Resumo: O presente artigo tem por escopo a abordar os efeitos do abandono afetivo nas relações familiares. A família brasileira sofreu profundas alterações paradigmáticas na esfera jurídica, social e cultural nos últimos anos, principalmente, após o advento da Constituição da República de 1988, que trouxe a baila a importância do princípio da Dignidade Humana. Essa mudança estrutural no ordenamento jurídico modificou também o Direito das Famílias e tornou as relações humanas familiares, com suas nuances e peculiaridades de caráter existencial mais evidentes e respeitadas. Estas novidades trouxeram a tona os institutos do afeto e da responsabilidade civil nas relações familiares. Pretende-se, por meio de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, desmistificar o abandono afetivo como algo indenizável e sugerir o instituto da mediação como meio alternativo de solução de conflitos no âmbito das relações paterno-filiais.
Palavras-chave: afetividade; família; responsabilidade civil; abandono afetivo; mediação.
Sommario: Questo articolo è la possibilità di affrontare gli effetti delle distanze emotivo dei relazioni familiari. La famiglia brasiliana ha subito profondi cambiamenti paradigmatici in ambito giuridico, sociali e culturali dello sviluppo negli ultimi anni, soprattutto dopo l'avvento della Costituzione del 1988, che ha portato alla ribalta l'importanza del principio della dignità umana. Questo cambiamento strutturale nel sistema giuridico ha modificato anche il diritto delle famiglie e diventare i rapporti umani familiari, con le loro sfumature e peculiarità di natura esistenziale più evidente e rispettata. Queste innovazioni hanno portato alla luce gli istituti di affetto e di responsabilità civile sulle relazioni familiari. Si intende, mediante il diritto della letteratura e caso, demistificare la emotivo come qualcosa indennizzati e suggeriscono l'istituto della mediazione come strumento alternativo di risoluzione dei conflitti nelle relazioni padre-affiliati.
Parole chiave: affettività; famiglia; responsabilità civile; la distanza emotiva; la mediazione.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS:
O Direito Brasileiro, sobretudo, o Direito Civil, vem sofrendo transformações nos últimos anos. Os institutos jurídicos, até então apresentados, não mais atendiam aos anseios da sociedade, daí o surgimento de vários novos princípios e regras que vieram para regulamentar a evolução dos tempos.
Modificações como a constitucionalização do Direito Civil ensejaram uma alteração axiológica em todas as matérias, na medida em que todo o Direito privado passou a ser analisado sob o prisma da Constituição Federal e de seu princípio basilar: a dignidade da pessoa humana.
O Direito de Família foi o ramo que mais sofreu mudanças. A família brasileira evoluiu e deixou de lado o autoritarismo, o patricarlismo e o patrimonialismo, abrindo espaço para a filosofia eudemonista da busca da felicidade. O Direito das Famílias, após o advento da Constituição Federal de 1988 e da instauração do Estado Democrático de Direito, adquiriu novos contornos e seus institutos basilares foram repaginados. A base do ordenamento jurídico passou a ser o ser humano e sua dignidade.
A Carta Magna consagrou a igualdade entre homens e mulheres, entre filhos, a pluralidade de entidades familiares e uma das grandes novidades introduzidas no Direito das Famílias foi o afeto, fator considerado preponderante na conformação das entidades familiares.
Pretende-se, neste artigo, analisar se o afeto seria fundamento cabível para responsabilizar um pai ou uma mãe pelo abandono afetivo paterno/materno filial.
Para tanto, necessário se faz abordar a mudança de concepção da família, a natureza jurídica do afeto e seus efeitos no caso de abandono moral.
Por fim, sugere-se o instituto da mediação como meio alternativo de solução de conflitos familiares.
2. BREVE HISTÓRICO DA FAMÍLIA BRASILEIRA: DO PATRIARCALISMO À AFETIDADE:
A ciência é eternamente desafiada por novas situações o que nos leva a quebra dos paradigmas, marcando o choque entre teorias, que cedem lugar a novas ideias. A renovação é o momento que a pós-modernidade[1] representa.
A ideia de família veio se modificando ao longo do tempo. Para melhor entender essa mudança faz-se necessário retroagir no tempo e explicitar algumas passagens.
No direito Romano a família era organizada sob o princípio da autoridade. César Fiúza bem explica:
“Tanto na cultura grega quanto em sua continuadora, a cultura romana, a idéia de família era bastante diferente da atual. Para os nossos antepassados culturais, a família era corpo que ia muito além dos pais e dos filhos. […] O pater-famílias era, assim, o senhor absoluto da domus. Era o sacerdote que presidia o culto dos antepassados; era o juiz que julgava seus subordinados, era o administrador que comandava os negócios da família. Com o passar dos tempos, o poder desse pater-famílias deixou de ser tão absoluto. Não obstante, a estrutura familiar continou sendo extremamente patriarcal” (FIUZA, 2008, p.943).
Para esboçar um breve histórico do direito de família no Brasil, parece-nos impossível dissociá-lo da história do Direito Português. Neste sentido, Giordano Bruno Soares Roberto brilhantemente expõe:
“Não é possível compreender o momento atual do Direito Privado brasileiro sem olhar para sua história. Para tanto, não será suficiente começar com o desembarque das caravelas portuguesas em 1500. A história é mais antiga. O Direito brasileiro é filho do Direito Português que, a seu turno, participa de um contexto mais amplo.” (ROBERTO, 2003, p. 5)
Sabe-se que o direito brasileiro se resumia ao que era posto pelas Ordenações do Reino de Portugal, durante todo o período de colonização. Em outras palavras, nossos direitos civis não passavam de simples extensão dos direitos de nossos colonizadores, cuja influência em nosso ordenamento jurídico não pode ser relegada ao desentendimento.
As Ordenações Filipinas, publicadas no ano de 1603, vigeram desde o início do século XVII até a proclamação da independência brasileira em 1822, regendo o ordenamento jurídico privado no Brasil por mais de 300 anos. Tratava-se de uma compilação jurídica marcada pelas influências do Direito Romano, Canônico e Germânico, que juntos constituíam os elementos fundantes do Direito Português e como não poderia deixar de ser, influenciaram a legislação brasileira com o seu tom patriarcalista e patrimonialista.
Uma vez proclamada à independência do Brasil, uma lei editada em outubro de 1823 determinou a manutenção das Ordenações Filipinas em nossas terras, bem como demais formas normativas emanadas dos imperadores portugueses. Como o Brasil ficou por muito tempo sujeito as normas portuguesas, arraigadas de contornos religiosos, todos os seus costumes e tradições passaram a fazer parte do cotidiano brasileiro, dentre eles as leis e as imposições sacras advindas daquele Estado-Eclesiático. Nesse contexto, a igreja sacralizou o conceito de família, conferindo-lhe uma finalidade meramente procriativa.
O primeiro Código Civil Brasileiro foi editado apenas em 1916, através de projeto elaborado por Clovis Bevilaqua. No entanto, não trouxe nenhuma mudança substancial na realidade da família brasileira, permanecendo esta um núcleo em que o homem exercia o poder absoluto de controle e comando da casa, devendo a mulher e filhos prestar-lhe obediência e imensurável respeito.
O casamento era indissolúvel e a família, consagrada pela lei, tinha um modelo conservador, considerada como uma entidade matrimonial, patriarcal, patrimonial, indissolúvel e heterossexual. O vínculo que nascia da livre vontade dos nubentes era mantido, independente e até contra a vontade dos cônjuges. A família nuclear composta por homem, mulher e filhos habitando em um ambiente comum era praticamente a única existente, muitas vezes os termos se confundiam: família era sinônimo de casamento e vice-versa.
A família como uma instituição matrimonializada, única forma legítima existente, também era hierarquizada: seus membros continuaram submissos ao pater familias.
A mulher casada era relativamente incapaz, além de necessitar da outorga marital para determinados atos da vida civil, não exercia sobre os filhos autoridade, haja vista que o pátrio poder, como o próprio nome sugere, era de exercício exclusivo do pai, a quem cabia o poder de decisão, somente outorgado à mãe na falta do patriarca (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2010).
Aos filhos legítimos, frutos do matrimônio cabiam somente se subjugarem aos poderes do pai. Já as proles nascidas fora desse molde não tinham reconhecimento jurídico, sendo considerados ilegítimos, e sem qualquer proteção jurídica. Era-lhes negado até mesmo o reconhecimento da paternidade. Tudo isso devido a uma visão patrimonialista da família, que se fundava na justificativa de que o possível reconhecimento geraria um fracionamento patrimonial injustificado no momento da sucessão (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2010).
Mantinha-se a indissolubilidade do casamento, principalmente por ser uma “importante entidade social” (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p. 11).
Com o passar dos anos, a sociedade veio a sofrer transformações em várias esferas, não ficando a família alheia a isso. A Revolução Industrial foi crucial para inserir a mulher no mercado de trabalho, e a partir daí se inicia a revolução da família. Pode-se afirmar que conquista das mulheres ao direito ao voto e ao direito ao trabalho foram os grandes marcos de uma sociedade que sempre foi machista e feudalista.
Fiuza considera que a Revolução Sexual foi um marco importante na evolução da família: “O golpe fatal ocorre nos idos de 1960, com a chamada Revolução sexual, em que a mulher reclama, de uma vez por todas, posição de igualdade perante o homem” (FIUZA, 2008, p.944).
Engels relata que com as descobertas de outras civilizações, conheceu-se o matriarcado, como uma nova forma de conhecer a família. “A mulher, senhora soberana da casa, exercia ação nos negócios públicos”. (ENGELS, 1944, p. 279).
