Reflexões sobre o campo jurídico a partir da sociologia de Pierre Bourdieu

Resumo: Através de elementos da sociologia de Pierre Bourdieu: campo, habitus, poder simbólico e violência simbólica, pretende-se realizar uma breve reflexão acerca da lógica de funcionamento das estruturas e relações sociais engendradas no campo jurídico. Noutras palavras, busca-se discutir um caminho teórico a fim de compreender as verdades escamoteadas do espaço social dos operadores do direito, daqueles que detêm a autoridade jurídica, o poder, cujo exercício legítimo é monopólio do Estado, de dizer o direito de cada indivíduo (jurisdicionado), que busca a prestação jurisdicional do Estado-juiz. Ao final, apresenta-se os relatos de dois juízes franceses (poderiam ser brasileiros pela grande semelhança de situação fática) que em razão de não se adaptarem à lógica do campo jurídico, mais especificamente, às suas leis não escritas, sentem que são paulatinamente proscritos por seus pares, sob a alegação de estarem inserindo elementos heterodoxos em um espaço social autônomo, neutro e imparcial.

Palavras-chave: Sociologia – Pierre Bourdieu – Campo jurídico.

Abstract: Through Pierre Bourdieu’s sociology: field, habitus, symbolic power and symbolic violence, we intend to accomplish an abbreviation reflection concerning the logic of structures and social relationships’ operation engendered in the juridical field. In other words, seeks to discuss for to reveal the pilfered truths of the social space of the law operators; of those that stop the juridical authority; the power (whose legitimate exercise is State’s monopoly) of saying each individual's right, that it looks for the State-judge's installment juridical. At the end, presents the two French judges' reports that in reason of if they don't adapt to the logic of the juridical field, more specifically, to their laws no written, they seat that they are excluded gradually by their pairs, under the allegation of they be inserting heterodox elements in an autonomous, neutral, impartial social space.

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Keywords: Sociology – Pierre Bourdieu – Juridical field.

Sumário: Introdução; 1 Campo, habitus, poder simbólico e violência simbólica; 2 O campo jurídico; 3 Relatos; Conclusão.

Introdução    

O tema Reflexões sobre o campo jurídico a partir da sociologia de Pierre Bourdieu elucida que, nas linhas abaixo, pretende-se compreender o direito à luz da sociologia. A intenção deste artigo é difundir uma sociologia reflexiva do direito, fazendo uma breve análise do funcionamento do campo jurídico a partir de alguns elementos da sociologia de Pierre Bourdieu, afastando-se de um estudo meramente técnico-dogmático do direito, isto é, daquele que está preocupado e voltado estritamente em fazer a interpretação e aplicação das normas jurídicas, a subsunção do caso concreto à norma jurídica.

Ainda se produz nas faculdades de direito do Brasil poucos trabalhos científicos nos moldes do presente, o qual toma o direito como objeto de reflexão da sociologia, da filosofia ou psicologia, disciplinas ofertadas no início do curso de direito, e que, não raras vezes, os graduandos não entendem o porquê e para quê precisam estudá-las.

As disciplinas de sociologia, filosofia e psicologia servem para dar ao bacharel em direito uma visão crítica e ampla de seu instrumento de trabalho; não apenas uma visão interna e ortodoxa, mas também externa e heterodoxa, relevante para o desenvolvimento da ciência do direito e da aproximação e atualização desta em relação à realidade histórico-social na qual está inserta.

Buscar-se-á unir uma investigação teórica de elementos desenvolvidos por Bourdieu – campo, habitus, poder simbólico e violência simbólica – a uma aplicação no universo jurídico, particularmente a dois casos de juízes franceses que integram a chamada “mão esquerda do Estado”. A opção por esses magistrados franceses não foi por acaso, pois os dilemas e óbices que enfrentam no exercício da judicatura são demasiadamente semelhantes aos experimentados por muitos magistrados brasileiros.

Para tanto, segue-se orientação de BOURDIEU (O poder simbólico, 2005, pp. 59 e 20):

Diferente da teoria teórica – discurso profético ou programático que tem em si mesmo o seu próprio fim e que nasce e vive da defrontação com outras teorias –, a teoria científica apresenta-se como um programa de percepção e de acção só revelado no trabalho empírico em que se realiza. Construção provisória elaborada para o trabalho empírico e por meio dele, ganha menos com a polémica teórica do que com a defrontação com novos objectos (grifei).

O cume da arte, em ciências sociais, ensina o sociólogo francês, está sem dúvida em ser-se capaz de pôr em jogo ‘coisas teóricas’ muito importantes a respeito de objectos ditos ‘empíricos’ muito precisos, frequentemente menores na aparência, e até mesmo um pouco irrisórios. Tem-se demasiada tendência para crer, em ciências sociais, que a importância social ou política do objecto é por si mesmo suficiente para dar fundamento à importância do discurso que lhe é consagrado – é isso sem dúvida que explica que os sociólogos mais inclinados a avaliar a sua importância pela importância dos objectos que estudam, como é o caso daqueles que, actualmente, se interessam pelo Estado ou pelo poder, se mostrem muitas vezes os menos atentos aos procedimentos metodológicos. O que conta, na realidade, é a construção do objecto, e a eficácia de um método de pensar nunca se manifesta tão bem como na sua capacidade de constituir objectos socialmente insignificantes em objectos científicos ou, o que é o mesmo, na sua capacidade de reconstruir cientificamente os grandes objectos socialmente importantes, apreendendo-se de um ângulo imprevisto...”

Destarte, tentar-se-á colocar em discussão a representação e discurso oficiais do universo jurídico, pouco discutida e estudada pelos indivíduos que fazem parte do mesmo, talvez porque os estudos hermenêuticos das regras e princípios de direito deem mais prestígio e reconhecimento aos seus autores do que um estudo (como o presente) que tenta refletir sobre a retórica jurídica.

