O arquivamento do inquérito policial, a atipicidade da conduta e a coisa julgada – a posição do STF

Por votação unânime, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal Determinou o trancamento de ação penal em curso no Superior Tribunal de Justiça contra um Juiz do Tribunal Regional Federal da 2ª Região acusado pela suposta prática dos crimes de formação de quadrilha e estelionato (artigos 288 e 171 do Código Penal). A decisão foi proferida no Habeas Corpus (HC) 108748, na qual a defesa se insurgia contra o recebimento de denúncia que resultou na instauração da Ação Penal 425 no STJ. Segundo o relator do habeas corpus, Ministro Ricardo Lewandowski, o objeto dessa ação penal era o mesmo do Inquérito 333, arquivado, em 2008, por determinação do Ministro Felix Fischer, do STJ, a pedido do Ministério Público Federal. A decisão pelo arquivamento reconheceu a atipicidade da conduta imputada ao juiz, depois de uma investigação de seis anos, durante a qual houve duas quebras dos sigilos fiscal, bancário e telefônico. Naquela ocasião, o MPF concluiu pela ausência de quaisquer provas que pudessem incriminar o desembargador pelo ato a ele imputado: o de ter proferido duas sentenças, supostamente em conluio com um grupo de advogados, para autorizar o levantamento de vultosos valores financeiros, quando titular da 4ª Vara Federal no Espírito Santo. Segundo o voto do Ministro Lewandowski, a decisão de arquivar o Inquérito 333 fez coisa julgada e se aplica a denúncia com relação aos mesmos fatos, ainda que apresentada posteriormente e sob alegação diversa. O inquérito tinha como imputação o crime de falsidade ideológica e quadrilha, mas o suporte fático era o mesmo que embasava a ação penal.

Como se sabe, o inquérito policial não pode em nenhuma hipótese ser arquivado pela autoridade policial (art. 17, CPP). Depois de arquivado, a autoridade policial somente poderá proceder a novas diligências a partir de outras provas noticiadas (art. 18). Aliás, segundo o Supremo Tribunal Federal, “por imperativo do princípio acusatório, não é possível o juiz determinar de ofício novas diligências de investigação no inquérito cujo arquivamento é requerido.” (HC 82.507/SE – DJU 10.12.2002, p. 766). Neste mesmo sentido, o Ministro Marco Aurélio determinou a remessa dos autos do Inquérito (INQ) 3105 para a Justiça paulista, adotando o entendimento do Procurador-Geral da República pela inexistência de novas provas, após arquivamento de investigação anterior, que permitiriam o andamento das investigações no STF pela suposta prática de crime por parte do então Deputado Federal e atual vice-presidente da República, Michel Temer. Em sua decisão, o ministro ressaltou que o Ministério Público Federal observou que os fatos narrados no inquérito não tinham "suporte mínimo de indícios a justificarem persecução penal, tampouco a prática de qualquer crime por parte do deputado federal Michel Temer". O relator considerou, ainda, a observação feita pelo procurador-geral da República de que as provas colhidas não trouxeram elementos novos a autorizar a reabertura da investigação, arquivada, nos termos do artigo 18 do Código de Processo Penal e da Súmula 524 do Supremo.

Portanto, quando se trata de arquivamento em razão da atipicidade do fato ou da extinção da punibilidade, não é possível o desarquivamento, em razão da coisa julgada material; neste sentido:

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Paciente processado pelos mesmos fatos que foram objeto de inquérito policial arquivado mediante sentença transitada em julgado para a acusação, na qual se declarou a extinção da punibilidade pelo transcurso do prazo decadencial para o ajuizamento de queixa-crime, assentado que se tratava de crime contra as marcas (Lei nº 9.279/96, art. 189), de iniciativa privada (Lei nº 9.279/96, art. 199). Prevalência do direito à liberdade com esteio em coisa julgada sobre o dever estatal de acusar. Segurança jurídica.” (STF – 1ª T.- HC 94.982 – rel. Cármen Lúcia – j. 25.11.2008 – Dje 08.05.2009).

Se a curadora da vítima manifestou desinteresse na representação criminal e sobreveio decreto de extinção da punibilidade, que transitou em julgado, não pode ser acolhido o pleito de desarquivamento do termo circunstanciado, formulado após o decurso do prazo decadencial do direito de representação” (TJDF – 2ª T – Recl. 2007.00.2.012300-0 – rel. Romão C. Oliveira – j. 14.08.2008 – DOE 10.09.2008).

Aliás, entendemos, inclusive, que o mesmo raciocínio deve ser observado quando se tratar de arquivamento determinado em razão de uma causa excludente de ilicitude ou de culpabilidade.

