Resumo: O presente estudo analisa e apresenta a importância e as influências da encíclica Rerum Novarum no Direito trabalhista. Procurou-se demonstrar as contribuições para melhorias sociais que viabilizaram a dignidade do operário assim como dos seus familiares. Utilizou-se como metodologia a revisão bibliográfica, por meio da leitura de textos, artigos e livros concernentes ao tema. Primeiramente, trouxe a baila um breve histórico do Direito do Trabalho para situar o leitor possibilitando a compreensão do momento e do contexto da elaboração e publicação do documento papal. O objetivo principal é corroborar a importância dessa carta encíclica que apontou a necessidade da intervenção do Estado e o desenvolvimento de alguns direitos sociais mínimos para a sobrevivência e continuidade do modelo de produção capitalista. Procurou-se justificar as ações e práticas dessa instituição religiosa que sem abdicar dos seus dogmas e seus princípios, realçou que na conjuntura da época era cogente procurar meios alternativos de coexistência entre o capital e o trabalho. Analisando a Família e o Estado a luz da Rerum Novarum, verificou-se a valorização da célula familiar e a luta pela preservação do pátrio poder, pois a interferência do Estado poderia arrefecer os laços familiares sendo prejudicial à sociedade.
Palavras-chave: Rerum Novarum, Direito do Trabalho, Estado Social.
Abstract: This study analyzes and presents the importance and the encyclical Rerum Novarum influences of the labor law. Have sought to demonstrate the contributions to social improvement that enabled the dignity of the worker as well as their families. Methodology was used as the literature review, through the reading of texts, articles and books concerning the topic. First brought to the fore a brief history of labor law to situate the reader allowing us to understand the time and context of the preparation and publication of the papal document. The main objective is to support the importance of this encyclical letter which pointed out the need of state intervention and the development of some minimum social rights for survival and continuity of the capitalist production model. Sought to justify the actions and practices of this religious institution without giving up their dogmas and principles, stressed that the situation at the time was cogent look for alternative means of coexistence between capital and labor. Analyzing the Family and the State in light of Rerum Novarum, there was recovery of the family unit and the struggle to preserve parental rights because state interference could cool family ties being harmful to society.
Keywords: Rerum Novarum, Labor Law, Social State.
Sumário: Introdução. 1.Breve histórico do Direito do Trabalho. 2. A encíclica Rerum Novarum e o Direito do trabalho. 3. A encíclica Rerum Novarum e o Estado Social. 4. A família e o Estado a luz da Rerum Novarum. 5. Estado Social como instrumento de preservação do modelo capitalista de produção. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.
Introdução
Ao analisar a Carta Encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII sobre a condição dos operários, publicada em 1891, almejou-se apresentar e perceber as ingerências do texto papal no Direito Trabalhista assim como suas contribuições para as garantias de condições de vida digna e adequada subsistência da família.
Preliminarmente, iniciou-se com um breve histórico do Direito do Trabalho, para tentar de maneira didática estabelecer uma evolução histórica e, a partir dessas informações, localizar em que período e contexto social, a encíclica Rerum Novarum foi elaborada, para melhor compreender o porquê e as finalidades para qual foi destinada.
Em outro momento, procurou-se tratar da encíclica do Papa Leão XIII e o Direito do Trabalho atentando-se as influências desse documento da Igreja Católica nas relações sociais trabalhistas de inúmeros países. Tentar-se-á sopesar as ações e práticas dessa instituição religiosa que sem abandonar seus dogmas e seus princípios, enfatizou que na conjuntura da época era imperativo procurar meios alternativos para alcançar uma coexistência entre o capital e a exploração do trabalho.
No tópico relacionado a respeito da Família e o Estado a luz da Rerum Novarum, pretendeu-se estudar a valorização da célula familiar, e proclamação da necessidade de se preservar o pátrio poder evitando-se a interferência do Estado nessas relações sob pena de arrefecer os laços familiares.
1. Breve histórico do Direito do Trabalho
Em breves palavras, pode-se conceituar trabalho como qualquer atividade humana transformadora da natureza, desta sorte, da interação pessoa humana com a natureza depreende-se ações e práticas que possibilitam a sobrevivência desde os primórdios da humanidade.
O Direito do Trabalho visto como instrumento de proteção dos trabalhadores advém das relações sociais laborais, destacando-se como produto típico do século XIX, apresentando-se a partir do contexto social dessa época como um ramo novo da ciência jurídica, desenvolvendo características, especificidades e peculiaridades que lhe conferiram certa autonomia doutrinária.
Com o surgimento da máquina a vapor em 1775, ocorreu um intenso desenvolvimento das indústrias, o que contribuiu, entre outros fatores, sobremaneira para crescente demanda de mão de obra fomentadora dessas atividades.
