A Lei nº 9.099/95 criou, em seu artigo 89, o instituto da Suspensão
Condicional do Processo, estabelecendo que, nos crimes em que a pena mínima
cominada for igual ou inferior a 1 (um) ano, abrangidas ou não por aquela lei,
o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do
processo, por 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que o acusado cumpra
determinadas condições ali previstas e outras que o juiz vier a especificar.
Até
recentemente, nunca houve qualquer discussão acerca do mencionado limite de
pena mínima de 01 (um) ano para efeito de proposta de suspensão processual.
Entretanto, no julgamento do RHC 12.0033 – MS, ocorrido em 13/08/2002
(publicada no DJU de 9.9.2002, p. 234), a 5ª Turma do Superior
Tribunal de Justiça, através do Ministro Felix Fischer, entendeu que, em razão da edição da Lei Federal nº 10.259/2001, que
ampliou o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, também se
devia aumentar para 02 (dois) anos o limite da pena mínima para efeitos de
concessão de suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei nº 9.099/95). Tal
acórdão ainda recomendou a modificação da Súmula n. 243, que regula a essa
mesma matéria no concurso de crimes.
Como era de se esperar, essa decisão do STJ causou
e tem causado amplo debate, levando os causídicos a ajuizarem medidas judiciais
visando à aplicação do benefício do “sursis
processual” agora também nos crimes cuja pena mínima não seja superior a 02
(dois) anos.
Pois bem. Apesar do entendimento esposado por
aquela egrégia Corte de Justiça, que aliás foi revisto em sede de embargos, o
instituto da suspensão condicional do processo, em verdade, não sofreu qualquer
alteração em razão da edição da Lei Federal nº 10.259/2001, sendo ainda
permitido apenas para os crimes que tenham pena mínima não superior a 01 (um) ano.
Ao
comentar a decisão supracitada, o eminente DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS assim lecionou[1]:
“Essa manifestação do acórdão, entretanto, é de discutível acerto, não
recebendo a nossa aprovação. Ocorre que o art. 61 da Lei n. 9.099/95 trata da
conceituação de crimes de menor potencial ofensivo para efeito da competência
dos Juizados Especiais Criminais, o mesmo ocorrendo com o art. 2.º da Lei n.
10.259/2001. O art. 89 da Lei n. 9.099/95, contudo, inserido na lei por simples
aproveitamento do legislador, disciplina um instituto
de despenalização, abrangendo não só as infrações de menor potencial ofensivo,
objeto dos Juizados Especiais Criminais, mas também outras infrações de maior
gravidade, porém limitadas pela quantidade da pena. Por isso, o art. 89, não
disciplinando especificamente as infrações de menor potencial ofensivo, leva em
conta a pena mínima cominada,
enquanto o art. 61 considera a pena máxima
abstrata. Como o instituto e o sistema são diversos, cada um aplicando critérios
diferentes, é incabível a invocação do princípio da proporcionalidade”. No
mesmo sentido posicionou-se ADA PELLEGRINI GRINOVER, em sua seguinte obra: Juizados Especiais Criminais. 4.ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002,
p. 257.
Seguindo
caminho diverso, o renomado Professor LUIZ FLÁVIO GOMES[2],
passou a sustentar que, em função da decisão inovadora do Superior Tribunal de
Justiça, deverá agora se observar o limite de 02 (dois) anos (pena mínima) para
a feitura de proposta de suspensão processual, ressaltando ainda que, por ser
favorável o superveniente entendimento jurisprudencial, é ele retroativo, alcançando
também os casos em
andamento. Consignou, todavia, que se exige agora muita
prudência do juiz, devendo ser criterioso no momento da análise da concessão
(ou não) do instituto citado.
Diante das duas correntes
doutrinárias formadas, tem-se que a primeira é a mais acertada, eis que, além
de fazer uma exegese sistemática e lógica dos textos legais, poda uma ampliação
exagerada do espaço de consenso no Direito Penal Brasileiro.
Como antes esclarecido, uma coisa é o conceito de Crimes de Menor
Potencial Ofensivo, cujo rol foi ampliado em razão do aumento do limite da pena
máxima para dois anos (Lei nº 10.259/2001). Outra coisa é o instituto da
Suspensão Condicional do Processo (art. 89 da Lei nº 9.099/95), de modo que
merecem tratamento diferenciado, até porque se um se norteia pela pena máxima e
o outro se norteia pela pena mínima.
