Resumo: O presente artigo aborda a relação entre o direito à cidade e a democracia, numa perspectiva de proteção dos direitos fundamentais e de ampliação da participação popular na gestão pública. Tendo como suporte a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade, observa-se que a construção e reconstrução do espaço urbano, a fim de torná-lo mais inclusivo, digno e igualitário, são reflexos do amadurecimento do regime democrático, revelando que este, mais que um procedimento, é também uma técnica que deve estar comprometida com a realização da justiça social.
Palavras-chave: Direito à cidade. Democracia. Direitos fundamentais. Participação popular. Justiça Social.
Abstract: This article discusses the relationship between the right to the city and democracy, with a view to protection of fundamental rights and to expand the popular participation in public management. Having as support to the Federal Constitution and the Statute of the city, it is observed that the construction and reconstruction of the urban space, in order to make it more inclusive, worthy and equal, are reflexes of ripening of the democratic regime, revealing that this, more than one procedure, is also a technique that should be committed to the achievement of social justice.
Keywords: Right to the city. Democracy. Fundamental Rights. Popular Participation. Social Justice.
Sumário: 1- A gestão democrática da cidade. 2- A construção do direito à cidade e a realização do Estado Democrático de Direito. 3- Conclusão.
1. A gestão democrática da cidade
O Estatuto da Cidade é uma lei de elevado cariz democrático, seja no plano político, seja social, sendo importante mecanismo para a superação de desigualdades e promoção da justiça social. Trata-se de uma lei que valoriza exemplarmente a indivisibilidade dos direitos fundamentais, e visa a concretude do princípio da dignidade da pessoa humana mediante a realização direito à cidade.
Além de estabelecer como diretriz geral, também destina seu Capítulo IV à “Gestão democrática da cidade”, demonstrando a preocupação em construir e reconstruir o ambiente urbano levando em considerando a opinião e a participação da população interessada. Observa-se o intuito de estimular o exercício da cidadania e a democracia no seu viés político, mediante a democracia participativa.
A técnica de representação política dos cidadãos nem sempre corresponde aos seus verdadeiros interesses. Ao contrário, muitas vezes observa-se a política sendo articulada de forma a beneficiar determinados grupos sociais em detrimento de outros. O Brasil vive uma crise de representatividade que faz com que a cláusula constitucional de soberania popular seja mero simulacro de mandamento[i]. Nesse sentido:
“Observa-se uma ruptura entre o Estado e a Sociedade, entre governantes e governados, entre o representante e o cidadão, tudo em proporções nunca vistas, acentuadas, ao mesmo passo, por um estado geral de desconfiança e descrença e até mesmo menosprezo da cidadania em relação os titulares do poder. De último, tem-se averiguado que a legalidade está no poder, enquanto a legitimidade permanece fora. E como os dois princípios não coincidem, mas primeiro se hostilizam, rompem-se o equilíbrio e a harmonia do sistema constitucional e a Sociedade fica a um passo do abismo. E toda a ordem representativa cai também debaixo de suspeição tocante à sua natureza democrática, cada vez mais rarefeita em virtude da distância que vai da vontade popular à vontade representativa, cabendo a esta e não àquela governar efetivamente”[ii].
Tendo em vista essa falta de correspondência entre o mandato e a realidade social do país, Paulo Bonavides, ao comparar a democracia representativa com a participativa, assevera que aquela é “menos legítima, mais sujeita a vicissitudes distorcivas, e menos refratária aos meios e vícios de ludíbrio” do que esta[iii].
O exercício da verdadeira cidadania não se limita à participação formal e periódica mediante o voto secreto e universal. Mister é o debate real com a população, tornando a gestão pública mais próxima dos reais interesses perseguidos, e, assim, mais legítima e não apenas estritamente legal; a legalidade é vislumbrada de forma ampla, em que se atende aos princípios e finalidades estatais. O poder de condução da sociedade no plano político deve ser não só justificado aos cidadãos, mas por eles.