Percebe-se que ao longo da história ocorre um embate entre o trabalho e as diversas formas de apropriação do mesmo, demonstrando-se e desenvolvendo-se inúmeras formas de exploração da atividade laboral, que vai da escravidão a retirada da mais valia, visualizada principalmente, a partir da divisão do trabalho e da especialização dos diversos ramos trabalhistas provindos da Revolução Industrial.
Na Inglaterra, devido ao desemprego rural e ao atrativo das indústrias incipientes, desde o século XVI ocorreu uma migração, que por volta de 1760 e 1830, intensificou a sucessão migratória contínua, consubstanciando o êxodo do campo para as cidades as quais não estavam preparadas estruturalmente para acolher a grande quantidade de pessoas.
Sendo assim, nesse período pode-se perceber que as condições de trabalho, seja por excesso de mão de obra disponível, ou por falta de leis que estabelecessem condições dignas para todos trabalhadores, o empregador impunha jornadas desumanas e excessivas de trabalho, ocorria a exploração de crianças e mulheres. Além disso, na maioria das vezes, não existia contrato escrito, o contratante podia fazer o que lhe convinha, firmando contrato verbal por longo prazo ou até mesmo vitalício, não fazendo qualquer distinção entre homens, mulheres, menores, ou atividades exercidas pelos mesmos.
A Revolução Francesa de 1789 colocou a burguesia no poder político-econômico. Com a Revolução Industrial e a expansão do capitalismo, surgiu nos centros urbanos, agravamento dos problemas sociais, devido à grande concentração das riquezas em mãos dos detentores dos bens de produção, em contraposição à crescente miséria da classe operária,
Quando o liberalismo econômico atingiu seu apogeu, destacando-se nesse momento a forte vigência do pacta sunt servandas, a inexistência de leis ou interferência do Estado para regular as relações laborais, permitiu uma super-exploração dos trabalhadores levando-os a uma situação de miséria.
A partir das diversas tensões da sociedade industrial do Século XIX, no âmbito mundial, com todas as conseqüências reais, a guisa de: guerras, greves, revoltas, reivindicações e mortes, foi necessário outro meio e modelo político para atender as necessidades das relações sociais. O Estado Liberal não mais correspondia às medidas necessárias para conseguir a harmonia e paz social.
Desde o início do século XIX, percebe-se que as diversas nações do mundo, discutiam os problemas advindos do modelo capitalista de produção com tendências globais, desenvolvido com fulcro no modelo jurídico pós-revolução francesa.
Sendo assim, poder-se-á visualizar uma primeira etapa de incipiente desenvolvimento do Direito do trabalho, que na vigência do liberalismo econômico constata-se a inexistência de legislação específica para regular as relações laborais, e a marcante miséria dos trabalhadores.
O ano de 1802 pode ser tomado com um marco inicial da tentativa incipiente e branda de cercear a grande exploração dos trabalhadores, pois nessa data surgiu lei inglesa que proibia o trabalho de menores durante a noite e limitação da jornada de trabalho em até o máximo de 12 horas.
Em 1824 tem-se o ano da fundação do Direito Coletivo de Trabalho, como o reconhecimento da liberdade de associação na Inglaterra, e, por último, em 22 de março de 1841, e criada à primeira lei de proteção a infância na França.
Em 1848, o manifesto comunista conclamava a união dos trabalhadores de todo mundo contra a imposição de condições de trabalho desumanas pautadas em excessivas jornadas de trabalho, exploração de mulheres e menores, banalização e aviltamento do valor da mão de obra.
Percebe-se uma intensificação no movimento favorável a luta pelo Direito do Trabalho, pois os operários começam a formar uma consciência de classe, desencadeando uma luta ideológica, política e social que mais tarde resultaram em conquistas do direito ao voto e ao sufrágio universal.
A partir desse movimento, foi possível a eleição de representantes dos trabalhadores nas casas legislativas e votação para defesa dos interesses da classe trabalhadora.
Em 1862, foi celebrado com os operários ingleses o primeiro contrato coletivo de trabalho, deixando registrada a Lei de acidentes do trabalho, a regulamentação da jornada máxima, descanso semanal, assistência médica de urgência, higiene nos estabelecimentos industriais, e busca de soluções legais para dirimir lides individuais do trabalho.
Parafraseando Jorge Luiz Souto Maior[1], percebe-se que existia uma necessidade de sair do modelo político liberal para se chegar ao Estado social, promotor do Bem-Estar Social, em consonância a essa tendência em 1889 o governo suíço propôs a realização da Conferência Diplomática de Berne, para fixar as bases de um acordo internacional a respeito do trabalho das fábricas.