Impende não olvidar que Bourdieu concebe a sociologia como a ciência do oculto, na medida em que busca desvelar, desvendar e trazer à tona os verdadeiros sentido e lógica que estão por traz das estruturas e relações sociais produzidas e exercidas num determinado campo social (INDA in BOURDIEU, 2001, p. 10).

Empreender-se-á um estudo analítico-compreensivo do campo jurídico, um espaço cuja função precípua é de dizer o direito de cada indivíduo, buscando demonstrar, ao final, a partir do relato de dois juízes franceses (que bem poderiam ser brasileiros), os efeitos das estruturas e relações sociais engendradas nesse campo na realização de um ideal de justiça social e de direitos humanos.

1 Campo, habitus, poder simbólico e violência simbólica

As noções de campo, habitus, poder simbólico e violência simbólica desenvolvidas pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu ao longo de toda sua vida, revelam antes de tudo um modus operandi do pesquisador na realização e condução de sua pesquisa científica. Trata-se de uma metodologia de pesquisa que unindo um arcabouço teórico à aplicação num determinado espaço social (no caso em tela o espaço jurídico) visa analisar e compreender a lógica do funcionamento do mesmo. É o que Bourdieu (O poder simbólico, 2005, p. 59) intitulou de teoria científica, isto é, aquela teoria vocacionada à aplicação prática, e não apenas para os debates em abstrato, à semelhança da teoria teórica.

A metodologia bourdieusiana tem por finalidade precípua a superação da dicotomia entre teorias objetivistas e teorias subjetivistas que domina e limita as discussões e estudos nas ciências sociais. As primeiras entendem que as atitudes e comportamentos humanos são meros produtos inconscientes de um determinismo das estruturas histórico-sociais. Logo, o homem seria uma espécie de marionete, em razão dessa total manipulação sofrida. Já as segundas, explicam as ações humanas como sendo resultados de uma consciência e vontade livres de qualquer pressão externa ao indivíduo, ou seja, o homem seria senhor e único responsável pelas suas condutas. Partindo dessas duas teorias, Bourdieu oferece uma síntese, uma terceira alternativa, qual seja: a conduta humana é o resultado da conjugação tanto das influências histórico-sociais quanto de uma racionalidade e volição intrínsecas. Em outras palavras, o ser humano é ao mesmo tempo condicionado e condicionante do meio social em que vive, pois desde os primeiros anos de vida, cuja consciência de si e do mundo começa a se formar, interioriza e assimila os valores e regras de seu contexto histórico-social para, posteriormente, com essa consciência amadurecida, interferir nesse mesmo contexto, de acordo com suas necessidades e anseios. Esta reciprocidade e intercâmbio entre o indivíduo e o meio social dura pela vida toda (INDA in BOURDIEU, 2001).

Em última análise, a metodologia bourdieusiana busca construir uma antropologia total na medida em que entende, compreende o ser humano na sua totalidade, isto é, como agente passivo (produto) e ativo (produtor) de seu meio social.

A noção de campo nasce quando Bourdieu, ao analisar um estudo de Max Weber sobre o funcionamento do campo religioso, no qual são aplicados alguns conceitos e terminologias da ciência econômica – como, por exemplo: mercado, capital, concorrência e monopólio – percebe que esta aplicação poderia ser estendida para outros espaços sociais (BOURDIEU, O poder simbólico, 2005).

Um campo social não é algo que sempre existiu, mas é o resultado de um paulatino processo histórico de formação e de busca cada vez maior de autonomização em relação às pressões externas do contexto em que surgiu e se desenvolve, a partir do aparecimento de um grupo de agentes incumbidos e dedicados ao exercício de uma atividade profissional específica, a fim de atender ao surgimento de uma demanda da sociedade. Portanto, o surgimento de um campo social decorre de necessidades sociais (BOURDIEU, A economia das trocas simbólicas, 2005).

A busca pela autonomia absoluta, cujo significado, por um lado, é um fechamento cada vez maior em torno de elementos ortodoxos, isto é, em torno de si mesmo e, por outro, é uma recusa a qualquer influência de elementos heterodoxos, ou seja, que estão fora de si, torna-se ilusão constantemente buscada, porquanto as estruturas e relações sociais de cada campo nada mais são que reflexos maiores ou menores das condições histórico-sociais de uma sociedade.

O campo social é tanto mais autônomo quanto maior for sua capacidade de retraduzir, assimilar e absorver as influências externas mediante uma retórica e revestimento específicos do espaço social, escamoteando, assim, os elementos heterodoxos (BOURDIEU, 2004).

Pode-se afirmar, então, que campo social é um espaço relativamente independente aos influxos externos, sendo definido e delimitado por um conjunto de valores, princípios e regras, ou seja, por uma ortodoxia, no qual se engendram relações objetivas de dominação, subordinação e homologia entre os participantes, que entram em concorrência entre si pelo monopólio de um poder simbólico ou capital específico. Nessa concorrência, o quantum de poder simbólico possuído é o que vai determinar a posição (dominação, subordinação ou homologia) e a disposição (atitudes e comportamentos) de cada indivíduo, daí serem relações objetivas, pois é um elemento objetivo: poder simbólico ou capital específico, que determina a organização e dinâmica do espaço social. Quanto maior for esse poder simbólico, maior será o reconhecimento, respeito e a autoridade do indivíduo em relação aos seus pares concorrentes, definindo, assim, as estratégias e as relações que deverão ser construídas para o acúmulo ou manutenção desse poder simbólico (BOURDIEU, O poder simbólico, 2005).

