Resumo: O presente artigo tem por objetivo demonstrar como a ideia clássico-cristã de pessoa colaborou para o desenvolvimento do Direito. Para tanto, aborda a ausência da ideia de pessoa nas sociedades primitivas e seu desenvolvimento no seio das culturas grega, romana e hebraico-cristã, que se entrelaçaram no Direito, se entendido como ordem normativa cujo centro de imputação é a pessoa, e que, portanto, garante ao homem não somente obrigações, mas também direitos.
Palavras-chave: Pessoa. Direito. Grécia. Roma. Cristianismo.
Abstract: This article aims to show how the Classic-Christian idea of personhood collaborates on development of Law. In this purpose, explores the absence of the idea or personhood in primitive societies and his development within the Greek, Roman and Hebrew-Christian cultures, which wove themselves in Law, understood as a normative order whose center of imputation is the person, guaranteeing, in this way, that men has not only obligations, but also rights.
Keywords: Personhood. Law. Greece. Rome. Chistianity.
Sumário: Introdução. 1 Passagem do grupo primitivo à sociedade. 2 O grupo e o indivíduo. 3 Desenvolvimento da ideia de pessoa na cultura clássico-cristã. 4 A inauguração da ordem normativa jurídica em Roma. 5 As garantias do Direito em torno da pessoa. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
A finalidade deste artigo é demonstrar de que forma a ideia clássico-cristã de pessoa permitiu o desenvolvimento do Direito, desde seu surgimento, que tem como marco a Lei das XII Tábuas, em Roma, até os dias de hoje, nos quais se apregoa o Estado Democrático de Direito.
Para tanto, numa perspectiva antropológica, será abordada a transição do grupo primitivo para o grupo social e, no seio desta, a tensão havida entre grupo e indivíduo. Essa tensão é resolvida pelo desenvolvimento da ideia de pessoa, que se dá nos enlaces entre as culturas clássicas da Grécia e de Roma, além da cultura cristã.
Tendo os romanos empregado a ideia de pessoa para inaugurar a ordem normativa jurídica, ultrapassando as ordens normativas costumeira e religiosa, nasce o Direito, que segue até os dias atuais ainda em torno desse centro.
1 PASSAGEM DO GRUPO PRIMITIVO À SOCIEDADE
Embora o homem exista há cerca de dois milhões de anos, se considerado o gênero homo (BLAINEY, 2007), do qual a única espécie não extinta é o homo sapiens, a ideia de pessoa, que ao leitor contemporâneo pode corresponder perfeitamente ao ser humano, desenvolveu-se há poucos milênios.
Antes de mais nada, o desenvolvimento da ideia de pessoa é produto de um longo processo de atomização do grupo, ou, dito de outro modo, individualização de suas partes componentes, os homens.
Assim como outros animais, os homens, desde seu surgimento, levam instintivamente uma vida gregária. No grupo primitivo, essa vida gregária é apenas uma necessidade de sobrevivência, bem própria dos instintos animais. Como a natureza é hostil, os fenômenos climáticos são destruidores e as espécies vivem em competição entre si, os indivíduos buscam proteção no seu ajuntamento.
Como ainda acontece com os demais animais que vivem em estado de natureza, no grupo primitivo o homem se alimentava pela coleta de frutos e pela caça, isto é, servindo-se apenas daquilo já disponibilizado no ambiente. Foi necessário seguir essa disponibilidade natural, que nem sempre se faz no mesmo lugar, por algum tempo, até que técnicas de agricultura e pecuária fossem desenvolvidas.
Além de elevar a oferta de alimentos e, assim, fortalecer ainda mais o grupo, a agricultura e a pecuária permitiram o assentamento do homem em terreno fixo. Surgiram as primeiras cidades e com elas erigiu-se a complexização da vida gregária, o que podemos denominar “sociedade”.
Por conseguinte, criaram-se modos de organização social compatíveis com essa complexidade. Nessa época, há cerca de dez mil anos, nascia a cidade de Jericó, tida por muitos como a mais antiga do mundo, situada em ponto estratégico para beneficiar-se tanto da agricultura quanto do comércio. As estruturas citadinas, de certo, precisaram organizar alguma espécie de governo, para regulamentação mínima do comércio e da defesa.
