Palavras-chave: cram down, princípios, recuperação judicial, Lei 11.101/05, plano de recuperação judicial
Abstract: This study aims to analyze the contours of the institute referred to art. 58, paragraph 1 of Law 11.101/05. For many researchers and lawyers, it would have incorporated the figure of US law, cram down, into the brazilian law. The institute it gives the judge responsible for the judgment of the bankruptcy order, the power, even with lenders refusal on the proposed bankruptcy plan, accepted it. However, significant differences are present in this figure adopted in the Judicial Recovery Act as well as US. This way, the study becomes more relevant when focus its analysis on the question about importing or not this institute in our country, we have to figure out if it was created in a distinct mode and because of this we should not compare to the US. It is intended to develop an academic work in order to assist other studies and broaden our horizons when dealing with a relatively new subject.
Sumário: Introdução. 1. A Lei 11.101/2005 (Lei de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falências). 2. O Instituto do Cram Down no Direito Norte-Americano. 3. Função Sócio Econômica da Empresa em Recuperação Judicial. 4. A Verificação do Instituo do Cram Down na Lei 11.101/2005. Conclusão.
Keywords: cram down, principles, judicial recovery, Law 11.101/05, judicial recovery plan.
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objetivo tratar acerca da Lei 11.101/2005 que consagrou o instituo da recuperação judicial no Brasil em detrimento do Decreto-Lei n. 7.661, de 21 de junho de 1945, que regulava o ultrapassado regime das concordatas (baseado no tudo ou nada, ou seja, o interesse maior era a liquidação da empresa em crise e o pagamento dos credores).
Com o advento desta nova legislação, obteve-se um desvio do caminho que era seguido anteriormente. A liquidação da empresa, culminando logicamente em sua falência, passa agora a ser vista como o último caminho no processo de crise, existindo alternativas extremamente eficazes para fazer com que se recupere, mantendo assim sua função socioeconômica, gerando empregos e movimentando a economia.
Busca-se, portanto, o saneamento da empresa em crise, atraindo os credores a negociarem diretamente com o devedor mediante a observação e intervenção do Estado, através do juiz, consagrando o princípio maior contratual da autonomia de vontade das partes. A referida Lei visa, diferentemente do que se havia como regra, o soerguimento da empresa em crise, mediante um pacote de mudanças e aplicações, no prazo máximo de 2 anos, que será oferecido aos seus credores, cabendo a estes a discricionariedade de aceitarem ou não o plano apresentado, conforme suas convicções. Entretanto, distintamente do que se pregou anteriormente acerca da autonomia das partes contraentes, prevê este ordenamento em seu artigo 58, §1º, inspirado no Bankruptcy Act[1] americano (espécie de lei de recuperação judicial daquele país), a aplicação do instituto conhecido como Cram Down, ou seja, a interferência do juiz encarregado de conduzir o processo de recuperação judicial na aceitação do plano apresentado pelo devedor quando este for rejeitado por parcela dos credores.
Diante da gritante diversidade entre os dois modelos jurídicos dos quais estaremos tratando, o foco desta pesquisa é compreender se há, de fato, no Brasil, aplicação do instituto do Cram Down, ou seja, se tem realmente aqui o juiz a ingerência de interferir de sobremaneira na aceitação do plano de recuperação judicial, conforme previsão do supracitado art. 58, §1º.
Através de uma análise doutrinária e jurisprudencial, essencialmente, tentaremos definir em qual nível estamos na aplicação deste instituto alienígena que foi importado para o direito brasileiro e concluir, por fim, se efetivamente temos sua aplicação pura ou se, nesse compendio, estamos a tratar da criação de um instituto novo, repleto de particularidades e essencialmente brasileiro.
1. A LEI 11.101/2005 (Lei de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falências)
A Lei 11.101/2005 instaurou na legislação brasileira a figura jurídica da recuperação judicial das empresas que se encontram em estado de insolvência com seus devedores. Desta maneira, vem para superar o ultrapassado Decreto-Lei n. 7.661, de 21 de junho de 1945, que tinha como principal objetivo a decretação da falência da empresa e a solvência dos seus credores através da liquidação da empresa.