 De acordo com o magistério de Andrés García INDA (in BOURDIEU, 2001, pp. 14-15):

(…) la noción de campo social que utiliza Bourdieu alude a un “espacio específico” en el que esas relaciones se definen de acuerdo a un tipo especial de poder o capital específico, detentado por los agentes que entran en lucha o en competencia, que “juegan” en ese espacio social. Es decir, que las posiciones de los agentes se definen históricamente de acuerdo a su “situación actual y potencial en la estructura de distribución de las diferentes especies de poder (o de capital) cuya posesión condiciona el acceso a los provechos específicos que están en juego en el campo, y también por sus relaciones objetivas con otras posiciones (dominación, subordinación, homología…”)

A par disso, há uma disputa entre campos sociais distintos num espaço denominado de campo de poder, no qual os agentes detentores do monopólio do poder ou capital simbólico de seu respectivo campo entram em concorrência pelo poder simbólico de impor sua ideologia e autoridade sobre os outros campos sociais (INDA in BOURDIEU, 2001). A título de exemplo, imagine-se os detentores do poder simbólico jurídico (campo jurídico) e os do poder simbólico da sociologia (campo dos sociólogos) discutindo e debatendo as razões e causas que leva uma pessoa a delinquir. Cada um tentará impor a visão do campo social ao qual pertence em relação ao outro como sendo a mais adequada e escorreita para explicar o fato social em discussão. Prepondera aquele que apresentar maior reconhecimento, prestígio e autoridade na sociedade em cujo fato social ocorre.    

Observa-se, assim, uma competição tanto interna quanto externa ao campo social. Os indivíduos de um mesmo espaço social mantêm uma relação dialética entre si: tanto de concorrência pelo monopólio do capital específico do seu espaço social quanto de complementaridade na tentativa de imposição de seu poder simbólico sobre os outros espaços sociais. Esta complementaridade dá-se no sentido de um consenso em torno de um conjunto de valores, princípios e regras e da assimilação de discursos e práticas comuns, muitas vezes não escritas. É construída, desta forma, uma representação oficial do campo social, visando, por um lado, repassar a imagem de unidade entre os participantes, e, por outro lado, dissimular e escamotear as relações de concorrência engendradas no seu interior e em relação a outros campos sociais.

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A noção de habitus exprime e condensa duas idéias consideradas diametralmente opostas: a teoria do sujeito inconsciente ou teoria objetivista e a teoria do sujeito consciente ou teoria subjetivista. A primeira considera o ser humano como mero reprodutor ou marionete das estruturas histórico-sociais, enquanto a segunda concebe o ser humano como senhor de suas atitudes e comportamentos. O habitus é um conjunto de disposições (atitudes e comportamentos) oriundas do meio familiar, escolar e de classe social (condições materiais) incorporadas e interiorizadas inconscientemente pelo indivíduo desde os primeiros anos de vida, orientando sua conduta individual e social, sua visão de mundo e seu estilo de vida, de modo a fazê-lo interferir e contribuir para a (re)construção de seu espaço social.

Nessa perspectiva, a noção de habitus gira em torno basicamente de dois elementos: as estruturas estruturadas, que são as condições materiais ou do entorno preexistentes aos indivíduos e absorvidas ao longo da vida, e as estruturas estruturantes, que são as condições materiais reinterpretadas e reestruturadas pelos indivíduos após terem sido assimiladas, ou seja, o habitus é, em última análise, a interiorização do exterior e a exteriorização do interior, sendo uma via de mão dupla ao conceber o ser humano como criatura e criador ou produto e produtor do meio social em que vive (BOURDIEU, O poder simbólico, 2005).

Andrés García INDA (in BOURDIEU, 2001, p. 25) comenta:

“Bourdieu define los habitus del seguiente modo: “las estructuras que son constitutivas de un tipo particular de entorno (v.g. las condiciones materiales de existencia de un tipo particular de condición de clase) y que pueden ser asidas empíricamente bajo la forma de regularidades asociadas a un entorno socialmente estructurado, producen habitus, sistemas de disposiciones duraderas, estructuras estructuradas predispuestas a funcionar como estructuras estructurantes, es decir, en tanto que principio de generación y de estructuración de prácticas y representaciones que pueden ser objetivamente ‘reguladas’ y ‘regulares’ sin ser em nada el producto de obediencia a reglas, objetivamente adaptadas a su finalidad sin suponer la mirada consciente de los fines e la maestría expresa de las operaciones necesarias para alcanzar-las y, siendo todo eso, colectivamente orquestadas sin ser el producto de la acción organizadora de um jefe de orquesta”.

Os participantes de um campo social, como já mencionado anteriormente, entram em concorrência pelo monopólio do exercício legítimo de um poder simbólico ou capital específico, pois é o mesmo que define a posição e a disposição de cada indivíduo em relação aos seus pares concorrentes. Noutras palavras, determina a organização e dinâmica do espaço social.

O poder simbólico ou capital específico é um atributo, uma autoridade, um reconhecimento e respeito conferidos àqueles que o detêm por seus pares concorrentes e pelos destinatários desse poder simbólico. Daí ser qualificado de simbólico. BOURDIEU (O poder simbólico, 2005, pp. 7-8) leciona que o poder simbólico é um “poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”. Ele pode ser de várias espécies: econômico, cultural, político, jurídico, religioso, etc., dependendo do campo social que se analisa. Por exemplo: quem são os detentores do capital jurídico? São os operadores do direito. E quem são os destinatários desse capital jurídico? São os jurisdicionados, isto é, aquelas pessoas que requerem a prestação jurisdicional do Estado-juiz.

Assim, o quantum de poder simbólico possuído está diretamente ligado a dois fatores, a saber: às posições de dominação, subordinação ou homologia ocupada na hierarquia interna e ao reconhecimento das contribuições teórico e prática dadas para o desenvolvimento e consolidação do espaço social (BOURDIEU in ORTIZ, 2003).

