Aspectos negativos da abordagem positivista da história do direito: a linearidade e seus reflexos para o mundo jurídico atual

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Resumo: O presente artigo pretende abordar a problemática da abordagem histórico-jurídica pela Escola Positivista. Trata-se de abordar a partir da leitura de algumas obras de Michel Foucault, Norberto Bobbio, António Manuel Hespanha e de Ricardo Marcelo Fonseca e da análise dos pressupostos epistemológicos da referida corrente de pensamento, quais os reflexos trazidos para os dias de hoje na forma de analisar a historiografia jurídica, analisando principalmente a linearidade quanto à análise dos fatos histórico-jurídicos. Para tanto, utilizaremos a preceptiva metodológica histórico-jurídica. Traremos algumas reflexões sobre o tema fazendo-se algumas críticas a seu respeito e ao fim apontaremos possíveis soluções para o problema, tomando como ponto de partida algumas lições de Michel Foucault.

Palavras-chaves: positivismo, abordagem historiográfica-jurídica, pressupostos epistemológicos, linearidade, problemas, possíveis soluções.

Abstract: This article seeks to address the issue of legal-historical approach by the Positivist School. It is addressed from the reading of some works of Michel Foucault, Norberto Bobbio, Antonio Manuel Hespanha and Marcelo Ricardo Fonseca and analysis of the epistemological assumptions of that school of thought, which brought the reflections for today in the form analyzing the legal historiography, especially considering how to assess the linearity of historical and legal facts. For this purpose, we use the historical-methodological preceptive law. We will bring you some thoughts on the subject by asking yourself some criticism about it and the end point to possible solutions to the problem, taking as its starting point a few lessons from Michel Foucault.
Keywords: positivism, legal-historiographical approach, epistemological assumptions, linearity problems, possible solutions.

Sumário: 1. Da localização histórica do positivismo. 2. O positivismo histórico e seus pressupostos epistemológicos. 3. Os problemas da abordagem positivista. 4. A linearidade e suas consequências para o mundo jurídico atual. 5. Reflexões críticas e possíveis soluções para as falhas da abordagem positivista da historiografia-jurídica. Considerações finais. Referências.

1. LOCALIZAÇÃO HISTÓRICA DO POSITIVISMO-

Apesar do fato da Escola positivista ter tido seu surgimento a partir das reflexões do Filósofo Francês Augusto Comte, mais precisamente no século XIX, é fato que tal corrente de pensamento, juntamente com seus pressupostos epistemológicos, influenciaram e tornaram-se os “pilares” da Ciência Moderna, estando presente na análise das “ciências jurídica”.

Segundo o professor Ricardo Marcelo Fonseca

“Para maior compreensão do positivismo é necessário frisar, já de saída, que se trata de uma corrente de pensamento tipicamente oitocentista. Por ser uma teoria do sec. XIX significa, em primeiro lugar, dizer que se trata de uma reflexão que se dá num ambiente liberal (ou que assim vai se tornando progressivamente) e pós-revolucionário."

Isto significa que é um século em que a burguesia, já instalada na ordem econômica, passa a ter hegemonia política, sendo também uma época de enormes avanços científicos, principalmente na área das “ciências humanas”, época de grande otimismo, tendo-se a crença na capacidade humana de se fazer uma ciência pura. Embora as severas críticas sofridas atualmente, representou o positivismo à época uma instigante novidade metodológica.

2. O POSITIVISMO HISTÓRICO E SEUS PRESSUPOSTOS EPISTEMOLÓGICOS

Antes de adentrar na análise dos pressupostos epistemológicos do Positivismo Jurídico, convém salientar que o positivismo incidiu no âmbito filosófico, sociológico, histórico e jurídico de forma assimétrica, ou seja, embora tenham uma mesma raiz epistemológica, divergem no que tange à abordagem, de forma que podemos identificar um positivismo sociológico, capitaneado por Émile Durkheim, um positivismo jurídico, difundido pela Escola da Exegese, conforme ensinamentos do filósofo italiano Norberto Bobbio (1995, p.30), um positivismo filosófico de Augusto Comte.

Seguindo uma tendência externada pelo professor Ricardo Marcelo Fonseca[1] (FONSECA, 2011, p.42), trataremos como positivismo histórico aquele tipo de conhecimento difundido por Leopold Von Ranke, corrente de pensamento esta que encerra uma base epistemológica em comum entre o positivismo filosófico e o histórico, tendo uma forma simétrica de se aproximar do conhecimento e de captar o objeto.

