Resumo: O presente trata da necessidade de regulamentação da cirurgia de adequação de sexo e do direito à identidade do transexual, como forma de efetivação do direito da personalidade. O ser humano nunca ocupou um espaço de tamanha relevância como nos tempos atuais. Os Direitos Humanos, nas suas mais variadas formas de manifestação, estão positivados por todo o mundo. Contudo, a situação dos transexuais ainda está à margem do direito, há uma resistência de aceitação da sociedade, movida pelo preconceito e pela dificuldade em aceitar as diferenças. O texto pretende afastar alguns mitos e estigmas relativos aos transexuais, enfatizando a necessidade de reconhecimento e efetivação dos seus direitos ao caracterizá-los como direitos de personalidade, assim como ao associá-los à idéia de efetivação de um direito humano.
Palavras-chave: transexuais; direitos da personalidade; direitos humanos; dignidade da pessoa humana.
Abstract: This paper deals with the need for regulating sex reassignment surgeries as well as the right of the transsexual to an identity, as a means to ensure their right to a personality. Never before has the human being taken up a place of such relevance as they have now. The Human Rights, in their myriad manifestations, have been positivated by people all over the world. However, as far as rights are concerned, the situation of the transsexual has been neglected, as society, moved by prejudice and the very difficulty to accept difference, is reluctant to accept them. The text seeks to dispel myths and stigmas associated with the transsexual, emphasizing the need for the acknowledgement and enforcement of their rights as they are recognized as having a right to a personality, and associated with the Idea of enforcement to a human right.
Palavras-chave: transsexual; right to a personality; human rights; dignity of the human being.
Sumário: 1. Considerações Iniciais; 2. A Transexualidade e o direito de adequação de sexo; 3. Transexualismo e subjetividade: direito humano e da personalidade; 3.1. A evolução dos direitos humanos e sua relação intrínseca com os direitos fundamentais e da personalidade; 4. O direito à identidade do transexual como direito da personalidade; 5. O direito de autodeterminação do transexual: 6. Decisões judiciais que reconheceram o direito à identidade do Transexual no Brasil; 7. Proposta de Projeto de Lei que regulamenta os direitos à cirurgia de adequação de sexo e o de identidade do transexual; 8. Considerações finais. Referências Bibliográficas.
1. Considerações Iniciais:
Considerando a atual perspectiva civil-constitucional que insere o homem como centro do ordenamento, uma das principais bandeiras levantadas pelo Estado Democrático de Direito se refere à garantia aos bens jurídicos fundamentais figurados sob o rol dos direitos humanos, principalmente, visando a conquista de direitos mínimos e básicos à vida, à saúde e à liberdade.
Neste contexto, pretende-se abordar um tema polêmico e especifico, mas de relevância em um real Estado Democrático de Direito: os direitos dos transexuais, pessoas que nasceram com um sexo biológico com o qual não se identificam psiquicamente e após a cirurgia de adequação sexual, além de serem obrigados a lidar com aspectos psicológicos, ainda encontram desamparo jurídico.
No Brasil ainda não há Lei específica que resguarde o direito de adequação sexual e suas conseqüências jurídicas, mas a jurisprudência majoritária já se mostra favorável à pretensão, mas com diversas restrições.
A comunidade médica comprovou através de muitos estudos acerca do fenômeno do transexualismo ser a cirurgia de redesignação sexual de natureza terapêutica. Portanto, seria uma disposição do próprio corpo não punível pelo direito, trata-se de uma situação irresistível àquele indivíduo que reclama a readequação do seu sexo biológico ao psicológico.
Ocorre que depois de realizada a cirurgia estas pessoas enfrentam diversos constrangimentos sociais e psicológicos para alterar o próprio nome e o seu sexo, pois, o direito não acompanhou as evoluções médicas e sociais. Assim, para a modificação de sua documentação, o transexual encara mais uma batalha recheada de subjetividades, a judicial.
O indivíduo que destoa dos padrões morais, religiosos e sociais de normalidade, mesmo após a promulgação da Constituição Federal Brasileira que consagrou os valores da igualdade e da dignidade humana, ainda permanece relegado à margem da sociedade. Há uma impressionante dificuldade em aceitar as diferenças, e isso se expressa de modo particularmente intenso no campo da sexualidade.
Apesar de, ao longo do tempo, tanto homens como mulheres terem adquirido maior liberdade e amplitude sobre o modo de exercer a sua sexualidade, percebe-se, porém, grande resistência social diante da homossexualidade e da transexualidade.
Numa sociedade contemporânea e complexa, que abarca a multiplicidade, a variedade, a pluralidade social, onde convivem inúmeros grupos heterogêneos desafiadores das noções de normalidade, não há espaço para a discriminação.
Os transexuais desejam apenas o reconhecimento do direito a uma vida digna, e o Direito precisa acompanhar as mudanças sociais. Como a sociedade não é estática, o Direito não pode permanecer inerte, ou imporia a vida social uma imobilidade incompatível com o senso de evolução da própria civilização humana.
Diante de uma sociedade que evolui em um contexto de interdisciplinaridade e interdependência, o direito tem a função de harmonizar o princípio dignidade da pessoa humana, a garantia dos direitos individuais, a tutela dos direitos da personalidade, assim como o respeito aos direitos humanos, em razão da sua interdisciplinaridade, deve fundamentar a luta pelos ideais de justiça e equidade dos cidadãos brasileiros.
Sob um prisma crítico, surge a necessidade daqueles que não possuem seus direitos resguardados especificamente, mas que precisam buscar a analogia e a interpretação de outros meios legais para exercitar a tutela de suas garantias conquistadas com esforços e teor histórico.
A questão do transexual propicia a emergência de importantes questionamentos e reflexões, que atingem não só a discussão sobre o próprio conceito de sexo, mas também a configuração e a efetivação dos direitos humanos e de personalidade do indivíduo.
Portanto, o presente trabalho visa apresentar as inovações jurisprudenciais acerca do tema, discutir o direito de autodeterminação dos transexuais que optam por não fazer a cirurgia de adequação de sexo, bem como realizar um enfoque com muita objetividade sobre o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana como sustentáculo das modificações no corpo pretendidas e das alterações jurídicas de prenome e designação de sexo daqueles que passam pelo procedimento cirúrgico.
2. A Transexualidade e a possibilidade de adequação de sexo:
As questões atinentes ao transexual vêm à tona atualmente sempre que se discute a livre disposição de partes do próprio corpo, a alteração de gênero e a identidade sexual da pessoa.
Para início do estudo, importa definir a figura do transexual e a estudiosa Tereza Rodrigues Vieira (2004, p.47) assim o define:
“Transexual é o indivíduo que possui a convicção inalterável de pertencer ao sexo oposto ao constante em seu Registro de Nascimento, reprovando veementemente seus órgãos sexuais externos, dos quais deseja se livrar por meio de cirurgia. Segundo uma concepção moderna o transexual masculino é uma mulher com corpo de homem. Um transexual feminino é, evidentemente, o contrário. São, portanto, portadores de neurodis-cordância de gênero. Suas reações são, em geral, aquelas próprias do sexo com o qual se identifica psíquica e socialmente. Culpar este indivíduo é o mesmo que culpar a bússola por apontar para o norte”.
Na década de 50, após as primeiras experiências cirúrgicas de mudança de sexo através da retirada do pênis, que surgiu o conceito de “transexualismo”, formulado pelo conceituado médico norte-americano Harry Benjamin[1] para designar um distúrbio relativo à identidade sexual. A expressão “transexual” surgiu para designar indivíduos que, biologicamente normais, se encontravam inconformados com seu sexo e queriam a sua troca, apesar de possuírem aparelhos genitais em estado perfeito (FRIGNET, 2002).
Atualmente a transexualidade pode ser conceituada como uma psicopatologia que leva à inconformidade entre o sexo biológico e o psíquico, e à conseqüente vontade de adequar seu corpo às suas convicções em forma de um Transtorno de Identidade Sexual – CID (Código Internacional de Doenças) – 10. O indivíduo transexual seria aquele que não aceita sua condição física, sentindo-se como uma mulher aprisionada no corpo de um homem ou vice-versa. Segundo estudos, o lado psíquico da dicotomia corpo-mente não pode ser modificado, sendo a cirurgia para a mudança de sexo a única opção para aliviar a angústia sofrida por aqueles que vivem tal conflito. Interessante foi o pronunciamento feito pela ilustre Desembargadora Maria Berenice Dias, citado por Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona:
“Psicanalistas norte-americanos consideram a cirurgia corretiva do sexo como a forma de buscar a felicidade a um invertido condenado pela anatomia. Segundo Edvaldo Souza Couto, o que define e caracteriza a transexualidade é a rejeição do sexo original e o conseqüente estado de insatisfação. A cirurgia apenas corrige esse ‘defeito’ de alguém ter nascido homem num corpo de mulher ou ter nascido mulher num corpo de homem” (GAGLIANO, 2006, p.160).