A violência simbólica, nesse contexto, decorre da ideologia que fundamenta o exercício legítimo do poder simbólico. Noutras palavras, os discursos da neutralidade, da imparcialidade e do desinteresse pessoal em prol do interesse da coletividade, por exemplo, visam dissimular e escamotear a margem de arbitrariedade e pessoalidade contidas no exercício do poder simbólico em relação aos destinatários do mesmo. É justamente essa escamoteação da verdade dos fatos por meio de uma ideologia que consiste a violência simbólica, haja vista a mesma ser aceita passivamente e resignadamente por quem a sofre (os destinatários do poder simbólico) em razão do desconhecimento de sua existência. Assim, a forma de se libertar da violência simbólica é, antes de tudo, ser consciente da sua existência, do modo que se produz e se exerce (BOURDIEU, O poder simbólico, 2005).

Hodiernamente, o poder simbólico ou capital específico mais representativo e influente é, indubitavelmente, o econômico, porquanto pode ser convertido na maioria dos outros capitais específicos, como o cultural, ao permitir uma formação educacional e intelectual de alta qualidade, ou o político, ao possibilitar a candidatura e eleição a um cargo político, além de conferir ao indivíduo que o detém, autoridade, respeito e um destaque em relação aos outros indivíduos, na medida em que as aparências, o ter, prevalece e prepondera em relação à essência e ao ser.

Em suma, de posse das quatro noções – campo, habitus, poder simbólico e violência simbólica – pode-se asseverar que campo social é um espaço, relativamente independente às pressões externas, de estruturas estruturadas que, após serem interiorizadas pelos indivíduos num primeiro momento, são exteriorizadas num segundo momento na forma de estruturas estruturantes, sendo resultado de um paulatino processo histórico de formação em torno de uma ortodoxia, em que os participantes, cada qual com seu habitus, concorrem entre si pela aquisição de um capital específico, definindo, de acordo com o quantum detido desse capital, sua posição e disposição de dominação, subordinação ou homologia em relação aos seus pares e aos destinatários de seu capital específico. Do exercício desse poder simbólico decorre uma violência simbólica, a qual é desconhecida pelos sujeitos que estão submetidos a ela. Essa violência simbólica consiste na arbitrariedade e pessoalidade veladas e dissimuladas existentes nas práticas dos agentes sociais.

2 O campo jurídico

Agora se tentará compreender a lógica das estruturas e relações sociais que se produzem e se exercem no campo jurídico. Para tanto, usar-se-á elementos da teoria sociológica de Pierre Bourdieu – campo, habitus, poder simbólico e violência simbólica – a fim de realizar essa investigação, recusando, já de início, a oposição entre as teorias formalista e instrumentalista do direito. Esta oposição, no mundo jurídico, representa a antinomia entre a teoria objetivista e a teoria subjetivista que o sociólogo francês tenta superar através da realização do que se pode denominar de antropologia total, a qual concebe a conduta do ser humano como resultado tanto de condicionantes histórico-sociais quanto de sua racionalidade e vontade intrínsecas (BOURDIEU, O poder simbólico, 2005; INDA in BOURDIEU, 2001).

A teoria formalista, que tem em Hans Kelsen com sua teoria pura do direito um dos principais defensores, concebe o direito como um fenômeno inteiramente autônomo e neutro às pressões sociais, tendo caráter universal e a finalidade de disciplinar e regular todos os fatos sociais que tenham relevância para o controle e integração social e a manutenção de um sistema político-jurídico. Já a teoria instrumentalista, que tem na figura de Karl Marx um dos seus principais expoentes, entende o direito somente como um reflexo das relações de força existentes na sociedade e, por extensão, como um instrumento de manutenção dos interesses da classe dominante.

“Para romper com a ideologia da independência do direito e do corpo judicial, sem se cair na visão oposta, é preciso levar em linha de conta aquilo que as duas visões antagonistas, internalista e externalista, ignoram uma e outra, quer dizer, a existência de um universo social relativamente independente em relação às pressões externas, no interior do qual se produz e se exerce a autoridade jurídica, forma por excelência da violência simbólica legítima cujo monopólio pertence ao Estado e que se pode combinar com o exercício da força física” (BOURDIEU, O poder simbólico, 2005, p. 211).

Pode-se registrar que o campo jurídico é um espaço social relativamente independente às condicionantes histórico-sociais e altamente hierarquizado, no interior do qual os participantes concorrem pelo exercício legítimo do capital específico: a autoridade jurídica, isto é, o direito de dizer o direito, cujo monopólio é do Estado. Sua legitimidade e eficácia são garantidas por uma representação oficial do direito aliada a sanções físicas ou patrimoniais. O quantum de autoridade jurídica vai definir a posição hierárquica (dominação, subordinação ou homologia) e a disposição (atitudes e comportamentos) do profissional do direito, determinando, assim, suas estratégias para mudança ou manutenção de posição, conduta social e acesso aos privilégios do campo (BOURDIEU, O poder simbólico, 2005; INDA in BOURDIEU, 2001).

A autoridade jurídica é monopólio do Estado, em virtude disto, apenas os princípios, valores e regras estatais possuem validade, legitimidade e eficácia para a resolução de conflitos interpessoais, para imposição e proibição de condutas e comportamentos. Logo, todos aqueles valores e regras que se encontram fora do âmbito estatal, oriundas dos costumes, cultura de uma comunidade, como alguns grupos indígenas ou comunidades quilombolas, não têm a mesma validade e força das normais estatais.

Em que pese essa autoridade jurídica (o direito de dizer o direito) do Estado ser legitimada pelo povo que lhe outorgou esta função, a produção, interpretação e aplicação das leis (lato sensu) exprimem a cosmovisão daqueles que estão incumbidos do exercício dessa função estatal, ao contrário da retórica oficial da neutralidade, imparcialidade e impessoalidade.

No universo jurídico verifica-se uma relação ao mesmo tempo de concorrência pelo monopólio da autoridade jurídica e de complementaridade na divisão do trabalho jurídico e na construção de uma representação oficial do direito entre os operadores jurídicos, dividindo-se entre teóricos e práticos.