Ultrapassada as considerações acima explicitadas, passemos a analisar os pressupostos epistemológicos do Positivismo Histórico.

O historiador Leopoldo Von Ranke, formulou alguns postulados teóricos da “história científica”, proposições estas que se tornaram terreno fértil para parte da produção historiográfica dos séculos seguintes.

Segundo uma leitura dada por Martin e (BOURDÉ, s/d, p.114), Ranke sistematizou como pressupostos do Positivismo na História os seguintes postulados:

O primeiro postulado trazido por Ranke diz que “não há nenhuma interdependência entre o sujeito conhecedor e o objeto do conhecimento; por hipótese, o historiador escapa a qualquer condicionamento social, o que lhe permite ser imparcial na percepção dos acontecimentos”.

O presente postulado nos traz a ideia de uma verdadeira separação entre sujeito e objeto. Prega a utilização do princípio da “neutralidade axiológica”, de forma que o objeto, ou seja, aquilo pelo qual se deve prestar atenção em relação ao conhecimento histórico, os fatos históricos, devem escapar a qualquer condicionamento social, por parte do historiador, dessa forma garantindo-se a imparcialidade.

Como segundo postulado reza que “a história existe em si, objetivamente, tem mesmo uma dada forma, uma estrutura definida que é diretamente acessível ao conhecimento”.

Observa-se aqui, que para o positivismo, a história existe por si só, e que o passado histórico a ser reconstruído existe independente da percepção dada pelo historiador.

Em sua segunda parte o referido pressuposto nos remete ao fato de que o conhecimento é representação do real, podendo ser perfeitamente captadas pelo saber.

Defende-se aqui que sendo o conhecimento histórico representação do real, como fora dito linhas acima, e sendo este conhecimento objetivo, o historiador para a corrente positivista, tem a capacidade de “espelhar” o passado histórico de modo fiel.

O terceiro postulado nos revela que “a relação cognitiva é conforme um modelo mecanicista”. O historiador registra o fato histórico de maneira passiva, como o espelho reflete a imagem do objeto.

Temos aqui nítida manifestação da “teoria do reflexo” idealizada por Ranke, e que defende a ideia do historiador desempenhar uma função mecânica, quando da análise do seu objeto de estudo, ou seja, o passado histórico. Segundo o professor Ricardo Marcelo Fonseca, ( 2011, p.52)

“O historiador não deve “recriar” a paisagem que lhe está adiante (o passado), mas, pelos passos metodológicos aconselhados, fazê-lo refletir fielmente, fazer com que a realidade se apresente e tudo isto sem a interferência subjetiva, sem a interferência dos valores do historiador”.

Como quarto e último postulado epistemológico, temos que “incumbe ao historiador não julgar o passado nem instruir seus contemporâneos, mas simplesmente dar conta do que realmente se passou”.

Aqui se defende a ideia de sob pena de através da pesquisa se formar um conhecimento não científico, deve-se seguir ao máximo os passos metodológicos da radical separação entre sujeito e objeto, aplicando-se a teoria da neutralidade axiológica. Denota-se, portanto, que para a corrente positivista, o conhecimento histórico pode refletir a verdade histórica, se a pesquisa não “ceder” às tentações subjetivistas.

Após analisar os pressupostos epistemológicos do positivismo histórico, podemos traçar uma historiografia positivista com características mais ou menos definidas, são elas: Uma história centrada em fatos, e dentre estes fatos, serão os eventos políticos, militares e diplomáticos aqueles considerados com efetiva “dignidade histórica”, com a tendência de privilegiar os grandes acontecimentos e os grandes personagens do passado. Percebe-se que, tudo isso levará à decadência da história cultural, religiosa e social. Pode-se observar que a história positivista será uma história que trará a verdade sobre os fatos históricos, haja vista, separar-se sujeito e objeto, produzindo um conhecimento objetivo, sem qualquer influxo de subjetividade, o que contaminará o objeto, invalidando a pesquisa.

Uma vez traçados os pressuposto axiológicos do positivismo histórico, iremos abordar alguns problemas da abordagem positivista da história.