Ao mesmo tempo, o desenvolvimento de técnicas de domínio da natureza permitiu ao homem deduzir a previsibilidade de alguns fenômenos naturais e, por conseguinte, inferir que o universo é obediente a regras e não a seres invisíveis. Naquele tempo já diminuía, assim, a influência de poderes ocultos sobre a cultura humana (ARAÚJO, 2005).
Essa passagem da vida gregária instintiva, típica de todos os animais, para a vida societária, exclusividade humana, só foi possível por um motivo: o homem é racional, isto é, capaz de pensar abstratamente.
Os gregos se aperceberam disso enquanto elaboravam sua criação mais importante, a filosofia. Segundo Pe. Henrique Vaz (2006), a cultura clássica pôs em relevo dois traços fundamentais quanto ao homem: é um animal que fala e discorre (zoon logikón) e é um animal político (zoon politikón). “Esses dois traços estão, de resto, em estreita correlação, pois só enquanto dotado do logos o homem é capaz de entrar em relação consensual com seu semelhante e instituir a comunidade política” (VAZ, 2006, p. 20).
2 O GRUPO E O INDIVÍDUO
A inauguração da sociedade é, por conseguinte, uma abertura de possibilidades ao homem na qualidade de um ser de discurso. Tendo em vista que a capacidade de raciocínio lógico e de discurso se faz presente em cada indivíduo singularmente representado, e não no grupo como um todo, o indivíduo começa a ser reconhecido em si.
“Forma-se assim a sociedade que, contudo, não é uma totalidade consciente, mas um espaço de consciência individual adquirida no convívio social, porque os homens refletem, mais estreita ou mais largamente, sobre a sua posição no Universo e sobre as atividades dos outros indivíduos e dos grupos a que pertencem, gerando adesões entusiásticas a objetos refletidos, ou a aceitação morna a esses objetos por maiorias silenciosas, que pouco ou nada as refletiram.” (ARAÚJO, 2005, p. 257).
Entretanto, como tudo na história da humanidade, o advento da sociedade não é uma contenção estanque da cultura, de forma que a sociedade coexistiu (e, em muitos casos, em maior ou menor grau, ainda coexiste) com a não individualização do grupo.
Hans Kelsen (1946) fala de comunidades em que o indivíduo como ente separado do grupo não era reconhecido[1]. Algumas línguas antigas, como as primeiras línguas semitas, sequer possuíam uma palavra específica para a primeira pessoa. Em outros casos, o sentido da primeira pessoa se confunde com o da terceira pessoa, como na língua maori. Quando um maori fala na primeira pessoa, ele não necessariamente está falando de si, mas pode se referir a seu grupo. Quando diz “minha terra”, pode estar mencionando a terra do grupo.
Segue Kelsen a explicar que em algumas comunidades, como a dos guaranis, a dieta de um indivíduo doente é aplicada a toda a família.
Noutro exemplo, mais pungente, Robertson Smith (1907) fala de tribos árabes pré-maometanas em que, quando um membro de uma matava um membro de outra, a tribo do homicida deveria punir com a morte alguém de seu meio, ainda que não fosse o próprio assassino. Nesse caso, por qual critério fosse, alguém seria escolhido para ser morto e expiar a dívida para com a tribo do assassinado, pois a culpa era imputada ao grupo e não a este; a vítima era a tribo e não o indivíduo assassinado.
“Para saber se um homem é ou não é envolvido em uma disputa de sangue não é necessário perguntar mais do que se ele pertence à tribo do assassino ou do assassinado. A fórmula comum aplicada ao homicídio é que o sangue de um hayy [tribo reunida em torno de um nome comum] foi derramado e precisa ser vingado. O membro da tribo não diz que o sangue de M ou N foi derramado, dando o nome do homem; ele diz “nosso sangue foi derramado”. […] Ninguém que é parte da tribo pode escapar da responsabilidade simplesmente porque ele não é um parente próximo do assassino ou do assassinado.”[2] (SMITH, 1907, p. 26, itálico do original).