Os teóricos – juristas e professores – têm a responsabilidade de construir um arcabouço teórico e abstrato do direito, a partir da história, filosofia e sociologia jurídicas, fundamentando, legitimando e justificando as regras, princípios, institutos e terminologias jurídicos, e estando incumbidos, outrossim, do ensino nas instituições superiores. Enquanto os práticos – juízes, advogados e membros do Ministério Público – têm a função de aplicar as normas jurídicas ao caso concreto, fazendo uma interpretação e uma adaptação voltadas para esse fim, produzindo, assim, os precedentes judiciais ou jurisprudência, que revelam como estão sendo aplicadas as normas jurídicas.

 Em países, como os Estados Unidos, de tradição jurídica anglo-saxônica (common law), não há um direito codificado, compilado, isto é, um ordenamento que reúna regras, princípios e institutos. As leis são esparsas e difusas e estão consubstanciadas em precedentes judiciais. Há enorme margem de arbitrariedade nos veredictos judiciais, pois, embora os juízes se embasem em precedentes judiciais, ainda fica uma grande liberdade de decidir de acordo com suas convicções, e, a par disto, o ensino é feito por meio do método do case law. Diferentemente de países como o Brasil e a França de Bourdieu que são de tradição romano-germânica (civil law), nos quais se verifica a presença de um direito codificado que unido à jurisprudência reduz (e não acaba) a margem de arbitrariedade das decisões judiciais. Logo, o ensino é realizado tanto com base num ordenamento jurídico como em precedentes judiciais.

 Os agentes jurídicos ao mesmo tempo em que competem pelo monopólio do direito de dizer o direito (autoridade jurídica), complementam-se em torno de uma representação oficial do campo jurídico com vistas a escamotear as relações de força engendradas, decorrentes da disputa pelo monopólio do exercício legítimo da autoridade jurídica. Por meio de uma ideologia jurídica embasada em princípios e valores ditos universais e transcendentais, tentam fazer desaparecer a arbitrariedade e a pessoalidade existentes no exercício da sua profissão, porque, caso contrário, se isto fosse de conhecimento dos jurisdicionados, aqueles que buscam a prestação jurisdicional do Estado, enfraqueceria a autoridade e legitimidade dos detentores do capital jurídico. É sobre isto que Andrés García INDA (in BOURDIEU, p. 40) busca expressar com sua indagação:

“(…) ¿qué sucederá com los juristas, encarnaciones más o menos sinceras de la hipocresía colectiva, si acaba siendo de notoriedad pública que, lejos de obedecer unas verdades e unos valores trascendentes y universales, reciben, como todos los demás agentes sociales a las que somete, subvirtiendo los procesos o las jerarquias, la presión de los imperativos económicos o la seducción de los êxitos periodísticos?”

Segundo a ideologia do campo jurídico, as normas de direito têm caráter universal, pois com um simples trabalho de interpretação silogística, todas as demandas sociais encontrariam norma correspondente, regulamentadora, não havendo, em conseqüência, nem lacunas e tampouco antinomias verdadeiras entre regras. As normas jurídicas, também, são neutras em relação às pressões sociais do seu entorno, não havendo arbitrariedades do legislador, pelo contrário, emanam a justiça e o interesse da coletividade. Tanto o caráter universal quanto neutro das regras de direito são resultados do rigoroso procedimento técnico e ritualístico de sua formação.

Os operadores do direito agiriam sempre com retidão, independência, neutralidade e impessoalidade em prol do interesse da coletividade e da realização da justiça. Seus atos, segundo BOURDIEU (O poder simbólico, 2005), têm uma força mágica, um poder simbólico, que por meio de uma linguagem jurídica da universalidade, neutralidade e impessoalidade aliado a um processo judicial altamente formalizado, conseguem dissimular o arbitrário existente, ou seja, os preconceitos e as prenoções de mundo dos agentes jurídicos. Estes são capazes de retirar a verdade e a justiça de algumas dezenas de papéis, e seus brocardos chegam a ter força de lei: “dá-me o fato, que te darei o direito”; “decisão judicial não se discute, se cumpre”.

É justamente a escamoteação do arbitrário e da pessoalidade contida na interpretação e aplicação do direito ao caso concreto, por meio da retórica oficial da universalidade e neutralidade das normas jurídicas e da retidão, independência e impessoalidade dos agentes jurídicos, que se manifesta a violência simbólica, porque, como já dito em passagens anteriores, a ocorrência da violência simbólica, decorrente do exercício da autoridade jurídica (poder simbólico), sustenta-se no desconhecimento de sua existência daqueles que estão submetidos a ela (os jurisdicionados).

Em nosso país os cursos de direito são bastante elitizados, pois historicamente a instalação dos primeiros cursos em São Paulo e Pernambuco no século XIX foi para atender as necessidades educacionais dos filhos dos barões do café que antes tinham de ir estudar na Europa, especialmente em Portugal, e em razão do aumento da demanda interna da administração imperial brasileira por profissionais especializados em direito.

Desse modo, assim como no século XIX, nos dias atuais cursa direito aquele que possui capital econômico. São ainda poucos os estudantes provenientes de famílias de baixa renda. Este dado fático é importantíssimo na medida em que a conduta dos agentes jurídicos está diretamente ligada aos habitus de classe, família e escola, isto é, ao contexto social no qual o agente jurídico nasceu e cresceu. Assim, há alguma razão no ditado popular: “da cabeça de cada juiz sai uma sentença.”  

Interessante notar que, não raro, já há na família de um estudante um parente que atua nessa área: um pai, uma mãe, etc., que facilitam o seu acesso ao universo jurídico, sendo de antemão já uma desvantagem para aqueles que não têm.