De fato, a realidade social brasileira apresentava-se diferente das imposições legais, havia um crescente número de agrupamentos familiares advindos de junções paralelas à família matrimonializada, seja por uniões maritais sem casamento (concubinatos puros e impuros), seja por mulheres solteiras chefiando o lar sozinhas, com os filhos. Além disso, os filhos deixaram de serem vistos como força de trabalho para a aquisição de propriedade, pois a partir dos avanços industriais, tecnológicos percebeu-se que o casamento não era a melhor forma de adquirir riquezas.
“As diversas maneiras pelas quais homens, mulheres e filhos desenvolviam seus laços afetivos faziam parte de uma mesma realidade, cercada por características comuns que não suportavam mais a estrutura patriarcal enraizada nos setores conservadores de nossa sociedade e prevista numa legislação que estava em completa desarmonia com a realidade nacional”. (OLIVEIRA, 2002, p. 229).
Com este avanço da sociedade, o Estado procurou oferecer, com maior efetividade, a proteção da família e de seus membros, assegurando-lhes assistência e amparo.
O divisor de águas se deu com o início da vigência do texto constitucional de 05 de outubro de 1988, que inseriu no ordenamento jurídico a igualdade entre os cônjuges, as liberdades e as garantias da mulher, até então inimagináveis, que vieram a ser elevadas à condição de cláusulas pétreas. A família oriunda do casamento e da união estável, que passou a ser reconhecida como formadora de núcleo familiar teve tratativa constitucional e o direito civil teve que se adequar a tal realidade.
As inovações trazidas pela Constituição de 1988, no que concerne à proteção da família, “voltaram-se muito mais para os aspectos pessoais do que para os patrimoniais das relações de família, refletindo as transformações por que passam” (LÔBO, 2009, p. 3).
A família passa agora a ser funcionalizada. Pode-se afirmar que a família hoje é o meio funcional para o pleno desenvolvimento da personalidade de seus membros. Há um “deslocamento da função econômica-política-religiosa-procracional para essa nova função”, que, como prefere definir Paulo Lôbo (2009, p. 11-12), “enquadra-se no fenômeno jurídico social denominado repersonalização das relações civis, que valoriza o interesse da pessoa humana mais do que suas relações patrimoniais”. Privilegia-se a pessoa humana como o centro das relações jurídicas.
A família antes fundada no patrimônio, hoje, vê-se regida pela solidariedade e pelo respeito à dignidade humana de cada membro. Nesse diapasão, Rodrigo da Cunha Pereira (1995, p. 25) afirma: “a família é uma estruturação psíquica onde cada integrante possui um lugar definido, independente de qualquer vínculo biológico”
Guilherme Calmon Nogueira da Gama preleciona:
“Considera-se que a família patriarcal, considerada o modelo único no Brasil desde a Colônia, entrou em crise no curso do século XX e, desse modo, foi superada, perdendo sua sustentação jurídica, notadamente diante dos valores introduzidos pela Constituição Federal de 1988. […] A nova família não se encontra, no entanto, em crise, identificando-se nos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social como referências seguras, e se baseia nas noções de tutela da pessoa humana na dimensão existencial e socioafetiva. Trata-se da concepção eudemonista da família, que potencializa, desse modo, os liames de afeição entre os seus integrantes, com nítida valorização das funções afetivas da família, tornando-se o refúgio privilegiado das pessoas humanas contra os problemas encontrados nas grandes cidades e decorrentes das pressões econômicas e sociais. A família passa a ser encarada como comunidade de afeto e entre – ajuda, servindo para o desenvolvimento da pessoa humana, especialmente no âmbito dos interesses afetivos e existenciais”. (2008b, p. 28-29).
Certo é que o constituinte procurou diferenciar cada espécie familiar. Contudo, é inegável que todas as espécies de família são faces de uma mesma realidade, o afeto, e as mudanças reclamadas pela sociedade não ocorreram de modo completo, tendo em vista que o casamento e a união estável continuaram limitados ao vínculo entre homem e mulher e a relação de pessoas do mesmo sexo, continuou a margem da regulamentação.
A Constituição de 1988 iniciou a uma nova visão jurídica de família, desvinculando a entidade familiar do casamento, aceitando a realidade social fática da família plural, já vivenciada pela sociedade pós-moderna, haja vista que já existiam as famílias monoparental, unipessoal, anaparental, simultâneas, dentre outras.
Ao outorgar a proteção à família, independentemente da celebração do casamento, a Constituição criou um novo conceito de entidade familiar, albergando outros vínculos afetivos. “O caput do art. 226 é, consequentemente, cláusula geral de inclusão da família, não sendo admissível excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade“ (LOBO, 2002, p. 95).
Assim, como a carta magna conferiu igualdade entre homem e mulher, inseriu a proteção à família plural, o respeito à dignidade humana, à liberdade, à garantia aos direitos fundamentais e, em nenhum momento proibiu união entre pessoas do mesmo sexo, pode-se concluir que mera lei ordinária poderia regulamentar vínculos homoafetivos. Isso porque a busca da felicidade e a família fundada na afetividade são os fundamentos que devem ser considerados em todos os relacionamentos.
A lei 11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha, foi a primeira a conceituar a família moderna, tendo em vista a pluralidade de arranjos familiares verificada na sociedade atual. O artigo 5, II nos informa:
“[…] no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa. […] Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual” (BRASIL, 2006).
Renata Barbosa e Walsir Edson definem a família contemporânea: “reuniões pessoais que se sustentam no afeto, que sejam estáveis e, nessa medida, ostensivas, criam recinto favorável à constituição de identidades; são, portanto, família” (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p.23).
Não há como negar que a família moderna é fundada na afetividade que surge pela convivência entre pessoas e pela reciprocidade de sentimentos. Cristiano Chaves reforça a idéia de modelo familiar “ëudemonista, afirmando-se a busca da realização plena do ser humano. Aliás, constata-se, finalmente, que a família é locus privilegiado para garantir a dignidade humana e permitir a realização plena do ser humano” (FARIAS, 2003, p.9).
Neste sentido Maria Berenice assevera:
“O eudemonismo é a doutrina que enfatiza o sentido de busca pelo sujeito de sua felicidade. A absorção do princípio eudemonista pelo ordenamento altera o sentido da proteção jurídica da família, deslocando-o da instituição para o sujeito” (DIAS, 2009, p.54)
Demonstra-se, claramente, que a sociedade evoluiu, os valores mudaram e as famílias já não têm a mesma estrutura de tempos atrás. Ao receber a carga axiológica constitucional, o direito das famílias foi alvo de profunda transformação, hoje se preocupa com a dignidade da pessoa humana, o patrimonialismo foi substituído pelos parâmetros do afeto, a solidariedade e a consequente busca da felicidade.
3. A NATUREZA JURÍDICA DO AFETO:
Como já demonstrado, a família evoluiu e passou a se vincular e a se manter preponderantemente por elos afetivos, em detrimento das motivações econômicas que até então possuíam papel fundamental. A concepção de família eudemonista ressalta a importância do afeto, sobretudo na relação paterno-filial, como sendo de suma importância para o saudável desenvolvimento da criança e do adolescente.
Para se enfrentar o tema do abandono afetivo dos pais perante os filhos, crucial é enfrentar a análise da natureza jurídica do afeto. Árduas e acirradas são as discussões que atualmente têm movimentado os civilistas: qual seria realmente a natureza jurídica do afeto?
Destacam-se, basicamente, duas correntes: os que defendem a afetividade como princípio jurídico aplicado ao Direito de Família e por outro lado aqueles que o consideram como um valor, negando seu caráter jurídico. A maior parte da doutrina pugna pelo caráter principiológico do afeto, decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana.
O constitucionalista Sérgio Resende de Barros aborda o afeto familiar:
“Um afeto que enlaça e comunica as pessoas, mesmo quando estejam distantes no tempo e no espaço, por uma solidariedade íntima e fundamental de suas vidas – de vivência, convivência e sobrevivência – quanto aos fins e meios de existência, subsistência e persistência de cada um e do todo que formam.” (BARROS, 2002, p. 9).
Paulo Luiz Netto Lôbo é um dos autores que se filia à corrente dos que consideram o afeto como um princípio:
“O principio da afetividade tem fundamento constitucional; não é petição de princípio, nem fato exclusivamente sociológico ou psicológico. Projetou-se, no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade”. (LÔBO, 2004, p. 08)
Embora o princípio da afetividade não esteja expresso na Constituição Federal, Paulo Lôbo identifica quatro fundamentos constitucionais do princípio:
“a) Todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227,§6º); b) a adoção como escolha afetiva alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º); c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, § 4º); d) a convivência familiar (e não de origem biológica) é prioridade absoluta assegurada à criança e ao adolescente (art. 227).” (LOBO, 2009, p. 48).
Afirmar ser a afetividade um princípio jurídico implica em admitir todos os efeitos que tal atribuição gera. Os princípios são normas, dotados, portanto de imperatividade, o que significa que se pode impor a outrem. Não estão adstritos somente ao campo da interpretação.
Dessa forma, caso se entenda que existe um princípio da afetividade, por conseguinte, o afeto poderia ser imposto, pois sendo norma, a afetividade passaria a possuir uma conotação de dever, o que parece negar o traço principal do afeto que é a espontaneidade. Nessa perspectiva, Renata Almeida e Walsir Rodrigues Júnior asseveram:
“A principal característica do afeto é a espontaneidade de um sentimento que se apresenta naturalmente e, por isso, é autentico. O afeto – uma vez imposto – não é sincero e, assim, não congrega as qualidades que lhes são próprias, dentre as quais o incentivo à sadia conformação da identidade pessoal dos envolvidos. Por isso, o Direito não possui meios, e, menos ainda, legitimidade para resolver a falta de afeto no âmbito das relações familiares.” (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p. 564)
Maria Berenice Dias também defende o afeto como princípio jurídico ao afirmar que “o princípio norteador do direito das famílias é o princípio da afetividade” (2010, p. 72). Entretanto, na visão contrária, tem-se a corrente que dispõe sobre o não caráter normativo da afetividade.
