Resumo: O presente trabalho teve por finalidade analisar a experiência dos Comitês de Terra Urbana na Venezuela. Trata-se de uma iniciativa legislativa que visa à consecução dos mandamentos da Constituição da República daquele país, de 1999, no sentido de garantir o direito à moradia digna, bem como o direito à participação popular como protagonistas das tomadas de decisão. Destarte, buscou-se analisar a dinâmica dos Comitês de Terra urbana dentro deste contexto em que se busca aprimorar a gestão democrática, com a finalidade de concretizar o direito à cidade. Para isso, procedeu-se ao diagnóstico da evolução das políticas públicas relacionadas à habitação na Venezuela até os dias atuais, bem como procedeu-se à análise da legislação pátria, realizando um cotejo entre o marco legal e a prática da atuação dos comitês. Por fim, exarou-se uma conclusão a respeito do contexto paradoxal da república Bolivariana, situando a autonomia e eficiência dos Comitês nessas relações dialéticas.
Palavras-chave: comitês de terra urbana, Venezuela, moradia digna, participação popular.
Abstract: This work aimed at analyze the experience of the Urban Land Committees in Venezuela. This is a legislative initiative that aims the achievement of the Constitution’s commandments of that country, dated in 1999 to ensure the right to adequate housing and the right to popular participation as actors in decision-making. Thus, we sought to analyze the dynamics of the Urban Land Committees within this context that seeks to improve the democratic administration, in order to realize the right to the city. For this, we made the diagnosis of the evolution of public policies related to housing in Venezuela to the present day, and proceeded to the analysis of country legislation, making a comparison between the legal framework and the practice of the committees action. Finally, a conclusion was reached regarding the paradoxical context of the Bolivarian Republic, placing the autonomy and efficiency of these Committees within those dialectical relations.
Keywords: urban land committees, Venezuela, decent housing, popular participation.
Sumário: 1. Introdução; 2. Cenário das cidades antes da constituição de 1999: cidades excludentes e segregadoras – ineficiência de gestão e políticas públicas; 3. Constituição de 1999: incorporação do direito à cidade e do direito à participação – chamamento à democracia participativa; 4. Os comitês de terra urbana: marco legal e seu funcionamento; 4.1 – Bases legais e institucionais dos CTU: o Decreto 1.666; 4.2 – Da estrutura e funcionamento dos CTU; 5. Inclusão social e reconhecimento como sujeitos de direito: luta pelo direito à cidade; 6. Considerações Finais; 7. Referências Bibliográficas
1. INTRODUÇÃO
Hoje encontra-se na pauta internacional de redes e organizações ligadas à questão da moradia, especificamente, ou do desenvolvimento e planejamento urbano, em geral, o debate em torno da consolidação do direito à cidade como direito humano coletivo.
Isso porque, as cidades atuais, principalmente localizadas nos países subdesenvolvidos, sem, contudo, excluir cidades pertencentes aos países desenvolvidos, não correspondem ao ideal de cidade desejado, em que se preza pela inclusão social, pela justa distribuição dos ônus e benefícios do processo de urbanização, de modo que a população consiga usufruir, de maneira equânime, as riquezas, culturas, bens e conhecimentos que a cidade oferece, e que, acima de tudo, todos os cidadãos tenham acesso a uma moradia digna, munida dos componentes mínimos preconizados pelo comentário geral nº 4 do Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU[1].
Muito pelo contrário, os modelos de desenvolvimento experimentados pela maioria das cidades do mundo se caracterizam por estabelecer níveis de concentração de renda e poder, gerando pobreza e exclusão/segregação social, o que contribui para a depredação do meio ambiente.
Esses processos favorecem a proliferação de grandes áreas urbanas em condições de pobreza, precariedade e vulnerabildade diante dos riscos naturais.
Contribuem para isso as políticas públicas que, ao desconhecer os aportes dos processos de produção popular para a construção das cidades e da cidadania, violentam a cidade urbana. Graves consequências resultam desse processo, como os despejos massivos, a segregação e a consequente deterioração da convivência social. Este contexto favorece o surgimento de lutas urbanas que, devido a seu significado social e político, ainda são fragmentadas e incapazes de produzir mudanças significativas no modelo de desenvolvimento vigente.
Dentro desse contexto de busca ela efetivação do direito à cidade, em que a população pobre seja notada, e que, por conseguinte, as demandas populares sejam atendidas, o presente trabalho irá proceder ao estudo e análise de uma experiência ocorrida na Venezuela, em que se busca exatamente efetivar o direito à cidade, visando a garantir o acesso à terra urbanizada à população de baixa de renda, mediante uma cogestão entre a comunidade e o Poder Público.
