional.

O fundamento da tese extensiva, ao
nosso ver, está em atender-se ao príncipio da
isonomia, ao critério filosófico da identidade e ao princípio federativo, sem
olvidar a possibilidade, sempre útil, de proceder-se a interpretação conforme à
Constituição. Os que se opõem à extensão argumentam ainda que a Lei 10.259 de
2001 é especial em relação à Lei n. 9.099/95, por
tratar aquela de crimes federais, não se podendo aplicar o conceito do artigo
2º, parágrafo único, da Lei n. 10.259/2001 à Justiça dos Estados.

O tema ainda não foi pacificado seja no STF ou nos
tribunais e turmas recursais estaduais, havendo franca margem de vantagem à
tese ampliativa, tendo em conta os absurdos que poderiam advir da distinção de
infrações de menor potencial ofensivo estaduais (até
um ano) e federais (até dois anos). Ora, uma pessoa acusada de desacato (art. 331
do CP), apenada com detenção de 6 meses a 2 anos, ficaria sujeita a ação penal
comum e até a prisão em flagrante se a vítima mediata for um policial estadual.
Não teria o acusado direito aos benefícios e institutos da Lei dos Juizados
Criminais entre eles a transação penal. Todavia, se a ofensa consistente em
desacato for contra policial federal, aí então incidiriam os dispositivos da
Lei n. 9.099/95. A solução assim posta é ilógica e ofende o senso de identidade
ontológica do instituto, além de estabelecer regras penais diversas, sem razão
jurídica, para bens jurídicos dos Estados-membros e da União.

Finda a digressão, essencial como vimos, passamos a encarar o instituto da transação em si. Por primeiro, é
preciso assinalar que a transação penal não se confunde com o instituto
homônimo do direito civil, mas tem com ele certas afinidades, a exemplo da
bilateralidade, da liberdade de transacionar ou não e da existência de
concessões recíprocas.

A transação penal, considerada pelo legislador nos arts. 72 e 76 da Lei n. 9.099/95, tanto se aplica aos
delitos submetidos aos Juizados Federais quanto aos sujeitos à competência dos
Juizados Estaduais. Um traço lhe é importante: a existência de proposta do
Ministério Público. Não se concebe uma transação, essencialmente bilateral, sem
a participação do órgão do Ministério Público, que é titular privativo da ação
penal (art. 129, I, CF). Durante algum tempo, ouviu-se falar em transações ex officio, de
iniciativa de juízes ou mediante provocação da defesa, sem ouvida do Ministério
Público. No entanto, o STF, tanto para a transação penal quanto para a
suspensão condicional do processo, vem declarando que as propostas são
exclusivas do Parquet, e não direitos
públicos subjetivos dos acusados.

Isto é lógico, bastando que se perceba que a transação
penal e o sursis processual
interferem sobre a instauração e o andamento da ação penal pública,
respectivamente, com reflexo sobre a condição de dominus litis do Ministério Público quando
concedidas de ofício pelo juiz. De outra parte, os dois institutos são de
natureza consensual, não se coadunando com a unilateralidade ou com o alijamento do MP, representante da sociedade.

Assim, assentou-se que o autor do fato tem direito à
manifestação fundamentada do MP, propondo ou não a transação. Se esta não for
proposta, não é dado ao juiz substituir-se ao Ministério Público. Cabe-lhe
aplicar analogicamente o art. 28 do CPP, se achar pertinente e possível a transação penal, encaminhando os autos do termo
circunstanciado ou do inquérito policial ao Procurador-Geral do MPF ou do MPE,
ou, se for o caso, aos órgãos colegiados encarregados da revisão das promoções
de arquivamento de inquéritos policiais.

Portanto, recebido o termo circunstanciado no Juizado
Especial, o juiz designa a audiência preliminar do art. 72 da Lei n. 9.099/95,
quando se tenta a composição civil dos danos sofridos pela vítima. Se esta não
ocorre ou não é juridicamente possível, é que se abre ensejo à oferta da
transação penal pelo Ministério Público. Havendo a composição na ação penal
pública condicionada ou na ação penal privada, a homologação do acordo civil
acarreta a renúncia ao direito de representação ou de queixa, respectivamente,
e leva à extinção da punibilidade do autor do fato, não se dando ensejo à
transação penal.

Mas se o crime ou a contravenção (estas sempre de
competência estadual, à luz do art. 109, inciso IV, da CF) forem de ação penal
pública incondicionada, ou ainda se a ação for condicionada e tiver havido
representação (por não ter sido alcançada ou desejada a composição civil), o
Ministério Público poderá propor a transação penal. Antes, porém, deverá
observar se o caso não é de arquivamento direto do termo ou do inquérito por
prescrição, por exemplo, pois então não será possível a transação penal nem a
ação penal.

É controvertida a possibilidade de o ofendido oferecer
transação na ação penal privada, uns entendendo pela impossibilidade, pela
natureza especial deste tipo de ação, e outros defendendo a tese da plena
aplicabilidade do instituto, por ser favorável ao réu (rectius: autor do fato).

Como for, a transação só será
possível se forem atendidos os requisitos do art. 76, §2º, da Lei n. 9.099/95.
Feita a proposta, ela é submetida à aceitação bilateral pelo autor do fato e
pela defesa técnica. Se aceita por ambos, o juiz verificará se estão presentes
os seus requisitos objetivos e subjetivos e aplicará a pena não privativa de
liberdade discriminada na proposta. Em situação alguma poderá ser transacionada
pena privativa de liberdade. A aceitação é benéfica para o autor do fato, pois
não haverá anotação para efeito de reincidência. O registro da transação impede
apenas nova transação em até cinco anos. Além disso, a aceitação não permite a
execução civil da sentença para efeito reparação de dano. À vítima permanece
aberta a via da ação civil ex delicto do CPP.

Da sentença que homologar a transação penal cabe
apelação à turma recursal estadual ou federal no prazo de dez dias, ao passo
que da decisão que a rejeitar cabe mandado de segurança pelo Ministério Público
e habeas corpus pelo autor do fato, ou ainda
correição parcial, conforme o caso.

Como instituto despenalizador
e descarcerizador, que se presta mesmo a evitar o
processo penal, só iniciado com a denúncia, a transação penal é inovação
fundamental na ordem jurídica de um Estado que se declara democrático, pois
possibilita realizar os princípios da intervenção necessária (minina non curat praetor), evitando
seguir-se a carcomida máxima nec delicta maneant impunita, tão cara aos Estados totalitários.

A CF/88,
constitucionalizando vários princípios processuais penais, afeiçoou-se a uma
postura garantista dos direitos humanos, inclusive no
que pertine aos direitos judiciais dos acusados, tão
bem delineados no art. 8º da Convenção da Costa Rica (Pacto de São José),
tornando factível implementar uma política criminal em que o direito penal é a ultima ratio.


Informações Sobre o Autor

Vladimir Aras

Promotor de Justiça na Bahia/BA


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