Esses exemplos demonstram que o homem, numa sociedade que desconhece a importância do indivíduo em si, é visto como simples peça do grupo, sem que o seu papel em e para si seja relevante. Relevante é sua função e sua utilidade para o grupo, donde sua perda é lamentada, como a perda de uma peça é lamentada por prejudicar o funcionamento de uma máquina, sem que a peça tenha importância nela mesma.
Essa cultura fortemente socializada impede que o homem tome consciência do “eu” e veja sentido em si mesmo, no seu papel para si e no seu desenvolvimento para si. Sendo o grupo uniformizante uma vontade única, as condições de discurso e convencimento não estão suficientemente presentes, pois a capacidade de raciocínio lógico só reside na subjetividade do indivíduo.
A capacidade de raciocínio lógico e de discurso não reside no grupo. Por isso, quando ao longo da história o ajuntamento humano se mostra imprescindível para que projetos mais complexos sejam executados, a tal ponto de os homens instituírem um ente abstrato que represente esse ajuntamento, cria-se a ideia de pessoa ficta ou pessoa jurídica, que é uma simulação tosca da subjetividade humana. Nas palavras de Elienai Cabral Jr. (2006), “na institucionalização, diminuímos e enfraquecemos a importância da subjetividade de pessoas livres e a influência das circunstâncias para solidificarmos organismos, materiais ou imateriais, representativos de nossos valores”.
3 DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE PESSOA NA CULTURA CLÁSSICO-CRISTÃ
Os antigos gregos – voltamos a eles –, sabiam que somente por ficção se poderia falar de “pessoa” sem falar de “razão” ou “discurso”, pois sua ideia fundamental de homem era de um ser dotado do logos, rico vocábulo grego cujo significado vai de “verbo” a “razão”. Para eles, o discurso e a razão eram conceitos intimamente ligados.
Não por acaso, São João Evangelista identifica Jesus Cristo como o Logos, dizendo que “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez” (JOÃO 1, 1-3), sabendo João que o Gênesis ensina que Deus criou o mundo falando, discursando.
O fato é que a cultura grega, que alimentara inclusive os judeus da época de Cristo[3], convenceu-se que não há homem sem discurso e que, portanto, a humanidade começa com a linguagem. Nessa direção, leciona o Prof. Aloízio Gonzaga Andrade Araújo que:
“Em decorrência, é com a conquista da linguagem fonética oral e escrita que aparecem as línguas e, com elas, em estruturas operatórias da inteligência verbalizada, a Razão, a Lógica, a Consciência e a Cultura; estas dão nova dimensão à técnica, à arte e à magia, fazem surgir o conhecimento teórico pelo Mito, pela Religião, pela Filosofia e dela pela Ciência, tudo como que a envolver o homem no horizonte de construção cada dia permanentemente alargado em espiral ascendente, a partir dos pontos iniciais de sua experiência inteligente, para lançá-lo indefinidamente ou aos mais baixos níveis de bestialidade ou aos mais elevados graus de humanismo.” (ARAÚJO, 2005, p. 172).
O logos como poder fundante não é a única comunhão entre a filosofia grega e o cristianismo. Ambos desenvolvem a ideia de pessoa moral. No caso dos cristãos, porque os homens foram criados segundo a imagem de Deus e, assim, guardam parcelas do entendimento divino acerca do bom e do justo, conceitos que somente se depreendem em relação a outros: o mau e o injusto. O Deus cristão monoteísta não é apenas uma força ou inteligência que paira sobre o mundo ou se confunde com ele. O Deus cristão é pessoa, isto é, sujeito de relações. Os homens, da mesma forma, tendo em si a imagem de Deus, são relacionais.
No caso dos gregos, empregando a voz de Aristóteles, dizia este que o homem é essencialmente destinado à vida em comum na polis e somente aí se realiza como ser racional (zoon politikón) (VAZ, 2006, p. 38). Essa vida em comum é uma vida de relações e, portanto, de conscientização moral a respeito do outro, sendo essa conscientização um produto da razão. O homem “é um zoon politikón por ser exatamente um zoon logikón, sendo a vida ética e a vida política artes de viver segundo a razão (katà tòn lògon zên)” (VAZ, 2006, p. 38, itálico do original). Segue Pe. Vaz a dizer que:
“Ética e Política são assim, para Aristóteles, como tinham sido para Sócrates e Platão – e nisso eles se fazem intérpretes de uma das características mais profundas do homem grego –, o campo por excelência onde se manifesta a finalidade do homem coroada pelo exercício da razão ou definida pela primazia do logos.” (VAZ, 2006, p. 39, itálico do original).