Conforme é cediço, a exegese que envolve a compreensão em torno do direito à cidade concebe o direito à moradia adequada e a gestão democrática das cidades como componentes desse novel direito humano.
Nessa seara, os Comitês de Terra Urbana surgem como uma política pública tendente a concretizar esses dois elementos caracterizadores do direito à cidade, uma vez que visam essencialmente a garantir a regularização fundiária, bem como regularização integral dos bairros pobres, em seu aspecto jurídico e físico, mediante uma participação popular ativa, em uma verdadeira cogestão com o Poder Público.
Tratam-se os Comitês de Terra Urbana (CTU) de uma das organizações sociais de base popular com maior número de membros e com mais ampla trajetória enquadrada na proposta de democracia participativa sancionada na Constituição da República Bolivariana da Venezuela de 1999 através da proteção do direito à cidade e a uma moradia digna
Segundo informação da Oficina Técnica Nacional para a Regularização da Terra, para o ano de 2006, existiam aproximadamente 6 mil CTU, com presença na maior parte dos bairros pobres do país e com uma cobertura de cerca de 1 milhão de famílias[2].
Sendo assim, o presente trabalho possui a finalidade de analisar o contexto em que foi estabelecida a política pública em questão, contextualizando, de igual modo, o marco legal que acompanhou sua institucionalização.
No mais, discorrer-se-á acerca do funcionamento prático dos Comitês, explicando a dinâmica de sua atuação em face ao Poder Público. Sem embargo, também serão indicados outros atores sociais, a fim de se garantir uma correta visualização a respeito do cenário político da Venezuela.
Por fim, verificar-se-á se os Comitês de Terra Urbana são uma medida eficaz em relação aos objetivos para os quais foram criados, quais sejam, garantir uma moradia adequada à população de baixa renda, mediante o incremento da participação popular como efetivo gestores da política pública e não apenas beneficiários.
2. CENÁRIO DAS CIDADES ANTES DA CONSTITUIÇÃO DE 1999: CIDADES EXCLUDENTES E SEGREGADORAS – INEFICIÊNCIA DE GESTÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS
Uma das características do padrão de urbanização na Venezuela tem sido a configuração de um espaço altamente segregado socialmente como consequência do modelo petroleiro, que gerou fortes desequilíbrios sociais, econômicos e territoriais. Mais de 50% da população vive nos denominados assentamentos informais ou bairros pobres, sem acesso à propriedade legal do solo que ocupam e sem redes de articulação com a cidade formal. Para 1990, segundo M. Negrón, a população venezuelana dos setores populares haviam construído com seu esforço entre um terço e a metade das cidades na Venezuela.[3]
Além dos espaços segregados, os bairros pobres são espaços de exclusão, já que têm as maiores deficiências quanto a moradias dignas, serviços básicos como água, e equipamentos como escolas e centros de saúde. Seus habitantes têm as taxas mais baixas de escolaridade e as mais altas de desemprego, de morbidade e mortalidade infantil e de homicídios. Enfim, são espaços de negação dos direitos humanos fundamentais inscritos na Constituição bolivariana de 1999.
No geral, as políticas de moradia do Estado têm se caracterizado por uma grande desarticulação, fato que propiciou altas demandas não satisfeitas de moradia e formas de organização social que se traduziram em um mercado informal de construção e comercialização da cidade. Desde o início da democracia em 1958, e inclusive durante a ditadura de Marcos Perez Jimenez, o Estado Venezuelano se adjudicou a responsabilidade pela resolução ou melhoria dos bairros pobres e de moradia[4].
De fato, muitas das políticas de melhoria de bairros se centravam na produção maciça de moradias ou no financiamento de empreendimentos habitacionais isolados, fato que obedece aos benefícios de uma economia petroleira em ascensão que permitia o Estado centralizar o tema da construção imobiliária. É assim que o Estado venezuelano adotou um papel paternalista e atuou como produtor, gestor e financiador, não apenas dos planos e projetos urbanos, como também das moradias de interesse social[5].
No entanto, a carência ou as deficiências de um marco jurídico sobre participação cidadã que sustentasse os programas de melhoria de bairros contribuiu ao vazio da participação comunitária em tais programas.
De 1958 a fins dos anos 70, se criou instituições dirigidas a resolver a problemática dos bairros pobres, como a Fundación para El Desarrollo de La Comunidad e Fomento Municpal (Fundacomun)[6] (1962), e o Fondo Nacional de Desarrollo Urbano (Fondur)[7] (1975); se criou cooperativas de habitação (1959-1976), se realizou produções maciças de moradias, urbanizações populares e equipamentos de bairros (1969-1974) e se criou o subsídio habitacional.