3. OS PROBLEMAS DA ABORDAGEM POSITIVISTA

No presente tópico iremos tecer algumas críticas que são feitas à abordagem positivista da história idealizado por Ranke. Assim, apontaremos os problemas tidos pelo professor Ricardo Marcelo Fonseca (2011, p.58) como centrais: o modo pouco matizado como se dá a relação sujeito-objeto; o pressuposto lógico no conhecimento; o excessivo valor dado ao evento singular na sua abordagem, com as consequências que daí derivam.

Para a corrente positivista, a relação sujeito-objeto é analisada de forma excessivamente linear e simplista, demonstrando paradoxalmente, que na verdade não se encara de forma séria tal problema. Por escapar desse dilema, o positivismo pode ser considerado uma espécie de dogmatismo(HESSEN, 1999, p.29-30), pois como teoria do conhecimento, o dogmático ignora o difícil problema do conhecimento. Tal problema não é tratado pelo positivismo, haja vista, ter o objeto existência própria, podendo ser apreendido pelo sujeito, no caso o historiador, de um modo completo e definitivo de modo a refletir como o passado histórico realmente foi.

Porém, conforme leciona o professor António Manuel Hespanha (1982, p.7),

“As coisa se apresentam de um modo um tanto mais complexo. Afinal, o passado histórico não se apresenta como um espetáculo diante de um observador submisso e neutro, mas, implica, até certo ponto, numa construção do próprio sujeito”.

O referido autor, ao tratar da questão epistemológica em comento, capitaneia a ideia de que a primeira estratégia a ser adotada (HESPANHA, 2003, p. 24).

“Deve ser a de instigar uma forte consciência metodológica no meio dos historiadores do direito, problematizando a concepção ingênua segundo a qual a narrativa histórica não é senão o relato a-problemático, corrido e fluido daquilo que “realmente aconteceu”. Porque de facto, os acontecimentos históricos não estão aí, independentes do olhar do historiador, disponíveis para serem descritos. Eles são criados pelo trabalho do historiador, o qual seleciona a perspectiva, constrói objetos que não têm uma existência empírica “.

O segundo dos problemas trazido à baila diz respeito à neutralidade axiológica do historiador diante de seu objeto, ou seja, o passado histórico. Para a corrente positivista tal problema é de fácil resolução, vez que, dentre seus pressupostos temos a radical separação do sujeito e do objeto, sendo ambas as realidades facilmente distinguíveis e separáveis para efeitos do processo cognitivo. Podemos, segundo tal corrente de pensamento apartar a objetividade dos fatos da subjetividade dos valores, centrando a efetiva ciência, nos fatos e seu caráter objetivo.

Observa-se, no entanto, que não é tão simples assim superar tal problemática, vez que, segundo Boaventura de Souza Santos (2000) temos de um lado a objetividade, meta que deve ser perseguida por todo pesquisador, e de outra banda a neutralidade, meta esta impossível de ser atingida nos moldes positivistas.

Dessa forma, o pesquisador ao escolher o problema de pesquisa, escolhe os métodos e modos de exposição, quebra a regra dos cientistas sociais positivistas, da objetividade intocada do objeto de saber, tornando insustentável a ideia de produção de um conhecimento totalmente asséptico e livre de qualquer juízo de valor ou ideologias. Como defendia Foucault[2] ao tratar das relações entre poder e saber, demonstrando que, parafraseando o professor Ricardo Marcelo Fonseca (2011, p.60), o conhecimento é fruto de um complexo processo, no qual o sujeito interfere decisivamente na construção de resultado final de uma pesquisa científica.

No que tange ao terceiro problema, consubstanciado no excessivo valor dado ao evento singular na sua abordagem trará para tal abordagem da história consequência prejudiciais, vez que sendo a subjetividade, ou seja, as indagações sobre os motivos das escolhas de determinados fatos e da preterição de outros fatos, colocada de lado, teremos um conhecimento presentista e retrospectivo. Nas palavras do professor António Manuel Hespanha (1993, p.51), essa forma de abordar a historia é caracterizada por “projectar sobre o passado categorias sociais e mentais do presente, fazendo do devir histórico um processo (escatológico) de preparação da actualidade”.

 Tal fato traz como consequência direta a redução da realidade histórica a um encadeamento de fatos. A história passa a ser vista como uma sequência linear e harmônica de fatos, criando-se assim uma lógica de exclusão de todas as perspectivas históricas, ocorridas ou frustradas, que ficaram à margem do encadeamento de fatos eleitos. Cria-se um conhecimento histórico próprio do historiador que escolheu, analisou e redigiu tal história, e que não pode ser dissociada de todo um código de valores e de preocupações teóricas (FONSECA, p.61).