Contudo a foi Guilherme II, imperador da Alemanha, que atuou de maneira efetiva convocando para Berlim a primeira Conferência Internacional para o estudo da questão operária, realizada em 15 de março de 1891. Ainda de acordo com mesmo autor, essa conferencia foi um insucesso, pois se evidenciou a dificuldade e impossibilidade de estabelecer um entendimento entre os 14 países participantes acerca da questão da criação de um escritório internacional de informações a respeito das relações de trabalho nas fábricas.
2. A encíclica Rerum Novarum e o Direito do trabalho
Em 1891, o Papa Leão XIII publicou a Encíclica Rerum Novarum, documento que teve uma forte ingerência nas relações sociais laborais de vários países, visto que sem abandonar os dogmas e os princípios da igreja, destacou-se a premente necessidade de buscar meios alternativos para conseguir uma convivência entre o capital e o trabalho.
Poder-se-á entender que o fato da igreja ser detentora de grandes áreas de terras, fazia-na ir de encontro aos preceitos socialistas, por isso, opondo-se ao Manifesto Comunista, Leão XIII, defendeu de forma categórica a manutenção da propriedade privada.
A Rerum Novarum tentou desmantelar o movimento operário socialista, propondo alternativas para reformar as relações sociais conciliando capital e trabalho, apresentando necessidade de incentivo a estimular os princípios éticos e valores morais da sociedade, buscando-se uma justiça social na vida socioeconômico e industrial.
Desta sorte, para tanto, o Estado precisava intervir na economia a favor dos mais pobres e desamparados, destacando-se a questão da caridade do patrão em relação ao empregado, apresentando uma solução justa e equânime a partir da colocação a seguir:
“É por isto que, Veneráveis Irmãos, o que em outras ocasiões temos feito, para bem da Igreja e da salvação comum dos homens, em Nossas Encíclicas sobre a soberania política, a liberdade humana, a constituição cristã dos Estados (1) e outros assuntos análogos, refutando, segundo Nos pareceu oportuno, as opiniões erróneas e falazes, o julgamos dever repetir hoje e pelos mesmos motivos, falando-vos da Condição dos Operários. Já temos tocado esta matéria muitas vezes, quando se Nos tem proporcionado o ensejo; mas a consciência do Nosso cargo Apostólico impõe-Nos como um dever tratá-la nesta Encíclica mais explicita-mente e com maior desenvolvimento, a fim de pôr em evidência os princípios duma solução, conforme à justiça e à equidade. O problema nem é fácil de resolver, nem isento de perigos. E difícil, efectivamente, precisar com exactidão os direitos e os deveres que devem ao mesmo tempo reger a riqueza e o proletariado, o capital e o trabalho. Por outro lado, o problema não é sem perigos, porque não poucas vezes homens turbulentos e astuciosos procuram desvirtuar-lhe o sentido e aproveitam-no para excitar as multidões e fomentar desordens.”[2] (Grifos nossos).
O Papa Leão XIII, bispo da Perúrgia – Luigi Pecci deixa evidente na encíclica Rerum Novarum a preocupação e oposição da Igreja Católica com as idéias socialistas, e visualizava que o embate entre capital e trabalho seria um terreno fértil para origem de muitos males ao bom funcionamento do sistema capitalista.
Por vezes, é destacado na encíclica do Papa Leão XIII, a tentativa da Igreja em conciliar seus pensamentos e dogmas à realidade do pensamento moderno ficando evidente o comprometimento da Igreja com os interesses políticos e econômicos da época.
Por outro lado, percebe-se na encíclica analisada certa aversão aos movimentos sociais prol luta de classes, advindos da divisão do trabalho, das condições precárias dos trabalhadores e do desenvolvimento da tecnologia pertinente a Revolução Industrial.
A Rerum Novarum, ou seja, entre outras coisas, também pode ser considerada uma resposta ao Manifesto Comunista, assim como uma tentativa de barrar o avanço das idéias socialistas.
O socialismo, o materialismo dialético, a luta de classes e a idéia do fim da propriedade privada, assombravam a instituição da Igreja Católica, desta maneira, a alternativa apresentada a esse movimento ideológico era demonstrar a possibilidade de obter paz e harmonia social sob os preceitos de uma filosofia capitalista.
O autor Sergio Pinto Martins aponta a Rerum Novarum com uma fase de transição para a justiça social, traçando regras para a intervenção estatal na relação entre trabalhador e patrão. [3]
Realmente, o Papa Leão XIII, conforme destacado na citação conclamou os Veneráveis Irmãos apresentando uma solução pautada em princípios de justiça e equidade para precisar os direitos e os deveres de todos harmonizando as relações entre a classe abastada e o proletariado, tentando atenuar o embate dos detentores capital com os trabalhadores.
Depreende-se desse documento papal a necessidade de realizar uma adaptação as novas relações sociais de forma manter a soberania política e a liberdade para manter a ordem.