Apesar destas iniciativas, a falta de continuidade e seu caráter isolado, levaram ao aumento do déficit de moradias e à deterioração progressiva da qualidade de vida dos moradores dos bairros pobres. Por sua vez, a década de 90 estava marcada por uma profunda crise econômica, política e social devido à incapacidade do Estado centralista de oferecer soluções à problemática dos bairros pobres, que, na época, afetava mais de 50% da população que residia nas cidades[8].
Durante esse período, se consolidou a descentralização política, a qual se apoiou no marco jurídico aprovado em 1989 e 1990. Como parte do processo de descentralização, se transferiu competências e poder do nível central aos governos regionais e se regulamentou a organização e participação comunitária em nível local.
Sem embargo, a transferência de poder neste nível assumiu mais um papel de transferência de funções e competências do que dos recursos econômicos correspondentes; ademais, a participação comunitária se limitou ao âmbito informativo e consultivo.
Desse modo, possível afirmar que o processo descentralizador estava mais dirigido a aperfeiçoar o modelo de democracia representativa e a fazer trocas – para que tudo permanecesse igual – do que incorporar instrumentos legais que deram base ao aprofundamento da democracia[9].
Apesar do exposto acima, houve alguns avanços em matéria de melhorias dos bairros pobres, já que em 1990 se criou o Conselho Nacional da Habitação e se aprovou a Lei de Política habitacional, a qual foi modificada em 1993. Nesta Lei, se institucionalizou o Sistema Nacional de Assistência Técnica, que se converteu em um intermediário entre o Estado como agente facilitador e o setor comunitário, propiciando a criação das Organizações Comunitárias de Habitação[10].
Alguns dos aportes mais significativos desse período foram o Programa Nacional de Equipamentos de Bairros[11] e o Projeto Cameba[12], os quais se centraram na melhoria da qualidade de vida dos habitantes dos bairros pobres, estabelecendo como prioridade a incorporação das comunidades no processo de habilitação dos bairros.
3- CONSTITUIÇÃO DE 1999: INCORPORAÇÃO DO DIREITO À CIDADE E DO DIREITO À PARTICIPAÇÃO – CHAMAMENTO À DEMOCRACIA PARTICIPATICA
A cidadania é o estatuto da pessoa que habita a cidade, onde se reconhecem os “direitos individuais e de expressão e construção de identidades coletivas de democracia participativa e de igualdade básica entre os habitantes”.[13]
Dada a relação dialética que existe entre a cidadania e a cidade, os valores vinculados a esta última só emergem quando o estatuto da cidadania é “uma realidade material e não só um reconhecimento formal”[14].
Portanto, a construção de cidadania deve ser entendida como um processo ou dinâmica transformadora que permite converter o cidadão em um sujeito de direitos e deveres que pode incidir no governo da cidade.
O reconhecimento do estatuto da cidadania, corolário do direito à cidade, do qual se extrai o reconhecimento dos direitos individuais, dentre os quais se encontra a moradia e o direito de participação, foram sancionados na Constituição da República Bolivariana da Venezuela, de 1999; sua concretização nas políticas do governo tem tido distintas fases.
Com a chegada de Hugo Chávez Frías à Presidência da Venezuela em 1999, as políticas públicas se reorientaram para os setores mais pobres, e sob o lema da inclusão dos excluídos se propuseram trocas estruturais na concepção dos bairros e na forma de resolver os problemas que afetavam a população pobre, incluindo a moradia.
Para lograr esse objetivo, o presidente Chávez[15] propôs o aprofundamento do modelo da democracia participativa e a atenção para os venezuelanos excluídos econômica, social e espacialmente. Tendo em vista que os habitantes dos bairros pobres estão duplamente excluídos (de forma material e simbólica)[16] do direito à cidade e à cidadania, ou de direitos que deve oferecer a cidade, uma das primeiras propostas do presidente Chávez para a nova Constituição foi a criação de novas figuras participativas e a ampliação dos mecanismos de participação para incorporar a população na solução de seus problemas[17]
Ademais, dado os altos déficits acumulados de moradias, a Comissão Nacional de Habitação[18], com base no direito à moradia sancionado no artigo 82 da Constituição Bolivariana da República da Venezuela[19], propôs uma nova política nacional de habitação, orientada a saldar a dívida social adquirida com a população de baixa renda, que, apesar de terem autoconstruído grande parte das cidades venezuelanas por falta de ajuda do governo, habitam em espaços que carecem dos serviços básicos e de infraestrutura mais elementares devido ao padrão de espontaneidade com que foram construídos.