Assim, percebe-se uma maior preocupação do legislador brasileiro com aspectos empresariais que antes não se tinham como fundamentais. Destaca-se aqui a mudança histórica pela qual vem passando a compreensão de empresa, antes vista, unicamente, como fonte de lucro e, agora, entendida como um ente que promove, além do lucro, inúmeras outras consequências na sociedade, como o seu desenvolvimento tecnológico, econômico e social, por exemplo. É possível comprovarmos essa abordagem a partir, também, da mudança pela qual passou o próprio ramo do direito empresarial ao longo do século XX.
Anteriormente fundamentado nos chamados “atos de comércio”, cujo diploma regeu durante muito tempo a pratica empresarial brasileira (Código Comercial de 1850), hoje não se restam dúvidas de que se deve entender a matéria através da conceituada “teoria da empresa”, onde Sylvio Marcondes, em meados dos anos 70, define que deveria ser concebida como atividade de produção, organização e circulação de bens, produtos e serviços. Essa também é posição que defende a autora Paula A. Forgioni:
“O conceito de empresa adotado baseia-se na obra de Sylvio Marcondes, destacando que “sob o ponto de vista econômico, conceitua-se a empresa como organização de capital e de trabalho destinada à produção ou mediação de bens ou de serviços para o mercado, coordenado pelo empresário, que lhe assume os resultados e os riscos”” (FORGIONI, Paula A., 2016, p. 45)
Desta forma, continua a autora, que “para se revestir de utilidade, a empresa há de ser enxergada como instituição social, superando as limitações formais que imobilizam aqueles que não a apreendem como agente econômico (FORGIONI, Paula A., 2016, p. 91). Portanto, não há mais como negar a abordagem abrangente que a doutrina atual faz acerca da conceituação de empresa e suas funções em sociedade. A lei 11.101/2005 é, então, pontual ao se procurar estabelecer através, principalmente, da autonomia da vontade dos contratantes entre os credores e o devedor, soluções para que crises econômicas não sejam desastrosas de imediato a esses entes, havendo uma oportunidade de se tentar estabelecer caminhos para seu soerguimento, conforme fica evidente no enunciado do caput do art. 47 da referida lei:
“Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e estimulo à atividade econômica”.
Essa manutenção de previsão da atividade empresarial em nome de sua função socioeconômica, traçada ao longo do século passado, possui respaldo na Constituição Federal de 1988, onde podemos ver em seu art. 170, III e IV, princípios fundamentais para a organização da atividade econômica, que por sua vez são defendidos no diploma objeto de análise.
Como já mencionado, a Lei 11.101/2005 fundamenta-se na tentativa de reestabelecimento da solvência da empresa em crise a partir de um acordo que deverá ser celebrado, fundamentalmente entre credores e o devedor. Esse acordo consiste, a priori, no pedido de recuperação judicial que deverá, conforme art. 48, ser exercido pelo devedor que exerça a atividade empresarial há mais de 2 anos e que atenda os requisitos que, em seguida, delimita. Deferida a petição inicial do pedido de recuperação judicial, deverá o devedor apresentar em até 60 dias o chamado “plano de recuperação judicial”, conforme art. 53, que deverá conter os meios de recuperação a serem empregados, a sua viabilidade econômica e o laudo de avaliação financeira dos bens e ativos do devedor.
A partir deste ponto, o diploma passa a tratar especificamente da modalidade de negociação entre credores e o plano apresentado pelo devedor, razão que é fundamento deste ordenamento. Assim, os artigos 45, 55 e 56 da Lei 11.101/2005 preveem:
“Art. 45. Nas deliberações sobre o plano de recuperação judicial, todas as classes de credores referidas no art. 41 desta Lei deverão aprovar a proposta.
Art. 55. Qualquer credor poderá manifestar ao juiz sua objeção ao plano de recuperação judicial no prazo de 30 dias contado da publicação da relação de credores de que trata o §2º do art. 7º desta lei.
