Resumo: Este artigo busca avaliar em que medida a tecnologia “streaming” (utilizada por Netflix, Spotify, Globo Play, Amazon Prime, HBO Now, Apple Music, e outros) está sujeita à tributação no Brasil. Após análise do impacto da evolução tecnológica na sociedade, será traçado um panorama geral da tributação de fatos geradores ocorridos na Internet. Depois, será abordado o conceito da tecnologia “streaming, suas características, vantagens e espécies, e legislação pertinente no direito comparado. Por fim, este ensaio se encerrará com o estudo da legislação do imposto sobre serviços, e da importância do Poder Judiciário na interpretação da tributação sobre a transmissão on lin de multimídia.
Palavras-chave: Direito Digital – Tributação da Internet – Bens e serviços digitais –Fluxo de mídia – Tecnologia streaming – Software de transmissão on line – Streaming on demand – Live Streaming – Netflix – Spotify – Amazon – LC nº 157/2016 – ISS – Locação de bens móveis – Papel do Judiciário – Informática.
Abstract: This article aims to evaluate the extent to which streaming technology (used by Netflix, Spotify, Globo Play, Amazon Prime, HBO Now, Apple Music, and others) is subject to taxation in Brazil. After analyzing the impact of technological evolution in society, an overview of the taxation of generating events occurring on the Internet will be drawn up. Then the concept of streaming technology, its characteristics, advantages and species, and relevant legislation in comparative law will be addressed. Finally, this essay will conclude with the study of the tax legislation on services, and the importance of the Judiciary in the interpretation of taxation on multimedia broadcasting.
Keywords: Digital Law – Internet Taxation – Digital Goods and Services – Media Flow – Streaming Technology – Online Streaming Software – Streaming on Demand – Live Streaming – Netflix – Spotify – Amazon – LC # 157/2016 – ISS – Rental of Movable Property – Paper Of the Judiciary – Informatics.
Sumário: Introdução. 1. A Era Digital. 1.1. A evolução tecnológica como ferramenta essencial à vida das pessoas. 1.2. Novo paradigma, novas demandas. 2. A tributação e os fatos geradores ocorridos na Internet. 2.1. A necessária normatização das atividades em ambiente digital. 2.2. Competência constitucional e limitação ao poder de tributar. 2.3. Quais os possíveis rumos legislativos para o Brasil na Era Digital? 3. A tecnologia streaming. 3.1. O significado da palavra e seu conceito. 3.2. Sua origem. 3.3. Como funciona a tecnologia de transmissão on line de miltimídia. 3.4. Suas principais características e espécies. 4. Direito comparado. 4.1. A tributação do streaming nos Estados Unidos da América. 5. O streaming como hipótese de incidência tributária na legislação brasileira. 5.1. Aspectos técnico-jurídicos. 5.1.1. A legislação do ISS. 5.1.2. A regra-matriz de incidência do ISS. 5.1.3. A LC 157/2016 e as alterações na Lei do ISS (LC 116/2003). 5.2. Subsunção do streaming à hipótese de incidência tributária do ISS. 5.2.1. A subsunção do streaming on demand ao ISS. 5.2.2. A subsunção do live streaming ao ISS. 6. O papel do Judiciário. 6.1. O indispensável posicionamento da jurisprudência acerca do live streaming. 7. Considerações finais.
INTRODUÇÃO
Um dos assuntos mais discutidos no mundo, com o ingresso da humanidade na Era Digital[1], é a dificuldade em se tributar fatos geradores ocorridos na internet, dado seu aspecto essencialmente imaterial e intangível. Essa dificuldade é, pois, o pano de fundo deste artigo, cujo objetivo é discutir o enquadramento da tecnologia streaming (ou fluxo de mídia) no âmbito do direito tributário brasileiro.
Ressalte-se, aqui, a inexistência de qualquer pretensão em se esgotar definitivamente o tema.
1. A ERA DIGITAL
1.1. A evolução tecnológica como ferramenta essencial à vida das pessoas
A cada dia surgem novas necessidades e, por consequência, novas formas de solucioná-las através das invenções e novas idéias. Logo, a tecnologia está sempre em busca de aprimorar algo para tornar a vida em sociedade mais fácil.