A determinação do sexo humano não é baseada apenas na genitália, tendo em vista que na espécie humana o sexo da pessoa equivale a uma conjugação de fatores biológicos, psicológicos e sociais. A psicanálise demonstrou – com foros científicos – que o sexo de uma pessoa não tem relação, senão indireta, com seus genitais. Ser homem ou ser mulher para psicanálise é determinação psíquica de cada um (FRIGNET, 2002), importando fazer um contraponto entre o sexo psicológico e o jurídico:
“O sexo psicológico é aquele que a pessoa acredita pertencer. Muitos psicanalistas atribuem surgir com a educação atribuída na primeira infância, condicionado a um ambiente muito desfavorável para um desenvolvimento normal. Já o sexo jurídico é determinado em razão da vida civil de cada pessoa na sociedade, trazendo inúmeras conseqüências jurídicas. É designado por ocasião do assentamento do nascimento da criança, com base em seu sexo morfológico” (CHOERI, 2001, p.234-235).
O transexual, psicologicamente, não se identifica com o sexo biológico, o que lhe acarreta profundo sofrimento, apresentando características de inconformismo, depressão, angústia e repulsa pelo próprio corpo. Experimenta desconforto psíquico com seu sexo antagônico, desejando obsessivamente ter seu corpo readequado ao sexo oposto que acredita possuir. Para ele, a operação de mudança de sexo é uma obstinação, não se comportando em momento algum de acordo com o seu sexo biológico.
A cirurgia de adequação de sexo evoluiu ao longo do tempo, contudo, o direito não a acompanhou gerando uma série de conflitos, como bem assevera a Desembargadora e estudiosa Maria Berenice Dias (2004, p. 3):
“Com a evolução das técnicas cirúrgicas, tornou-se possível mudar a morfologia sexual externa, meio que começou a ser utilizado para encontrar a equiparação da aparência ao gênero com que se identifica. Dito avanço no campo médico, entretanto, não foi acompanhado pela legislação, uma vez que nenhuma previsão legal existia a regular a realização da cirurgia. Essa omissão levava a classe médica a uma problemática ético-jurídica e a questionamentos sobre a natureza das intervenções cirúrgicas e a possibilidade de sua realização. […] por intermédio da Resolução nº. 1.482, de 10/9/1997, o Conselho Federal de Medicina autorizou, a título experimental, a cirurgia de transexuais. Considerando ser o paciente portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo, foi reconhecido que a transformação é terapêutica e, não havendo lei que a defina como crime, inexiste afronta à ética médica”.
Somente a partir da Resolução 1.652/02, do Conselho Federal de Medicina (CFM), que o procedimento de adequação de sexo não necessitaria mais de autorização judicial, desde que atendesse aos padrões e requisitos pré-estabelecidos.
A Comissão Européia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais considera a cirurgia de adequação de sexo do transexual como uma conversão curativa com o fim de permitir a integração pessoal e social do doente ao sexo a que possui convicção de pertencer.
Estudos realizados por Tereza Vieira (2004, p.95) apontam a possibilidade jurídica da cirurgia:
“Destarte, entendemos não ser criminosa a cirurgia porque não há dolo por parte do médico, não há intenção de mutilar, mas de curar, ou pelo menos amenizar o problema deste indivíduo. Este, por sua vez, fornece o consentimento esclarecido. Ademais, existem laudos psicológicos e médicos aconselhando a cirurgia para o restabelecimento da sua saúde. Não há tipicidade, pois, como sabemos, para que uma conduta seja considerada criminosa deverá estar tipificada de forma clara na lei. Não há crime, pois o agente (médico) pratica o ato no exercício regular de um direito (art. 23, III, Cód. Penal brasileiro). Trata-se de uma cirurgia ética, autorizada pelo Conselho Federal de Medicina, através da Resolução 1482, desde setembro de 1997.”
Visando resolver as controvérsias sobre o tema no âmbito da medicina, em 2010, o CFM – Conselho Federal de Medicina editou a Resolução CFM 1.955/2010[2] (Publicada no Diário Oficial da União, de 03 de setembro de 2010, seção I, p. 109/110), que regulamenta de modo completo a cirurgia de transgenitalismo, revogando a Resolução CFM 1.652/2002. Esta considerou ser o paciente transexual portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual; reafirmou a viabilidade técnica para as cirurgias de neocolpovulvoplastia e/ou neofaloplastia, bem como o fato de que a transformação da genitália constitui a etapa mais importante no tratamento de pacientes com transexualismo.
Um avanço legislativo que merece aplausos foi a Portaria n.º 1.707 (BRASIL, 2008), que instituiu no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) o processo transexualizador, a ser implantado em todo o Brasil. Hoje, qualquer pessoa pode acessar o SUS para submeter-se a uma cirurgia de transegnitalização.
Com a resolução do Conselho Federal de Medicina e, ainda, considerando os princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito, negar o procedimento cirúrgico nesses casos seria lesionar a vida digna, corolário dos Direitos da Personalidade, de todos que vivem o tormento de possuir uma identidade sexual física distinta da psíquica.
Diante da plena possibilidade de submissão a cirurgia de adequação sexual, imperativo analisar as conseqüências geradas no mundo jurídico, como a alteração do nome e do gênero. Importa, também, abordar a autodeterminação do transexual, que opta por não submeter-se a cirurgia, ainda assim assume socialmente o sexo psíquico com desejo único de uma vida digna, bem como ser aceito pela sociedade.
Negar o direito de alguém ter o nome que condiz com o gênero sexual é sonegar o direito de ser feliz. Buscar meios de adequação dos transexuais na sociedade, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal), é um objetivo a ser traçado por toda a população brasileira, seja com a alteração do prenome e gênero, seja com o combate aos preconceitos enraizados na sociedade.
3. Transexualismo e subjetividade: direito humano e da personalidade
Em pleno século XXI ainda se questiona direitos imanentes às condições dos indivíduos enquanto seres humanos. Em todos os países os povos encontram-se perdidos e angustiados em lutas pela conquista de direitos mínimos e básicos à vida e à liberdade.
O transexual caracteriza-se por seu desejo de ser aceito social e juridicamente enquanto do sexo oposto ao seu atribuído no momento do nascimento. Portanto, possuem a aparência de um sexo, mas detém o desejo intenso de pertencer a outro, o que seguramente contribui para, numa sociedade excludente, ser tratado de forma periférica e discriminada.
Elisa Sheibe (2008) expõe que resgatar essa minoria social em um Estado Democrático de Direito, espaço preservador da convivência humana que aponta a dignidade concreta como núcleo fundamental, é imprescindível e impositivo, tendo em vista ser nítido o sofrimento psíquico do transexual por conviver com a frustração de pertencer ao sexo não desejado.
Tereza Rodrigues Vieira (2004) descreve a superioridade da alma sobre o corpo, máxima apregoada por quase totalidade das religiões, poder-se-ia concluir que, no que toca ao transexualismo, sempre deveria prevalecer o sexo determinado pela alma, à adequação do corpo à alma, ao sexo psicológico, justificando a cirurgia.
O direito à saúde, tutelado constitucionalmente por diversos países, é elemento incentivador primordial dos interesses do transexual em ver reconhecido o seu direito à adequação de sexo e do prenome. O direito à busca do equilíbrio corpo-mente do transexual está ancorado, portanto, no direito ao próprio corpo, no direito à saúde e no direito à identidade sexual, a qual integra um poderoso aspecto da identidade pessoal.
Conforme nos ensina Szaniawski (1999, p. 176), "o direito à vida, o direito à integridade psicofísica e o direito à saúde constituem o trinômio que informa o livre desenvolvimento da personalidade e a salvaguarda da dignidade do ser humano, traduzindo-se no exercício da cidadania".
Oportuno lembrar o pensamento de Immanuel Kant que já à sua época descrevia:
“No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente, mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade. O direito à vida, à honra, à integridade física, à integridade psíquica, à privacidade, dentre outros, são essencialmente tais, pois, sem eles, não se concretiza a dignidade humana. A cada pessoa não é conferido o poder de dispô-los, sob pena de reduzir sua condição humana, todas as demais pessoas devem abster-se de violá-los”. (KANT, 1986. p. 77).
Há direitos que são inerentes à pessoa humana, posto não poderem ser destacados do homem. Dentre esses direitos tidos como subjetivos os que se acham nessa esfera pessoal são chamados direitos da personalidade, que gozam de atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa em suas projeções sociais, e são na sua origem direitos humanos. Constituem-se, portanto, num conjunto de caracteres próprios da pessoa, comuns da existência humana, ampliando-se, a partir do acúmulo de conquistas históricas, de cunho filosófico, ético, político e cultural.