Art. 56. Havendo objeção de qualquer credor ao plano de recuperação judicial, o juiz convocará a assembleia-geral de credores para deliberar sobre o plano de recuperação.
§1º A data designada para a realização da assembleia-geral não excederá 150 dias contados do deferimento do processamento da recuperação.
§2º A assembleia-geral que aprovar o plano de recuperação judicial poderá indicar os membros do Comitê de Credores, na forma do art. 26 desta Lei, se já não estiver constituído.
§3º O plano de recuperação judicial poderá sofrer alterações na assembleia-geral, desde que haja expressa concordância do devedor e em termos que não impliquem diminuição dos direitos exclusivamente dos credores ausentes.
§4º Rejeitado o plano de recuperação pela assembleia-geral de credores, o juiz decretará a falência do devedor”.
Concluímos, então, toda importância constituída aos credores no julgamento da viabilidade e interesse do plano de recuperação judicial elaborado pelo devedor, podendo, caso recusado inicialmente, ser negociado na assembleia-geral de credores até o ponto em que todos se sintam assistidos pelo documento.
Entretanto, chegando ao ponto principal deste trabalho, estranhamente a toda base ideológica que se propôs formar acerca da liberdade de contratação entre os credores e o devedor, o art. 58, §1º faz a seguinte previsão:
“Art. 58. Cumpridas as exigências desta Lei, o juiz concederá a recuperação judicial do devedor cujo plano não tenha sofrido objeção de credor nos termos do art. 55 desta Lei ou tenha sido aprovado pela assembleia0geral de credores da forma do art. 45 desta Lei.
§1º O juiz poderá conceder a recuperação judicial com base em plano que não obteve aprovação na forma do art. 45 desta Lei, desde que, na mesma assembleia, tenha obtido, de forma cumulativa:
I – o voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes à assembleia, independentemente de classes;
II – a aprovação de 2 das classes de credores nos termos do art. 45 desta Lei ou, caso haja somente 2 classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos 1 delas;
III – na classe que o houver rejeitado, o voto favorável de mais de 1/3 dos credores, computados na forma dos §§1º e 2º dos art. 45 desta Lei. “
Percebe-se aqui que o legislador, de maneira “surpreendente”, previu hipótese em que, mesmo havendo negativa de parcela de uma das classes de credores acerca do plano de recuperação judicial, este poderá ser admitido pelo magistrado, respeitada as condições elencadas nos incisos complementares. Desta forma, nota-se que houve uma significativa abertura ao Magistrado para que possa impor sua vontade e fazer com que a empresa supere a crise e cumpra sua função socioeconômica. Entretanto, restringiu sobremaneira a sua discricionariedade para cumprir essa função, já que impôs inúmeras condições para este procedimento.
Considerando que, caso ocorra a hipótese prevista neste artigo, a vontade de alguns credores terá sido preterida em razão da função socioeconômica da empresa e sua possibilidade de reestabelecimento, a doutrina convencionou chamar este instituto de Cram Down, em referência a semelhante previsão estabelecida no Chapter 11 da Bankruptcy Act, lei norte-americana semelhante em seu objetivo à lei 11.101/2005 brasileira.
Todavia, não podemos olvidar acerca das gritantes diferenças dos sistemas jurídicos dos países, razão pela qual é interessante traçarmos um paralelo acerca das condições as quais o instituto do Cram Down é aplicado e se, realmente, o temos em nossa legislação ou se, de outro modo, temos figura completamente diferente, razão pela qual seria axiologicamente errado tratarmos como tal.
2. O INSTITUTO DO CRAM DOWN NO DIREITO NORTE AMERICANO
O Cram Down é um instituto criado para a proteção da atividade empresarial, tendo em vista que, via de regra, não havendo aprovação do plano de recuperação nos termos do artigo 45 da Lei 11.101/2005 em comento, decretar-se-ia a falência.