Não se concorda que a afetividade seja um princípio, por esta leitura, poder-se-ia obrigar alguém a amar outrem, o que é impossível, juridicamente ou moralmente falando. Ora, o afeto não pode ser imposto, trata-se de um valor de natureza moral.
Surge aqui a necessidade de diferenciar valores e princípios e os referidos autores demonstram:
“Princípios pertencem ao plano deôntico, cujo conceito principal é o dever-ser, o que induz a uma avaliação de lícito ou ilícito. Valores, por sua vez, pertencem ao âmbito da axiologia, cujo elementar conceito é o bom e suas respectivas avaliações atinem ao melhor ou pior”. (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p. 593)
Rolf Madaleno é adepto à corrente que considera o afeto um valor:
“A afetividade deve estar presente nos vínculos de filiação e de parentesco […] A sobrevivência humana também depende e muito da interação do afeto; é valor supremo, necessidade ingente, bastando atentar para as demandas que estão surgindo para apurar responsabilidade civil pela ausência do afeto” (2009, p. 65).
Para os autores que tratam o afeto como um valor moral não caberia indenização civil em caso de abandono afetivo.
No mesmo sentido, Leonardo Castro (2008, p. 20) afirma que “nas relações familiares, cabe ao judiciário apenas a defesa aos direitos fundamentais do menor. A sua intromissão em questões relacionadas ao sentimento é abusiva, perigosa e põe em risco relações que não são de sua alçada”. O autor apresenta o afeto como um mero sentimento, sem caráter jurídico.
Há, ainda, outros empecilhos para se admitir a natureza de dever jurídico do afeto, como almeja a doutrina majoritária. Além da falta de previsão legal desse suposto dever, não existe uma definição legal do que seja afeto. Trata-se de objeto de estudo da Psicologia, da Filosofia, assim como de demais ciências sociais que atribuem um significado muito mais amplo daquele aprendido pelo senso comum. Marco Túlio de Carvalho Rocha completa:
“Um dado da bibliografia jurídica ligada à "teoria do afeto" surpreende: a ausência de considerações sobre o conceito de "afeto". Uma maior ênfase no conteúdo teórico do "afeto" era de se esperar numa doutrina que pretende tê-lo como núcleo do direito de família. A necessidade de estudar o significado de "afeto" torna-se ainda maior se se tem em conta a ambivalência do termo: na linguagem comum, afeto é sinônimo de carinho, simpatia, amizade, ternura, amor; na Filosofia e na Psicologia, contudo, possui significado bem diferente: é sinônimo de sentimento, emoção, paixão. A essa última acepção é a que corresponde à etimologia da palavra: "afeto" provém do latim affectus e se formou da preposição ad (para) mais o verbo facere (fazer). Ou seja, "fazer para", "influenciar", "afetar". "Afeto" designa, pois, algo que sofre influência de outro ser. Enquanto o "afeto" da linguagem natural tem conotação positiva, referindo-se aos mais nobres sentimentos humanos, o "afeto" da linguagem filosófico-científica designa todas as afeições, todos os sentimentos, os mais elevados e os mais baixos. Incluem-se na noção de "afeto", no sentido filosófico-científico, o ódio, a inveja, o rancor e todos os sentimentos moralmente repudiados. (…) Uma vez que no sentido filosófico-científico "afeto" tem consonância com "sentimento", o Direito não pode ser chamado a protegê-lo incondicionalmente, uma vez que muitas de suas manifestações contrariam os valores fundamentais da ordem jurídica. Além disso, o Direito somente regula a conduta humana exteriorizada”. (ROCHA, 2009, p. 61).
Logo, entende-se que a afetividade deve ser verificada como um valor moral, um sentimento juridicamente relevante na medida em que se constitui um dos elementos configuradores da família moderna, mas pela própria natureza de sentimento, o afeto pressupõe liberdade, haja vista que não depende da vontade do sujeito. A liberdade afetiva também pressupõe a realização da dignidade.
4. A RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO AFETIVO:
Partindo do fundamento de que a afetividade seria um princípio do Direito das Famílias, derivado implicitamente do princípio da solidariedade e da dignidade da pessoa humana, surgiram provocações ao Poder Judiciário pleiteando indenizações por dano moral em casos em que houve abandono afetivo de pais em relação aos seus filhos. Argumenta-se que diante do presumido dano moral e psíquico sofrido em decorrência da ausência ou do desprezo do ascendente, que a obrigação paterno-filial não se esgotaria no dever de sustento material, mas também no dever de afeto.
Os pedidos de reparação de danos na relação paterno-filial têm tido como fundamentos principais o direito à convivência familiar, o dever de vigilância e de educação. O dano causado em virtude da ofensa à dignidade humana da pessoa do filho poderia ser passível de reparação, por ofensa ao direito da própria personalidade, podendo a mãe ou o pai omisso ser condenado a indenizar o filho, pelo dano que lhe causou ao ignorar sua existência.
Decisões de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul acolheram a pretensão dos filhos que se diziam abandonados ou rejeitados pelos pais, sofrendo transtornos psíquicos em razão da falta de carinho e de afeto na infância e juventude. Não bastaria fornecer os meios de subsistência dos filhos. Carlos Gonçalves observa:
“Queixam-se do descaso, da indiferença e da rejeição dos pais, tendo alguns obtido o reconhecimento judicial do direito à indenização como compensação pelos danos morais, ao fundamento de que a educação abrange não somente a escolaridade, mas também a convivência familiar, o afeto, o amor, o carinho, devendo o descaso entre pais e filhos ser punido severamente por constituir abandono moral grave.” (GONÇALVES, 2007, p. 699).
Aqueles que entendem plenamente possível a indenização por abandono afetivo se baseiam na afetividade como princípio. Para Paulo Lôbo (2009, p. 288), “o ‘abandono afetivo’ nada mais é que inadimplemento dos deveres jurídicos de paternidade”. O autor, baseando-se nos princípios da paternidade responsável e da afetividade, estabelece que a partir da Constituição Federal (art. 227) os pais devem prover os filhos menores não somente de forma material, mas também moral, como os direitos à vida, à saúde, à educação, ao lazer, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar, considerados de conteúdo moral. Arremata dizendo que “o poder familiar impõe o dever de companhia aos pais”. (LÔBO, 2009, p. 288)
Corroborando com o posicionamento de Lôbo, Maria Berenice Dias (2010), considera que o princípio da paternidade responsável gera em relação aos pais, um dever de convivência com os filhos. Para a autora, a falta de convívio entre pais e filhos gera o rompimento do elo de afetividade, o que pode comprometer seriamente o desenvolvimento do menor. Este pode se tornar uma pessoa insegura, infeliz e consequências de sequelas psicológicas, que merecem reparação.
“Não há direito [dos pais] de visitá-lo [o filho], há obrigação de conviver com ele. O distanciamento entre pais e filhos produz sequelas de ordem emocional e pode comprometer o seu sadio desenvolvimento. O sentimento de dor e abandono pode deixar reflexos permanentes em sua vida” (DIAS, 2010, p. 452).
Flávio Tartuce (2009) expõe que o principal argumento jurídico para a possibilidade de reparação por danos morais causados pelo abandono afetivo seria o enquadramento da conduta aos termos do art. 186 do atual Código Civil que traz positivado o conceito de ato ilícito: “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Nesse caso, o autor sustenta que o direito violado, passível de reparação civil, seria a convivência paterna ou materna, pois conforme prevê o art. 927 do Código Civil “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.
O abandono afetivo configuraria ato ilícito por ser o afeto um princípio, portanto um dever jurídico imposto ao pai frente os filhos menores. Aquele que deixa de cumprir tal imposição está descumprindo um preceito legal. E tal violação, aliada aos demais pressupostos, possibilitaria a condenação do infrator à indenização por dano moral.
Maria Berenice Dias (2010, p. 455) apresenta outro posicionamento: “ainda assim, mesmo que o pai só visite o filho por medo de ser condenado a pagar uma indenização, isso é melhor do que gerar no filho o sentimento de abandono”.
Outro argumento suscitado para defesa da possibilidade de se aferir a indenização por danos morais causados pelo abandono afetivo é a ofensa a direitos de personalidade que são aqueles inerentes à pessoa humana por si, na tutela da própria dignidade. Flávio Tartuce completa:
“Não restam dúvidas de que tais atribuições são verdadeiros deveres jurídicos que, violados, geram o direito subjetivo a uma indenização pecuniária, muito além do que a simples perda do poder familiar, conforme consta do julgado do Superior Tribunal de Justiça no caso Alexandre Fortes. Pode-se, falar, em reforço, da lesão a um direito da personalidade, nos termos do que dispõe o art. 12, caput, do atual Código Civil, particularmente na lesão à honra e à integridade físico-psíquica” (TARTUCE, 2009, p. 109)
No entanto, estes mesmos defensores reconhecem que é possível a configuração do ato ilícito de abandono afetivo mesmo quando pais e filhos vivem sob o mesmo teto, ou têm uma convivência constante. Percebe-se que não está se procurando simplesmente a convivência e sim a efetiva dedicação, o carinho e o amor, enfim, o afeto como dever imposto aos pais perante os filhos menores.
Lado outro, parte minoritária da doutrina, mas majoritária nos tribunais brasileiros, trata o abandono afetivo como dano não passível de indenização, e até mesmo de apreciação jurídica.
Ora, pode-se impor, mesmo que juridicamente, um sentimento?
Os professores Almeida e Rodrigues Júnior respondem enfaticamente que não se pode impor um sentimento, principalmente no âmbito familiar.
