Foro especial por prerrogativa de função: o novo artigo 84 do Código de Processo Penal

Sumário:1. Algumas definições de competência; 2. A divisão
de competências; 3. O foro especial por prerrogativa de função; 4. Os
parágrafos do artigo 84 do Código de Processo Penal; 5. A inconstitucionalidade
do § 1º do art. 84 do Código de Processo Penal; 6. A inconstitucionalidade do §
2º do art. 84 do Código de Processo Penal; 7. Considerações finais.

1. Algumas definições de
competência

Na precisa lição de Luigi Lucchini, a competência vem a ser
a medida da jurisdição distribuída entre os vários magistrados, que compõem,
organicamente, o poder judiciário do Estado.[1]

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Dizia Vincenzo Manzini que “la competenza, oggettivamente
considerata, è la cerchia legislativamente limitata entro la quale um giudice,
avente giurisdizione ordinária o speciale, può esercitare la sua
giurisdizione”. Arrematando que: “Riguardata soggettivamente, essa è il
potere-dovere di um giudice di esercitare la giurisdizione, che gli è propria,
in relazione a un determinato offare penale”.[2]

Entre nós, João Mendes considerava a competência como determinação de
atribuições dos tribunais e juizes[3],
sendo que para Eduardo Espínola Filho,
“a competência vem, pois, a ser a porção de capacidade jurisdicional, que a
organização judiciária atribui a cada órgão jurisdicional, a cada juiz”.[4]

2. A divisão de competências

É da tradição do Direito Processual
Penal brasileiro a divisão ou distribuição de competências entre seus diversos
órgãos de jurisdição, de tal sorte que o atual Código de Processo Penal[5],
cuidando da matéria em seu Livro I, Título V, artigos 69/87, estabelece regras
específicas, trazendo disposições gerais nos artigos 88/91, sendo certo que na
sistemática adotada, a regra base de fixação de competência leva em
consideração o lugar da infração, conforme disposições contidas nos artigos 69,
inc. I, e 70/71. Tem-se, ainda, outras regras, sendo elas: competência pelo
domicílio ou residência do réu (arts. 72/73); competência pela natureza da
infração (art. 74); competência por distribuição (art. 75); competência por
conexão ou continência (arts. 76/82); competência por prevenção (art. 83), e
competência por prerrogativa de função (arts. 84/87).

Justificando as razões determinantes
da divisão de competências no ordenamento jurídico, Vincenzo Manzini asseverou que: “Ragioni d’interesse pubblico
e d’interesse privato, motivi di economia funzionale, presunzioni di maggiore o
minore capacità tecnica o attitudine psichica, necessità d’ordine, comodità di
prova, criteri di garanzia e d’equa agevolazione difensiva, ecc., hanno indotto
lo Stato a limitare l’esercizio della potestà di giurisdizione entro certi
confini, mediante il regolamento della competenza di ciascuna categoria di
giudici, di ciascuna sede giurisdizionale, di ciascun giudice impersonalmente
considerato”.[6]

Importa para o estudo que ora se
pretende, a análise das regras que disciplinam a competência por prerrogativa
de função, ou, como também denominado, o foro especial por prerrogativa de
função.

3. O foro especial por
prerrogativa de função

A matéria relativa ao foro especial
por prerrogativa de função não se vê regulamentada apenas no âmbito
infraconstitucional, nos limites do Código de Processo Penal, sendo de
relevância constitucional, tanto assim que o art. 29, inc. X, da Constituição
Federal, estabelece a competência dos Tribunais de Justiça dos Estados para o
julgamento de Prefeitos.

O art. 105 da Constituição Federal
cuida do rol de competências do Superior Tribunal de Justiça, passando pelo
tema do foro especial por prerrogativa de função.

