Humanização do cuidado: o desvelar da relação médico-paciente

Resumo: Pretende-se, na presente pesquisa, analisar a partir das reflexões da bioética a humanização do cuidado, particularmente por meio das práticas profissionais realizadas pelos profissionais da medicina. Assim, se faz necessário compreender a humanização por meio de dois vieses, primeiramente, como prática profissional e, posteriormente, por meio de políticas de saúde. Nesse sentido, evidencia-se a importância da bioética, a partir da análise dos seus princípios estruturantes, no enfrentamento da relação médico-paciente, uma vez que se deve compreender que é direito do paciente receber um atendimento médico humanizado e é dever do médico prestá-lo. Para tanto, com o intuito de embasar o presente estudo, realizou-se um estudo documental no campo da legislação, doutrina, bem como em artigos científicos. Por fim, evidencia-se que para que se possa efetivamente alcançar a humanização do cuidado há que se recuperar, principalmente, o desejo de cuidar dos profissionais da área da saúde, pois a partir da boa relação entre o profissional e o paciente o cuidar perpassa a dicotomia saúde-doença e passa a ser fundamentado no respeito e na valorização da pessoa humana, reconhecendo, assim, o sujeito-paciente como um indivíduo na sua singularidade, compreendendo-o, portanto, como um sujeito capaz de exercer seu direito à saúde e, consequentemente, o seu direito à cidadania. [1]

Palavras-chave: bioética; humanização do cuidado; direitos dos pacientes; autonomia do paciente; relação médico-paciente.

Sumário: Introdução; 1 – Humanização do Cuidado; 1.1- Profissionais da área médica-1.2- Políticas de saúde; 2 – Direitos dos Pacientes; 2.1- Os princípios da bioética como norteadores dos direitos dos pacientes 2.2- A necessidade da humanização do cuidado na relação médico-paciente; Conclusão

INTRODUÇÃO

A sociedade, por meio do crescente tecnológico e da globalização, vem sofrendo profundas transformações, e, nesse cenário, a concepção de saúde, também, foi alterada, contudo, as práticas de saúde de maneira humaniza, ainda, precisam ser (re)pensadas para que o direito à saúde do sujeito-paciente possa ser efetivado.

Nesse caminhar, se faz necessário compreender a saúde através de uma visão ampliada, assim, a concepção de saúde perpassa a dicotomia saúde-doença e passa a abarcar questões pertinentes as necessidades sociais e ambientais, alterando, com isso, a concepção de saúde da definição restritiva para uma concepção ampliativa em que a proteção da pessoa humana passa a ser o maior compromisso do Estado.

Demonstra-se, então, primordial no contexto societário hodierno, em que valores éticos e sentimentos como solidariedade e cooperação mútua mostram-se obsoletos, a abordagem do processo saúde-doença de forma humanizada.

Dessa forma, o presente artigo tem como fito a análise de um tema permeado de silogismos: a humanização do cuidado por meio do respeito do profissional da área médica do princípio da autonomia do paciente.

 Nesse sentido, Caprara e Franco (1999), ao enfatizarem a relevância da superação do modelo biomédico na formação dos profissionais da medicina, evidenciam, também, a importância da análise do presente estudo, pois, segundo as autoras, no modelo atual o médico exerce as práticas de assistência de saúde como um simples técnico, desprezando, com isso, a importância na arte de curar do contato humanizado.

Para tanto, em um primeiro momento, será realizado um breve estudo dos profissionais da ciência médica, especificadamente da sua formação, bem como serão elencadas as principais políticas de saúde de humanização.

Já em um segundo momento, analisar-se-á os princípios da bioética que circundam a relação médico-paciente e, finalmente, demonstrar-se-á a necessidade da humanização do cuidado na relação médico-paciente.

Para elaboração do presente artigo realizou-se uma pesquisa bibliográfica baseada em estudo documental no campo da legislação, doutrina, bem como em artigos científicos.

Essa pesquisa teve, portanto, como objetivo denotar, por meio do respeito do princípio da autonomia do paciente pelos profissionais da ciência médica, de que forma a humanização do cuidado é promovida, bem como evidenciar, em última análise, que as práticas humanizadas do cuidado precisam ser visualizadas como uma forma de prover a dignidade da pessoa humana.