“A entidade familiar deve se encaminhar para a consolidação de uma comunhão plena de vida, embasada em laços de amor. Entretanto, é extremamente provável que a imposição desse sentimento não irá cumprir seu papel no seio da família. No lugar de proporcionar união e respeito mútuos, a obrigatoriedade causará discórdia e sentimento de desamparo. A liberdade é pressuposto do afeto.” (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p. 586)
Caso emblemático foi dirimido pelo Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial n.º 757.411-MG, j. 29-11-2005, que reformou decisão Tribunal de Justiça de Minas Gerais da 7ª Câmara Cível, na Apelação nº 408.550-5-BH. O acórdão havia fixado indenização de 200 salários mínimos ao pai, sob o fundamento de que a responsabilidade do pai em relação ao filho não se pautaria somente no dever de alimentar, mas sim no dever de possibilitar o desenvolvimento humano do filho, fundado no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
O julgamento no Superior Tribunal de Justiça dividiu as opiniões entre os Ministros. Apenas o Ministro Barros Monteiro, entendeu que o genitor teria o dever de assistir moral e afetivamente o filho, e só estaria desobrigado de pagar a indenização se comprovasse a ocorrência de motivo de força maior. Os outros ministros assim não entenderam, o argumento utilizado foi que a lei prevê como punição pelo abandono afetivo a perda do poder familiar, devendo ser afastada a responsabilidade patrimonial. (GONÇALVES, 2007).
Decidiu-se, portanto, no sentido da inexistência de ato ilícito a ser indenizado em virtude do abandono afetivo e, assim, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o abandono afetivo não configura dano moral, conforme ementa do julgado:
“RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do artigo 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial conhecido e provido", STJ, REsp n. 757411, 4ª T, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 29/11/2005. Votou vencido o Ministro Barros Monteiro, que dele não conhecia. Os Ministros Aldir Passarinho Junior, Jorge Scartezzini e Cesar Asfor Rocha votaram com o Ministro relator”. (TEIXEIRA; RIBEIRO, 2008, p. 40/41).
Para desmistificar a ideia de indenização por abandono afetivo necessário se faz enfrentar algumas questões: A primeira delas é saber se a conduta do pai que simplesmente despreza seu filho afetivamente, mesmo que o amparando com alimentos e necessidades materiais, contribuindo inclusive para seu estudo, configuraria ato ilícito.
A Constituição da República de 1988, em seu artigo 227 estabeleceu como compromisso de todos – Família, Comunidade e Estado zelar e primar pelos interesses dos menores proporcionando seu desenvolvimento saudável.
O artigo 1634, inciso I, do Código Civil, cabe aos pais o dever de sustento, educação e formação moral dos filhos menores. No Estatuto da Criança e do Adolescente também está normatizada a obrigação dos pais para com seus filhos em lhes garantir ampla assistência, aponte-se que esta se configura da forma mais abrangente possível. Por fim, o Código Penal Brasileiro reprime taxativamente a conduta do abandono material (artigo 244), bem como o abandono intelectual (artigo 246).
Portanto, consta expressa na lei a obrigação de sustento material e suporte moral e intelectual dos pais em relação aos filhos. A questão é saber se o abandono ou inexistência de afeto na relação parental constitui em obrigação jurídica, cujo descumprimento acarretaria um ato ilícito.
O ato ilícito passível de reparação é aquele contrário ao direito e como não existe previsão normativa do alcance e do conteúdo mínimo da obrigação de dar afeto nem na Constituição Federal, nem em legislação infraconstitucional, não há como impor a responsabilidade civil parental por essa conduta.
Desse modo, o juiz ao arbitrar uma indenização por abandono moral estaria impondo verdadeira pena civil a uma conduta não tipificada no sistema normativo. Isso afrontaria os princípios democrático e da separação dos poderes (respectivamente nos artigos 1º, caput, e 2º da Constituição Federal).
Outro aspecto que justifica a não configuração da responsabilidade civil por abandono moral: deduz-se que a conduta de quem não dá afeto ao filho seria omissiva e considerando que a conduta omissiva configuradora do dano afetivo deve ser culposa, na modalidade de negligência, torna-se ademais subjetiva a sua configuração. Ora, a falta de afeto pode em tese ser justificada por inúmeros fatores íntimos e até pela provocação da outra parte que detém a guarda do menor. Mostra-se temerária a atribuição de culpa exclusiva a alguém pela falta de amor e a prova da conduta culposa configura-se de difícil ou impossível verificação.
Ainda em relação à conduta de abandono, precisar-se-ia ter muita atenção aos motivos que levaram ao afastamento paterno. Em muitos casos podem-se elencar inúmeras causas tais como o desconhecimento da existência da prole, as necessidades do dia-a-dia, impossibilidades por questões adversas à própria vontade do pai, ou até mesmo podem ser imputadas causas àquele que detém a guarda física do menor. Na verdade, com a demanda, pode estar se buscando não a reparação do dano do menor, mas uma vingança pessoal. É o que se pode perceber nas palavras do Ministro Relator do STJ Fernando Gonçalves:
“[…] é preciso levar em conta que, muitas vezes, aquele que fica com a guarda isolada da criança transfere a ela os sentimentos de ódio e vingança nutridos contra o ex-companheiro, sem olvidar ainda a questão de que a indenização pode não atender exatamente o sofrimento do menor, mas também a ambição financeira daquele que foi preterido no relacionamento amoroso” (BRASIL, 2005).
O terceiro ponto a ser enfrentado é a existência do dano moral em decorrência do abandono afetivo parental. O dano moral decorre de um ato ou uma conduta que provoca um ato ilícito ofensivo a direito da personalidade da vítima ou à sua própria dignidade, tendo a indenização função de trazer satisfação ou paz de espírito ao ofendido, pelo reconhecimento judicial da ilicitude. Ocorre que o amor e o afeto são sentimentos humanos que não podem ser exigidos, de forma que seu inadimplemento também não pode gerar direito à indenização.
O quarto aspecto diz respeito ao nexo de causalidade entre a conduta do pai ou mãe que nega afeto ao filho e o dano causado. Mesmo que, em tese, se admita o abalo psíquico, o nexo de causalidade entre a conduta do ofensor e o dano mostrar-se-ia de improvável constatação já que outros fatores poderiam ter concorrido para a ofensa, dentre os quais pode ser citada a denominada síndrome da alienação parental.
Infere-se, portanto, que prova do nexo de causalidade entre a conduta do suposto ofensor no caso do abandono afetivo parental e o alegado dano, na maioria das vezes, será controvertida, pois não haverá certeza da real causa do abalo psíquico.
Ainda pode-se argumentar que a interpretação teleológica da expressão "abandono", prevista no artigo 1638, II, do Código Civil, faz crer que ausência total de afeto dos pais em relação aos filhos menores não pode dar ensejo à reprimenda pecuniária, mas a outra solução jurídica, de natureza diversa, qual seja: a destituição do poder familiar dentro da seara do direito de família. Tudo isso levando em consideração o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente (artigo 227, caput, da Constituição Federal e artigo 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente).
Desse modo, defende-se ser o afeto um valor moral, um sentimento que não pode ser imposto, algo espontâneo que não enseja descumprimento de um dever que gere reparação civil. Além disso, é questionável tamanha ingerência estatal nos Direitos das Famílias e, especificamente neste caso, no sentimento das pessoas. Percebe-se, de plano, que mesmo a doutrina favorável à tese da reparabilidade do dano afetivo prega cautela e análise minuciosa dos casos levados à Justiça, a fim de evitar uma espécie de patrimonialização da falta do sentimento no seio das famílias, banalizando-se esse tipo de demanda.
5. A ANÁLISE DA DECISÃO DO STJ NO RECURSO ESPECIAL Nº 1.159.242 – SP (2009⁄0193701-9)[2]:
“RELATÓRIO
Cuida-se de recurso especial interposto por ANTONIO CARLOS JAMAS DOS SANTOS, com fundamento no art. 105, III, “a” e “c”, da CF⁄88, contra acórdão proferido pelo TJ⁄SP.
Ação: de indenização por danos materiais e compensação por danos morais, ajuizada por LUCIANE NUNES DE OLIVEIRA SOUZA em desfavor do recorrente, por ter sofrido abandono material e afetivo durante sua infância e juventude.
Sentença: o i. Juiz julgou improcedente o pedido deduzido pela recorrida, ao fundamento de que o distanciamento entre pai e filha deveu-se, primordialmente, ao comportamento agressivo da mãe em relação ao recorrente, nas situações em que houve contato entre as partes, após a ruptura do relacionamento ocorrido entre os genitores da recorrida.
Acórdão: o TJ⁄SP deu provimento à apelação interposta pela recorrida, reconhecendo o seu abandono afetivo, por parte do recorrente – seu pai –, fixando a compensação por danos morais em R$ 415.000,00 (quatrocentos e quinze mil reais), nos termos da seguinte ementa:
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS. FILHA HAVIDA DE RELAÇÃO AMOROSA ANTERIOR. ABANDONO MORAL E MATERIAL. PATERNIDADE RECONHECIDA JUDICIALMENTE. PAGAMENTO DA PENSÃO ARBITRADA EM DOIS SALÁRIOS MÍNIMOS ATÉ A MAIORIDADE. ALIMENTANTE ABASTADO E PRÓSPERO. IMPROCEDÊNCIA. APELAÇÃO. RECURSO PARCIALMENTE
Recurso especial: alega violação dos arts. 159 do CC-16 (186 do CC-02); 944 e 1638 do Código Civil de 2002, bem como divergência jurisprudencial.