Sendo assim, o seu debate colaborou sobremaneira para os avanços históricos na seara trabalhista, pois trouxe à baila a discussão a respeito da intervenção do Estado para defender e proteger minimamente os trabalhadores com o fito de se evitar o conflito de classes e o possível colapso do modelo capitalista.
Como demonstrado na carta encíclica sobre a condição dos operários, a propriedade particular deveria ser mantida em detrimento da ideia proclamada pelos socialistas visando à conversão da em propriedade privada em coletiva. Contudo, a Igreja defendia a idéia de que a tornando coletiva somente iria tornar mais precária à situação dos operários.
Foi defendido pelo Papa Leão XIII que:
“o homem tinha recebido da natureza o direito de viver e proteger a sua existência. Não se oponha também à legitimidade da propriedade particular o facto de que Deus concedeu a terra a todo o gênero humano para gozar porque Deus não a concede aos homens para que a dominassem confusamente todos juntos(…) o trabalho é o meio universal de prover às necessidades da vida, quer ele se exerça num terreno próprio, quer em alguma parte lucrativa cuja remuneração, sai apenas dos produtos múltiplos da terra, com os quais ela se comuta.” (Grifos nossos). [4]
Poder-se-á inferir do trecho apresentado que a construção teórica apresentada na encíclica Rerum Novarum é uma tentativa de apropriar alguns Direitos Sociais aos fins liberais. Desvelando-se a intenção, vislumbra-se uma tentativa de tratar de forma igual, ou seja, no mesmo plano, os valores individuais, para posteriormente, depois de respeitado o direito a propriedade privada, deve ser respeitado condições mínimas de vida ao trabalhador.
De acordo com Engels, e reiterado na encíclica Rerum Novarum toda riqueza emana do trabalho, portanto, é importante compreender que a imposição de valores a guisa de incentivar a virtude da caridade mútua. Dar-se-á a partir da regulação do trabalho porque a organização social pressuposta seria a proveniente de um paradigma determinado, qual seja o capitalismo, visto que se impulsiona pela produção das riquezas provenientes da ação laboral.
3. A encíclica Rerum Novarum e o Estado Social
Para Orlando Gomes[5] a encíclica Rerum Novarum representa o marco do terceiro período da história do Direito do Trabalho, apresenta-se como um período marcante, destacando a importância da mesma para os progressos na área trabalhista, tendo em vista que o primeiro e segundo período da evolução histórica do Direito do trabalho foi caracterizado inicialmente pela ausência de legislação específica, e, posteriormente, pela criação de algumas leis esparsas.
No terceiro período, enfatiza-se a relevância do texto papal contribuindo para os debates acerca da necessidade da intervenção estatal nesse momento. Deduz-se essencialmente, que o Direito Social e o Estado Social podem ser considerados mecanismos de sobrevivência do modelo capitalista de produção, vigorando a necessidade de atribuir um caráter fundamental ao trabalho, conferindo-lhe uma compensação de natureza social.
Para Sérgio Pinto Martins a encíclica do Papa Leão XIII sobre a condição dos operários representou uma fase de transição para a justiça social, traçando regras para a intervenção estatal na relação entre trabalhador e patrão.[6]
No modelo capitalista a fonte de toda riqueza é proveniente do trabalho, sendo ele o motor para funcionamento e desenvolvimento da sociedade, desta maneira, os trabalhadores devem ser protegidos pelo Estado da usura voraz do detentor dos meios de produção, evitando-se que a concentração de renda nas mãos de um pequeno número de ricos acirrasse sobremaneira as causas dos conflitos de classes que poderiam colocar em xeque o funcionamento do sistema.
Para BARBOSA[7]
“A preocupação imediata da Igreja não foi com a situação do operário em si, como ser humano despido de direitos básicos, submetido a um regime que chegou a ser pior do que a escravidão (os escravos, assim como os animais, não eram submetidos a longas jornadas de trabalho, pois representavam bens, e, como tais, deveriam ser usados com moderação, para não depreciarem-se; os operários europeus eram submetidos a uma jornada que chegava a dezesseis horas por dia, sem falar na utilização das "meias-forças"). A grande preocupação da Igreja era com os efeitos políticos dessa exploração, não os morais ou biológicos; o fenômeno do associacionismo, vocábulo eternizado por Orlando Gomes, já começava a incomodar, diminuindo a diferença gritante de forças entre patrão e empregado. As conseqüências apocalípticas da luta de classes já estampavam as obras de Marx, como "germes" intelectualizados a dar suporte às pretensões revolucionárias. A estrutura sócio-política da época, garantidora de privilégios, inclusive para Roma, estava por um fio. O clamor social era latente. As teorias socialistas vinham num crescente, infiltrando-se, principalmente, nos sindicatos obreiros. O medo da "ebulição social" foi tanto que levou o papa Leão XIII a lançar propostas de conciliação entre capital e trabalho, enaltecendo, contudo, que ambos eram vitais. O Estado Social viria a "corrigir" um desvio de rota do Estado Liberal, sob a supervisão de uma Igreja atemorizada. Essa correção, contudo, não deu-se de forma imediata, mas lenta e gradativamente”.