Não restam dúvidas que os direitos relativos à personalidade se tratam de direitos atrelados à noção de liberdade, de dignidade, de individualidade e de pessoalidade, devendo todo ser humano ter sua vida com pleno desenvolvimento e igualdade de oportunidades, sendo esta proteção imprescindível para o desenvolvimento integral da personalidade.
Na perspectiva civil-constitucional, a personalidade não se esgota na possibilidade de titularizar direitos, a pessoa ainda pode tutelar os seus direitos fundamentais, imprescindíveis ao exercício de uma vida digna. Para Moraes (1997, p.103), é necessário que se tenha uma tutela genérica, fundamentada na dignidade da pessoa humana, na qual o "individuo é globalmente considerado, sua dignidade, onde quer que ela se manifeste, em conformidade e à luz do ditame constitucional".
Concorda-se plenamente com Paulo Netto Lôbo (2011, p.1) que afirma: “A Constituição brasileira, do mesmo modo que a italiana, prevê a cláusula geral de tutela da personalidade que pode ser encontrada no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana”
A cláusula geral da dignidade humana inserida na Constituição Federal fundamenta o direito à identidade do transexual, na medida em que a concepção repersonalizante do direito reconhece expressamente a tutela jurídica dos direitos de personalidade, como bem assevera a Douta Ministra Nancy Andrighi:
“A definição da identidade sexual – que deve ser examinada como um dos aspectos da identidade humana – e a autorização para a modificação do designativo de sexo dos transexuais, devem ser examinadas sob o crivo do direito à saúde – compreendida, segundo a OMS, como a busca do bem estar físico, psíquico e social –, à luz do princípio da dignidade humana, autêntico arquétipo primordial, uma das bases principiológicas mais sólidas nas quais se assenta o Estado Democrático de Direito. Sob essa perspectiva, a afirmação da identidade sexual, compreendida pela identidade humana, encerra a realização da dignidade, no que tange à possibilidade de expressar todos os atributos e características do gênero imanente a cada pessoa. Para o transexual, ter uma vida digna importa em ver reconhecida a sua identidade sexual, sob a ótica psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na sociedade.
A falta de fôlego do Direito em acompanhar o fato social exige, pois, a invocação dos princípios que funcionam como fontes de oxigenação do ordenamento jurídico, marcadamente a dignidade da pessoa humana – cláusula geral que permite a tutela integral e unitária da pessoa, na solução das questões de interesse existencial humano. Em última análise, afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar sua verdadeira identidade, o que inclui o reconhecimento da real identidade sexual, em respeito à pessoa humana como valor absoluto” (BRASIL, 2009).
Elisa Sheibe (2008) descreve, assim, que é neste contexto que os transexuais, até então socialmente escondidos e, por conseguinte, excluídos, necessitam encontrar o seu espaço social. Nesse sentido, os direitos que decorrem da personalidade do transexual, tais como a adequação sexual, bem como de alteração de nome e gênero são amplamente reconhecidos como valor constitucional, devem ser concretizados, pois a partir do advento da Constituição de 1988 houve uma reformulação do papel da pessoa, que passou a ocupar o centro do sistema e os transexuais merecem uma norma que regulamente a sua subjetividade.
3.1. A evolução dos direitos humanos e sua relação intrínseca com os direitos fundamentais e da personalidade:
Os direitos humanos estão atualmente num plano de direito universal, já que o homem se encontra no centro dos ordenamentos jurídicos dos Estados, mas nem sempre foi assim, houve grande evolução da dignidade da pessoa ao longo do tempo.
Inicialmente, “a sociedade se organizava de forma primitiva, sem hierarquia política e sem opressão social, todos usufruíam os mesmos bens, não existindo apropriação privada”. Contudo, a partir do momento em que se criou e “se desenvolveu a apropriação privada, surgiu também uma forma social de subordinação e opressão”, pois o titular da propriedade passa a impor seu domínio e subordinar todos que se relacionam com a coisa apropriada (SILVA, 2000, p. 150).
Os antigos códigos civis cuidavam apenas de regular as relações com repercussão patrimonial. Como conseqüência natural dos fundamentos ideológicos do direito privado liberal, tudo que escapava da órbita patrimonial desinteressava ao direito privado.
A filosofia grega considerava que o indivíduo não passava de um mero animal político ou social, pertencia ao Estado e possuía íntima ligação com o Cosmos e com a natureza. Na Roma Antiga, também, o indivíduo não era considerado sujeito de direitos, o sujeito por excelência era o pai de família, capaz de deter a propriedade, realizar negócios, e proteger a unidade produtiva familiar (COMPARATO, 2001, p. 26).
A partir da influência do pensamento de Boécio ao pensamento medieval, surge a clássica definição de que a pessoa é um ser composto de substância espiritual e corporal, uma substância do indivíduo, impulsionando a elaboração do princípio de igualdade essencial de todo ser humano, formando assim, o núcleo do conceito universal de direitos humanos. (COMPARATO, 2001, p. 19).
A terceira fase na elaboração do conceito de pessoa, baseada na filosofia de Kant, “pontuava que cada ser humano em sua individualidade é insubstituível”, possuindo dignidade que não tem um preço (COMPARATO, 2001, p. 19). Kant sustentava uma oposição ética entre coisas e pessoas, tendo como pressuposto a não-coisificação do ser humano, o que conseqüentemente levou a condenação de várias práticas que atentaram contra a dignidade humana. A escravidão foi um dos maiores exemplos de atentado à dignidade humana, que perdurou por séculos, sendo abolida somente no século XX.
O pensamento kantiano também prenunciou uma quarta etapa de conceituação da pessoa a qual trouxe “idéias valorativas e fundamentos éticos”. O ser humano passa a ser visto como o único ser capaz de dirigir sua vida em função de preferências valorativas, ao passo que é racional e possui vontade própria. É nesta fase que “os direitos humanos tornaram-se os valores mais importantes da convivência humana em sociedade” (COMPARATO, 2001, p. 26).
Com o pensamento existencialista do século XX, dava-se início a última etapa na elaboração do conceito de pessoa. Afirmava que cada indivíduo possuía uma identidade inconfundível e singular, ou seja, a unicidade da pessoa humana, conforme os ensinamentos de Comparato:
“Reagindo contra a crescente despersonalização do homem no mundo contemporâneo, como reflexo da mecanização e burocratização da vida em sociedade, a reflexão filosófica da primeira metade do século XX acentuou o caráter único e, por isso mesmo, inigualável e irreprodutível da personalidade individual. Confirmando a visão da filosofia estóica, reconheceu-se que a essência da personalidade humana não se confunde com a função ou papel que cada qual exerce na vida. A pessoa não é personagem. A chamada qualificação pessoal (estado civil, nacionalidade, profissão, domicílio) é mera exterioridade, que nada diz da essência própria do indivíduo. Cada qual possui uma identidade singular, inconfundível com a de outro qualquer. Por isso, ninguém pode experimentar, existencialmente, a vida ou morte de outrem: são realidades únicas e insubstituíveis” (COMPARATO, 2001, p. 26-27).
Em 1789, a Declaração Universal dos Direitos Humanos condensou toda essa evolução da pessoa na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, nesta oportunidade houve a proclamação de igualdade dos homens; mas foi com o fim da segunda guerra mundial que as pessoas passaram a ter consciência da importância da dignidade humana perante as agressões sofridas pelos governos autoritários da época.
A partir do fim do conflito mundial, que surgiu na Alemanha a Lei Fundamental de Bonn, fundada na idéia de livre desenvolvimento do ser humano e no reconhecimento da dignidade da pessoa. Surgiam os primeiros focos de um direito humanitário, contra a escravidão e a favor da regulamentação dos direitos do trabalhador. (HAMMERSCHMIDT, p. 114 e 115).
No Brasil, a Constituição de 1824 trouxe idéias do liberalismo, e a criação de um Estado com divisão de poderes, consagrando, assim, os direitos individuais. Já o Código Civil de 1916, ao contrário do atual, não apresentava capítulo especial sobre os direitos intrínsecos da pessoa, apenas continha algumas disposições que englobavam os direitos personalíssimos, como o direito à imagem, o direito moral do autor e sobre o segredo de correspondência.Em 1948, houve a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembléia Geral da ONU e, no século XX, acontecimentos políticos exigiram que a positivação dos direitos humanos alcançasse o direito internacional.
Segundo Pérez Luño citado por Evanna Soares (2004, p. 41), há que se destacar três relevantes motivos para a positivação internacional dos Direitos Humanos: no plano da fundamentação tem-se um retorno à exigência do seu caráter universal e supra-estatal, livrando-os do arbítrio da jurisdição individual dos Estados; quanto à titularidade, ampliou-se os sujeitos ativos, para não só proteger os cidadãos de um único Estado, mas todos os homens, como fez a Declaração Universal da ONU; quanto à natureza jurídica tem-se a tutela e garantia desses direitos.
