O inquérito policial: uma análise sobre a sua importância para a persecução penal

Resumo: O inquérito policial compõe uma das fases da persecução penal, em que são angariados elementos informativos e probatórios (exceção) com o fito de robustecer e subsidiar a opnio delicti do Ministério Público, titular da ação penal pública. Desta forma, se faz necessário um inquérito pautado nos ditames constitucionais impregnados pelo Estado Democrático de Direito. No arcabouço jurídico brasileiro atual, o inquérito adquiriu conotações importantes, pois com as mudanças operadas na legislação processual penal, os elementos colhidos na fase das investigações policiais além de visarem à apuração da prática de uma infração penal e sua autoria, poderão servir de base, não exclusivamente, para a confecção de decisões judiciais. Desta forma, o instituto do inquérito policial necessita tramitar conforme os ditames constitucionais, para que assim seja legítimo e venha servir de filtro para que sejam evitados processamentos sem justa causa, pois servirá como um obstáculo contra acusações infundadas, prezando, assim, pela dignidade da pessoa humana. O inquérito policial é peça chave para uma persecução penal que vise a defesa dos direitos e garantias fundamentais do cidadão.

Palavras-chave: Inquérito Policial. Persecução Penal. Estado Democrático.

Abstract: The police inquiry consists of the stages of criminal prosecution, they are pieces of information and evidence raised (exception) with the aim to strengthen and support the delicti opnio the public prosecutor, head of the public prosecution. Thus, if a guided investigation in impregnated constitutional dictates the democratic rule of law is necessary. In the current Brazilian legal framework, the survey acquired important connotations, as with the changes operated in the criminal procedure law, the elements collected at the stage of police investigations addition of aiming at determination of committing a criminal offense and his own, could form the basis, not exclusively for making judgments. In this way, the police inquiry of the institute needs transact according to constitutional principles, so that it is legitimate and will serve as a filter for processing are avoided without cause, as will serve as a barrier against unfounded accusations, valuing thus the dignity of human person. The police inquiry is key piece for a criminal prosecution aimed at protecting the rights and guarantees of citizens.

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Keywords: Police Inquiry. Criminal Prosecution. Democratic State.

Sumário: Introdução. 1- Sistemas Processuais. 1.1- Sistema Acusatório. 1.2- Sistema Inquisitório. 1.3- Sistema Misto. 2- A investigação preliminar brasileira: o inquérito policial. 3- A necessidade de exclusão das peças do inquérito policial dos autos processuais: a originalidade do processo penal. 4- A importância do inquérito policial no Estado Democrático de Direito. Conclusão. Referências.

Introdução

Neste artigo, pretende-se enaltecer a importância do inquérito policial para a persecução penal, como também, para o Estado Democrático de Direito. Esclarecer-se-á que, atualmente, o inquérito deve estar pautado em ditames constitucionais, pois sua principal função é servir de filtro para que não haja processos desnecessários, havendo assim, o respeito a dignidade da pessoa humana.

O inquérito policial, apesar de sua tão defendida inquisitoriedade, encaixa-se como peça chave no atual Estado Democrático de Direto? Qual seria a real função deste instituto processual penal no atual cenário democrático inaugurado pela Bíblia Política[1] de 1988?

O atual Estado Democrático de Direito tem como primado a defesa incondicional do princípio da Dignidade da Pessoa Humana, que é base e fundamento da República Federativa do Brasil. Em meio a esta vasta percepção humana e democrática vivida pela sociedade atual, existe um instituto jurídico em que hodiernamente tem como base algo totalmente impensável e inadmitido atualmente: a inquisitoriedade; pois é nestas bases que o inquérito policial se alicerça. Mas, como admitir-se um instituto com bases tão retrógradas e, porque não dizer, absurdas, no atual cenário jurídico democrático? Necessita-se traçar um paradoxo entre o instituto do inquérito policial e o Estado Democrático de Direito vivido atualmente, onde a sua real função deve ser readequada e reanalisada, não servindo apenas para fins meramente fático-criminais, mas também cabe ressaltar a sua função endoprocedimental perante a persecution criminis.

Averiguar-se-á se o inquérito policial, apesar da sua base inquisitorial, coaduna-se com a ideia de Estado Democrático de Direito. Neste viés, buscar-se-á identificar a sua real função neste cenário democrático e perante a persecução penal. Será examinada a atual conjuntura acusatória, com requintes inquisitoriais, existente atualmente, ressaltando o caráter misto do sistema processual penal brasileiro. Analisar-se-á as disposições do ordenamento jurídico brasileiro referentes a figura do inquérito policial, traçando um paradoxo deste instituto jurídico com a ideia de Estado Democrático de Direito. Perquirirei se a função filtro executada pelo inquérito policial contribui para a defesa e fortalecimento das bases do Estado Democrático de Direito, evitando processos judiciais desmedidos, onde apenas visam estigmatizar e etiquetar aqueles submetidos a tal despautério, buscando assim concretizar e defender a Dignidade da Pessoa Humana.

Inicialmente falar-se-á sobre os sistemas processuais (acusatório, inquisitório e misto), abordando suas origens e aplicabilidade no direito brasileiro. Em seguida, será estudado o inquérito policial em si, tratando-se da principal investigação preliminar brasileira. Será analisada a questão da originalidade do processo penal, que só será atingida através da exclusão do inquérito dos autos do processo, pois não há como coadunar com sentenças baseadas em meros elementos informativos colhidos na fase das investigações preliminares, o que violaria de morte o Estado Democrático de Direito. Por fim, demonstrar-se-á a importância do inquérito policial para o Estado Democrático de Direito, servindo como um obstáculo para o processamento injustificado, agindo como filtro processual, ressaltando a sua função endoprocedimental.

1 – Sistemas processuais

Na história do Direito se alternam as mais duras opressões com as mais amplas liberdades. Segundo Ernest Beling (1943, p. 21), “é natural que nas épocas em que o Estado viu-se seriamente ameaçado pela criminalidade o Direito Penal tenha estabelecido penas severas e o processo tivesse que ser também inflexível”.

“Na época em que surgiram os sistemas processuais inquisitivo e acusatório são reflexos da resposta do processo penal frente às exigências do Direito Penal e do Estado, onde atualmente o law and order é mais uma ilusão de reduzir a ameaça da criminalidade endurecendo o Direito Penal e o processo” (LOPES JÚNIOR, 2012, p. 123).

Na lição de James Goldshcmidt (1936, p. 67):

“Los principios de la política procesal de uma nación no son otra cosa que segmentos de su política estatal em general. Se puede decir que la estructura del proceso penal de una nación no es sino el termómetro de los elementos corporativos o autoritários de su Constitución. Partiendo de esta experiencia, la ciencia precesal ha desarrollado um número de principios opuestos constitutivos del proceso. (…) El predominio de uno u otro de estos principios opuestos en el derecho vigente, no es tampoco más que un tránsito del derecho pasado al derecho del futuro”.