O telefone, por exemplo, encurtou distâncias ao possibilitar a conversa entre interlocutores a milhares de quilômetros de distância, e hoje, se tornou um computador de mão, se pode ouvir músicas, fazer download, tirar fotos, jogar, assistir TV, e de vez em quando fazer uma ligação.
Também, a música é um exemplo de como a evolução tecnológica é rápida. Primeiro, surgiu a vitrola com os discos de vinil; depois, as fitas K7; em seguida, o Compact Disc (CD), e por último o MP3. Podemos armazenar as músicas que ouvimos durante toda a nossa vida, ou de uma geração inteira em um pequeno aparelho.
Todavia, muito mais importante as facilidades proporcionadas por estes recursos, são as transformações que esta evolução promoveu na sociedade.
Estamos num momento histórico tão importante quanto à revolução industrial do século XVIII, cuja principal característica é a descontinuidade das bases materiais da economia, sociedade e cultura.
E mais, diferentemente de qualquer outra revolução, o cerne da transformação que estamos vivendo na revolução atual (Revolução Digital ou da Tecnologia) refere-se às tecnologias da informação, processamento e comunicação, que alteram profundamente o modo como vivemos em sociedade. Daí o nome, Era da Informação.
1.2. Novo paradigma, novas demandas
A penetração das novas tecnologias da informação e da comunicação na vida social, econômica e política vêm afetando profundamente os modos de organização das relações econômicas, jurídicas e sociais.
O caráter transversal e global da transformação em curso está nos levando a um novo paradigma econômico-social que demanda, também, um novo paradigma jurídico.
Isto porque, a Era Digital vem desafiando princípios e regras há muito consolidados, pensados para uma sociedade assente em bens físicos ou corpóreos.
E não é só isso. As características da Internet e, consequentemente, todos os negócios digitais realizados a partir dela, contrariam o alcance territorial e temporal do direito, bem como da autoridade do Estado, ocasionando obstáculos à sua aplicação num espaço sem fronteiras, de difícil fiscalização e controle. Também, este novo paradigma social nos trouxe um problema de jurisdição: é cada vez mais frequente, por exemplo, o consumo remoto e uso de conteúdo armazenado em “nuvem” (cloud), um método de computação que disponibiliza recursos como armazenamento, bancos de dados e os aplicativos disponíveis através da internet.[2] Os novos modelos de negócios podem, portanto, cruzar fronteiras nacionais, aumentando as dúvidas quanto a qual a legislação aplicável, e qual o tribunal competente para a solução de litígios.
Bem por isso, já se tem falado no surgimento de um novo ramo do Direito, o Direito Digital[3], com vistas a se repensar a organização das relações jurídicas e legislação existente, sob a luz da nova demanda social decorrente da Era Digital.
2. A TRIBUTAÇÃO DE FATOS GERADORES OCORRIDOS NA INTERNET[4]
2.1. A necessária normatização das atividades em ambiente digital
Como a tributação é uma atividade plenamente vinculada (cujo exercício não goza de liberdade para apreciar a conveniência ou oportunidade de agir), a autoridade tributária fica inteiramente vinculada ao comando legal[5].
Quando se fala em tributação, o Fisco[6] não possui discricionariedade, razão pela qual eventuais indeterminações devem ser preenchidas normativamente (vale dizer, pela edição de ato normativo, aplicável a todos quantos se encontrem na situação nele hipoteticamente prevista).
Bem por isso, as atividades que ocorrem na Internet também exigem descrição legal, recortada pelo legislador entre inúmeros fatos do mundo fenomênico digital, a qual, uma vez concretizada no fato gerador, enseja o surgimento da obrigação tributária. Uma vez concretizada a situação ocorrida pela rede mundial de computadores (como uma compra on line, por exemplo), tal somente se sujeitará à tributação caso haja prévia descrição em lei (hipótese de incidência tributária).
As atividades ocorridas por meio da internet, portanto, são fatos reais que, apesar de possuírem complexas características, o Direito não pode se furtar de normatizar.
2.2. Competência constitucional e limitação ao poder de tributar
A competência tributária (aptidão para criar tributos em abstrato, por meio de lei[7]) é dada pela Constituição Federal aos entes políticos do Estado (União, governos estadudais, Municípios e Distrito Federal).