Sustenta que não abandonou a filha, conforme foi afirmado pelo Tribunal de origem e, ainda que assim tivesse procedido, esse fato não se reveste de ilicitude, sendo a única punição legal prevista para o descumprimento das obrigações relativas ao poder familiar – notadamente o abandono – a perda do respectivo poder familiar –, conforme o art. 1638 do CC-2002.
Aduz, ainda, que o posicionamento adotado pelo TJ⁄SP diverge do entendimento do STJ para a matéria, consolidado pelo julgamento do REsp n º 757411⁄MG, que afasta a possibilidade de compensação por abandono moral ou afetivo.
Em pedido sucessivo, pugna pela redução do valor fixado a título de compensação por danos morais.
Contrarrazões: reitera a recorrida os argumentos relativos à existência de abandono material, moral, psicológico e humano de que teria sido vítima desde seu nascimento, fatos que por si só sustentariam a decisão do Tribunal de origem, quanto ao reconhecimento do abandono e a fixação de valor a título de compensação por dano moral.
Juízo prévio de admissibilidade: o TJ⁄SP admitiu o recurso especial (fls. 567⁄568, e-STJ).
É o relatório.
VOTO – MINISTRA NANCY ANDRIGHI”
Sintetiza-se a lide em determinar se o abandono afetivo da recorrida, levado a efeito pelo seu pai, ao se omitir da prática de fração dos deveres inerentes à paternidade, constitui elemento suficiente para caracterizar dano moral compensável.
1. Da existência do dano moral nas relações familiares
Faz-se salutar, inicialmente, antes de se adentrar no mérito propriamente dito, realizar pequena digressão quanto à possibilidade de ser aplicada às relações intrafamiliares a normatização referente ao dano moral.
Muitos, calcados em axiomas que se focam na existência de singularidades na relação familiar – sentimentos e emoções – negam a possibilidade de se indenizar ou compensar os danos decorrentes do descumprimento das obrigações parentais a que estão sujeitos os genitores.
Contudo, não existem restrições legais à aplicação das regras relativas à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar⁄compensar, no Direito de Família.
Ao revés, os textos legais que regulam a matéria (art. 5,º V e X da CF e arts. 186 e 927 do CC-02) tratam do tema de maneira ampla e irrestrita, de onde é possível se inferir que regulam, inclusive, as relações nascidas dentro de um núcleo familiar, em suas diversas formas.
Assim, a questão – que em nada contribui para uma correta aplicação da disciplina relativa ao dano moral – deve ser superada com uma interpretação técnica e sistemática do Direito aplicado à espécie, que não pode deixar de ocorrer, mesmo ante os intrincados meandros das relações familiares.
Outro aspecto que merece apreciação preliminar, diz respeito à perda do poder familiar (art. 1638, II, do CC-02), que foi apontada como a única punição possível de ser imposta aos pais que descuram do múnus a eles atribuído, de dirigirem a criação e educação de seus filhos (art. 1634, II, do CC-02).
Nota-se, contudo, que a perda do pátrio poder não suprime, nem afasta, a possibilidade de indenizações ou compensações, porque tem como objetivo primário resguardar a integridade do menor, ofertando-lhe, por outros meios, a criação e educação negada pelos genitores, e nunca compensar os prejuízos advindos do malcuidado recebido pelos filhos.
2. Dos elementos necessários à caracterização do dano moral
É das mais comezinhas lições de Direito, a tríade que configura a responsabilidade civil subjetiva: o dano, a culpa do autor e o nexo causal. Porém, a simples lição ganha contornos extremamente complexos quando se focam as relações familiares, porquanto nessas se entremeiam fatores de alto grau de subjetividade, como afetividade, amor, mágoa, entre outros, os quais dificultam, sobremaneira, definir, ou perfeitamente identificar e⁄ou constatar, os elementos configuradores do dano moral.
No entanto, a par desses elementos intangíveis, é possível se visualizar, na relação entre pais e filhos, liame objetivo e subjacente, calcado no vínculo biológico ou mesmo autoimposto – casos de adoção –, para os quais há preconização constitucional e legal de obrigações mínimas.
Sendo esse elo fruto, sempre, de ato volitivo, emerge, para aqueles que concorreram com o nascimento ou adoção, a responsabilidade decorrente de suas ações e escolhas, vale dizer, a criação da prole.
Fernando Campos Scaff retrata bem essa vinculação entre a liberdade no exercício das ações humanas e a responsabilidade do agente pelos ônus correspondentes:
(…) a teoria da responsabilidade relaciona-se à liberdade e à racionalidade humanas, que impõe à pessoa o dever de assumir os ônus correspondentes a fatos a ela referentes. Assim, a responsabilidade é corolário da faculdade de escolha e de iniciativa que a pessoa possui no mundo, submetendo-a, ou o respectivo patrimônio, aos resultados de suas ações que, se contrários à ordem jurídica, geram-lhe, no campo civil, a obrigação de ressarcir o dano, quando atingem componentes pessoais, morais ou patrimoniais da esfera jurídica de outrem.(Da culpa ao risco na responsabilidade civil in: RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz; MAMEDE, Gladston; ROCHA, Maria Vital da (coords.). Responsabilidade civil contemporânea. São Paulo, Atlas, pag. 75)
Sob esse aspecto, indiscutível o vínculo não apenas afetivo, mas também legal que une pais e filhos, sendo monótono o entendimento doutrinário de que, entre os deveres inerentes ao poder familiar, destacam-se o dever de convívio, de cuidado, de criação e educação dos filhos, vetores que, por óbvio, envolvem a necessária transmissão de atenção e o acompanhamento do desenvolvimento sócio-psicológico da criança.
E é esse vínculo que deve ser buscado e mensurado, para garantir a proteção do filho quando o sentimento for tão tênue a ponto de não sustentarem, por si só, a manutenção física e psíquica do filho, por seus pais – biológicos ou não.
À luz desses parâmetros, há muito se cristalizou a obrigação legal dos genitores ou adotantes, quanto à manutenção material da prole, outorgando-se tanta relevância para essa responsabilidade, a ponto de, como meio de coerção, impor-se a prisão civil para os que a descumprem, sem justa causa.
Perquirir, com vagar, não sobre o dever de assistência psicológica dos pais em relação à prole – obrigação inescapável –, mas sobre a viabilidade técnica de se responsabilizar, civilmente, àqueles que descumprem essa incumbência, é a outra faceta dessa moeda e a questão central que se examina neste recurso.
2.1. Da ilicitude e da culpa
A responsabilidade civil subjetiva tem como gênese uma ação, ou omissão, que redunda em dano ou prejuízo para terceiro, e está associada, entre outras situações, à negligência com que o indivíduo pratica determinado ato, ou mesmo deixa de fazê-lo, quando seria essa sua incumbência.
Assim, é necessário se refletir sobre a existência de ação ou omissão, juridicamente relevante, para fins de configuração de possível responsabilidade civil e, ainda, sobre a existência de possíveis excludentes de culpabilidade incidentes à espécie.
Sob esse aspecto, calha lançar luz sobre a crescente percepção do cuidado como valor jurídico apreciável e sua repercussão no âmbito da responsabilidade civil, pois, constituindo-se o cuidado fator curial à formação da personalidade do infante, deve ele ser alçado a um patamar de relevância que mostre o impacto que tem na higidez psicológica do futuro adulto.
Nessa linha de pensamento, é possível se afirmar que tanto pela concepção, quanto pela adoção, os pais assumem obrigações jurídicas em relação à sua prole, que vão além daquelas chamadas necessarium vitae.
A ideia subjacente é a de que o ser humano precisa, além do básico para a sua manutenção – alimento, abrigo e saúde –, também de outros elementos, normalmente imateriais, igualmente necessários para uma adequada formação – educação, lazer, regras de conduta, etc.
Tânia da Silva Pereira – autora e coordenadora, entre outras, das obras Cuidado e vulnerabilidade e O cuidado como valor jurídico – acentua o seguinte:
O cuidado como 'expressão humanizadora', preconizado por Vera Regina Waldow, também nos remete a uma efetiva reflexão, sobretudo quando estamos diante de crianças e jovens que, de alguma forma, perderam a referência da família de origem(…).a autora afirma: ' o ser humano precisa cuidar de outro ser humano para realizar a sua humanidade, para crescer no sentido ético do termo. Da mesma maneira, o ser humano precisa ser cuidado para atingir sua plenitude, para que possa superar obstáculos e dificuldades da vida humana'. (Abrigo e alternativas de acolhimento familiar, in: PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de. O cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 309)
Prossegue a autora afirmando, ainda, que:
Waldow alerta para atitudes de não-cuidado ou ser des-cuidado em situações de dependência e carência que desenvolvem sentimentos, tais como, de se sentir impotente, ter perdas e ser traído por aqueles que acreditava que iriam cuidá-lo. Situações graves de desatenção e de não-cuidado são relatadas como sentimentos de alienação e perda de identidade. Referindo-se às relações humanas vinculadas à enfermagem a autora destaca os sentimentos de desvalorização como pessoa e a vulnerabilidade. 'Essa experiência torna-se uma cicatriz que, embora possa ser esquecida, permanece latente na memória'. O cuidado dentro do contexto da convivência familiar leva à releitura de toda a proposta constitucional e legal relativa à prioridade constitucional para a convivência familiar. (op. cit. pp 311-312 – sem destaques no original).
Colhe-se tanto da manifestação da autora quanto do próprio senso comum que o desvelo e atenção à prole não podem mais ser tratadas como acessórios no processo de criação, porque, há muito, deixou de ser intuitivo que o cuidado, vislumbrado em suas diversas manifestações psicológicas, não é apenas uma fator importante, mas essencial à criação e formação de um adulto que tenha integridade física e psicológica e seja capaz de conviver, em sociedade, respeitando seus limites, buscando seus direitos, exercendo plenamente sua cidadania.