Norberto Bobbio (1996, p.116), ressalta a relação dos direitos humanos com as Constituições Democráticas:
“[…] o reconhecimento e a proteção dos direitos do homem estão na base das Constituições democráticas modernas. A paz, por sua vez, é o pressuposto necessário para o reconhecimento e a efetiva proteção dos direitos do homem em cada Estado e no sistema internacional. Ao mesmo tempo, o processo de democratização do sistema internacional, que é o caminho obrigatório para a busca do ideal da ‘paz perpétua’, no sentido kantiano da expressão, não pode avançar sem uma gradativa ampliação do reconhecimento e da proteção dos direitos do homem, acima de cada Estado.”
Segundo Norberto Bobbio (1996, p. 117) a noção de direitos humanos somente encontrará a exatidão procurada pelos doutrinadores se considerar os seus “vários fundamentos possíveis”, apoiados no “estudo das condições, dos meios e das situações nas quais este ou aquele direito pode ser realizado”.
Há doutrinadores que diferenciam direitos humanos de direitos fundamentais. Bonavides acredita que os direitos fundamentais “são os do homem que as Constituições positivaram”, recebendo nível mais elevado de garantias ou segurança, pois, cada Estado, tem seus direitos fundamentais específicos. Entretanto, o autor acrescenta que os direitos fundamentais “estão vinculados aos valores de liberdade e dignidade humana, levando-nos, assim, ao significado de universalidade inerente a esses direitos como ideal da pessoa humana”. (BONAVIDES, 2000, p. 514-518)
Canotilho ensina que a positivação dos direitos fundamentais, considerados “naturais e inalienáveis” do indivíduo pela Constituição como normas fundamentais constitucionais, é que vincula o direito. “Sem o reconhecimento constitucional, estes direitos seriam meramente aspirações ou ideais, seriam apenas direitos do homem na qualidade de normas de ação moralmente justificadas”. (CANOTILHO, 1998, p.369)
Os direitos humanos são sempre direitos do ser humano inerente a sua dignidade e convívio social, sem, contudo, apresentar juridicidade constitucional, enquanto os direitos fundamentais encontram-se positivados na esfera constitucional. Ingo Wolfgang SARLET, assim os define:
“Em que pese sejam ambos os termos (“direitos humanos” e “direitos fundamentais”) comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo "direitos fundamentais" se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos” guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem o ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional e que, portanto, aspiram à validade universal para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional).” (SARLET, 2006, p.35-36)
Desse modo, os direitos humanos seriam garantias inerentes à existência da pessoa, albergados como verdadeiros para todos os Estados e positivados nos diversos instrumentos de Direito Internacional Público, não possuindo aplicação simplificada e acessível a todos os indivíduos.
Por outro lado, os direitos fundamentais são constituídos por regras e princípios, positivados constitucionalmente, cujo rol não está limitado aos dos direitos humanos, que visam garantir a existência digna (ainda que minimamente) da pessoa, tendo sua eficácia assegurada pelos tribunais internos.
Atualmente, a doutrina os classifica em direitos fundamentais em primeira, segunda, terceira e quarta dimensões[3], cujos conteúdos ensejariam os princípios: liberdade, igualdade e fraternidade.
Direitos de primeira dimensão ou de liberdade seriam os direitos e as garantias individuais e políticos clássicos, as chamadas liberdades públicas. Visam inibir a interferência indevida do Estado na vida do cidadão.
Os direitos de segunda dimensão ou de igualdade referem-se aos direitos sociais, econômicos e culturais, surgidos no início do século XX. Eram os direitos de caráter social. Neste caso, a interferência do Estado era desejada para garantir a igualdade material dos indivíduos.
Já os direitos de terceira dimensão ou de solidariedade ou fraternidade são os da coletividade, de titularidade coletiva ou difusa. Entre eles, encontra-se o direito à paz, ao meio ambiente equilibrado, à comunicação e à proteção do consumidor (DE LUCCA, 2008).
Assim, na terceira dimensão dos direitos fundamentais compreende uma saudável qualidade de vida, ao patrimônio comum da humanidade, ao progresso, à comunicação, aos direitos dos consumidores, das crianças e idosos, entre outros direitos metaindividuais (difusos e coletivos). Esses direitos são titularizados por pessoas indeterminadas e indetermináveis, dada a sua própria natureza.
Bonavides cita a quarta dimensão de direitos originários do mundo globalizado: os direitos à democracia, à informação, ao pluralismo. Seriam estes direitos que possibilitariam a legítima globalização política. (BONAVIDES, 2000, p.524)
Norberto Bobbio também entende ser possível identificar quatro gerações de direitos fundamentais: os direitos de liberdade, os direitos políticos, os direitos sociais e econômicos e a nova geração de direitos, relativos "à integridade do próprio patrimônio genético, que vai muito além do tradicional direito à integridade física. (Bobbio, 1997, p. 160).
Oportuno dizer que na obra “A era dos direitos”, Bobbio (1996, p.5) enquadra a redesignação sexual como “direitos do homem de quarta geração”, isso por estar inserida no campo da Bioética, abrangendo “um conjunto de direitos diretamente resultantes dos novos conhecimentos e tecnologias decorrentes das pesquisas científicas”, possuindo uma abrangência multidisciplinar que convoca os ramos da Medicina, da Psicologia, da Biologia, da Sociologia, da Filosofia e do Direito, para se manifestarem a respeito da mudança de sexo do transexual.
Existem também concepções diversas sobre direitos da personalidade e direitos humanos. A partir do reconhecimento dos direitos naturais como direitos inerentes ao homem têm-se de forma mais programática, diferentes concepções sobre os direitos humanos e da personalidade; pois ambos têm seus fundamentos aspectos refletidos de acordo com a organização social e política em que estejam inseridos, com o sistema econômico e com o respectivo contexto histórico.
Dentro de uma concepção idealista moderna, com suas origens no jusnaturalismo, tanto os direitos humanos quanto os direitos da personalidade são subjacentes à natureza racional do homem. Sob a ótica científico-positivista, centrado no positivismo jurídico, os direitos da personalidade e os direitos humanos são direitos fundamentais recepcionados formalmente pela ordem jurídica, posto serem emanados e assegurados pelo poder estatal. Tais direitos são produto de um processo histórico-estrutural, e de circunstâncias ideológicas, políticas e econômicas ensejadas através das verdadeiras fontes do direito, marcadas por lutas de classes e por movimentos sociais.
Na mesma esteira, os direitos da personalidade, pela sua essência, têm caracteres peculiares de valoração constitucional axiológica, tendo como cláusula geral o respeito à dignidade da pessoa humana. São direitos oponíveis erga omnes e contém em si um dever geral de abstenção, cuja garantia decorre de uma ação positiva do Estado.
Tanto os direitos da personalidade quanto os direitos humanos não podem ser considerados apenas como direitos individuais, mas sim, como condições que garantam a plena cidadania, sendo direitos, deveres e responsabilidades, a cada ser humano em toda a sua complexidade.
Os direitos da personalidade caracterizam-se, principalmente, por serem intransmissíveis, pois nascem e se extinguem com os seus titulares; são indisponíveis relativamente, pois são insuscetíveis de disposições[4], salvo em caso de interesse (cirurgia de adequação de sexo), ou de vontade própria (exploração de imagem para eventos ou produtos) ou de doação de órgãos; são direitos irrenunciáveis, impenhoráveis.
O seu âmbito de defesa não se extingue nem pelo uso nem pela inércia, uma vez que são imprescritíveis; são inexpropriáveis e, portanto, não podem ser retirados da pessoa enquanto ela viver; por serem extrapatrimoniais, não tem conteúdo patrimonial direto, aferível economicamente, exceto dos direitos tidos como autorais, que podem ser morais, próprios da personalidade.
No que se refere aos direitos humanos a sua trajetória encontra-se delineada nas concepções aqui já enfocadas, caracterizando-se em todas as correntes por serem direitos transcendentais, supra-estatais, uma vez que são inerentes ao homem, cujo processo de crescimento resulta de circunstâncias ideológicas e políticas, carecendo, mas que para sua efetividade, o reconhecimento, por parte do Estado, através do processo legislativo torna-se imprescindível, como defende BOBBIO (1996, p. 16).
Ao contrário das épocas remotas, onde o direito era considerado restrito e diferenciado de acordo com a posição que o indivíduo ocupasse na sociedade, hoje, todos são considerados como pessoa e enquadram-se como sujeitos de direitos e obrigações protegidos pela lei.
Pode-se concluir que os direitos fundamentais, humanos e da personalidade são intrinsecamente interligados entre si, todos interligados pela cláusula geral da Dignidade da Pessoa Humana inserida no texto Constitucional, todos têm o objetivo de proteção da pessoa, sendo os direitos humanos no âmbito internacional, os direitos individuais fundamentais no nível nacional geral e os direitos da personalidade na esfera civil.