A Constituição brasileira, ao contrário de outras constituições, foi bastante extensiva na elaboração de regras de competência tributária. A Constituição de 1988, entre os artigos 145 e 162, limitou as competências tributárias de cada ente político, não restando ao legislador ordinário liberdade para mudar os fatos que podem ou não ser tributados.[8]
Daí, o próprio legislador orginário está adstrito aos termos da atribuição de competência feita pela Constituição; isto é, está vinclulado à reserva material pressuposta (conceitos, ainda que implícitos, do que seja renda, serviço, mercadoria etc.).[9] Para ÁVILA (2012), as regras atributivas de competência tributária não podem ser entendidas como normas abertas que atribuem ao legislador ordinário o poder de dinamicamente escolher um de seus múltiplos sentidos. A Constituição pressupõe conceitos que não podem ser desprezados pelo legislador ordinário. A consequência disto é que:
“Isso significa que a utilização de uma expressão específica por uma regra constitucional de competência faz com que o intérprete tenha de verificar se não havia um conceito técnico previsto no direito infraconstitucional pré-constitucional (não necessariamente direito privado). Se havia um conceito e o legislador constituinte resolveu não modificá-lo pela institui~ao de um novo conceito, a referência à expressão significa uma opção pela sua incorporação desse conceito legal ao ordenamento constituiconal. Foi exatamente o que ocorreu no caso da base de cálculo das contribuições sociais sobre o faturamento.
Essa decisão se insere na cadeia de decisões do Supremo Tribunal Federal que demonstram que só há poder de tributar sobre fatos cujos conceitos se enquadrem nos conceitos previstos nas regras de competência e, inversamente, não há poder algum de tributar sobre fatos cujos conceitos não se emoldurem nos conceitos previstos nestas regras. Daí, serem intransponíveis os limites conceituais previstos nas regras de competência. Fora deles, não há poder de tributar.”[10]
Para PAULSEN (2012), estes conceitos, institutos e formas não podem ser deturpados nem estendidos pelo legislador ordinário, de modo que uma lei que o faça ofende não apenas o CTN, mas também a Constituição Federal, dado o fato destes conceitos terem se incorporado à Magna Carta quando esta foi promulgada.[11] Nesse sentido, é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal:
“CONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE – ARTIGO 3º, § 1º, DA LEI Nº 9.718, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1998 – EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 20, DE 15 DE DEZEMBRO DE 1998. O sistema jurídico brasileiro não contempla a figura da constitucionalidade superveniente. TRIBUTÁRIO – INSTITUTOS – EXPRESSÕES E VOCÁBULOS – SENTIDO. A norma pedagógica do artigo 110 do Código Tributário Nacional ressalta a impossibilidade de a lei tributária alterar a definição, o conteúdo e o alcance de consagrados institutos, conceitos e formas de direito privado utilizados expressa ou implicitamente. Sobrepõe-se ao aspecto formal o princípio da realidade, considerados os elementos tributários. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL – PIS – RECEITA BRUTA – NOÇÃO – INCONSTITUCIONALIDADE DO § 1º DO ARTIGO 3º DA LEI Nº 9.718/98. A jurisprudência do Supremo, ante a redação do artigo 195 da Carta Federal anterior à Emenda Constitucional nº 20/98, consolidou-se no sentido de tomar as expressões receita bruta e faturamento como sinônimas, jungindo-as à venda de mercadorias, de serviços ou de mercadorias e serviços. É inconstitucional o § 1º do artigo 3º da Lei nº 9.717/98, no que ampliou o conceito de receita bruta para envolver a totalidade das receitas auferidas por pessoas jurídicas, independentemente da atividade por elas desenvolvida e da classificação contábil adotada”.[12] (grifo nosso)
Logo, conclui-se que a atribuição de competência feita pela constituição não é mero formalismo, configurando-se verdadeira limitação ao poder de tributar.
2.3. Quais os possíveis rumos legislativos para o Brasil na Era Digital?
Diante desse novo paradigma econômico-social, implantado pela Revolução Tecnológica, é de suma importância que nosso país repense seus caminhos normativos.
Esse é o momento para o legislador pátrio analise qual o melhor caminho para a normatização dos fatos ocorridos na rede mundial de computadores.
Os tempos mudaram, contudo, nossa legislação tributária, não. Nosso Código Tributário Nacional (CTN), criado em plena ditadura militar e sob a vigência da Constituição Federal de 1946, completou 50 anos em outubro de 2016, e se encontra mutilada devido às muitas alterações.