Em face do exposto, é tranquilo afirmar que a concepção cristã-medieval do homem procede de duas fontes: “a tradição bíblica, vetero e neotestamentária, e a tradição filosófica grega” (VAZ, 2006, p. 49). O amálgama resultante da fusão dessas duas vertentes é o Cristo, filho de Deus e, portanto, a perfeita imago Dei. Cristo é o Deus relacional dos judeus, mas agora encarnado e, desse modo, a representação terrena da consciência moral.
A evolução operada pelo cristianismo, segundo Vaz (2006, p. 52, itálico do original), está no fato de que “a teoria bíblica do homem não é uma teoria que expõe num discurso articulado conceptualmente e que se pretende demonstrativo, como acontece na filosofia”. A reflexão sobre homem levada a cabo pela Bíblia se dá a conhecer por meio de uma narração, a narração a respeito da história da redenção do homem e, em última instância, a narração sobre a vida de Jesus, o modelo de pessoa por excelência, que deve ser seguido para que a humanidade seja redimida.
“A leitura cristã do AT vê a consumação desse processo no mistério da encarnação do Verbo de Deus: o homem Cristo-Jesus passa a ser o arquétipo ou a analogia entis concreta como norma absoluta da concepção cristã do homem. A antropologia do NT apresenta-se, pois, como a fonte primeira da visão bíblico-cristã do homem, da qual fluirá incessantemente o pensamento cristão sobre o homem ao longo dos séculos.” (VAZ, 2006, p. 52, itálico do original).
4 A INAUGURAÇÃO DA ORDEM NORMATIVA JURÍDICA EM ROMA
A cultura romana, como se sabe, foi herdeira de valiosos elementos da cultura grega e da cultura cristã, mas primeiramente da grega. Roma recebeu da Grécia uma importante contribuição, de tal forma que lá se viu desenvolver uma ciência jurídica a partir da filosofia grega. A influência grega, segundo o Prof. Aloízio Araújo (2005), data pelo menos de Pitágoras. O vocábulo latino jus, equivalente ao grego ison, já indica que a ideia de justiça entre os romanos também remetia ao ideal filosófico grego de proporcionalidade harmônica.
Mas qual o proveito que fizeram os romanos do que receberam dos gregos? Sendo os romanos mais pragmáticos que teóricos e mais supersticiosos que religiosos, eles lograram compreender a lei menos como reflexo de uma ordem natural do que como um acerto entre vontades individuais concretas.
Ainda assim, antes da Lei das XII Tábuas, as leis romanas tinham caráter sagrado e costumeiro, centradas no culto aos mortos e na organização religiosa da família (ARAÚJO, 2005). Por exemplo, as leis que garantiam o direito de propriedade, ensina Fustel de Coulanges (2002), tinham raiz na crença de que os mortos da família são possuidores do solo deste, o que não permite de modo algum a usurpação da terra, sendo isso crime de lesa memória. Registra Coulanges que:
“Vemos em que medida, em tudo isso, se manifesta o caráter da propriedade! Os mortos são deuses pertencendo exclusivamente a uma família, e só ela tem o direito de o invocar. Esses mortos tomaram posse do solo, vivem sob um pequeno outeiro, e ninguém a não ser os da família, deve tentar se meter com eles. Ninguém tampouco tem o direito de privá-los da terra que ocupam; um túmulo, entre os antigos, não podia ser destruído nem deslocado; proíbem-no as mais severas leis. Eis portanto uma porção de terra que, em nome da religião, tornou-se objeto de propriedade perpétua de cada família. A família tomou posse desta terra, colocando nela os seus mortos, e fixando-se aí para sempre. O descendente vivo dessa família pode dizer legitimamente: esta terra é minha. E de tal modo lhe pertence que lhe é inseparável, e nem ele mesmo tem o direito de renunciar à sua posse. O solo onde repousam os mortos converte-se em propriedade inalienável e imprescritível. A lei romana exige que, se uma família vender o campo onde está o seu túmulo, continue sua proprietária e conserve o direito de poder atravessar sempre o terreno, para nele cumprir as cerimônias do culto.” (COULANGES, 2002, p. 70).