1-HUMANIZAÇÃO DO CUIDADO

Em um primeiro momento, antes de passar à análise e ponderações acerca da temática do presente artigo, humanização do cuidado por meio da análise da relação médico-paciente, demonstra-se primordial trazer um breve estudo dos profissionais da área médica, particularmente da sua formação, assim como analisar as principais políticas de saúde de humanização. Assim, será evidenciado, nesse primeiro momento, que a humanização do cuidado “pressupõe um cuidado solidário, que alia a competência técnica-científica e humana, em meio à vulnerabilidade[2] do outro.” (PESSINI, 2004 p.11).

1.1.PROFISSIONAIS DA ÁREA MÉDICA

Cabe elucidar que tecer comentários acerca da humanização do cuidado requer, primeiramente, visualizar o conceito de saúde de forma ampliada e, em virtude disso, compreender que a atuação dos profissionais da área de saúde precisam entender suas práticas profissionais através de um olhar interdisciplinar.

 

Contudo, no presente artigo, será analisada a atuação dos profissionais de saúde da área médica por entender ser este o viés apropriado à análise proposta, todavia, certamente, a atuação dos demais profissionais da área da saúde de forma a respeitar e valorizar a pessoa humana, também, demonstra-se de extrema importância frente às questões inerentes à promoção da humanização do cuidado.

De acordo com Pessini e Bertachini (2003), para que as atuações em saúde direcionadas ao sujeito-paciente possam ser compreendidas como humanizadoras, há que compreendê-lo por meio das suas singularidades e peculiaridades, dessa maneira, deve-se entender a essência do ser a qual se está direcionando as práticas de assistência de saúde.

Nesse sentido, para que se alcance um cuidado de humanizado, o profissional da saúde precisa, nas palavras dos autores, “essencialmente, compartilhar com seu paciente experiências e vivências que resultem na ampliação do foco de suas ações exercer na prática o re-situar das questões pessoais num quadro ético, em que o cuidar se vincula à compreensão da pessoa em sua peculiaridade” (PESSINI, BERTACHINI, 2004 p.3).

Entretanto, para que os profissionais da área médica possam compreender que as práticas e atuações inerentes ao cuidado devem ser realizadas de forma humanizada é necessário refletir, particularmente acerca da formação médica, já que enquanto restrita ao atual modelo biomédico, “encontra-se impossibilitada de considerar a experiência do sofrimento como integrante da sua relação profissional” (GOULART, 2010, p.4).

 Com efeito, evidencia-se, principalmente, a importância da (re)leitura do modelo de formação dos profissionais das ciências médicas no contexto da relação médico-paciente, pois é através do respeito ao paciente, como será abordado posteriormente, pelo profissional da medicina, que as atuações e práticas inerentes ao cuidado poderão ser realizadas de forma a respeitar e valorizar a pessoa humana.

A vivência da relação médico-paciente de forma em que o profissional da área médica ultrapasse as amarras da impessoalidade estabelecida com o paciente e que seja estruturada na confiança e colaboração contribui de forma fundamental para o resultado da superação da vulnerabilidade em que o sujeito-paciente se encontra. Para tanto, demonstra-se necessário que se busque uma posição ativa e crítica na compreensão de uma nova prática médica.

Tal reflexão precisa ser proposta de forma ampliada nos bancos da academia, pois segundo preceituam Caprara e Franco

“a formação médica é intensamente orientada para aspectos que se referem à anatomia, à fisiologia, à patologia, à clínica, desconsiderando a história da pessoa doente, o apoio moral e psicológico. Face a essa realidade, o primeiro ponto a ser colocado para  reflexão é relativo ao comportamento profissional do médico que deve incorporar cuidados ao sofrimento do paciente, possivelmente divergente do modelo clínico. Isto não significa que os profissionais de saúde tenham que se transformar em psicólogos ou psicanalistas, mas que, além do suporte técnico-diagnóstico, se faz necessário uma sensibilidade para conhecer a realidade do paciente, ouvir suas queixas e encontrar, junto com o paciente, estratégias que facilitem sua adaptação ao estilo de vida exigido pela doença”. (CAPRARA; FRANCO, 1999, p. 650).