Conforme o ilustre professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (2001, p. 28):

“Os diversos ramos do Direito podem ser organizados a partir de uma ideia básica de sistema: conjunto de temas colocados em relação por um princípio unificador, que formam um todo pretensamente orgânico, destinado a uma determinada finalidade. Assim, para a devida compreensão do Direito Processual Penal é fundamental o estudo dos sistemas processuais, quais sejam, inquisitório e acusatório, regidos, respectivamente, pelos referidos princípios inquisitivo e dispositivo”.

“Destarte, a diferenciação destes dois sistemas processuais faz-se através de tais princípios unificadores, determinados pelo critério da gestão da prova. Ora, se o processo tem por finalidade, entre outras, a reconstituição de um fato pretérito, o crime, mormente através da instrução probatória, a gestão da prova, na forma pela qual ela é realizada, identifica o princípio unificador”.

“Cronologicamente, em linhas gerais, o sistema acusatório predominou até meados do século XII, sendo posteriormente substituído, gradativamente, pelo modelo inquisitório que prevaleceu com plenitude até o final século XVIII (em alguns países, até parte do século XIX), momento em que os movimentos sociais e políticos levaram a uma nova mudança de rumos. A doutrina brasileira, majoritariamente, aponta que o sistema brasileiro contemporâneo é misto (predomina o inquisitório na fase pré-processual e o acusatório, na processual)” (LOPES JÚNIOR, 2012, p. 124).  

1.1 – Sistema Acusatório

A origem do sistema acusatório remonta ao Direito grego, o qual se desenvolve referendado pela participação direta do povo no exercício da acusação e como julgador. Vigorava o sistema de ação popular para os delitos graves (qualquer pessoa podia acusar) e acusação privada para os delitos menos graves, em harmonia com os princípios do Direito Civil” (LOPES JÚNIOR, 2012, p. 124).

Enfatizando o sistema processual romano, Aury Lopes Júnior (2012, p. 124) explica:

No Direito romano da Alta República surgem as duas formas do processo penal: cognitio e accusatio. A cognitio era encomendada aos órgãos do Estado – magistrados. Outorgava os maiores poderes ao magistrado, podendo este esclarecer os fatos na forma que entendesse melhor. Era possível um recurso de anulação (provocatio) ao povo, sempre que o condenado fosse cidadão e varão. Nesse caso, o magistrado deveria apresentar ao povo os elementos necessários para a nova decisão”.

Na accusatio, a acusação (polo ativo) era assumida, de quando em quando, espontaneamente por um cidadão do povo. Surgiu no último século da República e marcou uma profunda inovação no Direito Processual romano. Tratando-se de delictia publica, a persecução e o exercício da ação penal eram encomendados a um órgão distinto do juiz, não pertencente ao Estado, senão a um representante voluntário da coletividade (accusator). Esse método também proporcionava aos cidadãos com ambições políticas uma oportunidade de aperfeiçoar a arte de declamar em público, podendo exibir para os eleitores sua aptidão para os cargos públicos”.

Conforme Luigi Ferrajoli (2006, p. 518), “são características do sistema acusatório a separação rígida entre o juiz e acusação, a paridade entre acusação e defesa, e a publicidade e a oralidade do julgamento”.

“No sistema acusatório, a gestão da prova é função das partes, cabendo ao juiz um papel de garante das regras do jogo, salvaguardando direitos e liberdades fundamentais. Diversamente do sistema inquisitorial, o sistema acusatório caracteriza-se por gerar um processo de partes, em que autor e réu constroem através do confronto a solução justa do caso penal. A separação das funções processuais de acusar, defender e julgar entre sujeitos processuais distintos, o reconhecimento dos direitos fundamentais ao acusado, que passa a ser sujeito de direitos e a construção dialética da solução do caso pelas partes, em igualdade de condições, são, assim, as principais características desse modelo” (LIMA, 2011, p. 40).

Pelo exposto, observa-se que o sistema acusatório tem como principais características a separação das funções de acusar e julgar, como também a gestão da prova fica a cargo das partes, não cabendo ao juiz gerir a produção probatória, mantendo-se como um terceiro imparcial, buscando desta forma democratizar o processo, colocando-o no horizonte constitucional, em respeito às bases acusatórias sedimentadas pela Carta Magna de 1988.

1.2 – Sistema Inquisitório

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O sistema inquisitório remonta à Inquisição, como a própria nomenclatura indica. A Inquisição não tinha relação qualquer com o fenômeno criminoso, não objetivava enfrentar altos índices de criminalidade da época. O seu principal foco era o desvio em relação aos dogmas estabelecidos pela Igreja Católica Apostólica Romana, que alegava estar ameaçada pela proliferação das novas crenças heréticas, no contexto da reforma religiosa do século XVI. A estrutura repressiva inquisitorial apresentava características peculiares, tendo como fundamentação uma série de verdades absolutas que giravam em torno do arcabouço ideológico oferecido pelo dogmatismo religioso da época” (KHALED JÚNIOR, 2010, p.295).

Tratava-se de um sistema de envergadura considerável, se analisadas as diversas técnicas para atingir os objetivos pretendidos, previstas estas no Manual dos Inquisidores de Eymerich. Tratava-se de um conhecimento nada ingênuo, mas de um complexo ideológico lógico e interligado, muito bem elaborado a fim de justificar as diversas atrocidades cometidas com a justificativa de estar fazendo a vontade de Deus. Este sistema proposto na Inquisição, serviu de base e referência para grande parte dos modelos autoritários contemporâneos, alguns ainda em vigor nos dias atuais.[2]

Explicando de forma pormenorizada a problemática da gestão probatória no seio do sistema inquisitório, aponta Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (2001, p.24):

“A característica fundamental do sistema inquisitório, em verdade, está na gestão da prova, cominada essencialmente ao magistrado que, em geral, no modelo em análise, recolhe-a secretamente, sendo que “a vantagem (aparente) de uma tal estrutura residiria em que o juiz poderia mais fácil e amplamente informar-se sobre a verdade dos fatos – de todos os factos penalmente relevantes, mesmo que não contidos na ‘acusação’ – dado seu domínio único e onipotente do processo em qualquer das suas fases”. O trabalho do juiz, de fato, é delicado. Afastado do contraditório e sendo o senhor da prova, sai em seu encalço guiado essencialmente pela visão que tem (ou faz) do fato”.

“Conforme o exposto, o que se nota na estrutura inquisitória, portanto, é uma fusão das funções de acusador e juiz e a consequente confusão entre os que seriam métodos para acusar e métodos para julgar. O juiz, senhor da prova, sai em seu encalço guiado essencialmente pela visão que tem (ou faz) do fato, privilegiando-se o mecanismo “natural” do pensamento da civilização ocidental que é a lógica dedutiva, a qual deixa ao inquisidor a escolha da premissa maior, razão por que pode decidir antes e, depois, buscar, quiçá obsessivamente, a prova necessária para justificar a decisão” (COUTINHO, 2008, p. 12).