Portanto, o direito ao equilíbrio do corpo e da mente do transexual trata-se de um direito humano, fundamental e de personalidade do indivíduo.
Diante desse transtorno de gênero, não é possível o Estado Brasileiro, através da omissão legislativa, deixar de regulamentar os procedimentos necessários à conformação do sexo, sob pena de infringência aos Direitos Personalíssimos da classe de indivíduos transexuais.
4. O direito à identidade do transexual como direito da personalidade:
A grande barreira que os transexuais enfrentam não está relacionada a cirurgia de readequação genital ante as alternativas de redução de custo, segurança e de eficácia da cirurgia. O grande obstáculo está na dificuldade de alteração do registro civil para completa satisfação com relação à identidade pessoal, a efetivação do direito da personalidade de alteração do nome e do gênero.
A alteração do nome e impedida pelo sistema jurídico brasileiro que consagra o princípio da imutabilidade do nome, não chancelando qualquer pretensão do transexual à mudança do prenome, como explica a Desembargadora Maria Berenice Dias:
“A Lei dos Registros Públicos diz que o prenome só pode ser alterado quando expuser ao ridículo o seu portador[5], sendo admitida à alteração somente a pedido do interessado, contanto que não prejudique o sobrenome da família[6]. Outra objeção que impede a mudança do nome decorre da vedação do art. 1.604 do Código Civil: “Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro”. Esse é o fundamento que leva a Justiça, muito freqüentemente, a indeferir o pedido de retificação”. (DIAS, p.3)
A personalidade nem sempre foi reconhecida e inerente a todos os seres humanos, tendo variado conforme a evolução do homem. (SCHEIBE, 2008, p. 118). A construção dos direitos de personalidade se confunde com a evolução dos direitos humanos, assim como a proteção à dignidade da pessoa humana, são os movimentos de constitucionalização e repersonalização que têm orientado o atual estudo sobre os direitos da personalidade, todavia, os transexuais ainda encontram muita dificuldade em efetivar o seu direito básico da personalidade à identidade pessoal e sexual. (SCHEIBE, 2008, p. 119-120).
No tocante à identidade propriamente dita, esta é uma das grandes angústias do transexual, pois quando nasce não identifica seu sexo psíquico com seu sexo biológico, e, mesmo depois de operado, tem dificuldades de alteração do nome, bem como da nova designação de gênero, tudo isso visando à efetivação da verdadeira dignidade humana, como afirma Tereza Vieira:
“O direito à busca do equilíbrio corpo-mente do transexual, ou seja, à adequação de sexo e prenome, ancora-se no direito ao próprio corpo, no direito à saúde (art.196 da Constituição Federal), principalmente, no direito à identidade sexual, a qual integra um poderoso aspecto da identidade pessoal. Trata-se, destarte, de um direito da personalidade”. (VIEIRA, 2004, p. 117)
Todas as pessoas são possuidoras dos direitos da personalidade, na medida em que são inerentes ao indivíduo, bens essenciais à pessoa, portanto, todos, inclusive o transexual, têm direito a sua identidade como forma de individualização da pessoa humana.
Assim, o estudioso Adriano de Cupis adverte sobre a importância de se ter a identificação pessoal como um direito de personalidade:
“O indivíduo, como unidade da vida social e jurídica, tem necessidade de afirmar a própria individualidade, distinguindo-se dos outros indivíduos, e, por conseqüência, ser conhecido por quem é na realidade. O bem que satisfaz esta necessidade é o da identidade, o qual consiste, precisamente, no distinguir-se das outras pessoas nas relações sociais”. (DE CUPIS, 2004, p. 195).
Por ser de tamanha importância a identificação pessoal para o ser humano é que o direito à identidade abarca-se ao rol dos direitos da personalidade, tutelados pela Constituição Federal. Identidade trata-se de uma qualidade de idêntico conjunto de características de um indivíduo como nome, idade, peso, altura e assim por diante. É, portanto, o direito que se tem de exigir um reconhecimento com individualidade distinta de outras individualidades.
Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de Souza demonstra com a expressão “homem consigo mesmo”, que o indivíduo assume a sua identidade quando se aceita como é, quando se ama a si mesmo, asseverando que:
“O bem da identidade reside assim na própria ligação de correspondência ou identidade do homem consigo mesmo e está ligado a profundas necessidades humanas, a ponto de o teor da convivência humana depender da sua salvaguarda em termos de reciprocidade. […] reconhecendo-lhe o seu particular modo de ser e de se afirmar e impondo aos outros o reconhecimento da sua identidade de modo a que as referências a cada homem respeitem a sua identidade ontológica. O bem da identidade está na ligação de correspondência entre o homem e ele mesmo, e mais, esta correspondência está ligada às profundas necessidades do ser humano, ao ponto de a boa convivência do indivíduo com seus pares depender da preservação deste direito, e direito este de modo recíproco, entre um indivíduo e outro”. (SOUZA, 1995, p. 245).
Carlos Alberto Bittar, acredita ser o direito à identidade, “um elo de ligação entre o indivíduo e a sociedade em geral”, assim como forma os elementos básicos para o relacionamento normal nos inúmeros meios, dentre eles o familiar e social, pois que individualiza a pessoa evitando confusão com outra (BITTAR, 2007, p. 128).
Diante destas informações acredita-se que o indivíduo que opta pela alteração de sexo, também deve ter respaldo jurídico em relação ao respeito à sua identidade. Ora a alteração de sexo jamais lhe retira a condição de pessoa humana portadora de direitos da personalidade
Nesta esteira, Tereza Vieira (2004, p. 95) resume:
“A adequação do Registro Civil, no que concerne ao prenome e ao sexo, é uma das últimas etapas a serem transpostas pelo transexual, a qual integra o tratamento. Neste momento sim, deverá o transexual recorrer ao Judiciário.
Os países signatários da Convenção Européia dos Direitos do Homem têm acolhido o pedido de adequação de sexo do transexual verdadeiro, desde que esgotadas as vias internas de recursos. Os Juizes da Corte Européia têm entendido que o não acolhimento do pedido é uma transgressão ao art. 8o da Convenção. Eis o texto: “Toda pessoa tem direito ao respeito à vida privada e familiar de seu domicílio e da sua correspondência”.”
Defende-se aqui a criação de uma lei federal[7] específica que regulamente o direito do transexual alterar seu nome e seu sexo, para evitar a necessidade de ação judicial, pois como Rabindranath ensina com “sua identidade lesionada, não respeitada, gerará um conflito em sua harmonia pessoal, resultando, tal fato, em impedimento ao bom desempenho do seu desenvolvimento próprio, do seu progresso social” (SOUZA, 1995, p. 245).
Adriano de Cupis (DE CUPIS, 2004, p. 249), no mesmo sentido compreende o direito à identidade sexual de modo amplo:
“[…] o direito de aparecer extremamente igual a si mesmo em relação com a realidade do próprio sexo, masculino ou feminino, ou seja, o direito ao exato reconhecimento do próprio sexo real, antes de mais nada na documentação contida no registro do estado civil.”
O Governador do Estado do Rio de Janeiro, utilizando-se do argumento de evitar a discriminação, editou um decreto[8] que possibilita travestis e transexuais a utilizarem o nome social na administração pública do Estado do Rio de Janeiro, visando à construção de uma política pública estadual de combate à homofobia e a promoção da cidadania da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, de modo a garantir a consolidação dos direitos LGBT na gestão pública do Estado do Rio de Janeiro.
Para os transexuais, a utilização de nome social é um constrangimento público passível de discriminação. Considerando que a cirurgia modificou o sexo, o nome deveria ser automaticamente alterado sem necessidade de utilização de nome social, mas de um novo nome compatível com a nova redesignação sexual.
Outro aspecto relevante é saber se a adequação do prenome e do sexo deve-se realizar sob a forma de averbação no registro já existente ou se deve ser produzido um novo registro. Por um lado, averbar novo nome e sexo no registro público de nascimento não poderia ser evitado, pois ocorre uma modificação no estado da pessoa e a lei e a segurança jurídica exige a gravação. Mas, os outros documentos devem ser novos sem referência da adequação, haja vista que poderia trazer problemas discriminatórios ao transexual[9].
Tereza Vieira (2004, p.99) também compartilha desta opinião:
“Os Registros Públicos relatam fatos históricos da vida do indivíduo. Assim, acreditamos que a adequação de prenome e de sexo deve constar para demonstrar que determinado indivíduo passa oficialmente, a partir daquele momento, e não do seu nascimento, a chamar-se fulano de tal, pertencente ao sexo X (não retroativo). Entendemos que os direitos dos transexuais e de terceiros estariam muito mais explicitamente assegurados, se, no Registro Civil constar à alteração ocorrida. Trata-se de uma ação modificadora do estado da pessoa, com a adequação de sexo, devendo, portanto, ser averbada (art. 29, p. 1, letra f, da lei 6.015/73).