  Muito embora o saber científico dos profissionais da área médica seja fundamental no processo de doença-cura, compreende-se que a formação desses profissionais não pode ser embasada estritamente na construção do conhecimento tecnicista, sendo assim, torna-se fundamental ultrapassar conceitos pré-estabelecidos por meio da estruturação da formação eminentemente técnico desses profissionais.

A formação de uma prática de cuidado que seja estruturada na compreensão do paciente como um indivíduo que deve ter a sua dignidade respeitada demonstra-se como uma forma de superar o modelo biomédico em que a atual formação médica está estruturada.

A relação cordial e de forma humanizada estabelecida entre o médico e o paciente possibilita, portanto, o direcionamento de uma visão holística pelo profissional do ser humano e, dessa forma, ser compreendida como fundamental aliada na (re)construção do respeito a dignidade do paciente pelos profissionais da medicina.

1.2. POLÍTICAS DE SAÚDE

Muito embora a visão de saúde tenha sido alterada da dicotomia saúde-doença após Segunda Guerra Mundial, ainda, nos dias de hoje, a concepção de saúde humanizada, em que a prestação do cuidado é direcionado ao ser humano de forma a compreender e a respeitar a pessoa humana na sua singularidade, precisa ser (re)discutida, pois diversas práticas e assistências de saúde demonstram-se descontextualizadas e, consequentemente,  improfícuas em meio ao crescente avanço tecnológico na área da saúde, bem como da própria concepção de saúde.

Nesse caminhar, as políticas públicas direcionadas a resguardar a efetivação do direito à saúde de forma universal e integral a todos vão ao encontro da nova contextualização mundial de saúde, que busca salvaguardar a garantia da dignidade da pessoa humana e do compromisso constitucional pátrio que elenca como um dos Direitos Fundamentais do sujeito a proteção da pessoa humana por meio de um novo conceito de saúde e de respeito à vida, dessa forma, no Brasil institucionalizou-se, a partir da Constituição Federal de 1988, o direito à saúde como direito de todos e dever do Estado (BRAUNER, FURLAN, 2013).

 Assim, no cenário societário brasileiro a garantia do direito à saúde é resguardada com o manto dos Direitos Fundamentais e se estrutura nos princípios da equidade, da integralidade e da universalidade (BRAUNER, 2012).

Nesse caminhar, de acordo com Calvalcanti e Zucco (2006), há que se ponderar que, nos dias atuais, a concepção de saúde deve ultrapassar as barreiras reducionistas para estruturar seu conceito na definição ampliada de saúde. Por sua vez, a noção vivenciada, atualmente, de saúde, conforme os autores, está estruturada através do significado do indivíduo em sua singularidade e subjetividade.

Nessa esteira interpretativa, o indivíduo precisa ser compreendido “na organização da sua vida cotidiana e faz se necessário reconhecer que a concepção de existência de saúde, nos dias de hoje, envolve um conjunto mais amplo das necessidades humanas, como a sexualidade, a identidade, o meio ambiente, entre outras dimensões” (CALVALCANTI, ZUCCO, p. 70-71, 2006).

Nesse contexto, através do entendimento de que a humanização é compreendida como uma nova proposta de atenção à saúde direcionada ao ser humano assegurada a todos de forma igualitária, o Estado, a partir de políticas públicas de saúde, vem propondo medidas voltadas a promoção da humanização das práticas e dos serviços de saúde para resguardar o acesso à informação acerca da saúde, assim como preservar a autonomia do sujeito-paciente (GOULART, 2010).

Dentre os programas direcionados a humanização do cuidado destacam-se a Política Nacional de Humanização dos Serviços de Saúde (2003) e o Programa de Humanização do Pré-natal e Nascimento (2000). Referidos programas têm como premissas o atendido do sujeito-paciente de forma humana e solidária e, sobretudo, primam pela efetividade os princípios estruturantes que resguardam o direito à saúde.

Com efeito, as políticas públicas de saúde com enfoque na promoção da humanização do cuidado vêm sendo implementadas, contudo, ainda, conceitos como integralidade e universalidade precisam ser efetivados para que o cuidado possa ser compreendido como humanizado e, com isso, o sujeito-paciente possa efetivamente exercer seu direito à saúde na sua plenitude, pois há que se compreender, em última análise, que não pode o Estado se recusar de cumprir com sua obrigação de assegurar o direito à saúde a todos.