A despeito disso, a história romana acaba finalmente operando a transição entre as ordens costumeira e religiosa para a ordem jurídica. O verdadeiro marco de transição é, sem dúvida, a Lei das XII Tábuas, resultado das tensões entre os patrícios, que se beneficiavam da conservadora visão costumeira e religiosa das leis, e os plebeus, que, a despeito da liberdade que tinham, não possuíam direitos civis ou políticos, almejando, por conseguinte, a instalação de uma nova perspectiva.
A plebe, por mais riqueza e influência que obtivesse, durante a monarquia romana não teve cidadania, de modo que os plebeus não podiam votar e sequer formar família que fosse legalmente reconhecida. Durante a república, naquilo que ficou conhecido como a Revolta do Monte Sagrado, os plebeus se organizaram e, num movimento assemelhado a uma greve, assentaram-se no tal monte. Como a economia da cidade dependia dos plebeus, os patrícios capitularam e, em troca do retorno deles, criaram o tribuno da plebe, entre outras concessões.
Os tribunos da plebe eram representantes dos plebeus e agiam como um contrapoder da magistratura romana, outrora tão odiada por eles em razão do conservadorismo na interpretação das leis. Podiam vetar as decisões dos magistrados patrícios e, posteriormente, ganharam o poder de também dar iniciativas às leis.
Nesse caminho, não tardou para que, em 452 a.C., os plebeus conseguissem a promulgação de uma lei escrita de caráter geral e não mais particular, a Lei das XII Tábuas. Sendo escrita, a interpretação dos magistrados estaria cerceada pela gravação gramatical, e, sendo geral, garantiria aplicação igualitária a todos, patrícios ou plebeus.
A nota mais importante sobre a Lei das XII Tábuas diz respeito ao fato de que, antes desse marco, a ordem normativa vigente em Roma somente conferia obrigações aos plebeus. Após o marco, a ordem normativa passa a também comportar direitos. Segundo o Prof. Aloízio Araújo:
“A partir daí se forma o que chamamos hoje de relação jurídica, que, conforme leciona Moreira Alves, é a bipolaridade que se estabelece entre aquele que tem a faculdade de exigir o cumprimento da norma jurídica e, portanto, é o detentor do direito subjetivo, e o que está sujeito a observá-lo e que é o responsável pelo dever jurídico, tudo sob o crivo do processo, entendido como processo judicial em última análise, porque nascente aí o contraditório, sob o crivo da jurisdição pública.” (ARAÚJO, 2005, p. 421).
Ainda segundo o Prof. Aloízio Araújo, podemos dizer que a Lei das XII Tábuas inaugura a primeira das ordens jurídicas, porque seu centro de imputação é a pessoa.
Como ensina o professor, os costumes são, do grupo primitivo à sociedade, uma importante fonte da disciplina das relações entre indivíduos. Formado pela prática reiteradamente aceita no seio do grupo, o costume impõe suas regras às condutas de todos pois a obediência é de interesse dominante. Frente ao interesse massificado do grupo, os indivíduos, cujos interesses são considerados menores, só têm deveres. Podemos dizer, portanto, que o centro de imputação da ordem normativa costumeira é o grupo.
Na ordem normativa religiosa, por sua vez, o centro de imputação é a divindade. Sendo a religião uma resposta a angústias da existência humana quanto à vida presente e vindoura, oferece normas de conduta, tal qual feito pelo costume, visando a disciplinar a relação entre os indivíduos entre si e entre estes e a divindade. Também aqui se fala somente em obrigações dirigidas ao indivíduo, nesse caso frente à divindade.