Corroborando esse entendimento, Peter Häberle estende a legitimidade da interpretação da Constituição para todos os cidadãos, e, dessa forma, retira a exclusividade desse poder dos órgãos estatais. Afirma que “a democracia não se desenvolve apenas no contexto de delegação da responsabilidade formal”, e que “numa sociedade aberta, ela se desenvolve também por meio de formas refinadas de mediação do processo público e pluralista da política e da práxis cotidiana, especialmente mediante a realização dos direitos fundamentais[iv]”.
A democracia se desenvolve a partir da “controvérsia sobre alternativas, sobre possibilidades e sobre necessidades da realidade[v]”, e esse debate precisa chegar aos cidadãos. Não se nega a necessidade da representatividade, mas, em contrapartida, se reconhece a sua insuficiência no atual contexto.
Nesse ínterim, a previsão da gestão democrática da cidade é de grande importância para a desconcentração do poder por parte dos representantes eleitos, e também para atribuir à própria sociedade as responsabilidades das decisões tomadas, garantindo oportunidade de participação e esclarecimento.
O alcance dado pela lei à expressão “gestão democrática” reconhece a democracia para além do simples procedimento de representação, abrindo espaço para o diálogo verdadeiro com a população, que tem o direito e o dever de participar do processo de formação das decisões políticas. É uma forma de incentivar um novo modelo de gestão, em consonância, inclusive, com aquele proposto pela Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar 101/01. Trata-se de precioso instrumento hábil a fortalecer e realizar a soberania popular, de modo a construir a cidade a partir de uma concepção pluralista e aberta, considerando as diferentes necessidades, percepções e maneiras de ser, especialmente das classes menos favorecidas, que de fato mais carecem de mudanças. Ainda nessa esteira, busca conferir transparência e eficácia à política, promovendo o controle social como garantia de uma gestão proba.
O Estatuto da Cidade estabelece a gestão democrática da cidade como diretriz geral da política urbana, por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano (art. 2º, II). Outra diretriz é a audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população (art. 2º, XIII). Mais à frente, a lei prevê como instrumento de política urbana a gestão orçamentária participativa como forma de planejamento municipal, dispondo, ainda, que os instrumentos previstos no Capítulo II que demandem dispêndio de recursos por parte do Poder Público municipal, deverão ser objeto de controle social, sendo garantida a participação de comunidades, movimentos e entidades da sociedade civil (art. 4º, III, alínea f, e §3º). Por fim, tem-se o Capítulo IV especialmente dedicado à gestão democrática da cidade, que prevê a instituição de órgãos colegiados de política urbana; debates, audiências e consultas públicas; conferências sobre assuntos de interesse urbano; iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano (art. 43).
Outra forma de privilegiar a democracia participativa é por meio do orçamento municipal participativo[vi], debates, audiências e consultas públicas, realização de conferências e criação de órgãos colegiados sobre política urbana. Pretende-se, através da contraposição de ideias e interesses, um maior grau de consenso sobre os caminhos políticos a serem adotados.
Denota-se o claro intuito de definir os rumos das políticas públicas conjuntamente com a população; planejar, produzir e governar a cidade de forma participativa, o que representa busca por justiça social, garantia do pluralismo e meio de controle social, que certamente são passos na trilha da incipiente democracia brasileira.
Justiça social porque permite àqueles que mais necessitam de mudanças essenciais para a existência digna, a posição de sujeitos ativos nesse processo democrático, levantando demandas, estabelecendo prioridades e conferindo sentido à sua própria existência. A gestão democrática da cidade é um caminho para reduzir desigualdades sociais e assegurar que os direitos fundamentais serão efetivados, proporcionando a inclusão social e econômica das classes desfavorecidas.
Garantia do pluralismo porquanto não se pode querer engessar a construção da cidade e limitá-la a um padrão, ou simplesmente restringir o desenvolvimento urbano à visão dos governantes. É imprescindível reconhecer a diversidade da sociedade plural e aberta em que vivemos para se construir cidades que alberguem diferentes interesses. É a valorização da dialética e do caráter dinâmico que devem guiar as ações de governo.