O juiz, como o senhor da prova, mentaliza o que considera como sendo a linha de busca a ser traçada, ou até mesmo, já decide em sua consciência qual destino deve tomar a persecução judicial, onde para legitimar seu encalço, sai em busca de um arcabouço probatório, que sirva como base para a implementação de suas premissas subjetivas.

Segundo o professor Fábio Presoti Passos (2012, p. 30-31):

“O modelo inquisitorial, regido pelo princípio inquisitivo, essencialmente consiste em fundir na figura do Estado a atividade persecutória e a atividade judicial, predominando uma excessiva e grandiosa valoração de aspectos subjetivos, pois somente o inquisidor é dotado de capacidade sobre-humana, ficando a gestão da prova a seu cargo. O inquisidor atua como verdadeira parte, pois investiga, instrui, acusa e julga”.

No sistema inquisitório, há a formação de um quadro mental paranoico, pois como explica Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (2001, p. 37):

“Quando se autoriza ao juiz a instauração ex officio do processo, como era típico no sistema inquisitório puro, permite-se a formação do quadro mental paranoico, ou seja, abre-se ao juiz a “possibilidade de decidir antes e, depois, sair em busca do material probatório suficiente para confirmar a ‘sua’ versão, isto é, o sistema legitima a possibilidade da crença no imaginário, ao qual toma como verdadeiro”. Diante disto, parece sintomático que o princípio da inércia da jurisdição é um dos pressupostos para que se tenha um processo penal democrático”.

O quadro mental paranoico consta-se no ato do magistrado em recolher a prova, antecipando desta forma o seu juízo, pois é evidente que o juiz como ser humano irá tender para um dos lados, culpado ou inocente, ao ter contato com o material probatório produzido e encontrado por ele mesmo.

O sistema inquisitório predominou até finais do século XVIII e início do XIX, momento em que a Revolução Francesa, os novos postulados de valorização do homem e os movimentos filosóficos que surgiram com ela repercutiram no processo penal, removendo paulatinamente as notas características do modelo inquisitivo. Coincide com a adoção dos Júris Populares, e se inicia a lenta transição para o sistema misto, que se estende até os dias de hoje.

1.3 – Sistema Misto[3]

A inquisição sucumbiu em suas próprias estruturas, pois era evidente a falha deste sistema altamente autoritário e desumano, sem falar das injustiças cometidas no tramitar de “processos” que de nada tinham como objetivo a busca pela “verdade”, mas sim pela “punição rápida e efetiva”, demonstrando a suprema eficiência do Estado/Igreja na solução de “controvérsias hereges”.

Segundo Salah Hassan Khaled Júnior (2010, p. 298):

“Não basta definir que apenas certas condutas são criminosas, através de processos de criminalização e depois de constatar a ocorrência de tais condutas (criminação) imputá-las arbitrariamente a quem bem entenda o poder estabelecido, desfigurando o aspecto de possível garantia ritualizada através da incriminação”.

Com o fracasso do sistema inquisitório e a gradual adoção do modelo acusatório, o Estado mantinha a titularidade absoluta do poder de punir, onde não poderia abandoná-la em mãos de particulares. Desta forma, mostra-se ser imprescindível uma divisão do processo em fases e encomendar as atividades de acusar e julgar a órgãos e pessoas distintas. Neste modelo que surge, o Estado continua detendo o monopólio da acusação, mas esta é realizada através de um órgão distinto do juiz.

Neste momento surge a figura do Ministério Público, onde é evidente o nexo entre este novo órgão e o sistema inquisitivo, pois com a divisão da atividade estatal, há obviamente a exigência de duas partes. O Parquet surge da necessidade do sistema acusatório, garantindo assim a imparcialidade do juiz[4].

Com relação a separação de funções como condicionante para um sistema ser considerado acusatório, critica Aury Lopes Júnior (2012, p. 135):

“Portanto, é reducionismo pensar que basta ter uma acusação (separação inicial das funções) para constituir-se um processo acusatório. É necessário que se mantenha a separação para que a estrutura não se rompa e, portanto, é decorrência lógica e inafastável, que a iniciativa probatória esteja (sempre) nas mãos das partes. Somente isso permite a imparcialidade do juiz”.

Atualmente, há uma insistência geral em manter raízes inquisitórias no seio do sistema processual penal brasileiro, incidindo em permanente conflito com a Constituição Federal, que prevê um modelo de processo firmado e direcionado pelo princípio do devido processo legal, sendo este absolutamente incompatível com o modelo inquisitorial, onde o juiz é o senhor do processo e gestor da prova nele a ser utilizada como sucedâneo de sua “justa” decisão. Nesta “inquisição processual”, o juiz decidi antes, e depois sai a procura das provas adequadas para justificar o seu “juízo consciente”, configurando um quadro mental paranoico.

A maioria esmagadora da doutrina considera ser um sistema misto aquele formado por uma fase pré-processual inquisitiva e sem a presença do contraditório, onde há uma maior relativização dos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente previstos, e uma fase processual, momento no qual todas estas garantias são previstas com a força que a Constituição exige no seio da persecução penal. Desta forma, a divisão do processo penal em duas fases (pré-processual e processual propriamente dita) possibilita o predomínio, em geral, da forma inquisitiva na fase preparatória e acusatória na fase processual, surgindo assim o caráter misto.

2 – A investigação preliminar brasileira: o inquérito policial

Inicialmente cabe definir o que vem a ser investigação preliminar. A investigação preliminar consiste no conjunto de atos preordenados, e devidamente harmonizados, tendo como fonte um fato típico, direcionados a averiguar a materialidade e autoria do crime, com o fim de robustecer e densificar a opinio deliciti do detentor da titularidade da ação penal, como também, construir um adequado arcabouço probatório para justificar a persecutio criminis no âmbito judicial.

Aury Lopes Júnior (2012, p. 291) define investigação preliminar:

“Chamaremos de investigação/instrução preliminar o conjunto de atividades desenvolvidas concatenadamente por órgãos do Estado, a partir de uma notícia-crime, com caráter prévio e de natureza preparatória com relação ao processo penal, e que pretende averiguar a autoria e as circunstâncias de um fato aparentemente delituoso, com o fim de justificar o processo ou o não processo”.

Em decorrência da natureza dos atos praticados nesta fase pré-processual, a instrução preliminar é autônoma[5], diferentemente dos atos praticados no âmbito do processo, principalmente no que diz respeito a intervenção dos sujeitos (não existem partes), ao objeto (notícia-crime e não pretensão acusatória) e à forma dos atos (predomínio da forma escrita e do sigilo das investigações). Visto posto, o que caracteriza esta autonomia da fase preliminar é que dela poderá não se originar processo (casos de arquivamento prévio ao exercício da ação penal), e naqueles em que o processo penal pode nascer e se desenvolver sem a prévia instrução (caso em que o órgão acusador do Estado já detém elementos suficientes para ingressar com a demanda).