De igual maneira, o artigo 102 da
Constituição Federal estabelece o rol de competências do Supremo Tribunal
Federal com as hipóteses em que lhe compete julgar originariamente (inc. I);
julgar em cede de recurso ordinário (inc. II), e em razão de recurso
extraordinário (inc. III), tratando, entre outros temas, do processo e
julgamento, nas infrações penais comuns, do Presidente da República, do
Vice-Presidente, dos membros do Congresso Nacional, de seus próprios Ministros[7]
e do Procurador-Geral da República, ou ainda, como se vê na alínea c do inc. I do mesmo artigo 102.

No plano infraconstitucional, dispõe
o artigo 84 do Código e Processo Penal que: “A competência pela prerrogativa de
função é do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais de Apelação, relativamente
às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns ou de
responsabilidade”, arrematando, o artigo 86 do mesmo Diploma que compete ao
Supremo Tribunal Federal, privativamente, processar e julgar os seus ministros,
nos crimes comuns (inc. I); os ministros de Estado, salvo nos crimes conexos
com os do Presidente da República (inc. II); o procurador-geral da República,
os desembargadores dos Tribunais de Apelação, os ministros do Tribunal de
Contas e os embaixadores e ministros diplomáticos, nos crimes comuns e de
responsabilidade.

4. Os parágrafos do artigo 84 do
Código de Processo Penal

Como nos tempos da ditadura admitida oficialmente, sem se
preocupar com outros temas que estão por exigir cuidado e pressa do legislador,
em meio aos jogos finais da Copa do Mundo de Futebol de 2002 se fez tramitar no
Congresso Nacional, quando as atenções da Nação e da imprensa estavam voltadas
para as questões futebolísticas, o Projeto de Lei n.º 6.295/02, inteiramente
lesivo ao interesse público, estendendo o benefício do foro privilegiado aos ex-ocupantes
de cargos públicos e também para as ações de improbidade administrativa.

Parte da matéria tratada já era
objeto de discussão em um Projeto de Lei com contornos mais amplos, enviado
pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional em 1996, ao qual se convencionou
chamar “Lei da Mordaça”, tendo por objetivo, entre outros, cercear a divulgação
de informações relativas a procedimentos e processos envolvendo agentes
políticos. Uma forma de evitar que a criminalidade e os desmandos políticos
cheguem ao conhecimento público, sendo que os objetivos de tal cerceamento são
evidentes. Aliás, não são de hoje os ataques oficiais contra instituições como
o Ministério Público, hoje, mais do que nunca, considerado o maior guardião dos
interesses da sociedade. Tentativas as mais variadas de tolher as atividades do
Ministério Público que incomodam a classe política fluem sem remorso e sem
assombro pelos Gabinetes e Comissões do Congresso Nacional, como se fosse esse
o desejo do Povo brasileiro. Fala-se, ainda, em democracia representativa,
fazendo bater no peito a pancada heróica…

Como advertiu Roberto Delmanto, “os maiorais da
República nunca aceitaram a autonomia do Ministério Público, pois ela assegura
que todos os prevaricadores serão punidos”.[8]

Com celeridade incomum nos casos em
que há interesse público, aprovado na Câmara dos Deputados[9],
o Projeto 6.295/02 chegou ao Senado no dia seguinte e, no mesmo dia, o plenário
aprovou requerimento dando urgência à tramitação, apresentado pelo vice-líder
do governo, o Senador Romero Jucá.

Toda eficiência e celeridade
demonstradas pelo Congresso Nacional visou apenas preservar interesses do então
presidente da república, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, cujas idéias um
dia expostas a título de sua formação universitária[10]
não condizem com grande parte dos atos que patrocinou em seu governo, o que
realmente não impressiona, pois o mesmo já havia advertido no início de seu
primeiro mandato junto ao comando supremo da Nação que era preciso esquecer o
que ele havia escrito…

Rosa Costa noticiou em seu artigo publicado no jornal Estado
de São Paulo[11] que o líder
do PMDB à época, Senador Renan Calheiros, ex-chefe da campanha de Fernando
Collor de Melo à Presidência da República e ex-Ministro da Justiça, orientou
toda a bancada a aprovar a proposta.