Embora normalmente utilizado em um contexto corporativo, a frase ganhou popularidade no âmbito de falências pessoais, como resultado da crise que acometeu os Estados Unidos em 2007/2009.
Neste norte, importante ressaltar que o processo de recuperação judicial de empresa busca, entre seus principais objetivos, preservar empresas economicamente viáveis, mas prejudicadas pela insolvência momentânea. Contudo, essa pretensão pode restar frustrada por um credor relevante que se oponha injustificadamente ao plano de recuperação.
A fim de evitar tal situação, a qual repisa-se, não faz parte do objeto principal da Lei de Recuperações Judiciais, foi desenvolvido no sistema norte-americano o instituto do Cram Down, que consiste em autorizar o juiz a aprovar o plano rejeitado por alguma classe de credores, desde que se verifique a viabilidade econômica daquele plano e a necessidade de se tutelar o interesse social vinculado à preservação da empresa.
Admite-se, até mesmo, que essa técnica corresponda a princípios saudáveis de preocupação com a manutenção das empresas, dada a sua relevância social e econômica para o país.
Diferente do direito brasileiro, o direito norte-americano outorga maiores poderes aos juízes, que possuem discricionariedade para analisar o conteúdo dos planos apresentados e conceder ou não a recuperação, por mais que os credores tenham decidido em sentido contrário na assembleia. É uma hipótese de imposição unilateral da aprovação do plano aos credores, com a interferência do juiz, inclusive àqueles relutantes.
Daí o nome do instituto, Cram Down, termo que aduz a ideia de imposição, ou como expressa Fábio Tokars, em tradução própria, “empurrar goela abaixo”, referindo-se ao fato de alguns credores, embora relutantes, tenham que se submeter ao plano aprovado pelo Juiz.
O instituto atende ainda pela expressão “Cram Down Deal[2]”, ou seja, “um acordo unilateral”.
O instituto também é conhecido como washout[3], que, por tradução livre, significa “eliminação”, aduzindo por certo o descarte pelo juiz dos votos que rejeitaram o plano, para então aprová-lo desde que haja o atendimento de certos requisitos, ou mesmo “diluição”, talvez aduzindo a medida judicial no sentido de dissolver o repúdio manifestado pela maioria dos credores.
Como consequência da depressão que assolou o país em 1929, nos idos de 1938 foi promulgado o Chandler Act, que visava a reestruturação de empresas a partir de planos formulados pelos credores, aprovados pela SEC – Securities and Exchange Commission[4] e homologados pelo Poder Judiciário.
A lei em comento aplicava-se à “grande sociedade anônima insolvente”, que se submetia ao processo da corporate reorganization, no intuito de promover a sua reorganização econômica e administrativa para a superação da crise.
O Chandler Act, com as suas alterações posteriores, vigorou até 1° de outubro de 1978, quando os procedimentos concursais norte-americanos passaram a ser regidos pelo New Bankruptcy Code, ou US Code – USC. Essa Lei federal acatou duas modalidades concursais: o Bankruptcy liquidation, previsto no Capítulo 7, do USC, que corresponde à falência no Direito Brasileiro, e o Bankruptcy Reorganization (ou Reabilitation), inserido nos Capítulos 11, 12 e 13 do Bankruptcy Code, sem instituto correspondente no nosso Ordenamento Jurídico, mas que de certo modo lembra o regime de recuperação de empresa.[5]
Ao juiz cabe apreciar o plano sob o aspecto formal, para, então submetê-lo ao crivo dos credores e acionistas, divididos em classes, sendo necessária a aprovação de dois terços em cada classe, segundo a importância dos créditos ou o valor das ações.
Mesmo com a aprovação do plano de reorganização pelos credores e acionistas, a homologação judicial não se trata de algo “automático”, como uma mera consequência do preenchimento do quórum. Nesse momento há uma marcante atuação do juiz, a quem compete o exame acerca da presença dos requisitos necessários para chancela do plano, cabendo ainda julgar pela sua rejeição, caso não sejam respeitados certos pressupostos.