Todavia, defendemos que não deverá ocorrer nenhuma referência à aludida alteração na Carteira de Identidade, Cadastro de Pessoa Física, Carteira de Trabalho, Cadastro Bancário, Título de Eleitor, Cartões de Crédito etc”.
Como o registro público possui efeito constitutivo, servindo para provar a existência e a veracidade do que está consignado, a alteração registral levada a efeito torna-se acessível ao conhecimento de todos[10] o que pode também ser objeto de discriminação. A jurista Maria Berenice Dias (2000, p. 4) esclarece o conflito entre o princípio da privacidade do transexual e da publicidade do registro:
“Mesmo que qualquer alteração posterior deva ser obrigatoriamente mencionada, sob pena de responsabilidade civil e penal do serventuário, conforme expressamente preconiza a Lei dos Registros Públicos, tal regra não pode ensejar infringência ao sagrado princípio de respeito à privacidade e à identidade pessoal. Integra o restrito campo do livre arbítrio de todo e qualquer indivíduo o direito de revelar ou ocultar seu sexo real, o sexo com o qual se identifica, o sexo pelo qual optou. Entre os dois princípios, possui mais relevância o que diz com o direito à identidade, devendo ser o prevalentemente preservado.”
A corrente doutrinária de Rosa Maria Nery citada na obra de Maria Helena Diniz (2002, p. 98), nos coloca outra opção para a adequação do transexual no que se trata de seu registro civil:
“Os documentos têm de ser fiéis aos fatos da vida, logo, fazer a ressalva é uma ofensa à dignidade humana. Realmente, diante do direito à identidade sexual, como ficaria a pessoa se se colocasse no lugar de sexo “transexual”? Sugere a autora que se faça, então, uma averbação sigilosa no registro de nascimento, assim, o interessado, no momento do casamento, poderia pedir, na justiça, uma certidão “de inteiro teor”, onde consta o sigilo. Seria satisfatório que se fizesse tal averbação sigilosa junto ao Cartório de Registros Públicos, constando o sexo biológico do que sofreu a operação de conversão de sexo, com o intuito de impedir que se enganem terceiros.”
Realmente, a averbação sigilosa resguardaria o direito de privacidade e intimidade da vida privada do transexual, evitando a discriminação e, por sua vez, eventuais humilhações públicas em relação a sua mudança de identidade.
É inimaginável a pessoa declarar-se de um sexo e ser conhecida na sociedade por outro até que a sentença judicial reconheça a adequação sexual efetivamente realizada. Este fato violaria o princípio da dignidade da pessoa humana inerente à pessoa.
Um autêntico Estado Democrático de Direito reconhece, respeita e faz cumprir todos os direitos dos seus cidadãos, inclusive, o direito a uma nova identidade sexual. O transexual deseja ver seu direito à saúde, à cidadania, à igualdade, à dignidade, à opção sexual respeitados.
5. O direito de autodeterminação do transexual:
Pierre Henri Castel (2003, p.26) traz em sua obra sobre o transexualismo um questionamento relevante: “Se meu corpo é meu, porque não seria razoável mudar de sexo”? A partir desta indagação surge outra: mesmo não mudando de sexo, posso ser tratado pelo meu sexo psicológico? Mereço respeito e possuo dignidade?
Psiquiatras esclarecem que os transexuais são pessoas de um sexo que desejam se tornar do outro, psicologicamente eles já são do sexo oposto ao biológico, o que gera o transtorno de identidade sexual.
O ser humano não deve somente respeitar a dignidade do outro, mas a sua própria. Assim, caso um transexual decida não fazer a cirurgia de redesignação de sexo, deve ser respeitado. Neste caso, levanta-se a dúvida: mesmo não tendo realizado a cirurgia de adequação de sexo, o transexual poderia efetivar a alteração de nome em seu registro público?
Questão intimamente relacionada à possibilidade jurídica da redesignação sexual é a que diz respeito aos limites do direito do próprio corpo, da mesma forma que a partir do princípio do consentimento pessoal, o transexual opta pela cirurgia de transgenitalização, pode também se autodeterminar decidindo pela manutenção do corpo indesejado.
Cuida-se da prevalência da autonomia privada, da expressão de vontade, como meio de desenvolvimento da personalidade da pessoa humana, com a manifestação do desejo de corrigir a sua aparência para o sexo que alega possuir ou não. É, em verdade, uma salvaguarda ético-jurídica que reconhece ao transexual o direito de se autodeterminar, nos limites constitucionais.
Em 2009, os participantes do Diálogo Latino-americano sobre Sexualidade e Geopolítica publicaram um manifesto pela retirada da transexualidade do rol de doenças, trata-se da Campanha Stop Pathologization 2012.
Constava no manifesto que o diagnóstico de transexualidade não seria um transtorno, mas um legado da naturalização das identidades. Afirmam que as “doenças de gênero” são definidas por indicadores chamados DSM (sigla de classificação dos Transtornos mentais da Associação Americana de Psiquiatria) e CID (código internacional de doenças) que atuam como reprodutores oficiais da violência.
Os manifestantes consideram que as pessoas que vivem a experiência de gênero nos marcos da transexualidade, de modo a acessar o processo transexualizador completo, incluindo cirurgias de transgenitalização, devem cumprir protocolos que violam sua a autonomia e as expõe a situações humilhantes, pois o processo e as regras a que se devem submeter partem do pressuposto de que elas são pessoas sem capacidade para decidir, que aquilo classificado como “sua doença” lhes retira a capacidade de autodeterminação. A transexualidade não seria uma doença, mas apenas um direito do ser humano de se autodeterminar.
Ocorre que as cirurgias ainda vinham sendo consideradas necessárias para que se obter a alteração do nome e do sexo no registro civil, o que afasta do transexual não operado, o direito ao tratamento digno pela sociedade e pelo direito.
No entanto, vale frisar que a adequação do transexual feminino para o masculino não é simples. A neofaloplastia, hoje realizada em três momentos: a construção do neopênis no antebraço da pessoa, a implantação na zona perineal e a colocação de próteses peniana e testicular de silicone, todas estas fases no intervalo de três meses -, serve apenas para satisfação anatômica do indivíduo, sem qualquer funcionalidade, – o que levou a Jurisprudência a considerar a excepcionalidade desta situação e admitir mudanças de sexo até mesmo sem a realização das cirurgias, desde que obedecidos os demais requisitos da mencionada norma médica.
André Lopes (2011) nos informa sobre a primeira decisão prolatada no Rio de Janeiro, que autorizou a alteração de nome e de sexo ao transexual que não se submeteu a cirurgia[11].
Entende-se que o transexual tem o direito de se autodeterminar e independentemente de realizar a cirurgia de redesignação de sexo pode ter o seu nome e sexo alterados, fundamentado no princípio da dignidade humana que impõe a proteção do ser humano concretamente considerado. Com a personalização dos institutos jurídicos, o princípio passou não somente a representar um limite à atuação do Estado, mas também um caminho para a sua atuação positiva, garantindo o mínimo existencial e dando ao ser humano o direito de ser feliz.
A estudiosa Maria Berenice Dias afirma que a proteção à dignidade humana é o elemento norteador da Constituição Federal, o núcleo jurídico do próprio Estado, sendo a garantia das liberdades individuais:
“A regra maior da Constituição Pátria é o respeito à dignidade humana verdadeira pedra de toque de todo o sistema jurídico nacional. Este valor implica adotar os princípios da igualdade e isonomia da potencialidade transformadora na configuração de todas as relações jurídicas, sendo que qualquer discriminação baseada na orientação sexual é um desrespeito à dignidade da pessoa humana e infringe regra expressa da Constituição Federal que garante a inviolabilidade da intimidade e da vida privada” (DIAS, 2001, P.71-72)
A dignidade da pessoa humana tem um conceito amplo que proporciona uma efetiva fruição dos direitos fundamentais com o firme propósito de garantir a liberdade e o respeito humano. A dignidade não pode ser compreendida sem a liberdade, nem a liberdade sem dignidade. A liberdade é tida como valor supremo no Estado Democrático de Direito. A pessoa é digna porque é autônoma e livre, dispõe de si mesma de forma responsável, atendendo as leis morais.
Maria Celina Bodin de Moraes há muito já enfatizava as dimensões da dignidade humana:
“O substrato material da dignidade assim entendida pode ser desdobrado em quatro postulados: i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros sujeitos como sujeitos iguais a ele, ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular, iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação, iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não vir a ser marginalizado. São colorários desta elaboração os princípios jurídicos da igualdade, da integridade física e moral – psicofísica -, da liberdade e da solidariedade” (MORAES, 2003, p. 85).