2 – DIREITOS DOS PACIENTES

Feitas as considerações acerca dos profissionais da área médica, bem como das políticas de saúde faz-se imprescindível analisar os princípios da bioética que circundam a relação médico-paciente e a humanização desse cuidado. Assim, irá se demonstrar que, conforme acima ponderado se demonstra imprescindível ultrapassar as barreiras da formação médica tecnicistas para que, assim, se possa (re)pensar o  cuidado e compreendê-lo de forma humanizada.

2.1– OS PRINCÍPIOS DA BIOÉTICA COMO NORTEADORES DOS DIREITOS DOS PACIENTES

A relação médico-paciente vem sofrendo alterações na atualidade, estando em profunda crise, em razão da falta de humanização. Tal é decorrente, principalmente da mudança de pensamento e atitude da sociedade.

Com efeito, antigamente a relação médico-paciente era regrada pela amizade e confiança entre os envolvidos, sendo que cada núcleo familiar elegia um médico “de família” e nele depositava o seu respeito, buscando a cura para doenças familiares. (FREIRE DE SÁ; NAVES, 2009). Nessa época, paciente e médico partilhavam da mesma opinião, qual seja, quem sabia o que era melhor para o doente era o médico, pois ele era dotado do saber científico.

Isso se explica até pelo próprio juramento principiológico das ciências médicas, o juramento de Hipócrates, bastante utilizado e que, em determinado trecho diz: “(…) Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém.(…)”. Constata-se, portanto, que o dever do médico para com o paciente estava baseado em promover o bem do doente, buscando a cura da melhor maneira possível, não tendo o paciente espaço para influenciar na tomada de decisão, muito menos apor qualquer objeção. (LIGIERA, 2005).  

Contudo, a evolução da sociedade de consumo, o mundo globalizado e a tecnologia geraram mudanças no comportamento da humanidade, e consequentemente, na relação médico-paciente. A existência de novas tecnologias, a especialização incessante do profissional para tornar-se cada vez mais qualificado, bem como a necessidade dos pacientes em recorrer a planos de saúde, a fim de reduzir os custos, acarretaram a falta de pessoalidade na relação médico-paciente.

Assim, o novo paradigma da medicina e a falta de cuidados com os pacientes desperta a necessidade de análise pela bioética, que estuda uma operacionalização mais humana dessa relação. Surgem assim, os direitos dos pacientes, que passam a ganhar relevo.

Para análise dos direitos dos pacientes é necessário abordar o tema a partir de uma análise bioética principiólogica, de maneira que permita extrair as premissas fundamentais para a relação dos pacientes com seus médicos. Nessa esteira, a bioética empresta essa contribuição com o tema, uma vez estuda os princípios que circundam esse vínculo, apresentado sua aplicação e flexibilização, quando necessária.

A bioética apresenta quatro grandes pilares nessa relação, que consistem no princípio da autonomia, princípio da beneficência, princípio da não maleficência e princípio da justiça. (BEUCHAMP e CHILDRESS, 2002). Tais princípios são decorrentes do próprio desenvolvimento da bioética e do resultado do trabalho de Beuchamp e Childress, como assevera Wilson Ligiera:

“A bioética, outrossim, não é impositiva. Não visa estabelecer normas ou regras de conduta. Ainda assim, não escapou à tendência humana de normatização. Diante da preocupação pública com o controle social da pesquisa científica em seres humanos (especialmente considerando a ocorrência de alguns escândalos envolvendo grande desrespeito para com pacientes negros, crianças e idosos), foi criada pelo Congresso norte-americano, em 1974, a National Commission for Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research, com a finalidade de realizar estudos destinados a identificar os princípios éticos básicos da biomedicina. Quatro anos depois, a referida comissão concluiu um relatório final conhecido como Belmont Report. Este relatório serviu de base para a criação de três princípios éticos básicos, que acabaram sendo sistematizados num livro de Tom L. Beauchamp e James F. Childress, de 1979, intitulado Principles of Biomedical Ethics.