Lado outro, mesmo que haja a reprovação do plano por parte dos credores ou legitimados, a Lei norte-americana prevê a possibilidade de o juiz superar esse veto por meio do Cram Down, desde que a proposta recusada seja justa e equitativa (fair and equitable), viável (feasible), bem como não implique em injusta discriminação entre os credores (unfair discrimination). É o que se extrai da Section 1129 (b), USC:
“Notwithstanding section 510(a) of this title, if all of the applicable requirements of subsection (a) of this section other than paragraph (8) are met with respect to a plan, the court, on request of the proponent of the plan, shall confirm the plan notwithstanding the requirements of such paragraph if the plan does not discriminate unfairly, and is fair and equitable, with respect to each class of claims or interests that is impaired under, and has not accepted, the plan”.
Reiterando, os 3 requisitos para configurar o “cram down” do direito americano, são: “unfair discrimination”; “fair and equitable” e “feasible”.
Analisemos de forma sucinta cada um deles:
“a) Unfair Discrimination: significa a proibição da pratica de discriminação injusta dos credores pelo plano, no sentido de proteger-lhes contra perdas advindas de pagamentos de valores injustamente diferenciados, posto que devem ser tratados de forma igualitária pelo plano.
b) Fair and Equitable: preconiza que o plano preveja uma distribuição justa e equânime entre as várias classes de credores, englobando as relações “interclasses”. Dentre as classes de credores, divide-se em: classe dos créditos com garantia; classe dos créditos quirografários e classe dos titulares de investimentos.
c) Feasible: o último requisito indica a capacidade de o plano ser viável, ou seja, exequível, capaz de projetar uma reorganização da sociedade que permita retornar o curso normal da atividade e de poder fazer frente aos seus compromissos e obrigações, uma razoável avaliação de sua capacidade de produzir lucros no futuro.”
Sempre levando em conta o denominado “best interest of creditors”, a ideia é que os credores percebam ou retenham sob o plano um valor que não seja inferior ao que receberiam ou reteriam no caso de liquidação da empresa.
Existe também a “absolute priority rule”, verificada apenas em casos de Cram Down, segundo a qual nenhum credor de classe com prioridade inferior à classe dissidente pode receber qualquer valor antes que esta seja integralmente paga.
3. FUNÇÃO SÓCIO ECONÔMICA DA EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL
A instauração do processo de recuperação judicial de acordo com a Lei 11.101/05 deve-se ao fato de se ter instaurado na empresa crise financeira (escassez de caixa), crise econômica (retração dos negócios empresariais) ou crise patrimonial (passivo menor que ativo) (COELHO, Fábio Ulhoa. p. 24).
Desta forma, estamos diante de uma situação em que qualquer das formas de crise enunciadas, caso não sanada por instrumentos negociais e legais, levariam a empresa a, de acordo com o Decreto-Lei 7.661/45, liquidação da empresa e consequente solvência dos seus devedores.
Todavia, como outrora demonstrado, este novo diploma legal nos traz inúmeros novos princípios norteadores que tendem a, antes de se iniciar qualquer processo de falência com sua consequente liquidação, propor uma forma de se manter a atividade empresarial, bem como seus inúmeros sociais, em um beneficio tanto para a empresa, como para credores e, por fim, a sociedade de uma maneira geral.
O primeiro importante princípio contido nesta nova codificação que deve ser atendido para que a Lei 11.101/05 seja eficaz é o princípio da preservação da empresa.
Segundo ele, a empresa é enquadrada como um organismo autônomo, criado para a obtenção de certos interesses e titular de direitos e deveres de maneira completamente independente de seus gestores. Assim, temos a empresa como um ente absolutamente separado de seus administradores ou sócios.
Devemos destacar ainda a função geradora de empregos. De caráter extremamente social, este princípio tem como fundamento o papel exercido pelas empresas nas relações de emprego dentro do contexto capitalista. Assim, torna-se base de todo o sistema de consumo, fazendo com que a sua manutenção seja de essencial importância à manutenção do sistema capitalista, mantendo-se estável a economia. Ainda, alguns autores defendem que o principio da dignidade da pessoa humana, insculpido no art. 1º, III da Constituição Federal de 1988 estaria completamente relacionado com a manutenção das relações de emprego (PERIN JUNIOR, Ecio. p. 25).