A instrução preliminar é caracterizada pelo seu forte cunho instrumental. O processo penal tem por fundamento de existência a finalidade de garantir os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal (instrumentalidade constitucional), pois é o meio adequado/necessário para a efetivação da pena, mas, principalmente, objetiva garantir a máxima eficácia dos direitos e garantias previstos na Carta Fundamental.

A eficiência do inquérito policial reflete na diminuição do número de crimes não desvendados. Noutros termos, a eficácia da instrução preliminar proporciona a diminuição da criminalidade oculta. Desta forma pode-se concluir que quanto menor é a diferença entre a criminalidade real e a criminalidade conhecida pelos órgãos estatais de investigação, mais eficaz será o processo penal como instrumento de reação e controle formal da criminalidade.

O inquérito policial é a investigação preliminar mais conhecida e estudada no âmbito do Direito Processual Penal, onde suas nuances e importância para a persecução penal estão sempre presentes nos intensos debates doutrinários e jurisprudenciais.

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Segundo Heráclito Antônio Mossin (2010, p. 84 e 85):

“Na primeira fase da persecutio criminis, o Estado por meio do órgão administrativo denominado polícia judiciária, procura por intermédio da investigação, tendo por bojo o inquérito policial, catalisar elementos comprobatórios do fato típico e de seu suposto autor. Exaurida a fase investigatória ou da informatio delicti, a qual possui caráter informativo e preparatório da ação penal, tais informações são levadas ao conhecimento de um outro órgão administrativo do Estado, denominado Ministério Público, ou do particular, em que um ou outro, desde que haja elementos para a formação da opinio delicti, poderá, por intermédio da ação penal pública ou privada, provocar a atividade jurisdicional do Estado-juiz”.

O início do processo penal deve ser precedido de uma cuidadosa colheita de elementos informativos, com o fim de robustecer a opinio delicti do colendo Parquet. O início da persecução penal, em âmbito judicial, não pode ser de forma atabalhoada, pois é um grande equívoco que primeiro se acuse, para depois investigar e julgar. Nisto reconhece-se a função densificadora da persecução penal atribuída ao procedimento administrativo preliminar preparatório.

Explicando esta função densificadora atribuída neste trabalho, o inquérito tem como objetivo primordial angariar elementos informativos. Mas por que não provas? O inquérito consiste num procedimento inquisitório, onde a ampla defesa e o contraditório não exercem força, tal como ocorre no curso da ação penal, pois no âmbito judicial tais direitos fundamentais possuem grande força presencial e atuante. Mas, mesmo havendo uma relativização de tais garantias, os elementos colhidos no inquérito, conforme nova sistemática do processo penal brasileiro, podem ser usados no âmbito judicial, apenas não podendo o juiz justificar uma condenação, exclusivamente, em tais elementos colhidos na fase administrativa da persecução penal. Desta forma, a importância de tal expediente policial se mostra evidente, pois é nesta fase que se pode melhor colher informações sobre o fato delituoso, com o fim de densificar uma futura ação penal e o próprio processo.

Segundo Vicente Greco Filho (2012, p. 94):

“O inquérito policial não é nem encerra um juízo de formação de culpa ou de pronúncia, como existe em certos países que adotam, em substituição ao inquérito, uma fase investigatória chamada juizado de instrução, presidida por um juiz que conclui sua atividade com um veredicto de possibilidade, ou não, de ação penal. No sistema brasileiro, o inquérito policial simplesmente investiga, colhe elementos probatórios, cabendo ao acusador apreciá-los no momento de dar início a ação penal e, ao juiz, no momento do recebimento da denúncia ou queixa”.

Nesse viés prático que a realidade demonstra, o inquérito policial mostra-se num grau de importância elevado para a persecutio criminis, pois sem a sua realização a pobreza probatória enfestará o processo penal. Corroborando com este entendimento, o saudoso Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 122) afirma categoricamente: “O principal instrumento investigatório no campo penal, cuja finalidade precípua é estruturar, fundamentar e dar justa causa a ação penal, é o inquérito policial”.

A completude e robustez do inquérito é de suma importância para o desenrolar do processo penal. Ressaltando este ponto, Edilson Mougenot Bonfim (2012, p. 29), elucida:

“É que, bem elaborada a peça informativa, esta põe para o sucesso da ação penal, assim como o golpe selvático inicia a eclosão do homicídio que se busca inibir. É como um commencement d' exécution – valemo-nos da designação com que os franceses distinguem a “tentativa” – do próprio processo penal, para assim o ilustrarmos, comparativamente”.

Conforme posicionamento do Supremo Tribunal Federal, os elementos do inquérito podem influir na formação do livre convencimento do juiz para a decisão da causa quando complementam outros indícios e provas que passam pelo crivo do contraditório em juízo. Logo, o arcabouço indiciário e elementar colhido em sede de inquérito policial, pode ser usado, subsidiariamente, desde que sejam somados a outras provas colhidas sob a égide do contraditório e ampla defesa em âmbito judicial. Mas a frente, dedicarei um tópico para criticar este dissimulado cotejo dos elementos informativos colhidos no seio do inquérito com as provas produzidas no processo judicial, onde colocarei como melhor solução a exclusão física do inquérito dos autos do processo, com o fim de preservar a originalidade do processo.

O valor dos elementos colhidos no trâmite do inquérito policial tem por finalidade fundamentar medidas cautelares de natureza endoprocedimental e, no momento da admissão da acusação, para justificar o processo ou o não processo (arquivamento). Corrobora com este entendimento o fato de ser inviável pretender transferir para a fase das investigações policiais a estrutura dialética do processo e suas garantias plenas, onde também não cogita-se em tolerar uma condenação com base apenas nos elementos informativos colhidos nesta fase preliminar. A finalidade do inquérito é a colheita de elementos de informação (e não a colheita de provas) quanto a autoria e materialidade do delito.

3 – A necessidade de exclusão das peças do inquérito policial dos autos processuais: a originalidade do processo penal

O art. 155 do CPP estabelece que o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

O dispositivo processual penal inicia-se de forma acertada ao prevê que o juiz formará sua convicção, no momento de sentenciar, com base na prova produzida em contraditório judicial, mas peca em deixar uma brecha para permitir que o magistrado se baseie também nos elementos colhidos na fase investigatória, pois nesta há uma profunda relativização das garantias fundamentais. Agindo assim, o legislador permitiu a dissimulação do ato de condenar com base na prova judicial cotejada com a do inquérito.