As ordens normativas costumeira e religiosa, cuja existência tem registros históricos há pelo menos quatro mil anos, influenciaram-se reciprocamente e terminaram influenciando também a ordem normativa jurídica, que sabidamente guarda regras de conduta igualmente preconizadas por costume e religião, a exemplo da norma que proíbe o homicídio. Apesar do acerto da proibição dessa conduta nas ordens costumeira e religiosa, não poderiam ser consideradas ordens jurídicas porque as suas normas gravitam em torno de outra coisa que não é a pessoa.
Quando o centro de imputação é transferido do grupo ou divindade para a pessoa, aí nasce a ordem normativa jurídica, na qual, além de obrigações, os indivíduos têm também direitos.
Disso decorre que a ordem normativa jurídica, isto é, o Direito, só pode ser erigida tendo como alicerce a ideia de pessoa. Assim, não foi por acaso que nasceu o Direito em Roma, para onde se dirigiram os influxos das concepções sobre o homem desenvolvidas na Grécia, das quais já falamos, reforçadas ainda mais quando Roma foi influenciada pelos ideais cristãos de igualdade entre os homens e de dignidade de cada um singularmente.
“Do pilar teórico grego socrático-platônico-aristotélico, enriquecido pelo estoicismo, a seguir surgido na Grécia, e a contribuição do Cristianismo, traços importantíssimos para a consolidação do Direito – de que aqui não trataremos – o individualismo concreto romano, centro de emanação da nova ordem normativa, a jurídica, vai ser enriquecido pelo individualismo abstrato, doutrina que, partindo da igualdade substancial do homem, porque originário da mesma carne e do mesmo sangue, fá-lo-á elevar-se em espiral crescente à pessoa de direito, com os direitos individuais tornados direitos fundamentais a que se acresceram os direitos políticos, sociais, coletivos, e difusos, tal o ponto a que chegamos hoje, sob os auspícios da laicisação do jus gentium e do jus naturale.” (ARAÚJO, 2005, p. 424, itálico do original).
5 AS GARANTIAS DO DIREITO EM TORNO DA PESSOA
A teoria filosófica grega, canalizada pelo senso prático dos romanos, permitiu a estes reconhecer e garantir mediante estatutos que o homem, como animal racional e, portanto, animal de discurso, deve ser ouvido sobre o que as normas lhe impõem. Foi o nascedouro do processo, que tinha já na Lei das XII Tábuas garantias de defesa contra os interesses conduzidos ao pretor.
Sendo essencial ao conceito de pessoa a capacidade do homem de raciocinar por ideias gerais e, dessa forma, formular pontos de vista e expressá-los por meio da linguagem, o Direito reconhece e respeita a ideia de pessoa por garantir que o indivíduo será ouvido antes que algo lhe seja imposto.
Como nas outras ordens normativas é o interesse do grupo ou da divindade que deve prevalecer contra o indivíduo, este é feito objeto de outra vontade. Para o Direito, contudo, o indivíduo passa a sujeito, sendo a sua vontade a força regente de sua vida.
Num conflito de vontades livres, a solução do Direito é o estabelecimento de um procedimento para busca da verdade, conhecido de antemão e imparcial, destinado a evitar que uma vontade seja encoberta pela outra e que o agir do indivíduo seja aprisionado sem que este tenha oportunidade de convencer outrem sobre suas razões.
Em respeito à autonomia da pessoa e de sua capacidade de discurso, o procedimento de busca da verdade não pode ser obra de apenas uma das vontades em conflito e tampouco de um mediador entre vontades, ainda que reconhecido como imparcial. A questão para o Direito é que a busca deve considerar as razões de todos os indivíduos interessados e, além disso, dar-lhes condições de expressar entre si as divergências recíprocas.
Neste sentido, a conclusão de Elio Fazzalari (2006) de que o processo é o procedimento em contraditório, apesar da beleza sintética, não é novidade, uma vez que, fazendo hoje um exame dos fatos do passado, podemos afirmar que a participação dos interessados no provimento (o contraditório) foi ponto de distinção entre processo, instituição típica do Direito nascida com a Lei das XII Tábuas, e procedimento, sequência de regras de investigação empregadas sem contraditório, usada pelas ordens costumeira e religiosa[4].