Constata-se pouca autonomia do campo jurídico brasileiro em relação aos influxos externos. A prova disto é que a ascensão a importantes posições na hierarquia do espaço jurídico, a exemplo do cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal – STF (a posição mais elevada na hierarquia), depende de indicação política (nesse caso específico, o Presidente da República escolhe o candidato a ministro do STF e o Senado Federal confirma ou não a escolha presidencial). Logo, os agentes jurídicos dependem, além das relações mantidas com seus pares, das relações construídas com indivíduos estranhos ao seu universo social para ascender na hierarquia do campo jurídico.  

 Por fim, percebe-se que a enorme maioria das pessoas que deseja seguir uma carreira jurídica, infelizmente, está longe de estar preocupada em fazer justiça, em ajudar as pessoas a realizar seus direitos. Não tem noção das grandes responsabilidades que terá que assumir, não pensa que em algum momento, por exemplo, estará discutindo e decidindo sobre a liberdade de um indivíduo. Pelo contrário, está preocupada com o status social e com a remuneração que receberá, e com a possibilidade de algum dia poder dizer: “você sabe com quem está falando?”

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3 Relatos

Tendo como pressuposto o que foi exposto até agora, sobretudo na seção anterior, apresentar-se-á dois relatos de juízes franceses extraídos do livro A miséria do mundo (BOURDIEU, 1997), os quais retratam seus dilemas e angústias no exercício da profissão (judicatura), mais especificamente, das dificuldades e óbices enfrentados na realização de um ideal de justiça social e de direitos humanos. Isto está relacionado, muito provavelmente, à origem social e trajetória pessoal, isto é, ao habitus de cada um.

Observa-se que os empecilhos para o bom exercício da profissão não são somente ou principalmente de ordem material (por exemplo: falta de policiais para o cumprimento da decisão judicial ou de funcionários qualificados que possam ajudar o juiz a tornar mais célere a prestação jurisdicional), mas, sobretudo, de ordem simbólica, porquanto esses juízes constatam que o seu modo de proceder, seu estilo de desempenhar suas atribuições, não é bem visto e aceito pelo campo social ao qual pertencem: o campo jurídico.

Atitudes de não apenas querer aplicar a lei a partir de algumas dezenas de papéis, mas, antes disso, de conhecer as histórias de vida de cada réu, e as causas que o levaram a delinquir, a fim de que seja tomada uma decisão mais aproximada da verdade e da justiça, são vistas como não-jurídicas, como atitudes que não são da responsabilidade dos agentes jurídicos, mas de outros profissionais, como sociólogos, assistentes sociais, psicólogos, pedagogos e psiquiatras. Assim, essas atitudes representariam a inserção de elementos heterodoxos numa ortodoxia jurídica: interpretar e aplicar a lei com senso de universalidade (válida para todos), imparcialidade (independentemente dos interesses das partes) e neutralidade (isenção de preconceitos e convicções pessoais).

Ambos os juízes franceses fazem parte de um grupo de pessoas, denominado por BOURDIEU (1997, pp. 217-219) de a mão esquerda do Estado, responsável pela realização de ações voltadas para a melhoria das condições de vida da população e para o respeito aos direitos humanos fundamentais em contraposição aos tecnocratas (a mão direita do Estado), pessoas incumbidas das questões técnicas e burocráticas da administração do Estado.

Essa simbologia utilizada pelo sociólogo francês, mão direita e mão esquerda do Estado, revela a importância dada pelo Estado para cada grupo de agentes públicos, porquanto quando se fala que uma pessoa é o braço direito (e não o esquerdo) quer-se dizer que ela possui relevância especial. Neste sentido, o trabalho dos tecnocratas, mão direita, é mais reconhecido e valorizado se comparado ao trabalho daqueles, mão esquerda, que se dedicam à realização de políticas públicas voltadas para a melhoria das condições de vida da população.

Esse grau diferente de importância entre a mão direita e a mão esquerda exprime um paradoxo no sentido do Estado não está valorizando e incentivando como devia o profissional incumbido da realização de sua própria essência: o bem-estar dos seus cidadãos.

Não obstante serem relatos de magistrados franceses, a semelhança dos seus dilemas e angústias com as vividas por alguns magistrados brasileiros é muito grande, daí por que se optou por esses relatos.

3.1 Relato I (BOURDIEU, 1997, pp. 243-245)

O primeiro relato, A má-fé da instituição, retrata um juiz de execução penal chamado Denis J, oriundo de uma família cuja mãe é militante católica e por conta desta influência fez o secundário em um colégio jesuíta.

No momento em que concedera a entrevista, estava inscrito num sindicato minoritário de esquerda de sigla SGEN. Tendo em vista este meio familiar e escolar interiorizado nos primeiros anos de vida, tem sensibilidade às questões sociais. Não é por acaso que escolheu a magistratura, trabalhando então na área de execução penal, porque poderia manter um contato direto com os condenados, impondo-lhes modalidades de penas que ao mesmo tempo os punisse na medida de sua culpabilidade e os recuperasse para a vida em sociedade. Isto significava, não raro, alterar a sentença do juiz da condenação, que estava em conformidade à denúncia do Ministério Público, reduzindo ou transformando, por exemplo, uma pena de prisão em regime fechado, numa pena de prisão em regime semi-aberto ou até mesmo numa pena de prestação de serviços comunitários. Esta sua atitude incomodava e contrariava tanto o seu colega juiz como o representante do Ministério Público, pois tinham sua autoridade jurídica contrariada por um par de igual hierarquia, além do diretor da instituição penitenciária, que teria mais trabalho na fiscalização do cumprimento da pena fora da prisão.