É necessário dizer que no tocante a
competência para as ações de improbidade o Ministro Nelson Jobim, ex-Ministro
da Justiça nomeado por Fernando Henrique Cardoso, já havia concedido liminar
suspendendo a eficácia da sentença condenatória proferida na ação de
improbidade administrativa movida pelo Ministério Público Federal contra o
Ministro Ronaldo Sardenberg, ao argumento de que os agentes políticos não podem
ser responsabilizados por improbidade, com base na Lei 8.429/92, porquanto a mesma
teria por destinatários unicamente os agentes administrativos. De acordo com a
decisão, a responsabilidade do agente político, quando ao mesmo é imputado ato
de improbidade, deve ser apurada pelo meio próprio, que é a ação por crime de
responsabilidade, promovida no foro especial fixado constitucionalmente.[12]

Como já era de se esperar, o Projeto
6.295/02 foi convertido em Lei, que recebeu o n.º 10.628, de 24 de dezembro de
2002, acrescentando dois parágrafos ao art. 84 do Código de Processo Penal. O §
1º estabelece a prorrogação do foro especial após a cessação do exercício da
função pública e o § 2º determina que: “a ação de improbidade, de que trata a
Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal
competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na
hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública,
observado o disposto no § 1º”.

5. A inconstitucionalidade do §
1º do art. 84 do Código de Processo Penal.

A matéria atinente ao foro especial
após a cessação do exercício da função pública já fora objeto de longa
discussão que terminou com o cancelamento da Súmula 394[13]
pelo Colendo Supremo Tribunal Federal em 1999, ficando soberanamente decidida a
questão, porquanto manifesto o pensamento da mais Alta Corte de Justiça da
Nação.

Revigorada a discussão, da forma
como veio ao mundo jurídico a fixação do foro especial aos ex-exercentes de
funções públicas padece de inconstitucionalidade.

Aliás, referindo-se ao Projeto
6.295/02 ao tempo de sua tramitação, Dalmo
de Abreu Dallari já advertia que “embora seja escandalosamente
inconstitucional esse projeto foi estranhamente aprovado pela Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara de Deputados, onde se supõe que haja
conhecedores da Constituição”.[14]

Na mesma ocasião o Ilustre Jurista
apontava, ainda, a existência de enorme incongruência na proposta, pois, dizia
ele referindo-se ao projeto: “ao mesmo tempo em que se fala que a competência
privilegiada é ‘por prerrogativa de função’ acrescenta-se que tal privilégio
permanece ‘após a cessação daquele exercício funcional’, ou seja, quando a
pessoa já não está mais exercendo a função, não havendo, portanto, qualquer
interesse público na concessão do privilégio”.[15]

A inconstitucionalidade decorre
evidente, já que nos precisos termos do art. 5º, caput, da Constituição Federal, “todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza…”, e a ampliação decorrente do disposto no
§ 1º do art. 84 do CPP cria aos ex-exercentes de funções públicas tratamento
diferenciado em relação aos demais cidadãos, cumprindo anotar que as razões que
justificam e legitimam o foro especial por prerrogativa de função aos que estão no exercício de determinadas
funções públicas visam o interesse público, pois, conforme lembra Dalmo de Abreu Dallari, referindo-se à
competência delimitada pelo art. 102 da CF: “Esse privilégio de somente ser
processado perante o Supremo Tribunal Federal impede que os que estejam no
exercício daquelas funções sofram processos em diferentes pontos do país, o que
poderia ser contrário ao interesse público, uma vez que todos esses personagens
estão sediados na Capital da República e a necessidade de irem a outros pontos
do País para se defenderem em processos poderia prejudicar o bom exercício da função.
O artigo 84 do Código de Processo Penal reafirma esse privilégio, que denomina
prerrogativa de função, pois, como dispõe a Constituição, só beneficia pessoas
por estarem no exercício de certas funções, concedendo-lhes foro privilegiado”.[16]