Confrontando a citação com a encíclica Rerum Novarum, pode-se destacar no tópico O comunismo, princípio de empobrecimento, o repúdio a propriedade coletiva, enfatizando que a mesma desnatura as funções do Estado e faz arrefecer a tranqüilidade pública. Fica evidente a preocupação de tentar uma concórdia entre as classes, enfatizando-se que o homem deve aceitar com paciência a sua condição: é impossível que na sociedade civil todos sejam elevados ao mesmo nível.
A despeito do entendimento do autor ora citado, entende-se que apesar das ¨veladas¨ intenções da Igreja Católica de manter o modelo capitalista, a propriedade privada e o status quo entre trabalhadores e patrões, apontou de certa forma para atuação do Estado Social, podendo visualizar a função social colocando como objetivo a transformação na atividade do detentor dos meios de produção, ou seja, no fundamento de atribuição dos poderes e na forma como o uso de determinados bens serão determinados.
Nesse ponto, importante destacar que, a propriedade individual se evoluiu com o fortalecimento do núcleo familiar. Porém, foi com o advento da Revolução Francesa que corroborou o direito de propriedade, o qual tomou uma concepção individualista e a encíclica Rerum Novarum, passou a discutir a função social da propriedade para atingir uma utilidade coletiva, por este viés de análise, constata-se que uma concepção de função social foi tomando vigor e se tornou a matriz da atual idéia de propriedade da sociedade multifacética contemporânea.
No tópico da encíclica a respeito da Origem da prosperidade nacional valeu-se dos dizeres de São Tomás de Aquino afirmando em consonância com o mesmo:
“A esse respeito S. Tomás diz muito sabiamente: «Assim como a parte e o todo são em certo modo uma mesma coisa, assim o que pertence ao todo pertence de alguma sorte a cada parte» [8]. E por isso que, entre os graves e numerosos deveres dos governantes que querem prover, como convém, ao público, o principal dever, que domina todos os outros, consiste em cuidar igualmente de todas as classes de cidadãos, observando rigorosamente as leis da justiça, chamada distributiva.”[9]
Portanto, o Papa Leão XIII, conclama para a necessidade de homens que atuem legislando, governando de forma a administrar os negócios com justiça, visando o bem comum que seria ratificado por ações e práticas que aperfeiçoassem o bem moral da sociedade.
A principal contribuição da encíclica foi a tentativa de demonstrar obrigações e estabelecer limites da intervenção do Estado, pois pregou a necessidade e intenção de proteger os operários que sofriam da exploração degradante que retirava-lhes a dignidade, sendo assim, o texto papal afirmou:
“que os patrões esmagam os trabalhadores sob o peso de exigências iníquas, ou desonram neles a pessoa humana por condições indignas e degradantes; que atentam contra a sua saúde por um trabalho excessivo e desproporcionado com a sua idade e sexo: em todos estes casos é absolutamente necessário aplicar em certos limites a força e autoridade das leis. Esses limites serão determinados pelo mesmo fim que reclama o socorro das leis, isto é, que eles não devem avançar nem empreender nada além do que for necessário para reprimir os abusos e afastar os perigos”.[10]
No entendimento de Gustavo Henrique Cisneiros Barbosa[11]
“A contribuição maior da Encíclica foi o reforço à ideia de uma maior participação do Estado na economia. Mas isso não foi pregado com o intuito de salvar do flagelo os esfarrapados e famintos operários. O objetivo imediato era a manutenção da posição conquistada pela Igreja Católica, através de intermináveis e sangrentos séculos, onde as espadas e as orações confundiam-se em cruzadas e conquistas questionáveis”. (Grifos nossos).
Apesar da concordancia expressa da encíclica ter contribuído para os direitos trabalhista demonstrando a necessária intervenção do Estado, o autor vislumbrou artifícios ardilosos rezandos fins diferentes dos reais que eram de manter o status que a Igreja havia auferido até então.