O eixo de ação desta política se baseia em um componente urbano e outro social. O componente urbano está dirigido à atenção habitacional às famílias através da doação de obras que contribuam à transformação do habitat e a melhoria de seus padrões de vida e o componente social tem como objetivo promover novos canais de participação comunitária ativa para a gestão coletiva da cidade, o que significa que as comunidades organizadas têm um papel importante no planejamento e gestão urbana de áreas de bairros, tal como prescreve a Constituição de 1999. Por outro lado, a reivindicação do direito constitucional à moradia e da propriedade da terra na qual se localiza não é novidade, nem se inseriu em um vazio organizacional, já que os Governos anteriores haviam levantando a questão a partir de diferentes enfoques; ademais, uma elevada porcentagem da população afetada por problemas de moradia se mobilizou no passado sob diferentes formas organizacionais para fazer com que suas demandas fossem ouvidas, incluindo aquela de regularização da posse da terra.
Do ponto de vista organizacional, um dos antecedentes mais importantes foi a Assembleia de Bairros de Caracas, fundada em 1991, em resposta à proposta da mesa do povo do primeiro Encontro Internacional de Reabilitação de Bairros, e que durou até 1993 (A. Antillano 2005:207)[20].
A dinâmica participativa e o enfoque de direitos inseridos na Constituição de 1999 propiciaram novos modelos de organização comunitária para reclamar os mencionados direitos. Na atualidade, a organização social popular está sendo patrocinada pelo Governo e sob o amparo da Constituição e do modelo político que incentiva a participação na solução das demandas dos setores pobres.
O Governo tem direcionado recursos financeiros consideráveis e recursos técnicos provenientes do boom do petróleo, às Organizações Populares, que constituem, supostamente, sua base de apoio político.
Estes fatores explicam a explosão de formas organizacionais promovidas pelo Governo, entre as quais se encontram os Círculos Bolivarianos, os Comitês de Terra Urbana, entre muitas outras.
Sem embargo, a diferença dos processos de organização desde a base que representou as Assembleias de Bairros descritas anteriormente e que lhes permitiu manter a autonomia frente ao Estado e os partidos políticos, e as novas formas organizacionais propostas, derivadas da concepção da democracia participativa e protagonista da Constituição de 1999, estão sendo promovidas a partir de cima, isto é, partindo da Presidência da República[21], como é o caso dos Comitês de Terra Urbana que surgiram por Decreto presidencial.
4- OS COMITÊS DE TERRA URBANA: MARCO LEGAL E SEU FUNCIONAMENTO
Apesar dos elementos comuns que compartilham os Comitês de Terra Urbana, tais como sua identificação com a comunidade organizacional e a demanda de regularização da posse da terra onde se encontram as moradias, existe grande heterogeneidade nas práticas que desenvolvem esses atores.
De fato, os CTU são altamente heterogêneos em termos da tradição jurídica da terra[22], dos atores econômicos, sociais e políticos com os quais interatuam e estabelecem alianças e articulações; da tradição de luta de seus membros, da etapa no processo de regularização na qual se encontram e inclusive das estratégias que utilizam para lograr seus objetivos[23].
Dadas estas diferenças, a avaliação sobre se os CTU têm um potencial transformador como movimento social e, por isso, a capacidade de construir novas subjetividades e projetos de sociedade autônomos ou se, pelo contrário, podem ser cooptados e reorientados para objetivos políticos eleitorais ou para práticas neoclientelistas, passa pela compreensão e comparação de suas duas faces ou dimensões: a legal-institucional e a da práxis.
4.1- Bases legais e institucionais dos CTU: o Decreto 1.666
O texto constitucional e o ordenamento jurídico vigente desde 1999 pretenderam canalizar as demandas de maior participação cidadã que surgiu a partir das críticas à democracia representativa[24].
A Constituição da República Bolivariana da Venezuela reconhece não só a obrigação do Estado venezuelano de garantir o direito de toda pessoa a uma moradia adequada, como também o direito de todos os cidadãos a participar através de distintos meios nos assuntos públicos e na formação, execução e controle da gestão pública (CRBV, arts. 6, 62 e 70).
Sob os aludidos pilares constitucionais sobreveio a promulgação do Decreto Presidencial nº 1666/02, mediante o qual se iniciou o processo de regularização da posse da terra nos assentamentos urbanos populares.
É importante destacar que o artigo 82 do texto constitucional reconhece o direito a uma moradia adequada como parte do Capítulo “Dos Direitos Sociais e das Famílias” e reconhece os elementos deste direito definidos pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em seu comentário geral nº 4, datado de 1991, sobre o qual já se mencionou.