Sobre tal problemática assevera (HESPANHA, p. 21-22),

“o presente é imposto ao passado; mas, para além disso, o passado é tornado prisioneiro de categorias, problemáticas e angústias do presente, perdendo sua própria espessura e especificidade, a sua maneira de imaginar a sociedade, de arrumar os temas, de pôr as questões e de as resolver”.

Convém salientar, que uma vez, escolhidos os fatos pelo historiador positivista, este não precisar motivar sua escolha, e como nenhuma época histórica não pode ser abordada em sua totalidade pelo conhecimento, o critério de escolha positivista preencherá nossa visão sobre tal época, não deixando espaço para que seja optado outro caminho senão o da linearidade.

Como leciona (HESPANHA, p. 21)

Esta teoria do progresso linear resulta frequentemente de o observador ler o passado desde a perspectiva daquilo que acabou por acontecer. Deste ponto de vista, é sempre possível encontrar prenúncios e antecipações para o que se veio a verificar. Mas normalmente perde-se de vista tanto as outras virtualidades de desenvolvimento, como as perdas que a evolução que se veio a verificar originou”.

4. A LINEARIDADE E SUAS CONSEQUENCIAS PARA O MUNDO JURÍDICO ATUAL

Uma abordagem linear, típica do positivismo, acaba por resultar em uma série de consequências maléficas teóricas e práticas que não são desprezíveis. Passemos a trata sobre elas.

Tais consequências são acentuadas por (HESPANHA, p. 18-19), que nos lembra que além do procedimento positivista distanciar-se do passado que é seu objeto de estudo e aproximar-se da lógica do presente, a historiografia jurídica positivista serve de combustível para uma glorificação da positividade vigente. Tal fenômeno ocorre de duas formas. Primeiro, tal história do direito cumpre um papel legitimador do direito presente ao pretender provar que determinadas características do discurso jurídico – como Estado, família ou o princípio de que os contratos devem ser cumpridos ponto por ponto – pertencem à natureza das coisas. Os institutos contemporâneos são assim naturalizados e tidos como o resultado da tradição. Os conceitos adquirem validade transtemporal por serem legitimados pela tradição. A história, em suma, torna-se a justificadora do presente através de uma suposta demonstração de que o presente foi o caminho natural do processo histórico (FONSECA, p. 63).

A segunda consequência da linearidade histórica, adotando uma concepção evolucionista da história do direito, retrata tal instituto como sendo algo que conduz ao progresso jurídico. Afinal, “também o direito teria tido a sua fase juvenil e rudeza. Contudo, o progresso da sabedoria humana ou as descobertas de gerações sucessivas de grandes juristas teriam empurrado o direito, progressivamente, para o estado em que se encontra hoje; estado que, nessa perspectiva da história representaria um apogeu” (HESPANHA, p. 19).

Duas linhas temáticas reforçam bem a ideia de glorificação da positividade vigente, são elas a “história das fontes” e a “história da dogmática”, a primeira concepção prega que o passado jurídico é formado exclusivamente por aquilo que o legislador faz, e a segunda concepção prega que o passado jurídico é formado por aquilo que os doutrinadores fazem, desprezando-se os demais aspectos da vida social.

Como bem observa (HESPANHA, p. 12)

“por detrás de tais posturas está embutida, em verdade, uma noção do que é o direito: enquanto que a história restrita das fontes vislumbra o direito como um sistema de normas, a história restrita da dogmática o concebe como um sistema de valores, de modo que o direito é uma ordem constituída e perfeita antes mesmo de sua aplicação e/ou interpretação, já que este campo é impertinente e dispensável para a história do direito”.

Tal forma de conceber o fenômeno da história, conforme fora acima explanado, leva ao anacronismo, vez que só podemos considerar que o direito se reduz a uma mera sequência legislativa, como prega a história das fontes, se ignorarmos o fato de que a cerca de duzentos anos, ou seja, no início da Revolução Francesa, com o advento do movimento capitaneado por Napoleão Bonaparte, chamado Movimento Codificador, foi que a Lei passou a ocupar o local de destaque que hoje almeja (GROSSI, 1992).

Segundo Leciona (FONSECA, p. 65)

“quando ignoramos que ao assim concebermos, projetamos as nossas misérias presentes (o nosso legalismo e estatalismo do direito) para todo o passado, como se este passado não fosse muito mais rico do que a limitada imaginação jurídica monista vigente”.