Os três princípios estabelecidos no relatório Belmont foram os seguintes:

1) respeito pelas pessoas (posteriormente traduzido como “autonomia”);

2) beneficência (prática ou virtude de fazer o bem, de beneficiar o próximo); e 3) justiça (caráter ou qualidade do que está em conformidade com o que é justo ou equânime). Beuchamp e Childress, todavia, retrabalharam os três princípios em quatro, distinguindo beneficência e não-maleficência”. (LIGIERA, 2005, p. 412 e 413).

     Em linhas gerais, o princípio da beneficência objetiva fazer ou promover o bem, isto é, o médico deve buscar a cura da doença, promovendo o bem do paciente, de acordo com sua capacidade profissional e seu discernimento e subjetividade. Já o princípio da maleficência, umbilicalmente ligado à beneficência, conceitua-se como não fazer o mal, não causar dano ao paciente de maneira intencional.

No que respeita aos princípios da autonomia e da justiça, respectivamente caracterizam-se por ser o amplo direito de escolha do paciente, com liberdade para expressar sua vontade e por garantir a distribuição justa e equânime no tocante ao direito à saúde, verificando-se a primazia de atendimento. (BEUCHAMP e CHILDRESS, 2002).

Em decorrência do estabelecimento desses princípios e da mudança na sociedade, surgiram os direitos dos pacientes, ganhando relevo quando da publicação da obra de Christian Gauderer em 1987, intitulada Direitos dos Pacientes – um manual de sobrevivência. Tal obra está em consonância com o ideal que se aspira hoje.

A relação médico-paciente deve ser permeada pela vontade do paciente, considerando que há entre os sujeitos da relação direitos e deveres. Saliente-se que o doente tem o direito constitucional à saúde e à informação, sendo que o médico possui o dever de cura. E nessa esteira, a cura da doença deve vir de forma humanizada, permeando toda a relação existente, a fim de que transmita confiança e segurança ao paciente.

Dessa forma, os princípios da bioética devem nortear a relação médico-paciente, primando por sua aplicação e assegurando-se que o paciente tenha plena autonomia da sua condição e possa exercer a sua vontade perante a sua saúde, ponderando-se que a beneficência deve ser usada, sem paternalismo, para fazer o bem. E o bem, não apenas do ponto de vista médico de cura, mas também o bem visto pelo doente, o qual é o vulnerável na situação. (LIGIERA, 2005).

2.2– A NECESSIDADE DA HUMANIZAÇÃO DO CUIDADO NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE

As dificuldades da relação médico-paciente são evidentes, tanto que, como exposto anteriormente, os princípios da bioética tentam harmonizar e minimizar seus danos. Comprovadamente, as ciências médicas não são direcionadas para a humanização, nem mesmo possuem um currículo adequado para a promoção dessa relação, conforme abordado acima.

É preciso atentar-se ao dispositivo constitucional que preconiza a gestão compartilhada de saúde e promover o aperfeiçoamento do sistema operacional de gestão, a fim de buscar outra composição para relação médico-paciente. Note-se o que preconiza o artigo 198 da Constituição Federal:

“Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III – participação da comunidade (…).”

Nessa esteira, para a humanização do cuidado na relação médico-paciente necessário se faz uma atenção à formação médica curricular, de maneira que se permita reformular o currículo, inserindo disciplinas humanitárias, quebrando o paradigma saúde-doença, voltando-se para a educação dos sujeitos que promovem a cura.

No mesmo sentido, é preciso conscientizar os pacientes dos seus direitos, para que exerçam a sua autonomia, com consciência dos seus direitos, pois com a informação correta, o direito de escolha se torna realmente uma liberalidade do paciente, que atua com conhecimento de causa.

Com efeito, a humanização do cuidado na relação médico-paciente deve atender a três premissas chave:

“Humanizar a atenção à saúde, com toda a intensidade de sua inscrição no debate (boi) ético, passa, então, a significar:

 (1) a valorização da dimensão subjetiva e social, em todas as práticas de atenção e de gestão no SUS, fortalecendo o compromisso com os direitos do cidadão, destacando-se o respeito às questões de gênero, etnia e orientação sexual, entre outras;

 (2) a garantia de acesso dos usuários às informações sobre saúde, inclusive sobre os profissionais que cuidam de sua saúde, respeitando o direito ao acompanhamento de pessoas de sua rede social (de livre escolha);

(3) a possibilidade de estabelecer vínculos solidários e de participação coletiva, por meio da gestão participativa, com os trabalhadores e os usuários, garantindo educação permanente aos trabalhadores do SUS de seu município.” (GOMES; REGO; SIQUEIRA-BATISTA, 2008, p. 486).