São sete aspectos considerados: segurança jurídica da posse; disponibilidade de serviços, materiais, facilidades e infraestrutura; gastos suportáveis; habitabilidade; acessibilidade; lugar e adequação cultural.
O objeto do Decreto nº 1666 foi de iniciar o processo de regularização da posse da terra em bairros e urbanizações populares urbanas do país, e submeter à consulta pública o anteprojeto de lei que regeria a matéria[25] e os CTU foram a forma de organização adotada para este fim. Segundo o artigo 1º, o aludido decreto tem por objeto dar início à participação protagonista das comunidades organizadas, com o fim de regularizar a posse das terras urbanas em urbanizações populares, através de uma devida coordenação interinstitucional.
Nesse sentido, o artigo 3º, inciso I, contempla a criação dos Comitês de Terra Urbana para iniciar o processo de regularização da posse da terra.
Conforme estabelecido pelo próprio decreto, a Oficina Técnica Nacional (OTN), instância vinculada à Vice Presidência da República, tem entre suas funções, estimular a participação cidadã mediante a criação dos indigitados Comitês, realizar a inscrição e registro das informações necessárias sobre os CTU, adiantar procedimentos de coordenação interinstitucional e social necessários para a regularização da posse da terra, reunir e estudar a informação sobre a situação da propriedade e posse da terra em bairros e urbanizações populares, assim como levar a cabo o processo de consulta pública do anteprojeto de Lei de Regularização da posse da terra nos assentamentos populares, que estava para ser votada pelo congresso[26].
Este processo de regularização da posse da terra urbana está associado à legislação que regula a posse tanto dos terrenos públicos como das terras de propriedade privada.
Desse modo, ainda que o Decreto 1666 abrisse a possibilidade de iniciar o processo de regularização da terra dos assentamentos populares localizados em terrenos de propriedade do Estado, as negociações realizadas sobre as terras privadas se regiam pelo Código Civil, sendo certo que, para que se procedesse ao processo de regularização dessas propriedades exigia-se a promulgação de uma lei especial.
Contudo, no ano de 2006, sobreveio a lei especial, a qual, inclusive o Decreto nº 1666 fazia menção – Lei Especial de Regularização Integral da Posse da Terra dos Assentamentos Urbanos Populares de 17 de julho de 2006 – através da qual possibilitou-se a regularização fundiária tanto de propriedade privada como de propriedade pública.
Por outro lado, é importante mencionar que além do fato de que a situação jurídica da terra pode variar de um município a outro, as opções para superar as dificuldades jurídicas também variam entre eles de acordo com as normas que tenham aprovado para regular os processos.
Em agosto de 2004, o Presidente da república anunciou a criação da Missão Moradia e em novembro do mesmo ano os CTU apresentaram sua proposta a esta nova Missão social do governo. Aludida proposta foi produto de um debate nacional que também serviu para fortalecer os espaços de articulação dos CTU com as “paróquias”[27], os municípios, as regiões do país em geral. O elemento fundamental destra proposta foi a compreensão do processo de regularização da posse da terra como um processo integral que implica a regularização jurídica, urbanística e física.
A regularização jurídica implica a propriedade da terra. A regularização urbanística se refere ao estabelecimento, por consenso, das normas de convivência que respeitam as particularidades, a idiossincrasia de cada comunidade e cada bairro, sem que isto signifique deixar de levar em consideração o resto da cidade, apontando para um processo constituinte e ao autogoverno comunitário. O instrumento fundamental deste processo é a Carta de Bairro.
Em síntese, o marco legal existente está orientado a desmontar as dinâmicas de segregação espacial que afeta mais da metade da população urbana venezuelana, ampliar as demandas de uma sociedade mais democrática e equitativa e a satisfazer as demandas de inclusão, de democratização e de equidade.
4.2- Da estrutura e funcionamento dos CTU
A leitura legal institucional dos CTU leva à conclusão de que formalmente devem ser democráticos em sua estrutura e funcionamento. De acordo com os estatutos, os CTU são espaços privilegiados da democracia participativa, já que as decisões importantes, incluindo sua própria constituição, devem ser tomadas em Assembleias de Cidadãos[28].
A Oficina Técnica do Município os define como: “modelos de organização horizontais e autônomos que têm como objetivo realizar todas as atividades para lograr a aquisição do título da terra de um setor ou comunidade e buscar soluções de problemas de tipo urbano”[29].