Desde sua criação (1966), já foram duas grandes reformas tributárias, além de uma ruptura constitucional (Constitução Federal de 1988). Acrescente-se a isso, o fato de que ainda não havíamos ingressado na Era Digital, o que enseja algumas situações esdrúxulas.
Deste modo, cabe ao legislador pátrio sopesar se não seria mais interessante partir para um novo sistema tributário (mais atual e de acordo com o novo paradigma social e econômico), que insistir na legislação tributária atual (obsoleta e desatualizada quanto ao modo de se fazer negócios, que demanda uma hermeneutica por demais qualificada, e encontra óbice na legalidade tributária).
3. A TECNOLOGIA STREAMING
3.1. O significado da palavra e seu conceito
Streaming (fluxo de mídia, software[13] de transmissão on line) é uma forma de distribuição de dados, geralmente de multimídia em uma rede através de pacotes. É frequentemente utilizada para distribuir conteúdo multimidia através da Internet[14].
A palavra streaming, de origem inglesa, significa córrego ou riacho e, por isso, streaming remete para “fluxo”, que no ambito da tecnologia, indica um fluxo de dados ou conteúdos multimídia.
A partir daí, podemos extrair o seguinte conceito: streming é a tecnologia de transmissão que viabiliza acesso a conteúdo através da internet, sem que precise haver transferência de posse ou de propriedade.
3.2. Sua origem
A tecnologia do streaming foi desenvolvida nos Estados Unidos na década de noventa, porém não se popularizava por conta da baixa velocidade das concexões com a internet, que não permitia o carregamento instantâneo. Tentar assistir um vídeo ou ouvir uma música por streaming continuou sendo um verdadeiro exercício de paciência até os anos 2000 (já que os dados ficavam mais tempo carregando e sendo armazenados que exibidos). Os vídeos “travavam” muito e a qualidade de exibição era baixa.
Somente com o aumento da velocidade da internet através da banda larga, ocorreu a popularização do streaming e, com isso, o surgimento de um número incalculável de possibilidades.
3.3. Como funciona a tecnologia streaming?
Nela, as informações não são armazenadas no dispositivo do usuário, que recebe o stream, a transmissão dos dados (com arquivação temporária no cache[15] do sistema), de modo que a mídia (vídeo, música etc.) é reproduzida à medida em que chega ao usuário, dependendo da largura de banda[16] (que deve ser suficiente para reproduzir o conteúdo; caso contrário, insuficiente, ocorrerá interrupções em sua reprodução).
Assim, a tecnologia streaming permite que um usuário reproduza conteúdos protegidos por direitos do autor, via Internet, sem a violação desses direitos (algo similar ao rádio ou televisão aberta, diferentemente do que ocorreria no caso do download[17] do conteúdo, onde há o armazenamento da mídia no HD, e configuraria cópia ilegal).
Como exemplos de aplicação da tecnologia streaming de vídeo, podemos citar o Youtube (pioneiro no serviço de streaming na internet), Netflix, Youtube, Hulu, Globo Play, HBO Now, Amazon Prime; como streaming musical, temos o Spotify, Deezer e Apple Music.
3.4. Suas principais características e espécies.
Uma das maiores vantagens obtidas com o software de transmissão on line é a possibilidade de distribuição de conteúdos protegidos por direitos autorais sem que se ofenda tais direitos.
Como não existe downloads de arquivos, o streaming se assemelha às transmissões feitas através da televisão.
Também, possuem a vantagem da liberdade de acesso a conteúdo e a qualquer momento.
Considerando que essa tecnologia permite tanto que se acompanhe um evento ao vivo (como a cerimônia de entrega do Oscar, ou um show diretamente transmitido pela internet) quanto que se faça uso dela sob demanda, podemos classificar o fluxo de mídia em duas espécies: on demand e live streaming.
No streaming on demand, o usuário acessa conteúdos como filmes e séries de TV, documentários, músicas e outros, através da transmissão e reprodução automática de arquivos previamente armazenados num catálogo. Aqui, o usuário está no controle do que vai assistir, quando e onde (qual dispositivo), podendo controlar a exibição, pausando, avançando ou retrocedendo o vídeo ou a música escolhidos.