Segundo Aury Lopes Júnior (2012, p. 360):

“Quando o art. 155 afirma que o juiz não pode fundamentar sua decisão “exclusivamente” com base no inquérito policial, está mantendo aberta a possibilidade (absurda) de os juízes seguirem utilizando o inquérito policial, desde que, também invoquem algum elemento probatório do processo”.

O legislador não andou bem ao permitir que os juízes pudessem utilizar o inquérito policial, fase esta inquisitória em suas facetas, como fundamento de sentenças judiciais, pois abre ao juiz o raciocínio de se por ventura não encontrar elementos suficientes no processo, que justifiquem uma condenação, possa ir busca-los nos elementos informativos produzidos no inquérito policial, situação esta violadora do Estado Democrático de Direito, jogando por terra a garantia da própria jurisdição e do contraditório.

Elucidativas as palavras de Fábio Presoti Passos (2012, p. 42), que afirma:

“A instrução preliminar como um todo tem valor cognitivo relativo, uma vez que carece de confirmação de outros elementos colhidos durante a fase da instrução processual, não podendo o magistrado condenar o acusado baseado tão somente em elementos colhidos durante a fase investigativa”.

Há casos ainda mais graves, como decisões judiciais baseadas na confissão obtida em âmbito policial cotejada com uma parca prova judicial. A jurisprudência tende a aceitar este tipo de prática desde que a confissão obtida na fase investigatória seja confirmada por outros elementos colhidos na fase judicial. O inquérito policial tem sua importância, mas não poderá servir de base para justificar uma condenação, pois é evidente que as garantias fundamentais em seu trâmite são relativizadas, diferentemente do processo judicial, onde há o pleno exercício de tais garantias fundamentais.

No âmbito do tribunal do júri a situação se agrava mais, pois há a prevalência da convicção íntima, onde o jurado dará o seu veredito com base em qualquer fundamento, inclusive no inquérito policial, e pior, pode ser que ele utilize apenas o inquérito como base. Logo, no âmbito do tribunal do júri, o inquérito pode ser o fundamento exclusivo para uma condenação, algo inimaginável num Estado Democrático de Direito.

Constata-se que na prática, o inquérito policial exerce forte influência no convencimento dos juízes, pois como ele acompanha o processo, é inevitável que o magistrado ao analisá-lo não venha a ser direcionado por suas conclusões.

Segundo Ada Pellegrini Grinover (1996, p. 239), há duas razões para esse fenômeno:

“Em primeiro lugar, porque quem realiza o juízo de pré-admissibilidade da acusação é o mesmo juiz que proferirá a sentença no processo (exceto no caso do Júri); em segundo lugar, porque os autos do inquérito são anexados ao processo e assim acabam influenciando direta ou indiretamente no convencimento do juiz”.

Primeiramente, deve-se criar uma fase intermediária, entre o inquérito e o recebimento da peça acusatória, presidida por um juiz distinto daquele que irá sentenciar. Esse juiz seria aquele que atua na instrução preliminar para autorizar ou denegar a prática das medidas que limitem direitos fundamentais, sendo um juiz de garantias, lembrando que este não atuará no processo, preservando assim a imparcialidade do julgador.

Em segundo lugar, para que não haja a contaminação do convencimento do magistrado julgador, deve ser determinada a exclusão física do inquérito policial dos autos do processo, evitando indesejáveis confusões de fontes cognoscitivas, contribuindo para a total originalidade do processo penal, evitando a contaminação do juiz pelos elementos obtidos na fase pré-processual.

“O principal objetivo é a originalidade do processo penal, pois não há produção probatória na fase das investigações preliminares, não sendo atribuído a esta fase a aquisição de provas. Na fase preliminar apenas deve ser colhidos elementos determinantes do fato e da autoria, em grau de probabilidade, com o fim de justificar a ação penal. A produção da prova reserva-se para a fase processual, cercada por todas as garantias ao exercício da jurisdição” (LOPES JÚNIOR, 2012, p. 362) [6].

Desta forma, com a exclusão do inquérito policial dos autos do processo, evitar-se-á uma condenação baseada em meros atos de investigação, desta forma reforçando a função endoprocedimental da fase das investigações preliminares. Os elementos fornecidos pelo inquérito, à exceção das provas técnicas e das produzidas através do incidente antecipado de provas (ante o juiz), não devem ser valorados na sentença e nem servir de fundamento para uma condenação.

Segundo Luigi Ferrajoli (1997, p. 103), a única prova válida para uma condenação é a “prueba empírica llevada por una acusacíon ante un juez imparcial, en un proceso público y contradictorio con la defensa y mediante procedimientos legalmente preestablecidos”.

Concluindo, os atos da investigação preliminar devem ser considerados meros atos de investigação, tendo uma limitada eficácia probatória, pois a produção da prova deve reservar-se para a fase processual. Nisto, reforça-se a função endoprocedimental dos atos do inquérito, pois a sua eficácia é interna à fase, para fundamentar as decisões interlocutórias tomadas no seu curso e justificar o ingresso da ação penal e o seu respectivo recebimento pela autoridade judicial. Sendo assim, o mais aconselhável é adotar o sistema de eliminação do processo dos atos de investigação, excetuando-se as provas técnicas e as irrepetíveis, produzidas no respectivo incidente probatório. Desta forma, preserva-se a imparcialidade do julgador e, principalmente, a originalidade do processo penal[7].

4 – A importância do inquérito policial no estado democrático de direito

A sociedade vive num estado de alerta constante, pois os índices de violência crescem a cada dia num ritmo alarmante, onde a atuação dos órgãos de investigação criminal do Estado funciona como um calmante social, amenizando o efeito horrendo causado pela onda de criminalidade que por onde passa arrasa e destroem sonhos, famílias, vidas, projetos e torna o mundo um lugar cada vez mais insalubre para se viver e conviver em harmonia com o próximo.

A atuação constante e eficaz da polícia judicial funciona como estímulo negativo para a prática de novas infrações penais. O Ministério Público também exerce um importante papel neste cenário como defensor dos poderes constituídos e da ordem social, onde atuando em conjunto com os órgãos de investigação preliminar, contribui para que o índice de criminalidade reduza, gerando uma sensação de segurança nas pessoas.

Segundo Aury Lopes Júnior (2012, p. 295-296):

“A investigação preliminar também atende a uma função simbólica, poderíamos dizer até de natureza sociológica, ao contribuir para restabelecer a tranquilidade social abalada pelo crime. Significa que, numa dimensão simbólica, contribui para amenizar o mal-estar causado pelo crime através da sensação de que os órgãos estatais atuarão, evitando a impunidade. Essa garantia, de que não existirá impunidade, manifesta-se também através da imediata atividade persecutória estatal” [8].

“A investigação preliminar ainda desempenha uma função cautelar, que adquire distintos contornos conforme a necessidade da tutela, pois podem ser adotadas medidas que tenham natureza pessoal, patrimonial ou probatória”.