Por fim, no que tange ao controle social, tem-se que a gestão participativa viabiliza tanto fiscalização pela população dos atos de governo como a exigência da probidade e transparência na gestão pública, sendo que esta consiste não só em torná-la pública, mas também clara e acessível; passível de questionamentos e impugnações. O controle social é de extrema importância para evitar a indesejável e tão comum confusão entre o público e privado, tanto por meio de práticas patrimonialistas quanto corporativistas, que subvertem o interesse público.
A combinação da representação com a participação visa a efetiva concretização dos ideais democráticos, especialmente em se tratando do valor igualdade no plano material, à medida que diminui da dissonância de interesses entre a classe dirigente do poder e os cidadãos. Outrossim, é uma importante forma de zelar pela ética nas relações de poder, protegendo a moralidade administrativa, a qual, sendo um dos objetos da ação popular, é também direito fundamental. Nesse contexto, o compromisso para com os direitos fundamentais torna-se mais sério, mais forte e mais próximo de realização.
Essa perspectiva de gestão pública participativa exalta os chamados direitos republicanos, que Luiz Carlos Bresser Pereira[vii], acompanhando a doutrina majoritária, enquadra na terceira dimensão dos direitos fundamentais, ao passo que Paulo Bonavides[viii] os coloca na 4ª dimensão. Tratam-se de direitos pelos quais o cidadão pensa no interesse público e participa da gestão da coisa pública, protegendo-a contra apropriações indevidas, seja por meio de atos imorais, como a corrupção e nepotismo, seja por meio das políticas públicas iníquas. Por isso pode-se definir os direitos republicanos como aqueles “que cada cidadão tem de que os bens públicos — os bens que são de todos e para todos — permaneçam públicos, não sejam capturados por indivíduos ou grupos de interesse[ix]”. Isto é, pretendem evitar a privatização da coisa pública, realçando a essência republicana.
Essa ideia vem do fato de que na República, todos podem alcançar o poder, e o Estado e seus bens compõe a res publica. Sendo assim, a política deve ser dirigida ao bem comum, e os cidadãos têm o direito de participar da formação dessa vontade estatal, e bem assim de interferir para que o poder seja exercido não só dentro dos limites legais, mas éticos. Com efeito, por meio dos direitos republicanos, os recursos públicos podem ser destinados à cidade como um todo, e especialmente para as regiões e pessoas que mais necessitam, combatendo, assim, a contínua reprodução e exclusão das desigualdades urbanas com o amparo na legalidade.
Com os direitos republicanos, há significativa ampliação da ideia de cidadania, que integra os indivíduos ou grupos sociais ao processo de discussão e formação da vontade estatal e da cidade. Nesse sentido, a gestão democrática das cidades é um importante instrumento de realização dos direitos fundamentais, conquanto seja inegável que o Estado deve garantir condições para a realização dessa plena cidadania, para que ela seja cada vez mais esclarecida, sendo imprescindível investir na educação e capacitação política dos grupos sociais.
Decorrência da gestão democrática da cidade é a previsão do plano diretor participativo, elaborado e implementado em consonância com a vontade da população, que é quem vai dizer como é a cidade em ela quer viver; para onde deverão ser canalizados os recursos públicos, quais são as suas prioridades, seus anseios mais urgentes ou suas pretensões mais distantes.
Assim, o projeto da cidade, criado a partir do plano diretor, tem em vista a percepção dos cidadãos, e para torná-lo concreto, a comunidade tem o direito e o dever de fiscalizar as ações do Poder Público que o envolvem. É a construção da cidade nasce da visão da coletividade, ressaltando a sociedade aberta e plural.
Outrossim, a obrigatoriedade de realização de audiências e consultas públicas na formulação, execução e acompanhamento nas ações de desdobramento do plano diretor geram à comunidade o direito de participação. Logo, qualquer cidadão pode exigir a realização das audiências e consultas públicas, visando defender seus interesses nesse processo de urbanização.