Para a maioria dos colegas, Denis J

“(…) representa o “social”: “O social não tem nada de interessante: é o chato e (…) de segunda categoria, não se trata de judicial nobre (…). O judiciário é a redação dos atos judiciais (…), são os problemas jurídicos. Mas quanto a acompanhar as pessoas em sua vida para saber o que se passa com elas e tentar ajudá-las, isso é…” (BOURDIEU, 1997, p. 243)

Por conta desta antipatia, quando pedia ao presidente do tribunal para reunir todos os magistrados para discutirem temas importantes, como as penas alternativas à prisão (havia pensado em algumas e gostaria de expô-las aos colegas), seu pedido era negado. “Escute, grupos de trabalho, assembléias, reuniões… [não tenho ressentimento], isso não é aceito” – dizia o presidente (BOURDIEU, 1997, p. 243)

 Sente que quanto mais se esforça para fazer um bom trabalho, a instituição da qual faz parte, Tribunal de Justiça, torna-se indiferente a ele. Não é reconhecido, pelo contrário,

“(…) foi removido para X, seu lugar de atividade atual, isto é, retrogradado, depois de uma experiência em um sentido bastante bem sucedida em Z, onde, fortalecido pelo capital de prestígio e autoridade que lhe tinha sido legado pelo predecessor, e também por seu entusiasmo e arte em explorar todas as possibilidades oferecidas pelos textos jurídicos, tinha conseguido cumprir plenamente a missão determinada pela instituição”. (BOURDIEU, 1997, pp. 244-245)

Verifica-se que as disposições familiar e escolar – mãe era militante católica e fez o secundário num colégio jesuíta – interiorizadas nos primeiros anos de sua vida, influenciaram Denis J no modo de desempenhar a sua função de magistrado, que para ele não se resumia numa mera interpretação e aplicação de leis, mas, antes disso, significa saber os porquês que levaram o indivíduo a transgredir as normas jurídicas, para, desta forma, poder ser responsabilizado na medida de sua culpabilidade. Acredita que as sentenças judiciais não podem ter caráter somente punitivo, mas também pedagógico (evitar novas transgressões) e de recuperação. Contudo, isto significava contestar a autoridade jurídica de seus pares concorrentes – juiz da condenação e promotor de justiça – além de inserir no campo jurídico valores ditos não-jurídicos, angariando, assim, a inimizade da maioria dos seus colegas de profissão.    

Ao longo do tempo, Denis J constata que o juiz não é tão independente no exercício de sua função como se apregoa, e que quanto mais se esforça para realizar uma justiça e os direitos humanos, que é o sentido de existir, segundo ele, da instituição da qual faz parte (Tribunal de Justiça), mais se sente excluído e desprezado por ela.

3.2 Relato II (Entrevista de Remi Lenoir, 1997, pp. 289-307)   

O segundo relato, Uma crítica bem viva, é muito semelhante ao anterior. Retrata um magistrado chamado André S, que tem uma formação familiar e escolar e enfrenta na sua profissão dilemas e desilusões parecidas aos de Denis J.

André S vem do interior da França, de família com certa estabilidade econômica. Sendo o pai um comerciante próspero, católico praticante, e, embora de orientação partidária de direita, talvez por conta de alguns valores cristãos que cultivava, mostrava interesse pelas questões sociais. Achava que o mundo era muito desigual. Em virtude desta influência ideológica e apoio paterno, André escolhe a magistratura, no ramo do direito penal e na fase de instrução, pois, assim como Denis J (juiz de execução penal), gostava do contato humano, de ajudar as pessoas, mostrando para elas que não estava ali como uma espécie de vingador, para fazê-las sofrer, mas antes de tudo, para fazê-las reconhecer os seus erros e que a pena imputada é merecida, reintegrando-as, posteriormente, à sociedade. Sobre sua opção pela magistratura, André revela:

“(…) o que me agradava na função de magistrado era a noção de independência, ter uma profissão…, a função pública era prestar um serviço público e não ter patrão, não ter… Sim, não ter patrão, simplesmente ser levado a exercer a função que é prevista por lei, respeitar a lei e servir o interesse geral. E o que também me agradava, portanto em relação a isso, era a noção de justiça e, ao mesmo tempo, a noção de contatos humanos, a saber: aplicar a lei com tato, com sensibilidade em relação às pessoas, ao mesmo tempo, com firmeza em determinados casos, conseguir encontrar o que é necessário e mostrar que estamos aí para aplicar a lei e não para exercer uma vingança. Enfim, tudo o que há de bom na instituição judiciária no plano dos princípios: porque, em seu princípio, esta permanece absolutamente indispensável. Acho que se trata de um progresso da civilização. Tudo isso me parecia algo de bom” (BOURDIEU, 1997, p. 295)

Ao ingressar no mundo jurídico, inicialmente como estudante e, posteriormente, como magistrado, André constata a defasagem existente entre a representação oficial dos profissionais e instituições do direito (retidão, independência, neutralidade e impessoalidade) e a realidade experimentada.

Desde a ENM (École Normale de la Magistrature) percebe que seus colegas não estão interessados em realizar um ideal de justiça. Estão fascinados com os títulos e preocupados com a carreira, não tendo noção das responsabilidades de um juiz.

“Na ENM, fiquei um pouco decepcionado, enfim, de uma certa forma, pelo… é idiota, é a primeira impressão mas… pelo que havia na cabeça de meus colegas; você está vendo do que se trata, eram bons estudantes, mas ao mesmo tempo faltava-lhes um pouco de personalidade no sentido em que estimo que, para ser um bom juiz, é preciso ter um pouco de liberdade, um pouco de desapego, um pouquinho de independência e coragem, um pouco de força; eram pessoas mais… bons estudantes que tinham aprendido bem em seus cursos, que eram capazes de recitar de cor tal artigo, mas a quem faltava justamente, em minha opinião, esse algo mais que é necessário para ser um bom juiz, é isso. A quem faltava, talvez, a paixão pela justiça – em todo caso, para alguns – e depois um pouco de personalidade, e depois um pouco de interesse pela vontade geral, e depois a vontade de explicar suas decisões… faltava-lhes um pouco de senso público, no sentido geral, porque tinham falta de…

(…) estavam um pouco fascinados pelo título sem assumir os encargos da função: o que isso representava, o que se devia fazer, o que isso implicava como disponibilidade ou questionamento ou qualidades humanas profundas e…” (BOURDIEU, 1997, p. 297). 