Já no live streaming, apesar de basear-se na mesma tecnologia, é voltado para eventos que estejam acontecendo no mmento da transmissão, sendo possível, inclusive, que o usuário interaja com o evento que assiste. Dentro desta categoria (live streaming, que é a tendencia atual), entram a transmissão ao vivo de festas, como as bodas e eventos corporativos.
4. DIREITO COMPARADO
4.1. A tributação do streaming nos Estados Unidos
Nos EUA, berço da tecnologia streaming, a legislação e jurisprudência americana sobre o tema[18] se encontram em estágio avançado, embora ainda não pacificadas. Para melhor compreensão de nosso estudo, vejamos como algumas localidades dos Estados Unidos tem tratado do tema.
O Departamento de Finanças de Chicago, em 01/09/2015 emitiu a instrução fiscal Tax Rule nº 5 [19], e alterou o Chicago Amusement Tax (o que poderia ser traduzido como “imposto sobre entretenimento”) com o intuito de tributar as diversões desfrutadas por meio eletrônico. Tal exação se aplica, pois, ao contribuinte que assistir ou participar de qualquer entretenimento mediante o acesso digital. A alíquota é de 9% sobre o preço da assinatura ou valor equivalente, bem como, além dos eventos tradicionalmente tributáveis pelo Chicago Amusement Tax (exposições, shows de entretenimento, atividades recreativas ou eventos similares), também o entretenimento através do acesso digital (programas de televisão, filmes, vídeos, música e Jogos on-line) passou a integrar a hipótese de incidência tributária. No mais, é considerado sujeito passivo do aludido tributo todo cliente cujo endereço residencial ou comercial principal seja em Chicago (o que pode ser comprovado pela fatura do cartão de crédito, o endereço de faturamento da negociação, etc.). Enfim, segundo o Departamento de Finanças de Chicago, tal tributação incide “somente sobre o conteúdo objeto de acesso temporário, transmitido on-line” (e não à aquisição de shows, filmes, vídeos, músicas ou jogos baixados permanentemente para o dispositivo do usuário, mediante download).
Já o Departamento de Receita do Alabama alterou a Administrative Rule nº 810-6-5-.09 [20], para estender o Alabama’s rental tax (uma espécie de imposto sobre locação) ao streaming de vídeo ou áudio, com vigência a partir de 01/10/2015. De acordo com essa alteração, “transmissões digitais, filmes sob demanda, programas de televisão, streaming de vídeo, streaming de áudio e outros programas similares, disponibilizados aos clientes, independentemente do método de transmissão (seja mediante assinatura por período definido ou indefinido, seja sob demanda), são considerados bens tangíveis e sujeitos ao imposto sobre locação (que se assemelha à locação de bens móveis na legislação brasileira). Contudo, devido à pressão do governo estadual e dos advogados tributaristas, aludida norma administrativa foi revogada em 07 de julho de 2015 e, após a supressão do imposto, não mais se cogitou sua imposição.
Doutra feita, no Estado da Flórida, uma consulta fiscal ao Departamento de Receita Tributária local, resultou no Florida Technical Assistente Advisement nº 14A19-005, de 18/12/2014 [21], segundo o qual o sales and use tax (imposto sobre vendas e uso) não incide sobre venda e assinatura de streaming de vídeo digital (programas de televisão, filmes, eventos esportivos e eventos de notícias), porque não há transferência de domínio de bem material (tangível). Tal consulta fiscal, entretanto, concluiu pela incidência do imposto sobre serviços de telecomunicação da Flórida no acesso temporário a conteúdo digital mediante assinatura, enquanto a aquisição definitiva de conteúdo (baixado ou permanentemente armazenado na biblioteca on line do usuário) configuraria venda de serviços de informações transferidos por via eletronica, e portanto, não sujeito nem ao imposto sobre serviços de telecomunicações, nem ao imposto sobre vendas e uso no Estado da Flórida.
Por fim, em Idaho, o estatuto sobre bens digitais (Idaho, H.B. 209) [22] foi alterado em 1/4/2015, para estabelecer que serviços de streaming não se sujeitam a qualquer tributação. O diferencial entre tratamento tributável e não tributável está no carater temporário (streaming) ou permanente (download) do direito de uso. O imposto sobre vendas e uso incidirá sobre bens digitais quando o comprador adquirir o direito permanente de usar os bens digitais. Em oposição, o imposto sobre vendas e uso não incidirá quando o uso for temporário ou estiver condicionado a pagamento contínuo.