Cada CTU trabalha com o propósito de conquistar a regularização da posse da terra, assim como nos processos de tomada de decisões sobre a melhoria integral do bairro ou urbanização popular.
Segundo as diretrizes da Oficina Técnica dos CTU, o âmbito de ação espacial não deve ser maior de 200 famílias, sua estrutura deve ser democrática e seus integrantes devem ser eleitos através de eleições em Assembleias de Cidadãos e cidadãs levadas a cabo nos setores populares.
Os CTU podem definir a estrutura de comissões tais como: a de censo, cadastro, Carta de Bairro, propaganda, recursos, ações comunitárias, relações institucionais ou outras que considerem conveniente para formarem seu efetivo funcionamento alinhado a seus objetivos.
Esta estrutura deve funcionar de forma horizontal e flexível, prestando contas de suas atividades à respectiva Oficina Técnica Nacional. Por outro lado, o processo de tomada de decisões e o cronograma de atividades deve ser discutido e aprovado nas Assembleias de Cidadãos, as quais devem ser realizadas periodicamente e sua convocação deve ser divulgada com cinco de dias de antecedência através dos meios de comunicação que disponha a comunidade[30]
Para cumprir com as funções estabelecidas no decreto, os CTU se organizam nas comissões que consideram necessárias. Segundo o decreto 1666, suas funções são fomentar a discussão e formulação de observações e propostas ao anteprojeto de lei; coletar informações ou inventariar as moradias nos bairros; levantar planos provisionais que permitam identificar os limites geográficos da comunidade e identificar o ordenamento urbanístico espontâneo e histórico dos bairros, o parcelamento e seus usos; fazer uma lista dos membros da comunidade para o fim de elaborar coletivamente um documento de reconhecimento do bairro (Carta do Bairro); e participar no projeto, execução e fiscalização das políticas públicas para a reabilitação integral dos bairros.
Para construir os CTU, se delimita, em primeiro lugar, o território de sua abrangência, conhecido como “poligonal”, a qual se define a partir dos usos, costumes, história e tradição dessa comunidade e não a partir de critérios técnicos.
Considerando que os CTU são um grupo social que conhecem a história de sua comunidade, podem validar as informações levantadas sobre ela e exercer o controle social sobre o processo de regularização da terra.
Ademais, o conhecimento que têm os membros do CTU de sua poligonal é fundamental para o levantamento de informação requerido para completar o processo de regularização da posse da terra. Esta referência a um espaço territorial concreto permite ordenar a participação cidadã em torno do processo de regularização da posse da terra e das atividades associadas a cada poligonal.
Não bastasse, estas reivindicações associadas ao território fazem com que o espaço se converta em um dos elementos que proporciona identidade à pluralidade de habitantes.
Cada poligonal delimitada por cada CTU deve abranger no máximo, 200 famílias, fato que define o âmbito de trabalho dos CTU como o espaço geográfico que contém as 200 famílias correspondentes, podendo cooperar ou coordenar esforços com outros CTU, setores ou subsetores, bairros ou urbanizações populares. A legitimidade dos CTU é dada por sua criação na Assembleia de Cidadãos, com a participação de, pelo menos, 50% das famílias que formam a poligonal correspondente.
Aliada à identidade territorial, a Carta de Bairro, que deve ser elaborada pelo CTU, expressa a identidade sociocultural daquele comitê, pois nela se reconhece a história do bairro, desde sua fundação e da comunidade que ali se estabeleceu, sua idiossincrasia e tradições, assim como as normas de convivência pactuadas coletivamente por essa comunidade. O valor político da Carta do Bairro advém do fato que, além de dotá-lo de uma identidade comum, o acordo que estabelece a comunidade em torno a estas normas mínimas de convivência compromete todos os membros em prol de um projeto coletivo[31].
5- INCLUSÃO SOCIAL E RECONHECIMENTO COMO SUJEITOS DE DIREITO: LUTA PELO DIREITO À CIDADE
Na atualidade, as demandas de regularização da posse da terra e de uma moradia digna ou adequada expressam o reclamo dos setores populares do direito a “viver na cidade”, entendo-se como um pleito para que sejam reconhecidos como cidadãos e, portanto, como sujeitos de direito.
É assim que a luta pela terra não é tão somente uma demanda de caráter reivindicativo, senão de um direito, o que a transforma em uma demanda política[32].
Por sua vez, este conteúdo político guarda relação com o fato de que os setores populares são e se consideram os excluídos da cidade e, portanto, constroem sua identidade em torno do direito à cidadania.