Nesse sentido, cita-se, o estudo do piscanalista Winnicott, relativo à formação da criança:
[…]do lado psicológico, um bebê privado de algumas coisas correntes, mas necessárias, como um contato afetivo, está voltado, até certo ponto, a perturbações no seu desenvolvimento emocional que se revelarão através de dificuldades pessoais, à medida que crescer. Por outras palavras: a medida que a criança cresce e transita de fase para fase do complexo de desenvolvimento interno, até seguir finalmente uma capacidade de relacionação, os pais poderão verificar que a sua boa assistência constitui um ingrediente essencial. (WINNICOTT, D.W. A criança e o seu mundo. 6ª ed. Rio de Janeiro:LTC, 2008)
Essa percepção do cuidado como tendo valor jurídico já foi, inclusive, incorporada em nosso ordenamento jurídico, não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF⁄88.
Vê-se hoje nas normas constitucionais a máxima amplitude possível e, em paralelo, a cristalização do entendimento, no âmbito científico, do que já era empiricamente percebido: o cuidado é fundamental para a formação do menor e do adolescente; ganha o debate contornos mais técnicos, pois não se discute mais a mensuração do intangível – o amor – mas, sim, a verificação do cumprimento, descumprimento, ou parcial cumprimento, de uma obrigação legal: cuidar.
Negar ao cuidado o status de obrigação legal importa na vulneração da membrana constitucional de proteção ao menor e adolescente, cristalizada, na parte final do dispositivo citado: “(…) além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência (…)”.
Alçando-se, no entanto, o cuidado à categoria de obrigação legal supera-se o grande empeço sempre declinado quando se discute o abandono afetivo – a impossibilidade de se obrigar a amar.
Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos.
O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais, situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião.
O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes.
Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever.
A comprovação que essa imposição legal foi descumprida implica. por certo, a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão, pois na hipótese o non facere que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal.
Fixado esse ponto, impõe-se, ainda, no universo da caracterização da ilicitude, fazer-se pequena digressão sobre a culpa e sua incidência à espécie.
Quanto a essa monótono o entendimento de que a conduta voluntária está diretamente associada à caracterização do ato ilícito, mas que se exige ainda, para a caracterização deste, a existência de dolo ou culpa comprovada do agente, em relação ao evento danoso.
Eclipsa, então, a existência de ilicitude, situações que, não obstante possam gerar algum tipo de distanciamento entre pais e filhos, como o divórcio, separações temporárias, alteração de domicílio, constituição de novas famílias, reconhecimento de orientação sexual, entre outras, são decorrências das mutações sociais e orbitam o universo dos direitos potestativos dos pais – sendo certo que quem usa de um direito seu não causa dano a ninguém (qui iure suo utitur neminem laedit).
De igual forma, não caracteriza a vulneração do dever do cuidado a impossibilidade prática de sua prestação e, aqui, merece serena reflexão por parte dos julgadores, as inúmeras hipóteses em que essa circunstância é verificada, abarcando desde a alienação parental, em seus diversos graus – que pode e deve ser arguida como excludente de ilicitude pelo genitor⁄adotante que a sofra –, como também outras, mais costumeiras, como limitações financeiras, distâncias geográficas etc.
Todas essas circunstâncias e várias outras que se possam imaginar podem e devem ser consideradas na avaliação dos cuidados dispensados por um dos pais à sua prole, frisando-se, no entanto, que o torvelinho de situações práticas da vida moderna não toldam plenamente a responsabilidade dos pais naturais ou adotivos, em relação a seus filhos, pois, com a decisão de procriar ou adotar, nasce igualmente o indelegável ônus constitucional de cuidar.
Apesar das inúmeras hipóteses que poderiam justificar a ausência de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, não pode o julgador se olvidar que deve existir um núcleo mínimo de cuidados parentais com o menor que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social.
Assim, cabe ao julgador ponderar – sem nunca deixar de negar efetividade à norma constitucional protetiva dos menores – as situações fáticas que tenha à disposição para seu escrutínio, sopesando, como ocorre em relação às necessidades materiais da prole, o binômio necessidade e possibilidade.
2.2 Do dano e do nexo causal
Estabelecida a assertiva de que a negligência em relação ao objetivo dever de cuidado é ilícito civil, importa, para a caracterização do dever de indenizar, estabelecer a existência de dano e do necessário nexo causal.
Forma simples de verificar a ocorrência desses elementos é a existência de laudo formulado por especialista, que aponte a existência de uma determinada patologia psicológica e a vincule, no todo ou em parte, ao descuidado por parte de um dos pais.
Porém, não se deve limitar a possibilidade de compensação por dano moral a situações símeis aos exemplos, porquanto inúmeras outras circunstâncias dão azo à compensação, como bem exemplificam os fatos declinados pelo Tribunal de origem.
Aqui, não obstante o desmazelo do pai em relação a sua filha, constado desde o forçado reconhecimento da paternidade – apesar da evidente presunção de sua paternidade –, passando pela ausência quase que completa de contato com a filha e coroado com o evidente descompasso de tratamento outorgado aos filhos posteriores, a recorrida logrou superar essas vicissitudes e crescer com razoável aprumo, a ponto de conseguir inserção profissional, constituir família, ter filhos, enfim, conduzir sua vida apesar da negligência paterna.
Entretanto, mesmo assim, não se pode negar que tenha havido sofrimento, mágoa e tristeza, e que esses sentimentos ainda persistam, por ser considerada filha de segunda classe.
Esse sentimento íntimo que a recorrida levará, ad perpetuam, é perfeitamente apreensível e exsurge, inexoravelmente, das omissões do recorrente no exercício de seu dever de cuidado em relação à recorrida e também de suas ações, que privilegiaram parte de sua prole em detrimento dela, caracterizando o dano in re ipsa e traduzindo-se, assim, em causa eficiente à compensação.
Dessa forma, está consolidado pelo Tribunal de origem ter havido negligência do recorrente no tocante ao cuidado com a sua prole – recorrida –. Ainda, é prudente sopesar da consciência do recorrente quanto as suas omissões, da existência de fatores que pudessem interferir, negativamente, no relacionamento pai-filha, bem como das nefastas decorrências para a recorrida dessas omissões – fatos que não podem ser reapreciados na estreita via do recurso especial. Dessarte, impende considerar existente o dano moral, pela concomitante existência da tróica que a ele conduz: negligência, dano e nexo.
3. Do valor da compensação
Quanto ao valor da compensação por danos morais, já é entendimento pacificado, neste Tribunal, que apenas excepcionalmente será ele objeto de nova deliberação, no STJ, exsurgindo a exceção apenas quanto a valores notoriamente irrisórios ou exacerbados.
Na hipótese, não obstante o grau das agressões ao dever de cuidado, perpetradas pelo recorrente em detrimento de sua filha, tem-se como demasiadamente elevado o valor fixado pelo Tribunal de origem – R$ 415.000,00 (quatrocentos e quinze mil reais) – , razão pela qual o reduzo para R$ 200,000,00 (duzentos mil reais), na data do julgamento realizado pelo Tribunal de origem (26⁄11⁄2008 – e-STJ, fl. 429), corrigido desde então.
Forte nessas razões, DOU PARCIAL PROVIMENTO ao recurso especial, apenas para reduzir o valor da compensação por danos morais.
Mantidos os ônus sucumbenciais.
5. O PAPEL DA MEDIAÇÃO NAS DEMANDAS QUE POSSUEM COMO OBJETO O ABANDONO AFETIVO:
5.1. A MEDIAÇÃO:
A Mediação é uma importante técnica de solução consensual de conflitos que visa à facilitação do diálogo entre as partes, para que melhor administrem seus problemas, e consigam, por si só, alcançar uma solução.
O termo mediação origina-se do latim mediare, que significa intervir, mediar. Consiste em um meio não-jurisdicional de solução de litígios. Lília Maia de Morais Sales assim a conceitua:
“Mediação é um procedimento consensual de solução de conflitos por meio do qual uma terceira pessoal imparcial – escolhida ou aceita pelas partes – age no sentido de encorajar e facilitar a resolução de uma divergência. As pessoas envolvidas nesse conflito são as responsáveis pela decisão que melhor satisfaça. A mediação representa um mecanismo de solução de conflitos utilizado pelas próprias partes que, motivadas pelo diálogo, encontram uma alternativa ponderada, eficaz e satisfatória. O mediador é a pessoa que auxilia na construção desse diálogo.” (SALES, 2007, p. 23)
Maria Nazareth Serpa apresenta outra definição: “processo informal, voluntário, onde um terceiro interventor, neutro, assiste os disputantes na resolução de suas questões, pautado na autodeterminação das partes” (SERPA, 1999, p.90).
O citado terceiro interventor utiliza-se da comunicação e da neutralização de emoções, para auxiliar as partes em conflito a encontrar opções que possibilitem o acordo. Mediar pressupõe se comportar de modo neutro diante das partes envolvidas, mas com vigor suficiente para transmitir aos litigantes a importância das sessões direcionadas à solução do conflito.
O mediador trabalha na transformação da percepção de erros passados que prejudicam a compreensão do presente e, consequentemente, do acordo futuro. Ele tentará aproximar as partes, induzindo-as a encontrar soluções criativas, por meio de reflexão e diálogo, que possibilitem ganhos mútuos e ainda preservem o relacionamento pessoal entre elas.
Para realizar sua tarefa o profissional mediador deve ter como princípios basilares à imparcialidade, independência, credibilidade, competência, diligência, boa-fé, confidencialidade e neutralidade. O mediador deve ser alguém confiável apto a interagir com as partes e disposto a auxiliar concretamente no processo de solução daquele conflito. Para tanto, deve gozar de boa credibilidade, ser neutro e equidistante das pessoas envolvidas no litígio.