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Não é por outra razão a lição de Luiz Flávio Gomes no sentido de que
“esse foro especial só tem sentido, portanto, enquanto o autor do crime está no
exercício da função pública. Cessado tal exercício (não importa o motivo: fim
do mandato, perda do cargo, exoneração, renúncia etc.), perde todo o sentido o
foro funcional, que se transformaria (em caso contrário) em odioso privilégio
pessoal, que não condiz com a vida republicana ou com o Estado Democrático de
Direito”.[17]

Os malipuladores da Lei se esqueceram que o privilégio é em
razão do exercício da função pública e não do cidadão. Deturparam o fundamento
de base da regra, em benefício próprio. Advogaram em causa própria. Usaram das
funções para estabelecer em benefício próprio privilégios injustificados,
inconstitucionais, o que por si só resvala no art. 37 da Constituição Federal,
ferindo de morte princípios como o da legalidade,
impessoalidade e moralidade, estando tal conduta a reclamar as conseqüências
jurídicas decorrentes.

Na feliz expressão de Roberto Delmanto, a nova regra
“desmoraliza a igualdade cidadã”.[18]

Deixando as funções públicas, as
ex-autoridades voltam a ser cidadãos comuns, devendo, em razão da igualdade
constitucional, se submeterem a processo e julgamento como qualquer outro
cidadão comum. Trata-se de ex-exercente
de função pública, não havendo qualquer interesse público legitimador de
modificação da regra.

Note-se, por derradeiro, que a
competência dos Tribunais vem delimitada no texto constitucional e a norma
infraconstitucional não pode ampliar o rol de competências dos Tribunais
conforme estabelecido, inclusive em razão de princípios como os da hierarquia e
verticalidade das normas.

A título de exemplo, frise-se que a
Constituição Federal estabelece a competência do Supremo Tribunal Federal para
processar e julgar, originariamente, nas infrações penais comuns, o Presidente
da República e o Vice-Presidente,[19]
não mencionando qualquer possibilidade de processar e julgar ex-Presidente ou ex-Vice.

Diante de tais circunstâncias, é
flagrante a inconstitucionalidade do § 1º do art. 84 do Código de Processo
Penal, decorrente da Lei 10.628, de 24 de dezembro de 2002.

6. A inconstitucionalidade do §
2º do art. 84 do Código de Processo Penal.

Conforme dispõe o art. 37, § 4º, da
Constituição Federal, “os atos de improbidade administrativa importarão a
suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a
indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação
previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.

É de todo perceptível, ante a
literalidade e clareza do texto constitucional, que as sanções decorrentes da
prática de atos de improbidade não se confundem com as de natureza penal.
Evidentemente, e por conseqüência, não há que se confundir improbidade
administrativa com ilícito penal. O inverso constitui erro grosseiro, data maxima venia.[20]

A doutrina é tranqüila a respeito do
tema; nesta seara não reinam disceptações.

Bem por isso autores de nomeada[21]
e os Tribunais sempre entenderam que, sendo a ação de improbidade
administrativa cuidada na Lei 8.429/92 de natureza civil, ainda que proposta
contra autoridades que gozem de foro especial por prerrogativa de função para
efeitos penais, “deve ser processada e julgada em primeira instância, por não
caber o deslocamento de foro para o Supremo Tribunal Federal sem expressa
previsão constitucional”.[22]

Por ser a competência originária do
Supremo Tribunal Federal de direito estrito, não se admite o foro especial por
prerrogativa de função para as ações civis de improbidade administrativa.