Assim, o rompimento com o sistema atual, caracterizado, em síntese, pela informação do médico para o paciente faz-se fundamental.  Com a assunção de uma nova perspectiva de troca e interação entre os sujeitos, em que médico e paciente tenham uma relação aberta, o doente será conscientizado de seus direitos para exercer o direito de escolha de maneira fundamentada. E dessa maneira, o médico poderá exercer a melhor técnica de acordo com escolha efetuada pelo paciente.

Destaca-se, assim, que o princípio da beneficência deverá permear a relação para o bem, mas o bem, de acordo com ambas as opiniões, do médico profissional e do paciente vulnerável.

Nesse sentido, extraem-se as palavras de Caprara e Franco:

“Entretanto, neste modelo informativo, o médico funciona como simples técnico, fornecedor de informações corretas para o paciente. A superação dos modelos paternalista e informativo significa a necessidade de assumir um processo de comunicação que implique na passagem de um modelo de comunicação unidirecional a um bidirecional, que vai além do direito à informação. Esse terceiro modelo, intitulado comunicacional, exige mudança de atitude do médico, no intuito de estabelecer uma relação empática e participativa que ofereça ao paciente a possibilidade de decidir na escolha do tratamento”. (CAPRARA; FRANCO, 1999, p. 651).

Finalmente, verifica-se que a humanização do cuidado será efetivada quando a harmonização da relação médico-paciente partir da aspiração médica em proporcionar uma qualidade de vida e saúde dignas ao paciente. O respeito ao ser humano, doente, pauta-se na garantia de considerá-lo um sujeito de direitos, oportunizando que faça uso de sua autonomia, de maneira consciente, em atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana, que perfaz elemento inerente de sua cidadania.

CONCLUSÃO

A sociedade globalizada e o avanço da tecnologia acarretaram reflexos também na área da saúde, importando na falta de humanização no atendimento dos pacientes. Com isso, nasceu uma corrente humanista em busca da concretização dos direitos sociais, elevando a saúde como um direito de todos e dever do Estado, visando um atendimento digno ao paciente, e ainda, um sistema de saúde igualitário, solidário e abrangente.

A reflexão proposta no presente trabalho partiu da necessidade de promover a humanização do cuidado na relação médico-paciente, rompendo com o sistema de saúde-doença e passando a adotar um sistema estruturante baseado na premissa da dignidade da pessoa humana. Para tanto, abordou-se a questão da formação curricular médica e delineou-se a existência de políticas públicas de saúde.

Com efeito, constatou-se a necessidade primordial da inserção de disciplinas humanitárias no currículo médico universitário, a fim de que seja promovida e estimulada a prática da humanização do atendimento. Do mesmo modo, é dever do Poder Público, com a participação da sociedade, incentivar e proporcionar políticas públicas que visem à humanização do cuidado, tornando-a efetiva de maneira paulatina.

Nesse contexto, a relação médico-paciente, orientada pelos princípios da bioética, ganha destaque, rompendo com o paradigma saúde-doença e passando a englobar a autonomia do ser humano, permitindo que o ser vulnerável enfrente os momentos de sofrimento da melhor maneira para si. Assim, exercerá um direito de escolha fundamentado e consciente, possibilitando um cuidado digno de sua saúde.

Igualmente, vislumbra-se que a humanização do cuidado se propõe a aprimorar a relação médico-paciente. Essa humanização deverá ser compreensiva e acolher o paciente em todos os aspectos, tanto físico, como psicológico. Nesse aspecto, a solidariedade passa a ser à base do atendimento médico, que comportará técnica e humanismo, compartilhando angústias e sentimentos através do diálogo entre o paciente vulnerável e o médico profissional.