4. A família e o Estado a luz da Rerum Novarum
O texto apresentado por Leão XIII, traz a importancia da família que:
“Assim como a sociedade civil, a família, conforme atrás dissemos, é uma sociedade propriamente dita, com a sua autoridade e o seu governo paterno, é por isso que sempre indubitavelmente na esfera que lhe determina o seu fim imediato, ela goza, para a escolha e uso de tudo o que exigem a sua conservação e o exercício duma justa independência, de direitos pelo menos iguais aos da sociedade civil. Pelo menos iguais, dizemos Nós, porque a sociedade doméstica tem sobre a sociedade civil uma prioridade lógica e uma prioridade real, de que participam necessariamente os seus direitos e os seus deveres. E se os indivíduos e as famílias, entrando na sociedade, nela achassem, em vez de apoio, um obstáculo, em vez de protecção, uma diminuição dos seus direitos, dentro em pouco a sociedade seria mais para se evitar do que para se procurar”.[12]
Percebe-se a ênfase na necessidade de uma célula familiar regida pela autoridade do pai, e não governada pelo Estado como apregoava os socialistas, pois há uma tentativa de estabelecer uma independência entre a sociedade doméstica e civil, vislumbrando que os filhos deveriam ficar sob a tutela dos pais que exerceriam seu pátrio poder até os mesmos atingirem a maioridade para terem livre arbítrio, o Estado não poderia intervir na justiça natural da família sob pena de enfraquecerem os laços familiares.
Primou-se pela prioridade da importância da sociedade doméstica sobre a sociedade civil, pois se os indivíduos e as famílias para se inserir nessa última deveria ter seus poderes fortalecidos e não alijados, senão evitariam a sociedade civil.
Apontou que a ingerência do Estado na célula familiar seria um erro grave, ele poderia atuar somente em casos extremos com intuito de auxiliar a manutenção da família, mas de maneira a manter os direitos individuais e o pátrio poder, fortalecendo os direitos dos cidadãos. Nos dizeres da encíclica:
“A autoridade paterna não pode ser abolida, nem absorvida pelo Estado, porque elatem uma origem comum com a vida humana. Os filhos são alguma coisa de seu pai, são de certa forma uma extensão da sua pessoa , e, para falar com justiça não é imediatamente por si que eles se agregam e se incorporam na sociedade civi, mas por intermédio da sociedade doméstica em que nasceram”.[13]
De acordo com o texto publicado pela Igreja Católica os filhos são semelhantes aos seus pais, devendo permanecer sob a tutela deles e por eles educados respeitando-se o pátrio poder até adquirirem o livre arbítrio.
5. Estado Social como instrumento de preservação do modelo capitalista de produção
O Direito Social e o Estado social pleiteados de forma mínima na encíclica Rerum Novarum podem ser visualizados como mecanismos de sobrevivência do capitalismo, regendo-se pela característica principal de atribuir um caráter de essencialidade ao trabalho, conferindo-lhe uma compensação de natureza social.
No sistema capitalista de produção, o trabalho destaca-se como manancial da riqueza vinculando todo funcionamento e desenvolvimento da sociedade a sua fonte. Percebe-se que todos valores relacionados a paz e harmonia social estão diretamente ligados a ele. As condições de vida digna e adequada subsistência da família encontram-se intimamente concatenadas as relações laborais.
Desta forma, entender-se-á a preocupação da Igreja Católica naquele contexto do ano de 1891, com os excessos exigidos pelos patrões e o descaso com as condições de trabalho fornecidas aos operários.
Constata-se no trecho da Rerum Novarum referente as Obrigações dos operários e dos patrões que:
“Quanto aos ricos e aos patrões, não devem tratar o operário como escravo, mas respeitar nele a dignidade do homem, realçada ainda pela do Cristão. O trabalho do corpo, pelo testemunho comum da razão e da filosofia cristã, longe de ser um objecto de vergonha, honra o homem, porque lhe fornece um nobre meio de sustentar a sua vida. O que é vergonhoso e desumano é usar dos homens como de vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor dos seus braços. O cristianismo, além disso, prescreve que se tenham em consideração os interesses espirituais do operário e o bem da sua alma. Aos patrões compete velar para que a isto seja dada plena satisfação, para que o operário não seja entregue à sedução e às solicitações corruptoras, que nada venha enfraquecer o espírito de família nem os hábitos de economia. Proíbe também aos patrões que imponham aos seus subordinados um trabalho superior às suas forças ou em desarmonia com a sua idade ou o seu sexo.
Mas, entre os deveres principais do patrão, é necessário colocar, em primeiro lugar, o de dar a cada um o salário que convém”[14] (Grifos nossos).
O fragmento citado ressalta a importância de fornecer subsídeos para que o trabalhador e sua família tenham uma vida digna, o trabalho deve ser exaltado como meio nobre de manter a sobrevivência, devendo o patrão cumprir a obrigação de pagar um salário proporcional ao esforço, de forma que satisfaça minimamente o operário, evitando que o mesmo se entregue às solicitações corruptoras,aqui interpretadas como ideias socialistas que poderiam enfraquecer os laços da família e desordenar a economia.