Nesse sentido Wallace Paiva Martins Júnior traz à
colação em sua preciosa obra o entendimento do Supremo Tribunal Federal,
conforme segue: “A competência do Supremo Tribunal Federal é de direito estrito
e decorre da constituição, que a restringe aos casos enumerados no art. 102 e
incisos. A circunstâncias de o Presidente da República estar sujeito à
jurisdição da corte, para os efeitos criminais e mandados de segurança, não
desloca para esta o exercício da competência originária em relação às demais
ações propostas contra ato da referida autoridade” (STF, TP, AgRg em Petição
693-4-SP, Rel. Min. Ilmar Galvão, 12-8-1993, DJU, 1º mar. 1996, p. 5013)”.[23]

Em sua conhecida obra, Marino Pazzaglini Filho destaca o voto
do Min. Celso de Mello, que com clareza solar elucida a matéria nos seguintes
termos: “Com efeito, não se pode perder de perspectiva, neste ponto, que a
competência originária do Supremo Tribunal Federal, por qualificar-se como um
complexo de atribuições jurisdicionais de extração essencialmente constitucional
– e ante o regime de direito estrito a que se acha submetida – não comporta a
possibilidade de ser estendida a situações que extravasem os rígidos limites
fixados, em numerus clausus, pelo rol
exaustivo inscrito no art. 102, I, da Carta Política, consoante adverte a
doutrina (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Comentários à Constituição
Brasileira de 1998, vol. 2/217, 1992, Saraiva) e proclama a jurisprudência
desta própria Corte (RTJ 43/129 – RTJ 44/563 – RTJ 50/72 – RTJ 53/776)”.[24]

Diante de tal quadro, resta evidente
que não pode o legislador ordinário ampliar o âmbito estrito de competências da
Suprema Corte.

Como se vê, distinguindo a
Constituição Federal os âmbitos de incidência da improbidade administrativa e
do direito penal, não pode o intérprete, o juiz, e tampouco o legislador,
confundi-los impunemente, e para a lei que não observa tais limites a sanção inevitável é o reconhecimento de
sua inconstitucionalidade.

Não é por outra razão que após a
edição da Lei 10.628/02 a Egrégia Procuradoria-Geral de Justiça do Ministério
Público do Estado de São Paulo expediu recomendação[25]
aos Membros do Ministério Público, em caráter normativo, para que arguam, “nos
processos de sua atribuição porventura alcançados pela nova lei, a
inconstitucionalidade do § 2º do art. 84 do Código de Processo Penal, a fim de
possibilitar o exercício do controle difuso de constitucionalidade, pelos
órgãos do Poder Judiciário”, e no texto da referida recomendação se fez constar
o entendimento jurisprudencial a respeito do tema, no sentido de que “A
competência do STF é de direito estrito e decorre da Constituição, que a
restringe aos casos enumerados no art. 102 e incisos. A circunstância de o
Presidente da República estar sujeito à jurisdição da Corte, para os efeitos
criminais e mandados de segurança, não desloca para esta o exercício da
competência originária em relação às demais ações propostas contra ato da
referida autoridade” (STF, Pleno, RJ 159/28, rel. Min. Ilmar Galvão).

Também consta da referida
recomendação: “O mesmo raciocínio vale para os demais Tribunais Superiores (com
a única exceção do TST – CF, art. 111, § 3º, o que obviamente não interfere no
raciocínio aqui exposto, dada a absoluta especificidade da jurisdição
trabalhista). Nesse contexto, o STF julgou inconstitucional artigo do Código
Eleitoral (lei ordinária) que pretendia atribuir competência ao TSE para
conhecer de mandado de segurança contra ato do Presidente da República, em
matéria eleitoral (RTJ 109/909)”. E segue: “Também os Tribunais Regionais
Federais (e bem assim os próprios juízes federais) têm prevista na
Constituição, de forma taxativa, a sua competência, que ‘somente pode ser
ampliada ou reduzida por emenda constitucional, contra ela não prevalecendo
dispositivo legal hierarquicamente inferior’”. “Quanto aos Tribunais de
Justiça, é também expressa a Constituição Federal, ao estatuir que sua
competência ‘será definida na Constituição do Estado’ (art. 125, § 1º). Não
pode esta ser ampliada pelo legislador ordinário. Tanto é assim que o STF
considerou revogados os dispositivos da Lei Orgânica da Magistratura que
dispunham sobre competência dos tribunais estaduais (HC 77.583-1-PR, rel. Min.
Sepúlveda Pertence, DJU 18.9.98, p. 7)”.