Dessa forma, a busca pelo respeito e efetivação da dignidade da pessoa humana, princípio constitucional consagrado, bem como do direito à saúde, passam evidentemente, pela humanização do cuidado na relação médico-paciente, o qual deve ser implementado de maneira democrática e participativa, com a participação da sociedade e do Estado. Somente assim, o ser humano será compreendido em sua essência e sua individualidade, transformando o atendimento à saúde em algo mais do que conhecimento científico: solidariedade.

 

Referências
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BRAUNER, Maria Claudia Crespo, FURLAN, Karina Morgana. O crescente processo de medicalização da vida: entre a judicialização da saúde e um novo modelo biomédico. In: (Org) BRAUNER, Maria Claudia Crespo, PIERRE, Philippe. Direitos Humanos, Saúde e Medicina: uma perspectiva internacional. Rio Grande: Ed. FURG, 2013.
BEUCHAMP, Tom; CHILDRESS, James. Princípios de Ética Biomédica. Tradução de Luciana Pudenzi. São Paulo: Loyola, 2002.
CAVALCANTI, Ludmila Fontenelle. ZUCCO, Luciana Patrícia. Política de saúde e serviço Social. In: (Org) REZENDE, Ilma, CAVALCANTI, Ludmila Fontenelle Serviço social e políticas sociais. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006.
CAPRARA, A. & FRANCO, A. L. S. A relação paciente-médico: para uma humanização da prática médica. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 15(3):647-654, jul-set, 1999.
FREIRE DE SÁ, Maria de Fátima; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. “Relação médico-paciente e responsabilidade civil do médico”. In: Manual de Biodireito. Belo Horizonte: DelRey Editora, p. 79-108, 2009.
GOULART, Bárbara Niegia Garcia de, BRASÍLIA Maria Chiari. Humanização das práticas do profissional de saúde – contribuições para reflexão. Disponível em: Acesso em: 30-04-2014. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232010000100031&script=sci_arttext.
GOMES, Andreia Patricia; REGO, Sérgio e SIQUEIRA-BATISTA, Rodrigo. Bioética e humanização como temas transversais na formação médica. Revista Brasileira de Educação Médica. Rio de Janeiro: RBEM, 32 (4): 482-491; 2008.
LIGIERA, Wilson Ricardo. Os princípios da bioética e os limites da atuação médica. Revista Ibero-Americana de Direito Público. (Coord. Ives Gandra da Silva Martins). Rio de Janeiro, ano 5, n. 20, p. 410-427, 4º trim. 2005.
NARDI, Henrique Caetano. Relações de gênero e diversidade sexual: Compreendendo o contexto sociopolítico contemporâneo. In:(Org) NARDI, Henrique Caetano, SILVEIRA, Raquel da Silva, MACHADO, Paula Sandrine.  Diversidade sexual, relações de gênero e políticas públicas. Porto Alegre: Sulina:2013.
PESSINI, Leo. Humanização da dor e do sofrimento humanos na área da saúde. In: (Org.) PESSINI, Leo, BERTCHINI, Luciana. Humanização e Cuidados Paliativos.  São Paulo: Edições Loyola, 2004.
 
Notas
[1] Artigo apresentado para disciplina de Direito, Saúde e Bioética, do curso de Mestrado em Direito e Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) ministrada pela Profa. Dra. Maria Claudia Crespo Brauner.

[2] Conforme Nardi (2013, p. 19), o conceito de vulnerabilidade é atribuído a John Mann et al. (1993) e tal conceito foi retomado no Brasil por José Ricardo Ayres et al. (1999), “buscando entender a articulação indivíduo-coletivo nas formas como as pessoas estão mais propensas ou expostas ao risco da infecção”. Nardi (2013, p. 19) ressalva, “que para os autores, o comportamento individual não pode ser dissociado das condições socioculturais e institucionais que o  condicionam, ou seja, o preconceito, a discriminação e a ausência de políticas públicas eficazes produzem a vulnerabilidade”.


Informações Sobre os Autores

Amanda Netto Brum

Advogada, graduada pela Universidade Federal do Rio Grande-FURG, especializanda em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera-UNIDERP/LFG. Professora substituta da Faculdade de Direito (FAdir) da Universidade Federal do Rio Grande (FURG-RS)

Silvia Gomes Terra Leite

Mestranda em Direito e Justiça Social do PPGD da FURG


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