Ressalta-se o sumo valor do inquérito policial, pois as diligências a serem executas pela autoridade que o presidir refletirão futuramente no processo. Uma instrução preliminar conduzida com zelo, tecnicidade e total compromisso com a busca da verdade fática contribuirá para que o culpado seja punido, ou até mostre que não há culpados ou inocentes. O inquérito é a porta de entrada da persecutio criminis, pois é ele que iniciará os trabalhos rumando para uma solução num processo penal desenvolvido judicialmente, buscando desta forma fortalecer o Estado Democrático de Direito.

O Estado Democrático de Direito é aquele em que o povo participa ativamente do gerir da máquina pública, elegendo seus governantes através do voto secreto. Mas não se esgota aqui, pois o Estado, ao mesmo tempo em que legisla e elabora todo o arcabouço jurídico, submete-se a ele, sendo uma forma de limitação ao esfomeado poder destruidor do ente governamental. O Estado é limitado pela Constituição Federal, que prevê os direitos e garantias individuais dos cidadãos.

Segundo o professor José de Assis Santiago Neto (2011, p. 21):

“O Estado Democrático de Direito é configurado pela busca do Estado de assegurar ao povo a liberdade necessária para poder gerir a própria existência, entendendo-se esta de forma individual. O Estado Democrático de Direito tem por escopo assegurar a participação do povo na tomada das decisões pelas quais os cidadãos serão atingidos, além de assegurar a todos o respeito e efetividade dos direitos individuais fundamentais, seguindo critérios de legalidade estabelecidos pela Constituição”.

Neste contexto limitativo estatal, insere-se a persecução penal, pois esta para ser legítima e legal, deve estar lastreada e alicerçada nos direitos e garantias fundamentais previstos na Bíblia Política, pois não se ouvida de um processo penal que desrespeite os ditames constitucionais do Estado Democrático de Direito, vindo assim a falecer em suas próprias estruturas absolutamente inquisitoriais.

A persecutio criminis compõem-se de dois momentos distintos: uma primeira fase pré- processual e uma segunda fase processual. Na primeira fase, onde alberga-se a investigação preliminar, tem como principal função angariar elementos informativos, objetivando, desta forma, robustecer e subsidiar a opinio delicti do titular da ação penal, no caso o Ministério Público.

Segundo elucida Fábio Presoti Passos (2012, p. 29):

“A fase de investigação é realizada anteriormente à provocação da jurisdição penal. Por isso, recebe o nome de fase pré-processual, tratando-se de procedimento tendente ao cabal e completo esclarecimento do caso penal, destinando-se à formação do convencimento do responsável pela acusação”.

Na segunda fase, desencadeada em âmbito judicial, desenvolve toda a trama processual em si, onde as garantias fundamentais são asseguradas, como o contraditório e a ampla defesa, devido processo legal, presunção de inocência e principalmente a dignidade da pessoa humana. Mas, e na fase pré-processual, no âmbito das investigações preliminares, não há a obrigatoriedade de se assegurar o respeito aos direitos fundamentais?

Respondendo ao questionamento supra, o professor Fábio Presoti Passos (2012, p. 29), explica:

“O fato de se tratar de fase que antecede à processual não quer dizer que deva ser deixado de lado os preceitos constitucionais, pelo contrário, os direitos fundamentais do investigado também devem ser preservados e a polícia judiciária deve zelar pelo seu cumprimento, uma vez que é ela a responsável pela condução das investigações, nos termos do art. 144 da Constituição brasileira”.

Nesse questionamento, vislumbro um grande mar de incertezas e péssimos discursos dirigidos ao “enfadante” inquérito policial. Algumas vozes, como do saudoso Aury Lopes Junior, teimam em afirmar que o inquérito policial está em crise, algo que não concordo, pois este instituto de direito processual penal está em alta, pois tamanha a sua importância para o Estado Democrático de Direito, quiçá para a persecução penal.

O referendado autor, Aury Lopes Júnior (2012, p. 289), em crítica a figura do inquérito, aduz:

“Atualmente existe um consenso: o inquérito policial está em crise. Os juízes apontam para a demora e a pouca confiabilidade do material produzido pela polícia, que não serve como elemento de prova na fase processual. Os promotores reclamam da falta de coordenação entre a investigação e as necessidades de quem, em juízo, vai acusar. O inquérito demora excessivamente e, nos casos mais complexos, é incompleto, necessitando de novas diligências, com evidente prejuízo à celeridade e à eficácia da persecução”.

Hoje o inquérito não apenas é um instrumento inquisitivo pré-determinado a colher elementos informativos, pois ele representa um instrumento garantista, onde os direitos fundamentais do cidadão serão e deverão ser observados e respeitados pelos encarregados de sua tramitação. A autoridade policial tem total capacidade e conhecimento jurídico para conduzir as investigações, e com eficiência, reunir os elementos necessários para subsidiar a pretensão do colendo Ministério Público em seu encalço na defesa da justiça.

Segundo Aury Lopes Júnior (2012, p. 288):

“A investigação preliminar é uma peça fundamental para o processo penal. No Brasil, provavelmente por culpa das deficiências do sistema adotado (o famigerado inquérito policial), tem sido relegada a segundo plano. Apesar dos problemas que possam ter, a fase pré-processual (inquérito, sumário, diligências prévias, investigação, etc.) é absolutamente imprescindível, pois um processo penal sem a investigação preliminar é um processo irracional, uma figura inconcebível segundo a razão e os postulados básicos do processo penal constitucional”.

Atualmente os institutos jurídicos tiveram de se adequar a nova realidade jurídico-constitucional vivida no Brasil. Com a Constituição de 1988, inaugurou-se uma nova etapa na democracia brasileira, pois nunca se deu tanta importância e destaque para os direitos e garantias fundamentais. Hoje, para que a liberdade do indivíduo possa ser cerceada, o Estado deve valer-se de um processo, sendo o instrumento adequado para se legitimar a aplicação de uma sanção penal. Por esta adequação teve de se submeter o inquérito policial[9].

O processo não é um instrumento a serviço do poder punitivo, esta é uma visão retrógrada, pois fala-se atualmente num processo penal pautado nas normas e garantias previstas na Constituição. Conforme a visão constitucional de processo, este visa a limitar os anseios punitivos do Estado e ao mesmo tempo ser um garantidor do indivíduo a ele submetido. Para que alguém seja punido, deve o Estado trilhar um caminho que se inicia na fase das investigações preliminares e termina na fase processual. Nesse caminho, para que o processo seja legítimo e dentro da legalidade, devem ser respeitadas as garantias constitucionalmente asseguradas.