Ao cuidar da competência do Supremo
Tribunal Federal o art. 102, inc. I, alínea a,
da Constituição Federal, não incluiu em seu rol as ações civis públicas por ato
de improbidade administrativa, não sendo demais relembrar que o art. 37, § 4º,
da Constituição Federal cuidou de expressar a impossibilidade de confusão das
jurisdições civil e penal, para os atos de improbidade e para os ilícitos
penais, respectivamente. De tal sorte, a confusão proposta não se justifica
dentro de um raciocínio lógico e inteligente, fazendo concluir que razões
outras, diversas da técnica jurídica, e distantes do interesse público, é que
empolgaram a malfadada disposição legal ora combatida.

Historicamente, as hipóteses de foro
privilegiado sempre foram objeto de previsão constitucional, não se deixando a
regulamentação da matéria para a legislação de menor envergadura.

7. Considerações finais

Comentando o tema sob análise Hugo Nigro Mazzili asseverou, com a
inteligência de sempre, que: “Não se pode esconder que o objetivo desse jogo de
força é tentar jogar para o Procurador-Geral da República e as maiores Cortes,
de investidura política (indicação do Presidente da República e aprovação do
Senado), a decisão sobre o processo e julgamento das mais altas autoridades…
Acresce que, em vista da notória incapacidade material dessas Cortes de
processarem e julgarem os milhares de casos de improbidade neste País, estariam
assim, até involuntariamente, contribuindo para a ineficácia da lei”.[26]

Trata-se, a bem da verdade, de um
duro golpe contra os princípios republicanos de igualdade; fomento à
criminalidade política, à corrupção, e é sabido que muitos têm se valido de
prerrogativas asseguradas pelas funções para delinqüir impunemente.

A Lei 10.628/02 contraria a
Constituição Federal; todo e qualquer senso de Justiça; princípios
constitucionais basilares; o interesse social, e não corresponde, em absoluto,
com as idéias e ideais da sociedade brasileira contemporânea, representando,
sem sombra de dúvida, ranço primitivo e ditatorial, e os homens primitivos,
conforme Lucien Lévy-Bruhl,
“vivem, pensam, sentem, se movem e agem num mundo que em numerosos pontos não
coincide com o nosso”.[27]

Não se deve esquecer a lição de Niklas Luhmann no sentido de que
“apesar de toda a autonomia e do desenvolvimento continuado das diferentes
noções jurídicas, as mudanças fundamentais do estilo do direito permanecem
condicionadas pela mudança estrutural da sociedade, ou seja: são por ela
incentivadas e possibilitadas”.[28]

É preciso estar atento à vontade coletiva, de que falava Hans Kelsen.[29]

Como escreveu Jean-Jacques Rousseau: “Enfim, quando o
Estado, próximo de sua ruína, subsiste apenas por uma fórmula ilusória e vã,
quando o liame social está rompido em todos os corações, quando o mais vil
interesse se apossa afrontosamente do nome sagrado do bem público, então a
vontade geral torna-se muda, todos, guiados por motivos secretos, não mais
opinam como cidadãos, como se o Estado jamais tivesse existido, e são
aprovados, falsamente sob o nome de leis, decretos iníquos que apenas visam o
interesse particular”.[30]

No Brasil, é cada vez mais acertada a
afirmação de John Kenneth Galbraith
no sentido de que a mudança socialmente desejável é regularmente negada devido
a interesses pessoais bem conhecidos.[31]

Notas:

[1] Elementi di procedura penale, 3ª ed.,
Florença, 1908, p. 209.

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[2] Trattato di
Diritto Processuale Penale Italiano, 6ª ed., Torino: UTET, v. II, 1968, p. 37.