Neste sentido, depois do voto-vista do Ministro Joaquim Barbosa pelo deferimento do Habeas Corpus (HC) 87395, novo pedido de vista, desta vez do Ministro Ayres Britto, interrompeu o julgamento do caso, em que se discute a possibilidade do desarquivamento de inquérito policial e posterior oferecimento de denúncia. O processo foi arquivado em razão do reconhecimento de legítima defesa e estrito cumprimento do dever legal, excludentes de ilicitude contidas no artigo 23, do Código Penal. Os Ministros decidiram, contudo, suspender o curso da ação até a decisão final da Corte. O julgamento teve início no Plenário do STF em novembro de 2009, quando o relator, ministro Ricardo Lewandowski, votou no sentido de deferir em parte o pedido, apenas para anular o recebimento da denúncia “que poderá ser repetida, se for o caso, depois da realização de novas investigações por meio competente inquérito policial no prazo previsto em lei”. O relator disse, na ocasião, que seria possível, neste caso, que a excludente de ilicitude não tenha ocorrido e que eventual fraude na condução do inquérito tivesse induzido o Ministério Público a pedir o seu arquivamento. No entanto, o ministro analisou que, “em face dos novos elementos de convicção colhidos pelo Ministério Público mostra-se admissível a reabertura das investigações nos termos do artigo 18, do CPP”. Ainda segundo o relator, "mostra-se admissível a abertura das investigações" pois "o arquivamento do inquérito não faz coisa julgada nem causa a preclusão, eis que se trata de uma decisão tomada rebus sic stantibus, ou seja, enquanto as coisas permanecerem como estão”. O Ministro ressaltou, na ocasião, que quando o arquivamento se dá por atipicidade do fato, a superveniência de novas provas relativamente a alguma excludente de ilicitude admite o desencadeamento de novas investigações. Para o ministro Joaquim Barbosa, o ponto central em debate nesta habeas corpus é saber se o arquivamento de um inquérito com base em excludente de ilicitude ou por atipicidade corresponde a coisa julgada. E quanto a esse aspecto, o ministro divergiu do relator, para quem esse tipo de arquivamento não faz coisa julgada. Ao arquivar o caso por legítima defesa, o julgador confirmou não se tratar de crime, frisou Barbosa. Este tipo de arquivamento está pautado na inexistência de crime e não em insuficiência ou ausência de provas para apresentação da denúncia, acrescentou o ministro. Como havia provas nos autos, não se trata de mero encerramento de investigações improfícuas, mas sim uma decisão de mérito, resumiu Joaquim Barbosa, citando precedentes da Corte e votando no sentido de conceder a ordem para determinar o arquivamento da ação penal. Ainda em 2009, o ministro Marco Aurélio votou em sentido contrário ao relator, portanto favorável ao trancamento da ação penal a fim de que não haja “revisão criminal contrária”. Para ele, “não há como reabrir a via da repercussão penal sob pena de insegurança jurídica”.

É cediço que o arquivamento a ser requerido ao Juiz pelo membro do Ministério Público deve ser expresso e devidamente fundamentado, salvo se se tratar de investigado com prerrogativa de função junto ao Supremo Tribunal Federal ou ao Tribunal de Justiça. Neste sentido, o Ministro Celso de Mello acolheu proposição da Procuradoria Geral da República e determinou o arquivamento do Inquérito (INQ) 3056 em relação a um Deputado Federal. A decisão ressalva a possibilidade de reabertura das investigações penais caso haja provas substancialmente novas. Em sua manifestação, a PGR informou ao ministro, relator do inquérito, que todas as diligências deferidas por ele foram executadas, e não foram constatados indícios da prática de crime que possa ser investigado pelo STF. Assim, requereu a devolução dos autos ao juízo de origem (20ª Vara Criminal da Comarca do Rio de Janeiro) para que prossiga a investigação em relação aos demais envolvidos.Ao decidir, o ministro Celso de Mello esclareceu que, na ausência de elementos que justifiquem o oferecimento de denúncia contra o parlamentar, o STF “não pode recusar o pedido – deduzido pelo próprio chefe do Ministério Público da União – de que os autos sejam arquivados”.


Informações Sobre o Autor

Rômulo de Andrade Moreira

Procurador de Justiça no Estado da Bahia. Foi Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). É Coordenador do Curso de Especialização em Direito Penal e Processual Penal da UNIFACS. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador-UNIFACS (Curso coordenado pelo Professor J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais e do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e ao Movimento Ministério Público Democrático. Integrante, por duas vezes consecutivas, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação da Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, do Curso JusPodivm e do Curso IELF. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal”, “Comentários à Lei Maria da Penha” (em co-autoria com Isaac Sabbá Guimarães) e “Juizados Especiais Criminais”– Editora JusPodivm, 2009, além de organizador e coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, Editora JusPodivm, 2008. Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados na Bahia e no Brasil.


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