A ideia clássico-cristã de pessoa é responsável pela criação do Direito pois preconiza que a pessoa é capaz de discursar e convencer, de modo que a garantia de exercício dessa capacidade é o início do Direito. Essa é a essência do contraditório. Quando não se garante a participação do indivíduo naquilo que é de seu interesse, a ordem normativa faz dele objeto e não sujeito de direitos. E em se tratando de objetos, não há relação, elo que pressupõe racionalidade e é feito somente entre pessoas, como vimos acima ao tratar da cultura clássico-cristã e conforme leciona Caio Mário da Silva Pereira:
“Relação jurídica traduz o poder de realização do direito subjetivo, e contém a sua essência. É o vínculo que impõe a submissão do objeto ao sujeito. Impõe a sujeição de um a outro. Mas não existe relação jurídica entre o sujeito e o objeto. Somente entre pessoas é possível haver relações, somente entre sujeitos, nunca entre o ser e a coisa. Esta subordina-se ao homem, que a domina.[…]
Desta maneira se fecha o pensamento jurídico: o sujeito ativo procede contra o sujeito passivo, mas não tem senhoria sobre ele; o sujeito ativo polariza o seu poder sobre a coisa, mas não se dirige contra ela; o sujeito passivo suporta a determinação do direito objetivo, para prestar ao sujeito ativo.” (PEREIRA, 1999, p. 28 e 29, itálico do original).
Logo, o reconhecimento e a proteção dos direitos subjetivos, condições para exercício da capacidade de discurso que é vazão da racionalidade, significam vedação à reificação do homem, em respeito à sua condição de pessoa.
Pelos seus direitos subjetivos, é dado a cada homem a oportunidade de discursar e convencer. O Direito é, desse modo, a segurança da manutenção dos espaços públicos de discussão. Não é coincidência que o significado da palavra fórum, no idioma português, indique um lugar de discussão e o próprio edifício do Poder Judiciário.
Em Roma, o fórum era o lugar de convivência, à moda da ágora grega, para o qual os cidadãos confluíam a fim de comprar, vender, jogar, cultuar, reivindicar e, para tal finalidade, ouvir e falar. Por isso mesmo, nessa praça se edificavam os edifícios mais importantes da cidade, como templos, mercados e prédios para administração da cidade e da justiça.
No fórum romano resolviam-se de pequenos litígios a grandes questões relacionadas à cidade. A ideia de pessoa e, portanto, de processo, no fórum passou a permear todos os assuntos públicos. Não que tenha tudo se realizado nesse primeiro momento, mas o longo caminho começou lá a ser trilhado. Esse longo caminho que desenvolve a ideia de processo terminou alimentando, inclusive, as concepções sobre a democracia.
Podemos dizer que o desenvolvimento do processo democrático, impelido pelas lições históricas que o mau uso da regra maioria nos deu, hoje se alimenta fundamentalmente da ideia clássico-cristã de pessoa. Com fulcro na pessoa, o Direito não pode permitir que a vontade da maioria seja motivo para desrespeito à minoria, haja vista que a minoria é também formada por pessoas. Nas ocasiões em que a maioria se sobrepõe autoritariamente à minoria, os membros dessa são reificados e não se pode falar de ordem normativa jurídica, senão costumeira ou religiosa.
No Estado Democrático de Direito, ideia a que se chega no séc. XX, a regra da maioria segue como regra do processo democrático, mas condicionada à garantia dos direitos da minoria, dentre os quais se inclui o direito de discurso.
Atento ao problema, Habermas (2003, p. 260, itálico do original) comenta as reflexões de Julis Fröbel, “um democrata do sul da Alemanha, [que] desenvolveu, em 1848, a ideia de uma vontade geral pensada de modo não-utilitarista, a qual deve formar-se da vontade livre de todos os habitantes dos burgos, através de discussão e consenso”. Mais uma vez, a proposta de solução está baseada na capacidade humana de discurso.
Explica Habermas que Fröbel interpreta a decisão da maioria como acordo condicionado. Tomada a decisão após o voto da maioria, não se exige da minoria que abdique de sua vontade nem se considera que ela se equivocou. Apenas se exige provisoriamente que a minoria renuncie à aplicação de suas convicções até que possa, pela via do discurso, convencer a maioria sobre suas razões.