Portanto, observa-se por que a regulação das relações de trabalho já se faziam prementes, pois serviam e ainda valem atualmente de forma atemporal como meios de preservar valores humanos, não simplesmente econômicos, mas também aqueles que se desenvolvem fora da esfera laboral. A regulação das relações sociais laborais, com atribuições e limitações de efeitos econômicos-sociais, simboliza a gênese do modelo de sociedade, serviu de matriz para a construção da sociedade contemporãnea.
Atualmente, é evidente que a regulação das relações sociais trabalhistas se dá por meio do Direito do Trabalho, que vai além das conquistas dos operários em face dos patrões, o Direito laboral valoriza o trabalho e concomitantemente, tenta preservar a dignidade da pessoa humana, procura tutelar outros valores fora do trabalho, e, fornece elementos para o bom funcionamento do sistema capitalista de produção, sem abandonar o viés da construção da justiça social dentro desse modelo capitalista.
A Rerum Novarum, ja afirmava que:
“É necessário ainda prover de modo especial a que em nenhum tempo falte trabalho ao operário; e que haja um fundo de reserva destinado a fazer face, não somente aos acidentes súbitos e fortuitos inseparáveis do trabalho industrial, mas ainda à doença, à velhice e aos reveses da fortuna. Estas leis, contanto que sejam aceites de boa vontade, bastam para assegurar aos fracos a subsistência e um certo bem-estar; mas as corporações católicas são chamadas ainda a prestar os seus bons serviços à prosperidade geral. Pelo passado podemos sem temeridade julgar o futuro. Uma época cede o lugar a outra; mas o curso das coisas apresenta maravilhosas semelhanças, preparadas por essa Providência que tudo dirige e faz convergir para o fim que Deus se propôs ao criar a humanidade. Sabemos que nas primeiras idades da Igreja lhe imputavam como crime a indigência dos seus membros, condenados a viver de esmolas ou do trabalho: Mas, despidos como estavam de riquezas e de poder, souberam conciliar o favor dos ricos e a protecção dos poderosos. Viam-nos diligentes, laboriosos, modelos de justiça e principalmente de caridade. Com o espectáculo duma vida tão perfeita e de costumes tão puros, todos os preconceitos se dissiparam, o sarcasmo caiu e as ficções duma superstição inveterada desvaneceram-se pouco a pouco ante a verdade cristã.”[15] (Grifos nossos).
A encíclica Rerum Novarum pode ser considerada um marco importante pois aponta que algumas ações e práticas influenciariam de forma que o Direito do Trabalho deveria se integrar aos valores fundamentais do Estado Social, estabelecendo deveres não somente para o Estado, mas para todos elementos sociedade.
A Igreja Católica levanta a necessidade de se preocupar com o futuro, prevendo e preparando-se para infortúitos, fica hialino a consequência do excesso ou falta do trabalho atingindo os valores essenciais a pessoa humana, assim como a possibilidade de associação dos operários cristãos para tentar preservar um futuro melhor, baseados nos modelos de justiça e de caridade.
Hodiernamente, o maior problema social é o desemprego, pois no sistema capitalista de produção, o modo principal de sobrevivência de grande parcela das pessoas é advindo da atividade laboral. Sendo assim, fica cristalino a importância da valorização do trabalho, para manutenção da ordem e harmônia do sistema, pois faz parte da centralidade das relações sociais.
O capitalismo pautado no trabalho gera riqueza e ao mesmo tempo cria exclusão social, exploração, miséria, o que analisado no viés liberal, deve ser entendido como resultado do exercício do livre arbítrio e das liberdades individuais, sendo cada um responsável por sua própria situação de vida.
O Papa Leão XIII, percebeu que o modelo de Estado Liberal não suportaria por muito mais tempo levando o sistema ao colapso, e, se continuasse a sociedade poderia corromper-se pelas ideias socialistas.
Para a manutenção do modo de produção capitalista apresentou-se mecanismos de correção das injustiças sociais, pautando-se pela valorização do trabalho buscando-se fazer acreditar que é possível justiça social dentro do modelo capitalista.
Sendo assim, a partir do debate das questões levantadas no texto papal sobre as condições dos operários permitiu o desenvolvimento de uma perspectiva da necessidade de um Estado Social e um Direito Social, calcados na solução definitiva: a caridade.