Com o escopo de evitar que os municípios tornassem o plano diretor uma mera formalidade a ser cumprida e longe de ser executada, o Estatuto da Cidade, com perspicácia, determinou que o instrumento é parte integrante do planejamento municipal. Assim, as diretrizes e prioridades nele contidas devem ser incorporadas pelo Plano Plurianual, pela Lei de Diretrizes Orçamentárias e pelo Plano Orçamentário Anual, (art. 40, §1 da Lei n. 10.257/01), que, como já mencionado, deverão passar pelo crivo da população como condição de validade.
Depreende-se, portanto, que a gestão democrática da cidade renova a concepção tradicional de administração da coisa pública; aproxima governantes e governados; legitima a ação política e fortalece a cidadania.
2. A construção do direito à cidade e a realização do Estado Democrático de Direito
Citação amplamente divulgada por sua rica singeleza, capaz de exprimir a importância da cidade na vida das pessoas, é atribuída a André Franco Montoro: “ninguém mora na União, ninguém mora no Estado, todos moram no Município”. No entanto, nem todos desfrutam dos benefícios ali existentes. Todos moram na cidade, mas nem todos têm direito à cidade. Viver na cidade é diferente de viver a cidade, contemplando o que ela tem de melhor.
Bela para uns, e horrível para outros. O doce e o amargo, o limpo e o sujo, a segurança e a violência, a opulência e a miséria, o notável e o indigente, o legal e o ilegal, são alguns dos muitos paradoxos que compõem as cidades. A coexistência do supérfluo e do escasso marca o espaço urbano e revela que a cidade, com todas as suas vantagens, é restrita a poucos.
O processo de urbanização brasileiro, abrupto e desordenado, veio ocorrendo de forma excludente e direcionado a beneficiar determinados segmentos sociais em detrimento de outros, mas é exatamente dos problemas que nascem as soluções. É da necessidade que emergem as reivindicações, e das lutas que surge o direito. Assim, a Constituição de 1988, atenta a essas distorções éticas no espaço urbano, trouxe um capítulo destinado à política urbana, ensejando o direito às cidades sustentáveis e planejadas, o qual foi regulamentado e reforçado pelo Estatuto da Cidade.
A cidade é uma das grandes invenções humanas, e é mais que um conjunto de edificações ou que a sede do poder público local. É lugar permeado de cultura, que caracteriza a própria existência humana; é o reflexo da política, dos hábitos, costumes, pensamentos, ações e desejos de seus habitantes. Todavia, é também a projeção das falhas e misérias humanas.
Nela se evidencia que os homens em sociedade estão cada vez mais interligados, e que o problema de um, é o problema de muitos ou de todos, o que deve reforçar os laços de solidariedade. Com isso, se reconhece que a problemática urbana transcende a análise de cunho individual, passando a ter índole coletiva. Corroborando esse raciocínio, Odete Medauar destaca, ao qualificar duplamente as normas do Estatuto como “de ordem pública” e “de interesse social”, a intenção do legislador foi deixar clara a conformação de direitos ou figuras jurídicas tratados tradicionalmente sob a ótica privada[x], a exemplo da propriedade privada, que assume, então, novos contornos.
Conforme bem ressaltado no preâmbulo da Carta Mundial do Direito à Cidade, fruto de diferentes fóruns internacionais[xi] de discussão de questões sociais relevantes,
“Iniciamos este novo milênio com a metade da população vivendo nas cidades, [e] segundo as previsões, em 2050 a taxa de urbanização no mundo chegará a 65%. As cidades são, potencialmente, territórios com grande riqueza e diversidade econômica, ambiental, política e cultural. O modo de vida urbano interfere diretamente sobre o modo em que estabelecemos vínculos com nossos semelhantes e com o território.
Entretanto, no sentido contrário a tais potenciais, os modelos de desenvolvimento implementados na maioria dos países do terceiro mundo se caracterizam por estabelecer padrões de concentração de renda e de poder assim como processos acelerados de urbanização que contribuem para a depredação do meio ambiente e para a privatização do espaço público, gerando empobrecimento, exclusão e segregação social e espacial.