As linhas temáticas acima abordadas, ao utilizar-se de uma abordagem que induz ao anacronismo, não levam em consideração as profundas especificidades do passado, que não pode ser considerado, parafraseando o professor Ricardo Marcelo Fonseca, como um presente imperfeito, ou um presente ainda não completo. Convém trazer à colação uma expressão de Hespanha (s/d, p. 36), que leciona que essa forma de atemporalismo do direito precisa ser enquadrado na história: é preciso historicizar a história do direito.

5. REFLEXÕES CRÍTICAS E POSSÍVEIS SOLUÇÕES PARA AS FALHAS DA ABORDAGEM POSITIVISTA DA HISTÓRIOGRAFIA-JURÍDICA

Podemos constatar ao longo do presente trabalho que a continuidade, a linearidade e o anacronismo, são os principais problemas da abordagem positivista da historiografia-jurídica, para discorrer sobre o presente tópico traremos à colação alguns ensinamentos do filósofo francês Michel Foucault, estudioso este que muito nos tem a dizer sobre o tema e que aponta possíveis soluções para o problema. Impende salientar que em Foucault não encontramos um método de trabalho, como podemos nos positivistas e nos marxistas, mas sim trilhas, pistas e indícios de um modo de operar. Nas palavras de (RAGO, p. 256-257)

“Encontra-se uma defesa declarada da História, ao longo de sua obra, uma tentativa de oferecer-lhe saídas, uma proposta de autonomização, visando libertá-la de um determinado conceito de História que implica procedimentos envelhecidos e cristalizadores, presos às ideias de continuidade, necessidade e totalidade e à figura do sujeito fundador”.

Uma das soluções, e a nosso ver uma de maior importância é a descontinuidade, a ruptura, categoria esta defendida por Foucault, e de estranheza sem igual para os adeptos da Escola Positivista e que vai de encontro com a abordagem linear dos institutos históricos, pois segundo o referido autor (2000, p. 5),

“A história de um conceito não é, de forma alguma, a de seu refinamento progressivo, de sua racionalidade continuamente crescente, de seu gradiente de abstração, mas a de seus diversos campos de constituição e de validade, a de suas regras sucessivas de uso, a dos meios teóricos múltiplos em que foi realizada e concluída sua elaboração”.

A descontinuidade, que por anos foi relegada ao esquecimento, é apontada por Foucault como “antídoto” para curar o mal da linearidade, e segundo o professor Ricardo Marcelo Fonseca (2011, p. 123) utilizando-se das palavras de (FOUCAULT, s/d, p. 10 e ss), assume um tríplice papel na análise histórica, o de passar a ser uma operação deliberada do historiador, que distingue os níveis de análise, os métodos que são adequados a cada um e as periodizações que lhes são convenientes; A descontinuidade passa a ser o resultado da descrição do historiados, que passa a buscar os limites e os pontos de inflexão do processo; A descontinuidade passa a ser um conceito sempre explicitado, que assume forma e função específicas de acordo com o domínio questionado.

Tomando as palavras de (FOUCAULT, s/d, p. 10 e ss.), a descontinuidade passa a ser “ao mesmo tempo instrumento e objeto de pesquisa, delimita o campo de que é efeito, permite individualizar os domínios”. As diversas áreas do conhecimento passam a serem vistas de forma delimitada, passando a ser dotadas de historicidades social, econômico e cultural, cada qual com seu solo histórico delimitado. Conforme assevera Ricardo Marcelo Fonseca (2011, p. 123) “tudo isto torna temerária a atitude daquele que homogeiniza o passado sob a tábula rasa dos condicionantes do presente – tão radicalmente diversos daquilo que se observa no passado”.

Além da defesa da descontinuidade, podemos elencar uma série de contribuições essenciais de Foucault ao conhecimento histórico, dentre elas: Um questionamento eloquente ao estatuto do real. Aqui se rompe com a ideia positivista de que o historiador com uma intervenção mecânica poderia apreender a realidade, que já existe independente do sujeito, afinal de contas de contas há o questionamento do que é o real a ser analisado pelo conhecimento histórico? Para Foucault o real será a afirmação que, já num primeiro momento, irá depender de apreciação específica do modo como funciona cada uma das regras de produção de conhecimento que presidem cada configuração discursiva diferente na história.