Considerando que o estatuto da cidadania foi reconhecido e incorporado pela Constituição de 1999, suas demandas vão mais além da inclusão na cidade, tendo em vista que reivindicam a diversidade cultural e o direito a serem reconhecidos e a construir a cidade coletivamente dentro de uma visão plural onde todos caibam; isto é reivindicam o direito à moradia, e a moradia sob novas formas ou modelos de cidade que requerem uma construção coletiva e plural.
Nas lutas dos CTU se expressa também uma identidade de classe, porquanto é justamente na condição de classe excluída onde reside o elemento de identidade do sujeito popular denominado CTU, que, ao ter sido excluído da cidade formal, foi obrigado a construir seu próprio habitat.
Desse modo, coforme já explicitado, a luta por uma moradia digna se transforma na luta pelo exercício de um direito político como é o direito à participação e, em última instância, o direito a se inserir nos assuntos da cidade. Cabe destacar que este tipo de participação pretende resgatar a forma de vida própria dos setores populares, o que significa que:
“(…) ao contrário da premissa segundo a qual nossos bairros devem ser urbanizados, e não contam com ordenação urbanística, se reconhece que expressam um esquema básico e primário de ordenação do espaço e de urbanismo, assim como uma idiossincrasia própria que devem ser respeitados e considerados e, inclusive, devem ser o ponto de partida em toda intervenção urbanística”[33].
Os CTU reivindicam o bairro como uma forma legítima de vida social e de ocupação do espaço. A regularização integral que propõem questiona o modelo de consolidação de bairros, visto que suas intervenções são parciais e não respondem a diagnósticos integrais, de sorte que a participação das comunidades depende das instituições. Também se questiona o modelo de habilitação física de bairros (política contemplada na Lei do Subsistema de Moradia e Política Habitacional de 2000), pois, conforme a proposta dos CTU à Missão Moradia:
“Dá-se ênfase aos aspectos financeiros e privilegia-se os aspectos construtivos sobre as outras dimensões próprias da vida e necessidades dos bairros, não reconhece o acervo e identidade dos assentamentos urbanos populares, impondo uma visão tecnocrática e alheia ao bairro, favorece a intermediação administrativa, política e técnica, relegando na prática as comunidades a convalidar as decisões de outros(…)”[34]
Através da reivindicação cultural do modo de vida do bairro, os CTU, em conjunto com outros setores populares, advogam por uma democracia da diferença ou de igualdade complexa, isto é, pela “igualdade de oportunidades para afirmar a diferença e proteger-se contra mecanismos de exclusão social e discriminação cultural”[35], independentemente das causas de tal exclusão.
Os Comitês de Terra Urbana propõem inserir a obrigatoriedade de sua participação, na legislação referente às políticas públicas em matéria de moradia e habitação, nos espaços de decisão, e portanto de poder, de modo a materializar a corresponsabilidade na definição das políticas do governo, fazendo com que este incorpore as prioridades dos CTU e adote a proposta de transformação integral como uma política coerente de Estado, que transcenda as políticas de habitação dos governos anteriores.
É preciso destacar que a perspectiva de direitos não descarta a existência de algum tipo de vinculação com o Estado como garante dos direitos, senão que reconhece a responsabilidade deste e da sociedade na gestão das políticas sobre direitos humanos em geral, e sobre o direito à moradia em particular.
Concebida assim a participação, os CTU demandam, além do direito a uma moradia adequada, serem corresponsáveis com o Estado na gestão desta política e não meros beneficiários de um programa.
Por esta razão, os CTU não se definem como autônomos pelo simples fato de serem não governamentais, mas por sua relação que mantém com o Estado. Demandam a valorização da titularidade da posse da terra que está associada à proteção dos indivíduos e das comunidades contra o despejo, e não somente ao valor mercantil da mesma; também demandam o direito à sua cultura e modo de vida e à democratização do solo, que consideram um requisito fundamental não para tornar viável uma política de moradia de alcance maciço, como também um instrumento essencial para lograr o equilíbrio territorial[36].
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas primeiras discussões que deram origem ao decreto nº 1666 e ao anteprojeto de lei que resultou na aprovação da Lei Especial de Regularização Integral da Posse da Terra dos Assentamentos Urbanos Populares de 17 de julho de 2006, se mostrou bastante evidente a dificuldade de regular a transferência da propriedade da terra a seus legítimos possuidores, através exclusivamente de procedimentos administrativos e legais realizados pelo Estado.
A precariedade das provas documentais (os chamados títulos suplementares), em um contexto cultural no qual a transferência dos imóveis se faz por meios informais e os contratos são celebrados através de acordos verbais, exigia que qualquer esforço pela regularização fundiária de assentamentos informais e precários nos bairros passasse pela validação e controle da comunidade.