As cidades estão distantes de oferecerem condições e oportunidades eqüitativas aos seus habitantes. A população urbana, em sua maioria, esta privada ou limitada – em virtude de suas características sociais, culturais, étnicas, de gênero e idade – de satisfazer suas necessidades básicas. Este contexto favorece o surgimento de lutas urbanas representativas, ainda que fragmentadas e incapazes de produzir mudanças significativas no modelo de desenvolvimento vigente”[xii].
Com efeito, a cidade é – ou, melhor dizendo, deve ser – um espaço coletivo, que pertence a toda a municipalidade. Mais que do que dividir problemas, os habitantes devem compartilhar os benefícios.
A Lei 10.257/01 define o direito às cidades sustentáveis como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações (art. 2º, I). No entanto, é certo que o intuito da lei não se esgota nessa definição, uma vez que numa interpretação sistemática, considerando o diploma legal em questão e a Constituição da República, a finalidade da cidade é garantir o máximo bem-estar aos habitantes e, sobretudo, dignidade.
Certo é que os direitos elencados no art. 2º, I da Lei n. 10.257/01 são pressupostos para a realização do direito à cidade, mas não lhe exaure, havendo inegavelmente outros componentes. Não menos importante é a gestão democrática, que permite o exercício da plena cidadania na reconstrução da urbe, e bem assim o cuidado com o meio ambiente equilibrado, essencial à vida humana. Assim é que a cidade cumprirá de fato sua função social.
Nos termos da Carta Mundial, o direito à cidade é
“o usufruto eqüitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia e justiça social; é um direito que confere legitimidade à ação e organização, baseado em seus usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito a um padrão de vida adequado. O Direito à Cidade é interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, concebidos integralmente e inclui os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais Inclui também o direito a liberdade de reunião e organização, o respeito às minorias e à pluralidade ética, racial, sexual e cultural; o respeito aos imigrantes e a garantia da preservação e herança histórica e cultural.”
O direito à cidade, portanto, é a possibilidade de acesso e de transformação ao que o espaço urbano oferece; é a oportunidade de satisfação das diferentes necessidades da vida moderna e de auto-afirmação do cidadão – qualidade do indivíduo que vive na cidade; é a reunião de diversos direitos fundamentais, que asseguram a dignidade da pessoa humana e a verdadeira democracia. Nesse caminhar, destina-se não só, mas especialmente aos grupos vulneráveis e desfavorecidos, os quais sofrem as maiores privações no meio urbano, com o intento de justiça social. Não obstante, é ainda um direito coletivo que visa além da justa distribuição dos serviços, bens e espaços, o tratamento igualitário e universal aos diversos segmentos sociais, combatendo as diferentes formas segregações, promovendo integração, inclusão e maior qualidade de vida a todos. É a cidade da criança, do estudante, trabalhador, deficiente, negro, índio, idoso, atleta, artista, intelectual, do analfabeto, do rico, do pobre, etc., numa perspectiva de valorização do cidadão em suas diferentes posições sociais.
A sustentabilidade urbana deve ser compreendida de forma abrangente, não se referindo apenas ao meio ambiente, mas à sociedade como um todo. O equilíbrio pretendido diz respeito também à cultura, à economia, à distribuição de renda, que refletem no meio ambiente construído, de modo que a função social da cidade seja cumprida. A cidade socialmente funcional, portanto, é aquela capaz de proporcionar os direitos fundamentais indivisivelmente a todos os cidadãos, conjugando os ideais democráticos de liberdade, igualdade e fraternidade.