O mediador não sugere solução, não induz e nem tão-pouco decide. A sua função é propiciar uma maior e melhor escuta das partes, para que a compreensão seja introduzida na sequencia dos fatos narrados, levando os litigantes ao exercício da tolerância recíproca.
Como se observa a comunicação é a base nuclear da Mediação. Nesse diapasão, Águida Arruda Barbosa nos informa:
“[…] na França, toda a construção teórica da mediação vem fundamentada em Habermas, filósofo contemporâneo, cuja contribuição filosófica é que tudo se constrói pela comunicação, pela necessidade do diálogo, pela humanidade; enfim, pela ética da discussão”. (BARBOSA, 2005, p.63).
O discurso (a racionalidade comunicativa) e a participação são os elementos que tornam possível a adoção de mecanismos de pacificação dos conflitos, cujo foco principal encontra-se na vontade das partes. Analisando sob este prisma, a mediação nitidamente seria mais participativa e dialógica do que a jurisdição. A sentença judicial, apesar de solucionar a lide, muitas vezes não resolve a problemática subjacente de pacificação social, surgindo uma parte vencedora e outra vencida, ambas certas de serem detentoras de um direito subjetivo.
Na mediação, a solução do conflito é criada e encontrada pelas partes, e não pelo mediador, sendo assim, qualquer cidadão devidamente capacitado será apto para desenvolver este trabalho, independente da natureza da sua formação acadêmica. Contudo, o advogado é um instrumento importante na orientação prévia ou na condução de uma Mediação, por todos os aspectos legais que devem ser observados.
O processo da mediação é dividido em cinco fases. A fase inicial, chamada de pré- mediação esclarece às partes o objetivo da técnica, definindo as regras do processo. Na segunda fase ocorre a definição do problema, o desenvolvimento dos objetivos, as necessidades, os interesses e a reorganização. A reunião interna da equipe mediadora se dá na terceira fase, nesta há a reflexão sobre o conflito apresentado e a construção de uma ou mais soluções alternativas. Na quarta fase, acontece o encontro com as partes, onde o mediador incentivará o diálogo e apresentará alternativas que encerrem o litígio, tudo com uma discussão clara e respeitosa. Por fim, na quinta e última fase chega-se a uma solução para o conflito.
Ao final das sessões de Mediação, a solução indicada pelas partes, será reduzida a termo, intitulada “Termo de Mediação” ou “Termo de Acordo”, que não precisa, necessariamente, ser homologado judicialmente.
Três são os elementos básicos para se iniciar um processo de mediação: a existência de partes em conflito, uma clara contraposição de interesses e um terceiro neutro capacitado a facilitar a busca pelo acordo. Nesse sentido, Nuria Belloso Martín explicita que a mediação se caracteriza pelos seguintes elementos:
“a) voluntariedade; b) eleição do mediador; c) aspecto privado; d) cooperação entre as partes; e) conhecimentos específicos (habilidade) do mediador; f) reuniões programadas pelas partes; g) informalidade; h) acordo mútuo; i) ausência de sentimento de vitória ou derrota”. (MARTÍN, 2005).
Com relação às partes, podem ser elas pessoas físicas ou jurídicas ou entes despersonalizados, desde que seja possível identificar seu representante ou gestor. Podem ser ainda menores, desde que devidamente assistidos ou representados por seus pais.
Além disso, é preciso deixar claro que a mediação não se confunde com um processo terapêutico ou de acompanhamento psicológico ou psiquiátrico, embora seja extremamente desejável que o profissional da mediação tenha conhecimentos em psicologia e, sobretudo, prática em lidar com as relações humanas e sociais.
O avanço da utilização de mecanismos extrajudiciais de prevenção e solução de controvérsias no âmbito brasileiro é notório. Embora semelhantes, por objetivarem a autocomposição, a conciliação, a negociação e a mediação, são institutos jurídicos que se diferenciam.
Há divergências entre os doutrinadores, no que diz respeito à classificação da mediação, uma vez que uns a classificam como um meio de autocomposição, enquanto outros, como um meio de heterocomposição. Contudo, entende-se que a mediação é um meio autocompositivo, uma vez que as partes, por si só, solucionam seus conflitos apesar da presença de um terceiro.
Na conciliação o que se busca é o fim da controvérsia através de concessões mútuas, ou seja, caso não ocorra um acordo ela considera-se fracassada. Neste ponto diferencia-se da mediação, pois nesta o ajuste pode ser uma consequência natural do restabelecimento do diálogo entre as partes, e será bem sucedida se despertar a capacidade dos envolvidos de se entenderem sozinhos. Já no que tange ao conciliador, este atua de forma a sugerir ou induzir comportamentos ou decisões, buscando para as partes uma melhor solução, emitindo opinião sobre o caso.
Almeida e Rodrigues Júnior (2010) chamam a atenção ao fato de que o ponto crucial na diferenciação entre mediação e conciliação é o grau de interferência do terceiro (mediador ou conciliador).
“O mediador, terceiro neutro e imparcial, tem a atribuição de mover as partes da posição em que se encontram, fazendo-as chegar à solução aceitável. A decisão é das partes, tão somente delas, pois o mediador não tem poder decisório nem influencia diretamente na decisão das partes por meio de sugestões opiniões ou conselhos. Já o conciliador, apesar de não decidir, influencia diretamente na decisão das partes por intermédio de uma intervenção mais direta e objetiva. Para alcançar o objetivo final, ou seja o acordo, o conciliador induz, dá palpites e sugestões” (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p. 598)
Assim, verifica-se que a mediação busca PRECIPUAMENTE O DIÁLOGO ENTRE as partes e o acordo entre as partes, como ocorre na conciliação.
Quanto ao vínculo, a conciliação é uma atividade inerente ao Poder Judiciário, sendo realizada por juiz togado, por juiz leigo ou por alguém que exerça a função específica de conciliador. Por outro lado, a mediação trata-se de atividade privada, livre de qualquer vínculo, não fazendo parte da estrutura de qualquer dos Poderes Públicos.
A negociação se distingue das demais, pois não há a participação de um terceiro, seja imparcial ou não, neste caso a resolução do problema surge de uma autocomposição pura e simples. Pode haver ou não a participação de representantes, entendidos aqui por advogados. José Maria Rossani Garcez afirma que:
“A mediação terá lugar quando, devido à natureza do impasse, quer seja por suas características ou pelo nível de envolvimento emocional das partes, fica bloqueada a negociação, que assim, na prática, permanece inibida ou impedida de se realizar.” (GARCEZ, 2003, p. 35)
Finalmente, a arbitragem, regulada pela Lei 9.307/96, considerada como um mecanismo de heterocomposição é o método pelo qual as partes submetem a solução de seus litígios a um terceiro, que decidirá de acordo com a lei ou com a equidade.
Todas essas formas consensuais de solução de conflitos possuem diferenças entre si e cada qual possui características que as tornam mais adequadas a este ou aquele caso concreto.
É preciso dizer que a mediação está largamente difundida no Brasil e já é exercida inclusive dentro dos órgãos do Poder Judiciário, na medida em que se funda na livre manifestação de vontade das partes e na escolha por um instrumento mais profundo de solução do conflito.
A mediação, em regra, é um procedimento extrajudicial. Contudo, nada impede que as partes, já tendo iniciado a etapa jurisdicional, resolvam retroceder em suas posições e tentem mais uma vez a via conciliatória, é a chamada mediação incidental ou judicial, presente em nosso ordenamento, em duas hipóteses: ou o juiz, ele próprio, conduz o processo, funcionando como um conciliador ou designando um auxiliar para tal finalidade (artigos 331 e 447 do CPC); ou as partes solicitam ao juiz a suspensão do processo, pelo prazo máximo de seis meses, para a efetivação das tratativas de conciliação fora do juízo (artigo 265, inciso II, c/c § 3º, também do CPC).
Existem entidades como o Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem (CONIMA), voltadas ao desenvolvimento dos meios alternativos de solução de conflitos, que dispõe de cursos de capacitação, bem como de Regulamento Modelo e Código de Ética, destinados a qualificar os profissionais e a preservar a ética e credibilidade da Mediação.
A mediação, portanto, seria um processo confidencial e voluntário no qual um terceiro imparcial facilitaria a negociação entre duas ou mais partes, convidando-as a reflexão e ampliando as alternativas para a solução do conflito. A credibilidade do processo está diretamente relacionada com o desempenho do mediador, que deverá pautar seu trabalho na qualidade técnica, seguindo os princípios éticos que devem reger a sua atuação.
5.2. A MEDIAÇÃO NAS RELAÇÕES PATERNO-FILIAIS:
As particularidades dos conflitos familiares que são levados ao Judiciário acabam por demonstrar a fragilidade deste para a solução de tais conflitos. É pacífico na doutrina que a jurisdição tradicional não traz respostas suficientes para os conflitos do Direito das Famílias.
Pode-se compreender a mediação como a forma alternativa mais adequada para a solução de conflitos das relações familiares, pois ela visa preservar os vínculos. Isto porque, muitas vezes, as decisões judiciais não alcançam a pacificação social, visto estarem os julgadores presos a critérios objetivos, previamente estabelecidos na legislação e que não podem deixar de serem observados, e assim não conseguem alcançar o verdadeiro interesse das partes. Resolve-se aquela demanda, mas o conflito persiste, principalmente porque as relações familiares apresentam em suas demandas um grau de subjetividade complexo e considerável.
“Os conflitos, de modo geral, são associados a frustrações de interesse, necessidades e desejos, que podem, ou não, levar o sujeito a algum tipo de reação, evidenciando que os conflitos encerram em si uma dimensão cognitiva (objetiva) e outra afetiva (subjetiva), tanto os de ordem intrapessoal, quanto aqueles interpessoais. Nesse sentido, é possível apreender que a face externa da um conflito reflete apenas uma parte de sua realidade, ou seja, os conflitos manifestos são parte de um processo interno complexo e dinâmico” (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p. 602).