Como diz o referido autor no texto intitulado A poeira e a Nuvem (FOUCAULT, 2003, p. 329),

“É preciso desmistificar a instância global do real como totalidade a ser restituída. Não há “o” real do qual se iria ao encontro sob a condição de falar de tudo ou de certas coisas mais “reais” que as outras, e que falharíamos, em benefício de abstrações inconsistentes, se nos restringíssemos a fazer aparecer outros elementos e outras relações. Seria preciso, talvez, interrogar também o princípio, com frequência implicitamente admitido, de que a única realidade a que a história deveria aspirar é a própria sociedade. Um tipo de racionalidade, uma maneira de pensar, um programa, uma técnica, um conjunto de esforços racionais e coordenados, objetivos definidos e perseguidos, instrumentos para alcança-lo etc., tudo isso é algo do real, mesmo se isso não pretende ser a própria “realidade”, nem “a” sociedade inteira. E a gênese dessa realidade, do momento em que nela fazemos intervir os elementos pertinentes, é perfeitamente legítima”.

É bem sabido que, tal atitude teórica desestrutura a ideia positivista de progresso, ou seja, a concepção de que temos na atualidade o ápice da reflexão jurídica, o que rompe com o ambiente teórico ao qual estamos acostumados.

Como contribuição Foucaultiana à história do direito, podemos mencionar a afetação do conceito de verdade de um modo radical. Para o estudioso, só é possível aferir o que é válido ou verdadeiro em determinada época histórica se contextualizarmos tais conceitos aos critérios em que foram forjados. Quebra-se a ideia de eternização de conceitos, muito comum no mundo jurídico atual, onde o operador do direito tende a eternizar conceitos e institutos na tentativa de conferi-lhes estabilidade. Herdamos esta mácula da grande dualidade teórica na abordagem do direito, onde temos de um lado o jusnaturalismo, com sua tendência própria de buscar regras imutáveis para o estabelecimento dos valores jurídicos, e de outra banda o juspositivismo, onde se vislumbra a tentativa dos primeiros codificadores, de fazer o “livro dos livros” que pudesse reunir em um só instrumento todas as necessidades da vida cotidiana.

Como consequência lógica, da contribuição antes explicitada surge outra, qual seja, a tentativa de liberar o conhecimento histórico de toda a tentativa de universalização e totalização.

Para Foucault, os estudos sobre o homem e particularmente a maneira como se funda a análise da história do homem hoje imperante, decorrem das características de um terreno epistemológico muito preciso e delimitado, que teve seu surgimento numa época muito determinada, que ele chama de “era da história” (FONSECA, p. 138),

“No se trata em absoluto de componer uma história global – que reagruparia todos sus elementos em torno a um princípio o a uma forma única -, sino de desplegar más bien el campo de uma historia general em la que se podría describir la singularidade de las práticas, el juego de sus relaciones, la forma de sus dependências. Y es em el espacio de esa historia general em donde se podría circunscribir como disciplina el análisis histórico de las prácticas discursivas”(FOUCAULT, p.65)

Concluindo este tópico do presente trabalho é de salutar pertinência trazer à colação as palavras de Foucault, palavras estas que resumem tudo o que fora dito antes,

“Denunciaremos, então, a história assassinada, cada vez que uma análise histórica – e sobretudo se se trata do pensamento, das ideias ou dos conhecimentos – virmos serem utilizadas, de maneira demasiado manifesta, as categorias da descontinuidade e da diferença, as noções de limiar, de ruptura e de transformação, a descrição das séries e dos limites. Denunciaremos um atentado contra os direito imprescindíveis da história e contra o fundamento de toda historicidade possível” (FOUCAULT, p. 16).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se que atualmente, utilizando-se de uma abordagem positivista, escola teórica de forte influência no mundo jurídico, aquele que se debruça sob o passado jurídico, pode obter respostas das mais diversas. Alguns se utilizam da história do direito com o fito de demonstrar erudição, outros a utilizam para fazer um introito com o objetivo de envaidecer a análise de algum instituto jurídico dogmático, outros se utilizam da história do direito para revelar o verdadeiro sentido da norma, através da chamada intepretação histórica, e com todas essas práticas leva-se a tiracolo a “praga” da linearidade, ocasionando à abordagem histórica algumas distorções. A primeira das distorções ocorre no próprio objeto de reflexão que ao invés de ser fiel ao passado sobre o qual ela deveria se deitar acaba demonstrando uma induvidosa empatia com o presente, como dizia Benjamin (1998, p. 224). O historiador elabora um discurso voltado ao tempo em que é elaborado, distanciado do passado a que pretende analisar. Como leciona Ricardo Marcelo Fonseca (2011, p.113), “a história torna-se um enfeite do estudo, torna-se um ornamento, que no mais das vezes tem o seu lugar garantido na escrita por razões meramente formais derivadas da tradição da escrita acadêmica do direito, mas sem operacionalidade teórica nenhuma”.