O mestre JULIO FABBRINI MIRABETE ensina que o sursis processual é um instituto de despenalização indireta ou
processual que visa a evitar a imposição
ou a execução da pena nos casos de crimes de menor gravidade[3]
Nota-se, por conseguinte, que o objetivo da suspensão condicional do
processo é impedir, nos casos de crimes menos graves, a estigmatização da
condenação e do próprio processo, evitando-se o debate sobre o mérito da causa
e a aplicação da reprimenda penal, concedendo-se um crédito de confiança ao
criminoso e o estimulando a não mais delinqüir.
Não se pode perder de vista, todavia, que, caso viesse mesmo a ser
elevado o limite da pena mínima para 02 (dois) anos, para efeito de suspensão
condicional do processo, mais de 90 % (noventa porcento) dos crimes previstos
no Estatuto Repressivo, inclusive delitos graves, que causam repulsa social e
sérios prejuízos à comunidade, passariam a admitir o benefício, que se baseia
pela pena mínima e que foi idealizado
para crimes de menor gravidade.
Assim, considerando que crimes mais graves possibilitariam o chamado sursis processual, grande seria, no meio
social, a sensação de impunidade, já que o instituto em comento não permite a
cominação de nenhuma sanção, mas tão-somente obriga o agente ao cumprimento de
certas condições.
Como tais condições, na prática, por falta de fiscalização, acabam se
limitando ao “comparecimento ao fórum
para assinar, mensalmente, livro de freqüência”, ficaria a impressão, para
a comunidade e especialmente para a vítima, de que nada aconteceu com o autor
do delito.
Justamente temendo a instalação de um sistema de impunidade, o ilustre
PAULO LÚCIO NOGUEIRA fez o seguinte alerta:[4]
“não há dúvida de que há uma tendência despenalizadora em relação a certos
crimes, como o aborto, o uso de drogas etc., o que representa um perigo para a
sociedade. Na esteira dessa perspectiva a tolerância vai-se infiltrando e
afastando os crimes que parecem ser insignificantes ou de bagatela; depois são
atingidos os mais graves e implanta-se um regime de impunidade. Se atualmente
já existe uma queixa generalizada contra a criminalidade e sua impunidade, no
futuro essa queixa ainda será maior, quando os órgãos públicos mantidos para
combater os crimes não tiverem a devida atuação. Se agora se omitirem, ao
arrepio das leis existentes, futuramente não agirão amparados por, que só
beneficiam os criminosos em detrimento da própria sociedade”.
É verdade, por outro lado, que o sursis
processual, ou sursis antecipado,
como querem alguns, significa uma grande economia processual, já que evita o
funcionamento do Órgão Ministerial e do Poder Judiciário.
Entretanto, não se pode, talvez até por comodismo, deixar de instruir
e julgar feitos relativos a crimes mais graves, sob pena de se semear a
descrença da população quanto à seriedade da Justiça, sem contar o inevitável
incentivo à criminalidade.
Assim, diante do foi exposto, conclui-se que há de se rechaçar a tese
do aumento do limite da pena mínima para efeito de suspensão condicional do
processo, afastando-se a idéia de despenalização exagerada e se mantendo a
responsabilização criminal na forma como preconizada pela lei e também como
esperada pela sociedade.
Notas:
[1] in Ampliação do
Rol dos Crimes de Menor Potencial Ofensivo e Suspensão Condicional do Processo.
São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, setembro.2002.Disponível em
:<www.damasio.com.br/novo/html/frame_artigos.htm>
[2] in artigo publicado e disponível em:
www.ielf.com.br
[3] in Juizados Especiais Criminais –
Comentários Jurisprudência Legislação – Editora Atlas. 2001. página 273.
[4] in Juizados Especiais Cíveis e Criminais.
Editora Saraiva. 1996. página 99.
Informações Sobre o Autor
Flávio da Silva Andrade
ex-Juiz de Direito do TJAC e Promotor de Justiça no Estado de Rondônia