No que diz respeito diretamente ao Estado não podemos olvidar do princípio da função geradora de tributos. Desta maneira, temos que a maior fonte de arrecadação fiscal do Estado advém das empresas. Esses tributos possuem a função de manter a saúde financeira da economia nacional, uma vez que é através do balanço de sua arrecadação com os gastos do governo que se traçará uma meta econômica, indicies de investimento, credibilidade no mercado internacional, controle da inflação, política e capacidade produtiva.
Ainda, importante ressaltar que os vínculos empregatícios criados pelas empresas geram inúmeras outras espécies de tributos, com diversos outros fatos geradores, indo diretamente para os cofres do governo, razão pela qual toda cadeia produtiva empresarial é de suma importância para a manutenção da prosperidade econômica de qualquer nação.
Por fim, ao fim deste diapasão, não poderíamos nos esquecer da função social da empresa. Esse princípio fundamenta-se na ideia de que toda a coletividade usufruirá dos benefícios gerados pela atividade através de inúmeras formas. Essas formas podem ser entendidas como as relações de trabalho, serviços, impostos e todas as outras consequências da instauração da atividade empresarial.
Assim, diante desta importância social que a empresa moderna assume, não pode mais ser consubstanciada somente como propriedade privada do empresário, mas como ente de valor social relevante que deve, de acordo com a função social que exerce em seu meio, ser tutelada na medida de preservação de sua atividade, não como um benefício conferido aos seus sócios e credores somente, mas como um instrumento de manutenção do equilíbrio das relações sociais (COMPARATO. Fábio Konder. p. 15).
Portanto, de acordo com a concepção inserida pela Lei 11.101/05 e os princípios supracitados, a finalidade mediata da recuperação judicial é a preservação da empresa, a promoção de sua função social e o estimulo da atividade econômica, tanto por meio da manutenção dos fatores de produção, quanto por meio da tutela de interesses de credores. Além disso, deve-se atentar para o caráter social exercido pela empresa no contexto econômico no qual se insere.
4. A VERIFICAÇÃO DO INSTITUTO DO CRAM DOWN NA LEI 11.101/05
É sabido que o instituto conhecido como Cram Down tem sua origem no direito norte-americano, no que se refere ao seu sistema de falência (Bankruptcy Act). É ainda de conhecimento geral que este sistema se propagou por todo mundo, influenciando essencialmente a legislação brasileira sobre o tema.
Desta forma, nos resta analisar de que maneira o instituto foi recepcionado por nossa legislação e se certos requisitos originais foram adotados, chegando-se a conclusão se o que temos seria realmente uma cópia do instituto norte-americano ou se, diante às mudanças circunstanciais naquela figura, criamos um novo instituto meramente semelhante àquele.
Iniciamos nossa explanação analisando o, já ressaltado, requisito do unfair discrimination. Esse pressuposto faz referência à absoluta impossibilidade de se existir, no direito norte-americano, diferença de tratamento entre credores da mesma classe. É sabido que a Lei 11.101/05 consagra como princípio original para sua criação o chamado par conditio creditorum. Tal instituto, diferentemente do que prega àquele primeiramente citado, entretanto, não veda o tratamento desigual de credores da mesma classe, tendo em vista o essencial caráter contratual da recuperação judicial.
A única vedação presente no diploma brasileiro encontra-se no art. 58, §2º, somente naqueles casos onde o plano tenha sido aprovado pela Assembleia Geral de Credores, conforme disposição do §1º do mesmo artigo.
Portanto, há que se concluir que na Lei 11.101/2005, quanto à vedação do tratamento desigual de credores da mesma classe existente na legislação alienígena, não existe tal tipo de exigência circunstancial para que haja a aprovação da figura da recuperação.