A regra da maioria, para Fröbel, não deve permitir a esta desconsiderar a condição de pessoa dos membros da minoria. Ela deve operar para tomada de decisões, mas sem fechar comunicação (ou relação) entre pessoas cuja opinião é divergente. Aos indivíduos cuja opinião não foi acatada, deve sempre ser deixado aberto o espaço para exercício de sua capacidade discursiva, lhes sendo reconhecida a condição de pessoa, de modo que a democracia dê as mãos ao Direito.
CONCLUSÃO
Do exposto, podemos resumir que o Direito, desde sua origem e até hoje, alimenta-se de concepções historicamente elaboradas sobre a razão, o discurso e a relação. A razão, que permite o raciocínio lógico e consequentemente o domínio da linguagem e, assim, a expressão pelo discurso; o discurso, que faz ligação comunicativa entre indivíduos e lhes possibilita relacionar-se; e a relação, que se faz sem domínio e reificação entre os homens.
A razão, o discurso e relação, sendo parte da ideia de pessoa desenvolvida na Grécia, passando pela Judeia e por Roma, recebendo daquela um reforço ético e desta uma aplicação prática, entrelaçam-se de maneira a criar o Direito, se entendido como ordem normativa cujo centro de imputação é a pessoa, e que, portanto, garante ao homem não somente obrigações, mas também direitos.
Referências
ARAÚJO, Aloízio Gonzaga de Andrade. O Direito e o Estado como estruturas e sistemas: Um contributo à teoria geral do Direito e do Estado. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG / Movimento Editorial, 2005.
BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do mundo. 2 ed. São Paulo: Fundamento, 2007.
CABRAL JR., Elienai. Babelismo: As perversas construções humanas e a graciosa desconstrução divina. A Bacia das Almas. Disponível em <http://www.baciadasalmas.com/2006/babelismo>. 18 out. 2006. Acesso em 28 jun. 2010.
COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2002.
FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Trad. Elaine Nassif. Campinas: Bookseller, 2006.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, v. 2.
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KELSEN, Hans. Society and Nature: a Sociological Inquiry. London: Kegan Paul, Trench, Trubner & Co., 1946.
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SMITH, William Robertson. Kinship & Marriage in Early Arabia. Londres: Adam And Charles Black Publishers, 1907.
VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Antropologia Filosófica. 8 ed. São Paulo: Loyola, 2006, v. 1.
Notas:
[1] Ressalte-se que ele não está se referindo a homens no grupo primitivo, tratado acima como fase anterior à sociedade, mas a homens inseridos em sociedades.
[2] “To determine whether a man is or is not involved in a blood-fleud it is not necessary to ask more than whether he bears the same group-name with the slayer or the slain. The common formula applied to manslaugther is that the blood of such a hayy has been shed and must be avenged. The tribesmen do not say that the blood of M or N has been spilt, naming the man; they say “our blood has been split”. […] No man who is within the group can escape responsibility merely because he is not a close relation of the slayer or the slain.”
[3] Alexandre Magno controlou Jerusalém no séc. III a.C, dando início a essa influência. Durante o período helenístico, o grego foi língua franca e os judeus que viviam dentro e fora de sua terra, estes mais que aqueles, a dominavam. Além da existência à época de Cristo, de uma tradução do Antigo Testamento para o grego, a chamada “Septuaginta”, vale lembrar que a maior parte do Novo Testamento foi escrito em grego.
[4] O próprio Fazzalari (2006, p. 109) admite que:
“A história dos dois fenômenos 'procedimento' e 'processo' se descortina, como acontece geralmente, a partir da história dos dois conceitos, no sentido de que eles – os dois nomes e os dois significados – surgiram muito recentemente em relação à imemorável experiência dos fatos (seqüência de normas e de atos que sempre existiram; a realidade que nós hoje concebemos como 'procedimento' e como 'processo', sempre aconteceu) e no sentido de que a concepção e o emprego dos dois esquemas e dos dois termos estão muito atrasados”.
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Anderson Júnio Leal Moraes
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)