Outra distorção perceptível se dá em virtude da apresentação do discurso jurídico como um desenrolar de eventos que desembocarão de modo natural e lógico no presente, demonstrando que os institutos jurídicos atuais são via de mão única a ser percorrida pelos institutos do passado. Através da abordagem o historiador transforma o arcabouço jurídico como o direito mais evoluído, desprezando-se as experiências do passado. Há uma legitimação do direito de hoje imunizando-o de críticas.

Porém podemos agir diferente, podemos ver a história não apenas como uma introdução, um escorço histórico, que após ser utilizado sem critério, perde seu sentido.

Como nos ensina Ricardo Marcelo Fonseca (2011, p. 115),

“Pode-se vislumbrar a história do direito como um saber voltado para o presente, ao invés de fechar-se num passado que só toma sentido em si mesmo. Pode-se encarar o saber encarar o saber histórico-jurídico, sobretudo como instrumento de análise e de compreensão, que respeite a efetiva lógica da mudança, das diacronias e das contradições próprias do passado. Pode-se proceder a uma análise interessada na inserção do direito na sociedade e na tarefa de desvelar o seu sentido na lógica da mudança permanente onde hoje vivemos, fazendo da disciplina um instrumento de crítica e desmascaramento da juridicidade vigente, ao invés de ser dela um parceiro e cumplice, muitas vezes de modo inocentemente ingênuo”.

Para tanto, é preciso uma revolução teórico-metodológica na história do direito, é necessário nos afastarmos das falsas linearidades e continuidades, trazendo para a análise histórica dos institutos jurídicos consequências negativas. Temos que viabilizar meios de enaltecer as diacronias e descontinuidades quando da abordagem histórica do passado jurídico.

 

Referências
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1998.
BOBBIO, Norberto. Positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito. São Paulo: ícone, 1995.
BOURDÉ, Guy; MARTIN, Hervé. As Escolas Históricas. S/I: Publicações Europa América, s/d,.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996; FOUCAULT, Michel. A microfísica do poder. 8ª ed. Tradução de Roberto Machado. São Paulo: Graal, 1989.
_____________. A arqueologia do saber. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
_____________. Ditos & Escritos IV (Estratégia, poder-saber). Tradução de Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Manoel Barros da Motta (Org.). Rio de Janeiro: Forense, 2003. FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução Teórica à História do Direito. 1ª ed. (ano 2009), 2ª reimpr. Curitiba: Juruá, 2011.
GROSSI, Paolo. Assolutismo giuridico e diritto privato. Milano: Giuffré, 1992.
HESSEN, Johannes. Teoria do Conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
HESPANHA, António M. História das Instituições: épocas medieval e moderna. Coimbra: Almedina, 1982.
_____________. Cultura jurídica europeia: síntese de um milênio. 3ª ed. S/1: Europa-América, 2003.
_____________. Justiça e litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993.
_____________. Panorama histórico da cultura jurídica européia. Lisboa: Europa América, 1997.
RAGO, Margareth. Libertar a história. In: RAGO, Margareth; ORLANDI, Luiz B. Lacerda; VEIGA NETO, Alfredo (Orgs.). Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
SANTOS, Boaventura de Souza. Crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000.
 
Notas:.
[2] FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996; FOUCAULT, Michel. A microfísica do poder. 8ª ed. Tradução de Roberto Machado. São Paulo: Graal, 1989.


Informações Sobre o Autor

Paulo Petronilo da Silva Nilo

Professor titular das disciplinas de Direito Penal e Processual Penal na Faculdade do Vale do Ipojuca FAVIP professor titular de Direito Processual Penal e Prática Jurídica Empresarial na Faculdade de Integração do Sertão FIS coordenador do Núcleo de Práticas Jurídicas Penais na Faculdade do Vale do Ipojuca NPJP/FAVIP doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino UMSA Advogado


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