Ressalta-se que antes de se adentrar na fase processual, deve-se percorrer toda a gama de atos no seio das investigações preliminares executadas no âmbito do inquérito policial, e é neste ponto que salta aos olhos a importância de tal procedimento apuratório. O inquérito visa proteger o indivíduo do constrangimento de responder a um processo judicial injustamente, funcionando como um filtro[10], que através dos elementos encontrados durante as investigações, determinará se o sujeito é passível de responder a um processo ou não. O inquérito policial é um instrumento protetor dos direitos e garantias fundamentais, evitando que o indivíduo se submeta desnecessariamente a um processo judicial desgastante e degradante. Nesta função de filtro, o inquérito consagra e adequa-se ao Estado Democrático de Direito.

Elucida Aury Lopes Júnior (2012, p. 296):

“A função filtro processual contra acusações infundadas incumbe, especialmente, à chamada fase intermediária, que serve como elo entre a investigação preliminar e o processo ou o não processo. Sem embargo, esse é apenas um momento procedimental em que se realiza um juízo de valor, mais especificamente, de pré-admissibilidade da acusação, com base na atividade desenvolvida anteriormente e no material recolhido. É inegável que o êxito da fase intermediária depende inteiramente da atividade preliminar, de modo que transferimos a ela o verdadeiro papel de evitar as acusações infundadas”.

O inquérito policial não é apenas uma fase pré-processual, mas trata-se antes de um obstáculo a ser superado para adentrar-se ao processo judicial, pois é durante sua tramitação que serão angariados elementos informativos necessários para justificar ou não uma possível persecutio judicto. Excepcionalmente, no seio do incidente de antecipação de provas, poderá o inquérito angariar provas cautelares, não-repetíveis e antecipadas, pois trata-se de um procedimento tramitado perante o juiz e cercado das garantias da jurisdição, fugindo assim da característica inquisitória desta fase da persecução penal.

Ressalta Vicente Greco Filho (2012, p. 94):

“Já se sustentou que bastaria como justa causa para a ação penal a descrição, na denúncia ou queixa, de um fato típico. A doutrina atual, porém, à unanimidade, percebendo que a ação penal por si só é, já, um constrangimento à liberdade individual, exige, para que ação penal seja proposta e se mantenha, elementos probatórios que sirvam de fundamento razoável para sustentar esse constrangimento, o qual, caso contrário, seria ilegal”.

O inquérito visa não apenas constatar a materialidade e autoria do crime, mas também serve para subsidiar a defesa do sujeito passivo da investigação criminal. A maioria da doutrina brasileira vê no inquérito um procedimento inquisitivo, onde o seu único objetivo é encontrar o culpado do cometimento da infração, onde na verdade essa é uma visão errônea, pois o procedimento investigatório preliminar, visa angariar e fornecer elementos informativos tanto para a acusação como para a defesa.

Desta forma, o inquérito policial funciona como um filtro processual, guardando o sujeito a ele submetido de sofrer acusações infundadas no trâmite de um processo criminal. O processo representa uma pena em si mesmo, pois ainda que inocentado, o sujeito adquire um etiquetamento social que o torna um marginalizado dentro da sociedade, sem falar da grande humilhação e constrangimento que terá de enfrentar [11].

Segundo Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 124):

“O inquérito é um meio de afastar dúvidas e corrigir o prumo da investigação, evitando-se o indesejável erro judiciário. Se, desde o início, o Estado possuir elementos confiáveis para agir contra alguém na esfera criminal, torna-se mais difícil haver equívocos na eleição do autor da infração penal”.

Em Criminologia, existe a chamada Teoria do Labeling Approach ou Teoria do Etiquetamento. Também conhecida como “enfoque da reação social”, tem o controle social como seu principal objeto de estudo, isto é, o sistema penal e o fenômeno do controle, pois estes criam a criminalidade através dos agentes do controle social formal que estão a serviço de uma sociedade desigual. Uma pessoa processada injustamente, acaba sendo estigmatizada pela sociedade como um criminoso, marginal, bandido, etc.

Neste cenário desolador, o princípio da presunção de inocência é esquecido, deixado de lado, onde o que impera é o julgamento, ou melhor, o pré-julgamento de toda uma massa com sede de vingança, cansada do mar de violência e impunidade em que vive e em que se vê sitiada, onde a primeira oportunidade de atirar uma pedra em alguém não há recalque, muito pelo contrário, existe uma insana vontade de pagar o mal pelo mal, assim como na época da vingança privada.

Frente ao exposto, o inquérito policial visa evitar este etiquetamento social, pois é incontestável o fato de que o processo causa terríveis consequências desabonadoras ao réu. Disto exsurge a importância da fase investigativa para evitar persecuções judiciais infundadas.

De acordo com Aury Lopes Júnior (2012, p. 297):

“Não só o processo é uma pena em si mesmo, senão que existe um sobrecusto do desenvolvimento inflacionário do processo penal na moderna sociedade das comunicações de massas. Sem dúvida que se usa a incriminação como um instrumento de culpabilidade preventiva e de estigmatização pública. A proliferação de milhões de processos a cada ano, não seguidos de nenhuma pena, somente com o fim de gerar certificados penais e degradados status jurídico-sociais (de reincidente, perigoso, ou à espera de juízo etc.), é sinal do grau de degeneração que alcançou o instrumento”.

O inquérito policial apresenta como seu principal objetivo e fundamento a função de evitar acusações infundadas, com o fim de esclarecer o fato criminoso, através de um juízo provisório e de probabilidade, assegurando à sociedade de que não haverá abusos por parte do poder persecutório estatal. Pior do que a impunidade para a sociedade, será o ato de processar injustamente um inocente.  

Como explica Joaquim Canuto Mendes de Almeida (1937, p. 12):

“Se a instrução definitiva prova ou não prova que existe crime ou contravenção, a instrução preliminar prova ou não prova se existe base para a acusação. Seu primeiro benefício é proteger o inculpado. O processo penal é um processo formal de seleção, atuando a instrução preliminar como um sistema de filtros desde onde se vai destilando a notitia criminis até chegar ao processo penal os elementos de fato que verdadeiramente revistam caracteres de delito, com o prévio conhecimento dos supostos autores”.

No tramitar do inquérito policial, o sujeito/indiciado não deve ser visto apenas como um mero objeto das investigações, mas sim como um sujeito de direitos, pois a visão de um inquérito extremamente inquisitivo não prevalece atualmente, pois pela nova visão constitucional, temos de analisar o instituto do inquérito a luz da Carta Magna. Durante as investigações, as garantias fundamentais podem até ser relativizadas, mas jamais eliminadas por completo. No Estado Democrático de Direito, o ente governamental cria as leis e submete-se a elas. Da mesma forma, o Estado ao comandar as investigações, através da autoridade policial, não deve abster-se de observar os preceitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal.

Conforme elucida José de Assis Santiago Neto (2011, p. 58):

“A constitucionalização do processo penal é imperiosa, sobretudo pela inspiração autoritária do Código vigente, devendo a Constituição ser o porto seguro do intérprete e do operador do direito processual penal”.