Passando agora a análise do pressuposto fair and equitable, podemos inferir que esse instituto é baseado na existência de uma ordem absoluta de prioridade para que seja realizado o pagamento em casos onde ocorra a falência. Naquela legislação, nenhum credor quirografário poderá receber qualquer pagamento antes dos credores que possuam garantias.
Porém, na legislação brasileira, o art. 54 é a única limitação imposta às modalidades de pagamentos. Ou seja, tirando os prazos estabelecidos pelo art. 54 para o pagamento de créditos derivados de relações trabalhistas, não há qualquer proibição para o tratamento desigual dos credores de acordo com suas garantias e de acordo com a ordem de preferência prevista no art. 83, podendo, o próprio plano de recuperação, estipular formas diferentes para tal ato.
Por fim, o último requisito daquela legislação é o feasible. Este requisito faz referencia a analise do juiz acerca da viabilidade do plano recusado pelos credores. No Brasil, não encontramos, mais uma vez, qualquer semelhança àquele modelo. O que se tem na legislação brasileira, contemplado basicamente no art. 58, §1º da Lei 11.101/05, é a condição de que, havendo o quórum previsto, ainda que o plano seja inexequível, a função jurisdicional seria apenas a de homologação daquele.
O que se percebe, no direito norte-americano, é uma grande discricionariedade conferida ao magistrado para analisar o plano de recuperação e, diante de sua conclusão, aceitar ou não o seu pedido. Devemos atentar para o fato de que, naquela legislação, o juiz contará com auxilio técnico da SEC (Securities and Exchance Commision) para conclusão acerca de sua viabilidade, fato esse que não existe no Brasil.
Assim, não há aqui qualquer discricionariedade para o juiz aceitar ou recusar o plano de recuperação. Trata-se de um poder-dever. Só não irá concedê-la caso verifique a ocorrência de ilegalidade no conteúdo do plano ou nas pré-condições para o devedor entrar em recuperação (CAMPINHO, Sérgio. p. 84).
Para complementar nosso entendimento, analisemos o julgado transcrito abaixo, in verbis:
“EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PLANO APROVADO POR DUAS CLASSES DE CREDORES. APLICAÇÃO DO INSTITUTO DO CRAM DOWN. PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO.
Ressalte-se que cabe ao Judiciário aferir sobre a regularidade do processo decisório da Assembleia de Credores, se esta foi realizada de forma adequada e foram atendidos os requisitos legais necessários para tanto, levando-se em consideração, ainda, a viabilidade econômica de a empresa cumprir o plano ajustado, ou mesmo se há a imposição de sacrifício maior aos credores, para só então proferir decisão concedendo ou não a recuperação judicial à empresa agravada, pressupostos que foram observados no caso dos autos. 5. Ademais, o princípio da preservação da empresa, insculpido no art. 47 da Lei 11.101/2005, dispõe que a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação daquela, sua função social e o estímulo à atividade econômica. 6. Assim, observadas as peculiaridades do caso em concreto, onde entendo que restaram preenchidos os requisitos legais atinentes ao ato de convocação para a assembleia geral de credores no procedimento de recuperação judicial, presente o fato de que por ocasião da realização do referido ato o Plano de Recuperação Judicial restou aprovado, nos termos do art. 45 do diploma legal precitado, bem como em consonância com o princípio da preservação da empresa, norte balizador presente na novel lei que trata da insolvência corporativa, a manutenção da decisão agravada que concedeu a recuperação judicial, é a medida que se impõe. 7. Por fim, é de se destacar que a recuperação judicial se trata de um favor creditício, de sorte que deve prevalecer o princípio da relevância do interesse dos credores, ou seja, a vontade majoritária destes no sentido de que o custo individual a ser suportado pelos mesmos é menor do que o benefício social que advirá à coletividade com a aprovação do plano de recuperação, preservando com isso a atividade empresarial, em última análise, o parque industrial ou mercantil de determinada empresa, bem como os empregos que esta mantém para geração da riqueza de um país. Rejeitada a preliminar contrarecursal e, no mérito, negado provimento ao agravo de instrumento.” (Agravo de Instrumento Nº 70043514256, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luiz Lopes do Canto, Julgado em 31/08/2011) (grifo nosso).