É a partir do engajamento para sua efetivação, que se pode refazer e construir o mundo urbano readequando-o aos diversos anseios da sociedade, e em especial, respeitando direitos fundamentais que são cotidianamente violados na urbe. Enfrentando a problemática urbana, estar-se-á dando um passo firme no sentido da democracia não só formal, calcada no procedimento técnico de eleição dos governantes, mas sobretudo da democracia material e social, que garante igualdade entre os cidadãos, promove justiça social, e que se compromete com a realização dos direitos fundamentais. Por isso, cidade e democracia são questões indissociáveis.
Para finalizar, ressalte-se que, por definição, cidadão é aquele que vive na cidade. Assim, à luz do direito à cidade nos termos debatidos, o conceito de cidadania é reformulado, na medida em que se enfatiza a democracia direta e a vida urbana digna. Garantir o direito à cidade é, portanto, um projeto de realização do Estado Democrático, que apoiado na Constituição, objetiva a transformação social, e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
3. Conclusão
O Estado Democrático de Direito, tal qual consagrado na Constituição Brasileira de 1988, fundamenta e baliza a concepção que se tem de Direito e de Estado. Implica, com base nessa ordem constitucional democrática, no reconhecimento e proteção de direitos fundamentais em suas variadas dimensões, os quais tanto delimitam o poder estatal, quanto lhe impõe o dever de atuar com vistas à sua efetivação.
Os direitos fundamentais são base de uma sociedade democrática. E para além do plano formal, procedimentalista, é imperioso que se realize a democracia material e social. O Estado deve assegurar liberdade e promover igualdade de condições entre os indivíduos, de modo que se tenha como consequência uma sociedade mais justa e solidária.
Com esse escopo, foi criado o Estatuto da Cidade, que regulamentou a Constituição no capítulo destinado à Política Urbana, a qual só tem sentido se conferir uma conotação funcional à cidade. Seu propósito é corrigir distorções e desequilíbrios ocasionados pelo desenvolvimento urbano abrupto, acelerado e fortemente dirigido por interesses econômicos em detrimento dos interesses sociais, especialmente em se tratando das classes desfavorecidas.
A lei federal 10.257/01 revela nítido comprometimento com a realização dos direitos fundamentais, imprimindo normas de ordem pública a serem seguidas no processo de urbanização. Evidencia a supremacia do interesse público sobre o particular, notadamente ao tratar da propriedade privada urbana, a qual se mostra como verdadeira relação jurídica complexa. A propriedade é, certamente, um dos pontos nucleares da política urbana na medida em que figura como componente essencial da cidade, estando sua função social condicionada às determinações do plano diretor. Além disso, esse direito é reinterpretado sob o foco de garantir maior efetividade ao direito à moradia, proteção do meio ambiente natural, artificial e cultural, adequando-se, também, ao direito ao lazer, trabalho e transporte.
A reconstrução do espaço urbano proposta pelo Estatuto de 2001, passa necessariamente pela afirmação da democracia direta, através do agigantamento do diálogo entre Estado e sociedade. A partir da gestão pública democrática da cidade, mediante mecanismos de controle social e consultas populares, houve aproximação entre o administrado e a Administração Pública, num processo de decisão mais legítimo. Prosseguindo nessa perspectiva e fortalecendo-a, foi instituído o plano diretor participativo, que além do debate para com a população, representa uma superação do aspecto puramente tecnocrático do urbanismo, por considerar as múltiplas realidades urbanas existentes e carentes de transformação.
Com efeito, denota-se que o objetivo do Estatuto da Cidade é, portanto, assegurar o direito à cidade. Este, por sua vez, é uma das pontes entre democracia formal e material, política e social. O Estado Democrático, embora expresso na Constituição, está condicionado à construção cotidiana e gradativa da democracia, vista e revista conforme as necessidades do momento. A efetivação do direito à cidade, mediante a implementação de um espaço urbano inclusivo, positivamente diversificado, socialmente justo e equilibrado, capaz de conferir sentido à cidadania, é pressuposto para a realização da democracia e da dignidade da pessoa humana.
Informações Sobre o Autor
Valéria Corrêa Silva Ferreira
advogada, graduada e pós-graduada em Direito da Administração Pública pela Universidade Federal de Uberlândia