[3] Processo
Criminal Brazileiro, Livro III, p.163

[4] Código de
Processo Penal Brasileiro Anotado, 5ª ed., Rio de Janeiro: Borsoi, v. II, p.
51.

[5] Decreto-Lei
3.689, de 3 de outubro de 1941.

[6] Trattato di
Diritto Processuale Penale Italiano, 6ª ed., Torino: UTET, v. II, 1968, p. 37.

[7] Do Supremo
Tribunal Federal.

[8] Desaforo
privilegiado, Conamp em Revista, out./dez. 2002, n.º 1, 1ª ed., p. 29.

[9]
“A tramitação do foro privilegiado na Câmara foi beneficiada por um acordo
firmado entre o PT – que tinha interesse na aprovação da Medida Provisória 66 –
e o governo, que pretendia evitar futuros problemas políticos para o presidente
Fernando Henrique Cardoso”, conforme escreveu Paulo de Tarso Lyra em artigo publicado
no “Jornal do Brasil”, em 13.13.02, p. A-4.

[10] Embora
difíceis de se encontrar.

[11] Senadores
aprovam urgência para votação do foro privilegiado, 13.12.02, p. A-12.

[12] Cf. A Mobilização contra o foro
privilegiado, Conamp em Revista, out./dez. 2002, n.º 1, 1ª ed., p. 24.

[13]
“Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência
especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal
sejam iniciados após a cessação daquele exercício”.

[14] Privilégios
Antidemocráticos, Conamp em Revista, out./dez. 2002, n.º 1, 1ª ed., p. 26.

[15] Privilégios
Antidemocráticos, Conamp em Revista, out./dez. 2002, n.º 1, 1ª ed., p. 27.

[16] Privilégios
Antidemocráticos, Conamp em Revista, out./dez. 2002, n.º 1, 1ª ed., p. 27.

[17]
Reformas penais : foro por
prerrogativa de função. Disponível na internet: http://www.ibccrim.org.br,
24.12.2002.

[18] Desaforo
privilegiado, Conamp em Revista, out./dez. 2002, n.º 1, 1ª ed., p. 29.

[19]
Art. 102, inc. I, alínea b, da CF.

[20]
Mesmo assim o Ministro Nelson Jobim, ex-Ministro da Justiça no Governo Fernando
Henrique Cardoso, concedeu a liminar acima mencionada, suspendendo a eficácia
da sentença condenatória proferida na ação de improbidade administrativa movida
pelo Ministério Público Federal contra o Ministro Ronaldo Sardenberg, abrindo o
caminho para o infeliz Projeto[20]
que deu origem à Lei 10.628/02, que inseriu o § 2º no art. 84 do Código de
Processo Penal.

[21]
Cf. Marino
Pazzaglini Filho, Lei de improbidade administrativa comentada, São
Paulo: Atlas, 2002, p. 173-175.

[22]
TRF – 1ª Região, Ag. 01000132274-DF, DJ
4-5-2001, p. 640.

[23] Probidade
administrativa, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 369.

[24] Lei de
improbidade administrativa comentada, São Paulo: Atlas, 2002, p. 174.

[25] D.O.E. 03
de janeiro de 2003, p. 22.

[26]
Privilégio para julgar corruptos, Conamp em Revista, out./dez. 2002, n.º 1, 1ª
ed., p. 32.

[27] La mentalité primitive, 14ª ed., Paris,
1947, p. 47.

[28]
Sociologia do Direito I, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, trad. de Gustavo
Bayer, 1983, p. 225.

[29]Problemas capitales de la teoria jurídica
del Estado
, trad. de Wenceslao Roces, México: Porrúa, 1987, p. 139.

[30]
Do contrato social, trad. de Márcio Pugliesi e Norberto de Paula Lima, 7ª ed.,
São Paulo: Hemus, s/d., p. 112.

[31]
Sociedade justa, trad. de Ivo Korytowski, Rio de Janeiro: Campus, 1996, p. 5.


Informações Sobre o Autor

Renato Flávio Marcão

Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).


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