Assim concluímos que, na verdade, há na legislação brasileira uma disposição para o magistrado, através da conferência da regularidade do processo de criação do plano de recuperação judicial, homologá-lo. Nada mais do que, como dito outrora, um poder-dever.
Corroborando este entendimento, o ilustre doutrinador Frederico Simionato esclarece:
“Não cabe razão em ver no art. 58, §1º, incisos I, II e III, figura assemelhável do cram down americano. Tal perspectiva é avessa ao texto legal. […]. Ora, em nenhuma hipótese o legislador pátrio disse que o magistrado poderia utilizar de poder discricionário na analise do plano de recuperação. Ademais, a figura do cram down é exatamente o oposto, ou seja, o cram down é a prerrogativa que o magistrado tem de mandar cumprir o plano de recuperação que não foi aprovado pelos credores, desde que tal plano seja justo, equitativo e viável.
Se o art. 58, §1º pudesse ser visto como uma subespécie de cram down da lei americana, o nosso diploma poderia ser definido como um cram down à moda brasileira. Em outras palavras, não há cram down na lei 11.101/05, em hipótese alguma. Uma interpretação dessa natureza contraria por completo o espírito da lei, ferindo os seus princípios, e colocando por terra a obra doo legislador. A boa doutrina não pode trilhar esse caminho, propondo uma interpretação ao arrepio da lei” (SIMIONATO, Frederico Augusto Monte. p. 183).
CONCLUSÃO
O presente estudo buscou, de maneira sucinta, mas não menos aplicada, demonstrar as peculiaridades do instituto adotado pela Lei 11.101/2005 quanto ao papel do juiz em, havendo recusa dos credores quanto a aprovação do plano de recuperação judicial apresentado pela empresa devedora, acatá-lo, tendo em vista inúmeros princípios adotados tanto pela Constituição Federal de 1988, bem como por mais moderna doutrina e jurisprudência.
Em uma análise comparada com a figura existente no semelhante ordenamento norte-americano (Chapter 11 da Bankruptcy Act), buscou-se traçar um ponto divergente acerca dos institutos, principalmente através da observação principiológica responsável por sua fundamentação, bem como seu papel na aplicação prática, principalmente quanto ao poder que este referido procedimento fornece aos magistrados para justiçar suas decisões.
Portanto, a partir de todo o exposto, podemos concluir que o atual instituto trazido na Lei 11.101/2005 não pode ser confundido com aquele do direito alienígena.
Podemos chegar a esta definição a partir da observação do papel do juiz neste processo. Segundo os preceitos do art. 58, §1º da Lei de Recuperação Judicial, o magistrado poderá, mesmo havendo negativa, acatar o plano de recuperação. Entretanto, esta prerrogativa só terá legalidade se estiver completamente cercada do cumprimento de inúmeras exigências legais. Ou seja, na legislação brasileira, a análise deve-se restringir unicamente à verificação do cumprimento dos requisitos formais estipulados.
Entretanto, de maneira antagônica, na legislação daquele país, possui o magistrado grande autonomia e discricionariedade para julgar e analisar o caso de perto, dispondo ainda com o apoio técnico da SEC (Securitie and Exchance Comission), o que também não está em nossa Lei.
Por fim, essa conclusão consubstancia-se no fato que nenhum dos requisitos originais daquele instituto são seguidos por nossa legislação, quais sejam os supracitados princípios unfair discimination, fair and equitable e, por fim, feasible. Logo, através do mais simples silogismo, percebemos pela criação de figura jurídica semelhante, porém com grotescas diferenças daquela alienígena.
Informações Sobre os Autores
Diogo Luís Manganelli de Oliveira
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora; Pós-graduando em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Débora Guedes Schlaucher
Advogada, graduada pelas Faculdades Integradas Vianna Júnior, pós-graduanda em Direito Público pela LFG Anhanguera