Questão interessante reside na possibilidade de o transexual se opor à cirurgia corretiva em nome do direito de procriar. Há quem admita a prevalência do direito de procriação, mantendo-se os órgãos reprodutores, como fator de perpetuação da espécie. Periódicos informam que recentemente um transexual britânico, Thomas Beatle, casado com Nancy e já tendo com ela um filho, restou grávido, advindo uma filha Susan Julette, através de “parto natural” e noticiários locais informam já a existência de outro transexual, o espanhol Ruben Noe Coronado, de 25 anos, que estaria esperando gêmeos.
Certo é que o transexual possui o seu direito de autodeterminação, podendo tutelar dentre outros o seu direito à liberdade, optando ou não por realizar a cirurgia de redesignação de sexo, sendo que, em qualquer caso, tem o direito de ser feliz, não podendo ser discriminado nem alijado da sociedade.
Afinal, todo ser humano tem dignidade, uma pessoa humana não tem uma dignidade maior ou menor que a outra por ser ou não transexual. Cada pessoa é dotada de dignidade em igualdade de condições com as demais. Negar a dignidade a alguém é considerá-la inferior às demais, o que é inadmissível num Estado Democrático de Direito, pois a dignidade, enquanto fundamento do Estado, representa então a premissa essencial para que o homem seja a razão de todo o Direito.
6. Decisões judiciais que reconheceram o direito à identidade do Transexual no Brasil:
O direito dos transexuais, em que pese não haver lei regulamentadora, é amplamente debatido no Poder Judiciário de todo país. Já são vários os casos cujas decisões garantiram o direito à identidade para aqueles que se submetem à cirurgia de mudança de sexo.
Os primeiros julgados, a princípio, concediam o direito apenas de alteração do prenome dos transexuais, vedando a alteração do sexo no registro civil, ou nele fazendo constar o termo “transexual”. Nestas hipóteses além da ofensa à dignidade da pessoa humana, manifestada pela manutenção de gênero ao qual não mais pertence, há uma verdadeira discriminação vedada pela Magna Carta, que importaria na segregação do transexual perante seu meio social.
Com o passar do tempo, as mudanças de prenome e de gênero começaram a ser autorizadas em vários Tribunais do Brasil, todavia, predominantemente pelos Tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul (AP 70013909874[12], AP 70022952261[13] e AP70022504849[14]) e do Rio de Janeiro (AP 200500117926[15] e AP 200600161108[16]).
Consolidando a jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou a alteração do prenome e da designação de sexo de um transexual de São Paulo que realizou cirurgia de mudança de sexo. Ele não havia conseguido a mudança no registro junto à Justiça paulista e recorreu ao Tribunal Superior de Justiça.
A decisão da Terceira Turma do STJ, (REsp 1008398/SP – 2007/0273360-5 – 18/11/2009 – Min. Nancy Andrighi – Terceira Turma), além de inédita, atentou-se a garantir a dignidade da pessoa, na medida em que determinou a expedição de uma nova certidão de registro civil sem que constasse anotação sobre a decisão judicial. (BRASIL, 2009). O registro de que a designação do sexo foi alterada judicialmente poderia figurar apenas nos livros cartorários, conforme se defende neste artigo.
No processo, a parte afirmou ao STJ que cresceu e se desenvolveu como mulher, com hábitos, reações e aspectos físicos tipicamente femininos. Submeteu-se a tratamento multidisciplinar que diagnosticou o transexualismo e passou pela cirurgia de mudança de sexo. Alegou que seus documentos lhe provocavam grandes transtornos, já que não condiziam com sua aparência feminina (BRASIL, 2009).
Ainda foram demonstrados no recurso os julgamentos no Tribunal de Justiça do Amapá, do Rio Grande do Sul e de Pernambuco, nos quais questões idênticas foram resolvidas de forma diferente do tratamento dado a ele pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Nesses estados, foi considerada possível a alteração e retificação do assento de nascimento do transexual submetido à cirurgia de mudança de sexo.
Em primeira instância, o transexual havia obtido autorização para a mudança de nome e designação de sexo, mas o Ministério Público Estadual apelou ao Tribunal de Justiça de São Paulo, que reformou o entendimento, negando a alteração fundamentando que “a afirmação dos sexos (masculino e feminino) não diz com a aparência, mas com a realidade espelhada no nascimento, que não pode ser alterada artificialmente” (BRASIL, 2009).
A relatora do Recurso Especial Ministra Nancy Andrighi, afirmou que “a observação sobre alteração na certidão significaria a continuidade da exposição da pessoa a situações constrangedoras e discriminatórias” (BRASIL, 2009). Assim argumentou a relatora:
“A cirurgia de transgenitalização foi incluída na lista de procedimentos custeados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e o Conselho Federal de Medicina reconhece o transexualismo como um transtorno de identidade sexual e a cirurgia como uma solução terapêutica. Assim, se o Estado consente com a cirurgia, deve prover os meios necessários para que a pessoa tenha uma vida digna. Por isso, é preciso adequar o sexo jurídico ao aparente, isto é, à identidade”. (BRASIL, 2009).
Ainda destacou que, atualmente, “a ciência não considera apenas o fator biológico como determinante do sexo. Existem outros elementos identificadores do sexo, como fatores psicológicos, culturais e familiares”. Por isso, “a definição do gênero não pode ser limitada ao sexo aparente” (BRASIL, 2009).
Por fim, a Ministra brilhantemente esclarece:
“Deve, pois, ser facilitada a alteração do estado sexual, de quem já enfrentou tantas dificuldades ao longo da vida, vencendo-se a barreira do preconceito e da intolerância. O Direito não pode fechar os olhos para a realidade social estabelecida, notadamente no que concerne à identidade sexual, cuja realização afeta o mais íntimo aspecto da vida privada da pessoa. E a alteração do designativo de sexo, no registro civil, bem como do prenome do operado, é tão importante quanto a adequação cirúrgica, porquanto é desta um desdobramento, uma decorrência lógica que o Direito deve assegurar. – Assegurar ao transexual o exercício pleno de sua verdadeira identidade sexual consolida, sobretudo, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, cuja tutela consiste em promover o desenvolvimento do ser humano sob todos os aspectos, garantindo que ele não seja desrespeitado tampouco violentado em sua integridade psicofísica. Poderá, dessa forma, o redesignado exercer, em amplitude, seus direitos civis, sem restrições de cunho discriminatório ou de intolerância, alçando sua autonomia privada em patamar de igualdade para com os demais integrantes da vida civil. A liberdade se refletirá na seara doméstica, profissional e social do recorrente, que terá, após longos anos de sofrimentos, constrangimentos, frustrações e dissabores, enfim, uma vida plena e digna. – De posicionamentos herméticos, no sentido de não se tolerar “imperfeições” como a esterilidade ou uma genitália que não se conforma exatamente com os referenciais científicos, e, consequentemente, negar a pretensão do transexual de ter alterado o designativo de sexo e nome, subjaz o perigo de estímulo a uma nova prática de eugenia social, objeto de combate da Bioética, que deve ser igualmente combatida pelo Direito, não se olvidando os horrores provocados pelo holocausto no século passado” (BRASIL, 2009)
No mesmo sentido, em decisão unânime, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou a modificação do prenome e da designação de sexo de um transexual de Minas Gerais que realizou cirurgia de mudança de sexo (REsp 737993 (2005/0048606-4 – 18/12/2009. Ministro João Otávio de Noronha – Quarta Turma).
Neste caso, a parte recorreu contra o Acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que não deu provimento ao pleito entendendo que “a falta de lei que disponha sobre a pleiteada ficção jurídica à identidade biológica impede ao juiz alterar o estado individual, que é imutável, inalienável e imprescritível” (BRASIL, 2009)
O relator do recurso, Ministro João Otávio de Noronha, sustentou que deveria ser permitida a mudança do gênero e prenome no registro civil, adequando-se documentos e, logo, facilitando a inserção social e profissional, suscitando que “não entender juridicamente possível o pedido formulado na exordial significa postergar o exercício do direito à identidade pessoal e subtrair ao indivíduo a prerrogativa de adequar o registro do sexo à sua nova condição física, impedindo, assim, a sua integração na sociedade” (BRASIL, 2009).
Alegou que a ausência de legislação específica que regule as conseqüências jurídicas advindas de cirurgia efetivada em transexual não justifica a omissão do Poder Judiciário a respeito da possibilidade de alteração de prenome e de gênero constantes de registro civil. Para o Ministro, “o transexual, em respeito à sua dignidade, à sua autonomia, à sua intimidade e à sua vida privada, deve ter assegurada a sua inserção social de acordo com sua identidade individual, que deve incorporar seu registro civil” (BRASIL, 2009).
Entretanto a decisão determinou que fosse averbado, no livro cartorário, que as modificações procedidas decorreram de sentença judicial em ação de retificação de registro civil para salvaguardar os atos jurídicos já praticados e manter a segurança das relações jurídicas no âmbito do direito de família, previdenciário e esportivo.
O fato do tema de alteração de registro civil quanto ao gênero e nome para transexuais ser analisado pela Corte Superior, com decisões similares, é importante para a luta de efetivação de direitos humanos e de personalidade do indivíduo.