“Vede, Veneráveis Irmãos, por quem e por que meios esta questão tão difícil demanda ser tratada e resolvida. Tome cada um a tarefa que lhe pertence; e isto sem demora, para que não suceda que, adiando o remédio, se tome incurável o mal, já de si tão grave. Façam os governantes uso da autoridade protectora das leis e das instituições; lembrem-se os ricos e os patrões dos seus deveres; tratem os operários, cuja sorte está em jogo, dos seus interesses pelas vias legítimas; e, visto que só a religião, como dissemos no princípio, é capaz de arrancar o mal pela raiz, lembrem-se todos de que a primeira coisa a fazer é a restauração dos costumes cristãos, sem os quais os meios mais eficazes sugeridos pela prudência humana serão pouco aptos para produzir salutares resultados. Quanto à Igreja, a sua acção jamais faltará por qualquer modo, e será tanto mais fecunda, quanto mais livremente se possa desenvolver. Nós desejamos que compreendam isto sobretudo aqueles cuja missão é velar pelo bem público. Em-preguem neste ponto os Ministros do Santuário toda a energia da sua alma e generosidade do seu zelo, e guiados pela vossa autoridade e pelo vosso exemplo, Veneráveis Irmãos, não se cansem de inculcar a todas as classes da sociedade as máximas do Evangelho; façamos tudo quanto estiver ao nosso alcance para salvação dos povos, e, sobretudo, alimentem em si e acendam nos outros, nos grandes e nos pequenos a caridade, senhora e rainha de todas as virtudes. Portanto, a salvação desejada deve ser principalmente o fruto duma grande efusão de caridade, queremos dizer, daquela caridade que compendia em si todo o Evangelho, e que, sempre pronta a sacrificar-se pelo próximo, é o antídoto mais seguro contra o orgulho e o egoísmo do século”.[16]
Ao finalizar seu documento o Papa Leão XIII dissertando sobre a condição dos operários, apresentou mais uma vez os deveres dos ricos ou patrões, assim como reiteirou a necessidade da Igreja Católica continuar livremente divulgando e solicitando a restauração dos costumes cristãos como um bem social.
Por fim, ressaltou que a alteração das relações entre operários e os patrões, não poderiam resultar em conflito, e, menos ainda em uma corrupção dos constumes, proclamou a Não luta, mas concórdia das classes. Evidencia-se os princípios de uma solução, pautada na justiça e na equidade, tentanto resolver o problema das relações entre o capital e o trabalho, ou seja, entre os trabalhadores, isolados e sem defesa e a usura voraz, por meio da caridade senhora e rainha de todas as virtudes, capaz de concretizar a missão de velar pelo bem público.
Considerações finais
As ingerências da encíclica Rerum Novarum no Direito do trabalho e suas contribuições para garantia de condições de vida digna e adequada subsistência da família são inegáveis, principalmente, no que concerne aos avanços na seara trabalhista, advindos da conclamação da mudança de um modelo liberal para um Estado e Direito sociais.
Independente de apresentar finalidades diversas das enunciadas, quais sejam: pleitear condições mais justas para os operários, busca por uma humanização das relações entre patrões e empregados pautada na restauração dos costumes cristãos e na caridade, as influências da encíclica no Direito do Trabalho foram intensamente profícuas.
Em momento algum se olvida o fato da Igreja Católica defender seus próprios interesses políticos e econômicos, velados por uma preocupação com as péssimas condições dos operários. Entende-se que a finalidade principal foi manter sua posição e liberdade para continuar com suas prerrogativas e propriedades que até então lhe foram dadas pelo Estado liberal.
Contudo, a principal preocupação evidenciada na encíclica papal com os efeitos políticos da massacrante exploração dos operários era o confronto direto da luta de classes que possibilitaria a propagação da ideologia socialista.
Ao conclamar a necessaria convivência entre o capital e trabalho, reforçou a ideia que o trabalho é a fonte principal das riquezas no modelo capitalista de produção permeando todas as relações sociais, sendo responsável pela harmônia e paz social, denominado na encíclica de bem público.
Portanto, a valorização do trabalho e suas inter-relações como tema central da carta encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII sobre a condição dos operários, evidencia que a aplicabilidade da intervenção estatal regulando as relações socio-laborais ratificam necessidade da aplicabilidade do princípio da dignidade humana nas relações de trabalho, como também ressalta a mais relevante concretização desse princípio na sua vertente de proteção ao trabalhador e de salvaguarda da paz social consubstanciando os interesses sociais vitais.
Informações Sobre os Autores
Wander Pereira
Pós-Doutorado em Criminologia, Pós-doutorado em História do Direito: Filosofia e Constituição. Doutor e Mestre pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Especialista em Direito e Processo do Trabalho, em Direito Público e Filosofia do Direito. Cirurgião-dentista CRO22510, Advogado OABMG109559 graduações pela UFU. Professor visitante do Pós-Doutorado da UFU. Professor de Direito pro tempore da Faculdade de Direito, da Faculdade de Administração e da Faculdade de Ciências Contábeis, todas da UFU. Professor de Direito nas Faculdades ESAMC e UNIPAC, Professor de Direito na Pós-Graduação da PUC-MINAS
Nádia Carrer de Ruman de Bortoli
Professora de Direito Constitucional, Civil e Processual Civil, Advogada, Graduada pela Universidade Federal de Uberlândia