No particular das relações familiares, os conflitos familiares, antes de serem conflitos jurídicos inerentes ao direito, são de essência afetiva, psicológica, relacional, antecedidos de sofrimento, de questões de foro íntimo de cada pessoa (FERREIRA, 2008).
Por isso, o Judiciário, na maioria das vezes, não consegue alcançar a resposta suficiente para tais conflitos. Pela subjetividade extremada, os envolvidos não conseguem mensurar a realidade do que buscam ao pleitearem a intervenção estatal, nem as suas consequências.
Diante das peculiaridades dos conflitos que ocorrem nas relações familiares, ao invés da busca de uma decisão imposta por um juiz, apontando o certo e o errado, será mais coerente que as próprias partes conflitantes encontrem a solução, num exercício pleno da autonomia privada, que encontra no âmbito familiar campo fértil para ser exteriorizado, haja vista ser informado pelos princípios da liberdade e da não- intervenção estatal.
A mediação familiar propicia a recuperação das relações afetivas, promovendo a recuperação do abandono afetivo decorrente da comunicação inadequada que se desenvolveu na reorganização da família pós-separação, permitindo uma real mudança nas relações familiares.
Nos conflitos familiares advindos do chamado “abandono afetivo” paterno-filial, verifica-se que a mediação apresenta-se como um caminho alternativo, tendo em vista que se preocupa com a manutenção dos vínculos, com as histórias de vida de cada um, com a preservação emocional das partes e com a prevenção de novos problemas.
Considerando que a responsabilização civil não seria o caminho plausível e capaz de resolver os litígios paterno-filiais baseados na falta de afeto, na medida em vários casos poderia levar ao afastamento definitivo das partes, a mediação parece ser o caminho para a transformação do conflito, pois o incentivo ao diálogo entre os conflitantes pode ensejar numa solução de sucesso e com menos desgaste emocional.
A presença do mediador, muitas vezes corporificado em profissionais não específicos do direito, como da psicologia, será extremamente importante na elucidação da realidade vivenciada tanto pelo filho que se sente abandonado, quanto pelo pai supostamente negligente. A atuação desse profissional pode levar a uma aproximação e fortalecimento do vínculo familiar, diferentemente do litígio apreciado pelo Poder Judiciário, pois a possível condenação ou indeferimento do pedido indenizatório levaria à ruptura definitiva entre as partes. Isso porque a demanda no judiciário termina por aferir sempre um vencedor contra um perdedor, ou um culpado versus um inocente.
A professora Taísa Maria Macena de Lima (2004, p.629) comunga com essa noção: “há casos em que o abandono material e intelectual da própria família envolve indistintamente pais e filhos. Todos são vítimas. Não há como apontar um culpado na própria entidade familiar”.
Como se vê, a busca não de uma reparação pecuniária, mas do verdadeiro diálogo e interação entre as partes em conflito poderia reatar o laço afetivo perdido.
“A verdadeira justiça com paz social só é alcançada quando todas as questões que envolvem o litígio são discutidas e tratadas de forma completa e satisfatória pelas próprias partes. É o que ocorre, quando se chega a um acordo por meio da mediação, pois representa a expressão do que cada parte aceita como justo e se compromete a cumprir, sendo, por isso, uma solução satisfatória e duradoura” (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p. 609)
Importa dizer que são as partes que devem solicitar a mediação, não devendo ser esta uma imposição, sob pena de desvirtuamento do próprio instituto.
Dessa forma, conclui-se que a mediação pode ser extremamente eficaz nas relações conflituosas paterno-filiais, tendo em vista que o acordo será fruto de consenso, do convencimento das partes, trazendo maior segurança e efetividade em relação ao seu cumprimento.
Entende-se que a partir da mediação, as partes sintam maior aceitação em relação à solução do conflito, em comparação as sentenças impostas pelo juiz e fundamentadas pelo direito. Isso porque o acordo proveniente da mediação é construído pelas partes e as decisões judiciais são vazias de compreensão psicofamiliar. A superficialidade das soluções judiciais muitas vezes acaba por perpetuar o conflito, que poderia ter sido resolvido sem maiores sofrimentos.
6. CONCLUSÃO:
Para enfrentar o tema do abandono afetivo paterno-filial, a princípio foi desenvolvido um breve histórico da família, demonstrando as alterações importantes ocorridas nos últimos tempos. A família hoje é eudemonista e o princípio da dignidade humana passa a possuir caráter hermenêutico fundamental no Direito das Famílias.
Analisou-se a natureza jurídica do afeto, apresentando os posicionamentos da doutrina acerca do tema, questionando se seria um princípio jurídico, que ensejaria aplicação imperativa, ou mero valor e um sentimento. Tal abordagem tem fundamental importância para se definir a possibilidade ou não de haver indenização por abandono afetivo dos pais em relação aos filhos.
No que tange ao abandono afetivo, são vários os argumentos que apontam pela impossibilidade de indenização por falta de afeto. Observou-se que o legislador se limitou a estabelecer consequências afetas às questões familiares, tais como a perda do poder familiar, não trazendo, mesmo implicitamente, nenhum dispositivo que possibilitasse a interpretação da patrimonialização de tal situação.
A grande dificuldade de aceitação da tese da reparabilidade do dano afetivo também repousa no enfrentamento dos pressupostos gerais da responsabilidade civil, cuja configuração mostra-se comprometida pela dificuldade em se demonstrar juridicamente a ilicitude da conduta de não dar afeto ao filho, assim como de se provar o dano psíquico e o nexo de causalidade entre a conduta e tal lesão.
Considera-se que uma conduta não exteriorizada, consistente em simples omissão de afeto, não pode configurar ato ilícito merecedor de indenização civil, por ausência do conteúdo e alcance normativo dessa conduta.
Ademais, para toda responsabilidade deve haver a prova do dano. Mesmo considerando-se que o dano moral é presumido, a ausência de afeto seria conceito extremamente impreciso para embasar a responsabilidade civil, isso porque não figura como expressa violação a direito da personalidade no sistema jurídico vigente. Por fim, demonstrou-se que não há como se provar o nexo de causalidade entre a conduta do parente e o dano sofrido.
Questionou-se, ainda, se a imposição do afeto não desvirtuaria o sentimento permeado pela espontaneidade e pela liberdade, para se chegar à conclusão que o afeto nada mais é que um valor, não podendo ser imposto.
Daí, conclui-se que a fixação de indenização pelo abandono afetivo caracteriza ingerência indevida do Estado no Direito das Familias, e, que o descumprimento de deveres legais que são inerentes aos pais, poderia ensejar a solução jurídica da destituição do poder familiar, atentando-se não para o desvalor da conduta praticada, mas para o critério do melhor interesse da criança e do adolescente, fundado sempre no princípio da dignidade da pessoa humana.
Não está se afirmando que por não ser dever jurídico, norma, princípio ou qualquer outra figura trabalhada no Direito, o afeto não tenha sua importância nas relações familiares. Pelo contrário, reconhece-se o seu valor, mas como conduta desejável em tais relações. Ou seja, espera-se sempre que as relações familiares iniciem em virtude do afeto, e por este permaneçam. É desejável que haja sempre uma convivência harmoniosa e afetuosa no âmbito familiar e que todo pai conviva com seus filhos dedicando a estes todo amor, carinho e atenção.
Como se viu não se nega que em uma relação familiar fundada na afetividade seria o espaço ideal para o pleno desenvolvimento da vida e da personalidade de cada membro envolvido no núcleo familiar. Entretanto, não se pode esquecer que se trata de sentimento, de algo muitas vezes incontrolável pela razão humana, e que para ser pleno precisa ser espontâneo, livre e verdadeiro.
Ressalta-se o perigo da patrimonialização de questões de família, assim como a inutilidade de fixação dessa indenização do ponto de vista do restabelecimento ou surgimento do bom convívio entre aqueles ligados pelo vínculo de sangue, mas separados por fatores íntimos.
Posteriormente, apresentou-se a mediação como espaço alternativo, e consideravelmente eficaz no que tange à resolução de conflitos de ordem familiar, em especial para os conflitos paterno-filiais por abandono-afetivo. O instituto propicia às próprias partes conflitantes espaço para deliberarem sobre seu problema, o que possibilita o surgimento de relacionamentos mais verdadeiros.
Porém, reconhece-se que tal prática não é simples e fácil por resistência, muitas vezes, das próprias partes, que preferem que o Estado-Juiz intervenha e decida qual a solução para suas mazelas. Por isso, um trabalho de informação e conscientização geral pode ser uma alternativa para o melhor e maior acesso à mediação como forma de resolver conflitos, mesmo que de ordem existencial, como a maioria dos advindos das relações familiares.
Conforme exposto, conclui-se que a mediação seria a técnica mais adequada ao manejo dos conflitos familiares, buscando a solução através de uma construção conjunta, participativa e corresponsável das partes, sempre visando à manutenção dos vínculos familiares.
Informações Sobre os Autores
Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas
Professora de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Estado de Minas Gerais e Faculdades Del Rey – UNIESP. Doutoranda e Mestre em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Tutora do Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Servidora Pública Federal do TRT MG – Assistente do Desembargador Corregedor. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Gama Filho. Especialista em Educação à distância pela PUC Minas. Especialista em Direito Público – Ciências Criminais pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus. Bacharel em Administração de Empresas e Direito pela Universidade FUMEC.
Leonardo Macedo Poli
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor adjunto da Universidade FUMEC, da UFMG e da PUC Minas. Foi coordenador do curso de direito da PUC MINAS no triênio 2008/2010. Atualmente, Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC Minas. Advogado.