O Judiciário não poderia se furtar de analisar questão tão relevante, entretanto, necessário se faz que o Legislativo se movimente e regulamente o direito à alteração de nome e redesignação sexual para que os transexuais não precisem levar tanto tempo para a sua inserção na sociedade com dignidade.
7. Proposta de Projeto de Lei que regulamenta os direitos à cirurgia de adequação de sexo e o de identidade do transexual:
PROJETO DE LEI N° XXX/2011 – Dispõe intervenções cirúrgicas que visem à alteração de sexo e dá outras providências.
EMENTA: Autoriza o transexual a realizar cirurgia de adequação de sexo e admite a mudança do prenome e do sexo mediante apresentação de documentação que comprove a intervenção cirúrgica destinada a alterar o sexo originário.
Art. 1 – Fica assegurado aos transexuais o direito a se submeter à cirurgia de redesignação de sexo ou especificamente de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo.
Art. 2 – O conceito de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados:
a) Desconforto com o sexo anatômico natural;
b) Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;
c) Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos;
d) Ausência de outros transtornos mentais.
Art. 3 – A seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo deverá obedecer à avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, seguindo aos critérios abaixo definidos, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto:
a) Diagnóstico médico de transgenitalismo;
b) Maior de 21 (vinte e um) anos;
c) Ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia.
Art. 4 – Fica alterado o art. 129 do Decreto-Lei nº. 2.848 de 7-12-40 – Código Penal – passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo:
"Art. 129… Exclusão do crime: § 9º) Não constitui crime a intervenção cirúrgica realizada para fins de ablação de órgãos e partes do corpo humano quando, destinada a alterar o sexo de paciente maior e capaz, tenha ela sido efetuada a pedido deste e precedida de todos os exames necessários e de parecer unânime de junta médica."
Art. 5 – O art. 58 da Lei 6.015 – 31-12-73 – Lei de Registros Públicos – passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 58 – O prenome será imutável, salvo nos casos previstos neste artigo”.
§ 1) Quando for evidente o erro gráfico do prenome, admite-se a retificação, bem como a sua mudança mediante sentença do juiz, a requerimento do interessado, no caso do parágrafo único do art. 55, se o oficial não houver impugnado.
§ 2) Será admitida à mudança do prenome mediante apresentação de documentação que comprove que o requerente tenha se submetido à intervenção cirúrgica destinada a alterar o sexo originário.
§ 3) No caso do parágrafo anterior deverá ser averbado ao registro de nascimento a alteração do prenome e da alteração de sexo do transexual.
§ 4) A alteração do prenome e do sexo do transexual não constará do documento de identidade, assim como em outros documentos de identificação, isso como forma de evitar preconceitos, discriminação e de garantir o direito de personalidade do autor, garantindo o direito à privacidade e a intimidade constitucionais.
Art. 6 – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 7 – Revogam-se as disposições em contrário.
JUSTIFICATIVA: Em seu preâmbulo, a Constituição Federal já estabelece como um dos objetivos da República “instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”. Assegurar que os transexuais possam realizar a cirurgia de adequação de sexo, bem como o seu direito a alteração de nome e gênero pretende contribuir para acabar com a discriminação sofrida por este segmento populacional. Embora a capacidade regida pelo Código Civil se iniciar aos 18 anos, entende-se sensata a opção da idade mínima de 21 anos para realização da cirurgia de redesignação de sexo. Optou-se por seguir as orientações da Resolução Conselho Federal de Medicina 1.955/2010 em vigor no Brasil, tendo em vista que já ocorreram estudos científicos e médicos em relação aos requisitos e critérios exigidos nos artigos 2 e 3 deste projeto de lei. Assim, a fim de efetivar o direito de personalidade do transexual e de evitar que continuem a passar por constrangimentos e discriminação é que se apresenta este projeto de lei.
8. Considerações finais:
A sociedade contemporânea vive constantes transformações que acabam por refletir nas suas mais diversas esferas. As mudanças de valores sofridas na órbita social resultaram na reformulação da conduta humana. Atento a isso, o mundo jurídico evoluiu em busca da consolidação dos direitos humanos, da dignificação e valorização da pessoa enquanto ser desencadeador de novas propostas e projetos de vida.
O movimento de constitucionalização de direitos não é novidade, mas só pôde ser notado a partir da instituição de um regime político inerente à proteção dos Direitos Humanos. Por esta razão, apenas com a Constituição Federal de 1988, que se delineou uma redemocratização política no país, e que, efetivamente, pôde-se reconhecer a sedimentação dos direitos fundamentais.
Como se viu a realidade do transexual não é fácil, trata-se de uma pessoa biologicamente normal que, segundo sua história pessoal, clínica e psiquiátrica, apresenta sexo psicológico incompatível com a natureza do sexo somático. Portanto, um indivíduo que vive constantemente atormentado pela idéia e pelo desejo de se submeter às intervenções cirúrgicas plásticas, com a finalidade de transformar sua estrutura anatômica sexual e, quando consegue realizar a cirurgia, encontra sérios óbices no enquadramento de sua identidade.
A cirurgia para alteração de sexo é apenas o início de um longo caminho até o reconhecimento do transexual como ser humano dotado de dignidade, pois mesmo depois da realização da intervenção cirúrgica, e da conseqüente mudança do sexo morfológico, continua existindo o estigma e a discriminação. O registro civil, cujo norte é identificar e incluir socialmente o indivíduo serve aos transexuais, muitas vezes, como instrumento de exclusão.
Nessa busca de dignidade, foi proposta neste estudo uma sugestão de projeto de lei que regulamenta os direitos à cirurgia e o de identidade do transexual, incluindo a alteração de nome e de sexo, sem necessidade de ação judicial. Não são estéreis as campanhas que incentivam o registro, pois é através dele que, oficialmente, a pessoa passa a existir perante o Estado. Além disso, o nome aposto no registro civil de nascimento é um aspecto indispensável ao processo de individualização da pessoa, e está relacionado ao direito de identidade, um direito humano e de personalidade do cidadão brasileiro.
Torna-se imprescindível o respaldo jurídico-social às garantias das minorias, quaisquer que sejam elas, sobretudo no que tange ao direito da personalidade. Afinal, cada indivíduo possui como garantia os direitos ao nome, à honra e à integridade, que juntos convergem na efetiva jurisdição e observância dos princípios gerais da pessoa humana, dos bens jurídicos fundamentais de uma sociedade, dos direitos humanos e do real Estado Democrático de Direito. Contudo, na prática, não é o que infelizmente ocorre.
No momento em que impera a dinamicidade das relações sociais e que os avanços científicos trazem diversas conseqüências, mais do que necessário é o resgate do tema da dignidade da pessoa humana, entendida como vetor de uma sociedade democrática.
Dessa forma, progredir e inovar nos direitos dos transexuais são necessidades urgentes e ao Direito cabe a responsabilidade de resguardar valores e princípios jurídicos, assegurando a todos a honra, a identidade, a privacidade, mas, principalmente, a felicidade, que se situa no respaldo jurídico à dignidade acima de tudo. Neste contexto, as diferenças, os preconceitos e o extremismo não possuem terreno.
Em uma sociedade complexa e diversificada como a brasileira, reconhecer a pluralidade e a diversidade é condição indispensável para a promoção da dignidade. A cirurgia de transgenitalização ou o direito de autodeterminação do transexual, assim como a possibilidade de alteração de nome e gênero no registro público civil devem ser viabilizados e facilitados pelo direito, pois são caminhos na busca pelo reconhecimento de um direito humano de inclusão social.
Informações Sobre os Autores
Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas
Professora de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Estado de Minas Gerais e Faculdades Del Rey – UNIESP. Doutoranda e Mestre em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Tutora do Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Servidora Pública Federal do TRT MG – Assistente do Desembargador Corregedor. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Gama Filho. Especialista em Educação à distância pela PUC Minas. Especialista em Direito Público – Ciências Criminais pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus. Bacharel em Administração de Empresas e Direito pela Universidade FUMEC.
Cesar Leandro de Almeida Rabelo
Bacharel em Administração de Empresas e em Direito pela Universidade FUMEC. Especialista em Docência no Ensino Superior pela Pontifícia Universidade Católica do Estado de Minas Gerais. Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pelo CEAJUFE – Centro de estudos da área jurídica federal. Mestre em Direito Público pela Universidade FUMEC. Advogado do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade FUMEC. Professor da Fundação Comunitária de Ensino Superior de Itabira – FUNCESI, Faculdades Del Rey – UNIESP e Policia Militar de Minas Gerais.
Leonardo Macedo Poli
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor adjunto da Universidade FUMEC, da UFMG e da PUC Minas. Foi coordenador do curso de direito da PUC MINAS no triênio 2008/2010. Atualmente, Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC Minas. Advogado.