Essas percepções da época em que realizou o curso de formação na ENM se confirmariam ao começar a atuar como juiz de instrução: indivíduos indolentes no exercício de sua função, cumprindo-a burocraticamente, preocupados com sua imagem e com as relações sociais que lhe garantiriam promoções futuras. Descobriu que há verdades que não podem ser faladas e condutas que não podem ser tomadas: testemunhar contra o procurador, seu superior, por sua prevaricação; contestar o inquérito policial; decidir em desfavor do Ministério Público; ou simplesmente não usar gravata. Em suma,

“(…) ao fazer as coisas que são normais em si, damos-nos conta que essa atitude se torna escandalosa (…) damo-nos conta de que, a respeito de determinados assuntos, por exemplo, as mancadas dos policiais, enfim, em certos casos, em relação a questões sensíveis, devemos evitar determinadas ações. Há regras não escritas” (BOURDIEU, 1997, p. 301).

A dedicação e aplicação de André no trabalho (chegou certo período a trabalhar 12 horas por dia, inclusive aos sábados e aos domingos, para compensar a ausência de um colega que saiu de férias), não eram reconhecidas pela instituição; pelo contrário, era visto como um indivíduo subversivo. Tentaram por várias vezes retirá-lo da magistratura.

“(…) ao exercer sempre de forma honesta minhas funções (…) em várias ocasiões tentaram despachar-me, enquanto vi pessoas de má-fé, do ponto de vista intelectual, ou completamente folgadas em relação ao seu trabalho serem promovidas, ou fizeram algumas coisas que não estavam corretas, engavetaram determinados processos ou, pelo contrário, condenaram pessoas quando existiam dúvidas e, no entanto, fizeram carreira, etc. eu não estava pretendo fazer carreira, apenas pedia que deixassem exercer meu ofício de forma tranqüila. Em várias ocasiões, fizeram pressão para que eu deixasse a instrução, pretendiam me despachar..”. (BOURDIEU, 1997, p. 298)

Conclui que os critérios de avaliação para a concessão de promoções não se baseiam no desempenho profissional e funcional de cada magistrado, mas no grau de adesão às regras não-escritas do espaço social. Enfim, os critérios não são objetivos, mas subjetivos.

Apesar de tudo por que passou, André não se arrepende de ter sido juiz de instrução, pois a instituição judiciária continua essencial para sociedade, mas precisa haver uma reestruturação e um resgate de princípios olvidados: retidão, independência, impessoalidade e interesse geral.

Conclusão

Espera-se ter cumprido com o objetivo traçado no início deste trabalho: realizar, por meio de uma linguagem clara e concisa, uma breve reflexão sobre o funcionamento e a lógica das estruturas e relações sociais engendradas no campo jurídico, através da sociologia de Pierre Bourdieu: campo, habitus, poder simbólico e violência simbólica.

Buscou-se, inicialmente, apresentar e deslindar os principais conceitos da sociologia de Bourdieu, e então se chegou à primeira relevante observação: o ser humano é concomitantemente produto e produtor do espaço histórico-social em que vive, quer dizer, ele interioriza os valores, as regras, as necessidades e anseios do meio social e do momento histórico em que se insere, para posteriormente exteriorizar de uma forma pessoal o que foi interiorizado, intervindo, assim, no seu próprio meio social e momento histórico.

Posteriormente viu-se que cada campo social é descrito, definido e delimitado por um conjunto de princípios e regras, isto é, por uma ortodoxia, a qual irá orientar e determinar os valores, as condutas e as relações sociais dos indivíduos participantes, os quais entram em concorrência entre si por um poder simbólico ou capital específico, no nosso caso o capital jurídico ou autoridade jurídica, que é o direito de dizer o direito, definindo, com isto, as posições na hierarquia do espaço social (quanto mais poder simbólico, mais elevada será a posição ocupada na hierarquia) e as disposições em relação aos seus pares concorrentes.

Por fim, apresentou-se dois relatos de agentes sociais do campo jurídico que, por não estarem em conformidade com a ortodoxia do espaço social, visto que estavam sendo acusados de inserir valores heterodoxos, foram sendo paulatinamente proscritos do mesmo.

Enfim, longe de pretender esgotar o assunto, buscou-se apenas estimular os leitores, em especial os estudantes e operadores do direito, a fazerem uma reflexão sobre os valores sociais e jurídicos vigentes em seu espaço social, para que se tenha a possibilidade de realizar efetivamente um ideal de justiça e os direitos humanos para todos, cuja realização, por enquanto, constitui tão somente uma representação ou discurso oficial dos profissionais do direito e não, o que deveria ser, uma busca prática e cotidiana dos integrantes do campo jurídico.

 

Referências
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 8 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
________________. A economia das trocas simbólicas. Vários tradutores. São Paulo: Perspectiva, 2005.
__________________. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. Trad. Denise Bárbara Catani. São Paulo: UNESP, 2004.
________________. O campo científico. In: ORTIZ, Renato. A sociologia de Pierre Bourdieu. Trad. Paula Montero e Alícia Auzmendi. São Paulo: Olho D’Água, 2003.
________________.  A miséria do mundo. Vários tradutores. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
INDA, Andrés García. Introducción: la razón del derecho: entre habitus y campo. In: BOURDIEU, Pierre. Poder, derecho y clases sociales. Tradutores diversos. Bilbao, Espanha: Desclée de Brouwer, 2001.


Informações Sobre o Autor

Wecsley dos Santos Pinheiro

Bacharel em direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará – Cesupa (2006-2010). Advogado no Pará


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