Nesta concepção constitucional democrática do inquérito policial, observa-se que pela sua atual envergadura no sistema processual penal brasileiro, há uma necessidade de alicerçamento da fase das investigações preliminares nas garantias fundamentais dos indivíduos. O instituto processual penal do inquérito policial deve ser visto e analisado a luz da Constituição Federal[12].

Não há como mais se cogitar de um inquérito extremamente/absolutamente inquisitório, algo até absurdo de se defender e pregar se observado todo o arcabouço jurídico e ideológico que os direitos humanos fundamentais nos envolvem no cenário atual.

O novo cenário em que se encontra o inquérito policial o coloca num patamar de suma importância para a democracia constitucional, pois a partir do momento que passar a ser visto como um meio de se assegurar as garantias e direitos fundamentais, tão desejados e conquistados a custos autos, a eficiência e presteza em sua tramitação, o conduzirá a uma melhor realização dos seus fins propostos, que é a solução dos fatos criminosos a ele submetidos, e num ultimo estágio, a defesa real da sociedade e o respeito aos princípios insertos na Carta Magna, como o da dignidade da pessoa humana.

Conclusão

O inquérito policial é peça chave para uma persecução penal bem desenvolvida e que busque satisfazer o anseio punitivo estatal. Nesta fase, há um contato mais próximo e efetivo da autoridade policial com os elementos deixados pelo fato criminoso, tornando-se de fundamental importância a sua tramitação dentro dos ditames constitucionais.

O Estado Democrático de Direito tem por principais características o respeito aos direitos humanos fundamentais individuais e a limitação do poder estatal em suas relações fáticas e jurídicas com os seus cidadãos. O “Leviatã” deve ser domado e domesticado, e o domador deste “grande monstro” é o arcabouço jurídico constitucional estabelecido pelo Estado Democrático de Direito.

A Constituição Federal de 1988 instituiu um sistema multifacetário de proteção a pessoa humana, onde neste estão insertos princípios e garantias constitucionais que revelam-se como verdadeiros elementos limitadores do poder estatal, sendo isto melhor observado no âmbito da fase processual, mas que se faz necessário estar presente também na fase pré-processual que representa as investigações preliminares traçadas no tramitar do inquérito policial, este funcionando como filtro processual, visando evitar e coibir processamentos desmedidos e injustificados.

O inquérito é o maior e mais importante filtro persecutório existente, pois se durante sua tramitação se percebe que não há necessidade para o desencadeamento de uma constrangedora e desnecessária ação penal, esta será evitada, e o cidadão será preservado de uma injusta estigmatização social.

Percebe-se claramente que o inquérito policial é de suma importância para o desenvolvimento e avanço de um Estado de Direito pautado na Constituição Federal, onde em seu trâmite busca tutelar as garantias constitucionais estampadas no Diploma Máximo da nação brasileira e, principalmente, assegurar o respeito à Dignidade da Pessoa Humana. 

Referências
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Notas:
[1] Expressão utilizada pelo saudoso José Joaquim Gomes Canotilho (CANOTILHO, 2003, p. 59).

[2] “O juiz inquisidor atuava como parte, investigava, dirigia, acusava e julgava. Convidava o acusado a declarar a verdade sob pena de coação. Tamanha era a característica persecutória do sistema, que sequer havia constatação de inocência na sentença que eximia o réu, mas um mero reconhecimento de insuficiência de provas para sua condenação” (KHALED JÚNIOR, 2010, p. 295).

[3] “Todos os sistemas processuais penais conhecidos mundo afora são mistos. Isto significa que não há mais sistemas puros, ou seja, na forma como foram concebidos” (COUTINHO, 2009, p. 103).

[4] “O processo democrático demanda a adoção do processo acusatório que, por sua vez, demanda um processo de partes. E, para a configuração de um processo de partes, é imprescindível a existência de duas partes, aquela que acusa (Ministério Público ou querelante) e aquela que sofre a acusação” (SANTIAGO NETO, 2011, p. 147).

[5] Na instrução preliminar brasileira a polícia judiciária não é um mero auxiliar, senão a titular dessa fase preliminar, com autonomia para dizer as formas e os meios empregados na investigação (PASSOS, 2012, p. 23).

[6] “A originalidade é alcançada, principalmente, porque se impede que todos os atos da investigação preliminar sejam transmitidos ao processo – exclusão de peças –, de modo que os elementos de convencimento são obtidos da prova produzida em juízo. Com isso evita-se a contaminação e garante-se que a valoração probatória recaia exclusivamente sobre aqueles atos praticados na fase processual e com todas as garantias” (LOPES JÚNIOR, 2012, p. 362).

[7] “É a função endoprocedimental dos atos do inquérito, no sentido de que sua eficácia é interna à fase, para fundamentar as decisões interlocutórias tomadas no seu curso. Para evitar a contaminação, o ideal é adotar o sistema de eliminação do processo dos atos de investigação, excetuando-se as provas técnicas e as irrepetíveis, produzidas no respectivo incidente probatório” (LOPES JÚNIOR, 2012, p. 363).

[8] “Ademais, a instrução preliminar também funciona como um freio aos excessos da atuação policial e do Ministério Público, pois a partir do momento que se formaliza a investigação permite-se a intervenção do juiz de garantias” (LOPES JÚNIOR, 2012, p. 295).

[9] “O inquérito policial é regido por um texto constitucional que visa ser garantista e assegurador de direitos e garantias que ele próprio considera como fundamentais” (PASSOS, 2012, p. 36).

[10] “(…) a instrução preliminar tem a função de filtro contra acusações infundadas” (PASSOS, 2012, p. 26).

[11] “Desta forma, o inquérito policial funciona como um filtro processual, guardando o sujeito a ele submetido de sofrer acusações infundadas no trâmite de um processo criminal. O processo representa uma pena em si mesmo, pois ainda que inocentado, o sujeito adquire um etiquetamento social que o torna um marginalizado dentro da sociedade, sem falar da grande humilhação e constrangimento que terá de enfrentar” (LOPES JÚNIOR, 2012, p. 297).

[12] “Aceitar que a legislação processual deve caminhar em consonância com a Constituição aparentemente é tarefa simples, no entanto, há que se mudar a mentalidade rotineiramente incontestada da instrução preliminar, já que, em tese, a própria legislação constitucional resolveria as controvérsias, no entanto, lamentavelmente o texto norteador de toda a legislação infraconstitucional é recorrentemente afastado” (PASSOS, 2012, p. 71).


Informações Sobre o Autor

Luis Gonzaga da Silva Neto

Professor de Direito Penal Direito Processual Penal e Criminologia. Palestrante Conferencista e Editor Científico da Revista de Ciências Criminais da Saúdelegis. Especialista em Ciência Criminais na atualidade pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais PUC-Minas.


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