Por outro lado, a participação comunitária se entendia como meio para garantir a articulação da regularização da propriedade da terra com os processos de ordenação urbana e reabilitação física que devia acompanhá-la. Por último, para fins de 2001, o incremento da tensão política e da crescente mobilização popular, parecia demandar o estímulo da organização social dos setores empobrecidos, base social do governo. Neste contexto se definem os Comitês de Terra Urbana (CTU).
Os CTU, por sua vez, apresentam um conjunto de traços característicos. Em primeiro lugar, sua dimensão territorial. Cada Comitê está contido em um território claramente delimitado, não maior que duzentas famílias, que delineia uma unidade urbana e social. Para isto, a comunidade define seu território ou poligonal (embora pode ser modificada pela Oficina Técnica Nacional para a Regularização (OTN) ou a direção de cadastro respectiva) atendendo ao que os vizinhos percebem como sua comunidade.
Em virtude disso, o âmbito de atuação de um CTU não é só um espaço físico, senão um espaço social e inclusivo, afetivo, definido pela identidade coletiva e as interações cotidianas entre os membros da comunidade. Ambos os fatores favorecem o conhecimento dos CTU sobre seu espaço específico, assim como os processos de participação e autogoverno.
Outra característica é a legitimidade dos CTU, eleitos em assembleias com a participação majoritária dos vizinhos. A delimitação do âmbito em que se elege o CTU tem servido para a promoção de lideranças de escalas muito próximas e arraigadas no cotidiano.
Importante salientar, de igual modo, a respeito da flexibilidade da organização dos comitês.
Por um lado se simplificam os procedimentos para a constituição de um CTU, para facilitar os processos de organização dos setores tradicionalmente alheios a participar nas organizações formais, uma vez que se faz desnecessária a presença de intermediários (partidos, agentes públicos, ONG). Por outro lado, não se prescreve nenhum esquema de organização, de modo que cada CTU se adéqua à idiossincrasia de sua comunidade.
Outro traço relevante é seu caráter autônomo.
Embora os CTU nasçam como resultado de uma política de Estado, e é indubitável o predomínio de atores que simpatizam com a ação de governo (provavelmente pelo apoio com que conta o governo entre estes setores sociais), os CTU contam com um alto grau de autonomia tanto do Estado como dos partidos. A diferença de outras formas de organização recente, que são criadas como parte de programas institucionais e inclusive dependem, em muitos casos, funcionalmente de determinada agência governamental, os CTU funcionam independentes das Instituições.
De qualquer modo, um dos fenômenos políticos destes anos mais interessantes e menos considerados é a tensão participação-solidariedade e independência-conflito que se dá em relação aos setores mobilizados e as instituições governamentais.
Uma última característica se refere à especificidade funcional dos CTU.
Nos últimos anos a ação política se tem deslocado de organizações que assumem interesses abstratos e universais, à formas de organização em torno de interesses imediatos e específicos, mas não por isso menos políticos. Lutas que antes pareciam reduzir-se à esfera meramente reivindicativa (tradicionalmente vista com desprezo pelos ativistas políticos), agora adotam prontamente conteúdos e modos de expressão políticos.
A luta pela água se tem convertido na luta de como se distribui os serviços e qual é o papel do Estado em sua prestação, as lutas salariais tornam-se mobilizações pelo trabalho e contra o modelo econômico, etc. No caso recente da Venezuela, tem prosperado, sobretudo, as formas de organização que respondem a demandas e objetivos específicos (mesas de água, comitês de saúde, cooperativas, CTU), enquanto declinam velhas formas de intermediação política como os partidos, e novas formas de organização relacionadas com interesses difusos e indeterminados, como os círculos Bolivarianos e os Conselhos Locais de Participação, os quais não têm prosperado.
No caso dos comitês de terra, seus objetivos se inscrevem no que em seus próprios debates tem chamado de “regularização integral dos bairros”, o que poderia definir um programa pela democratização da cidade e contra a segregação urbana.
Por todo o exposto, infere-se que os Comitês de Terra Urbana é uma instância efetiva de participação popular nas políticas públicas, de modo a emergir uma verdadeira cogestão com o Poder Público na luta pelo direito à moradia digna e bem assim, em prol da efetivação do direito à cidade.
Informações Sobre o Autor
Alexandre Riginik
Mestrando em Direito Urbanístico pela PUC-SP. Advogado e sócio do escritório Curzio & Riginik Advogados. Presidente da Comissão de Direito Urbanístico da OAB/SP subseção Campinas. Conselheiro do CMDU de Campinas.