Assim, após essa breve análise sobre as legislações apontadas acima, pode-se concluir que Estados e condados americanos têm usado diferentes fatos geradores para tratar da tributação sobre streaming de vídeos, programas de TV, jogos e música digital.
Por conseguinte, se por um lado, o entretenimento on line, o serviço de comunicações, ou ainda, a venda e uso de bem material podem ser fato gerador da tributação do streaming nos EUA; de outro, há Estados e condados americanos cuja legislação sequer enquadram o fluxo de mídia como hipótese de incidência tributaria.
Passemos, então, à análise do tratamento tributário do fluxo de mídia no Brasil.
5. O STREAMING COMO HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
5.1. Aspectos técnico-jurídicos
5.1.1. A legislação do ISS
O ISSQN (Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza) é um tributo da competência dos Municípios que, em âmbito nacional, é disciplinado pela Constituição de 1988, artigo 156, III e § 3º, e pela LC 116/2003 (que fixa suas normas gerais).
Ressalte-se, contudo, que para cobrar o imposto, cada Município precisa editar sua respectiva lei ordinária municipal para tratar do assunto. Esta lei local, obviamente, não pode contrariar a LC 116/2003, nem prever serviços que não estejam expressos na lei federal.
O fato gerador do ISSQN incide sobre a prestação dos serviços listados no anexo da LC 116/2003, em obediência ao texto constitucional:
“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar. (…)
§ 3º Em relação ao imposto previsto no inciso III do caput deste artigo, cabe à lei complementar:
I – fixar as suas alíquotas máximas e mínimas;
II – excluir da sua incidência exportações de serviços para o exterior;
III – regular a forma e as condições como isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.’[23] (grifo nosso)
E, complementarmente, preceitua o art. 1º da LC 116/2003:
“Art. 1º O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador”.
Por isso, todos os serviços que estão sujeitos ao pagamento de ISSQN devem estar previstos na lista anexa à LC 116/2003. Caso contrário, não é fato gerador do imposto, pois esta lista é taxativa (exaustiva).
Sabendo isso, vejamos a regra matriz tributária do ISSQN.
5.1.2. A regra-matriz [24] de incidência do ISS.
A regra-matriz de incidência tributária é uma norma de conduta que visa disciplinar a relação jurídico-tributária entre o fisco e o contribuinte.
A lei prevê um determinado fato jurídico como hipótese de incidência tributária e, uma vez ocorrido o fato previsto, aparece a relação jurídica entre sujeito ativo e sujeito passivo. Concretizando-se os fatos descritos na hipótese, ocorre a consequência, e esta, por sua vez, prescreve uma obrigação patrimonial. Nela, encontraremos uma pessoa (sujeito passivo) obrigada a cumprir uma prestação em dinheiro.[25]
A hipótese de incidência descreve a situação necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária.[26]
Os elementos da regra matriz são a hipótese e a consequência. Elas se desdobram em critérios.[27]
BARRETO (2009) aponta cinco critérios da regra-matriz de incidência do ISS (material, temporal, espacial, pessoal e quantitativo).
Segundo o autor, o critério material da hipótese de incidência desse imposto é “prestar serviço, não copreendido no art. 155, II”. Destaca, ainda, que a essencialidade do verbo “prestar”, que pressupõe proveito alheio, e deve ser entendido em sentido jurídico (não econômico). Também, aponta que o serviço deve ser “efetivamente” prestado, não se admitindo a incidência de ISS sobre serviço potencial, além de apontar a necessidade de habitualidade e a irrelevância de finalidade lucrativa, devendo apenas haver remuneração pelo serviço. E continua, ressaltando a necessidade de sujeição ao regime de direito privado.
“Serviço é conduta humana (prestação de serviço), consistente em desenvolver um esforço vinsando a adimplir uma obrigação de fazer” [28]
Com relação ao critério temporal, que diz respeito ao “quando” se reputam ocorridas as circunstâncias materiais da hipótese de incidência do ISS. O autor aponta que, para isso, exige-se separar primeiro os serviços em fracionáveis e não-fracionáveis. Essa bipartição se fundamenta em saber se o serviço, considerando suas características essenciais, admite ou não execução parcelada. Se admitir, o ISS incidirá sobre cada “etapa”. Na hipótese do serviço ser “não- fracionável”, o ISS somente incidirá quando acabado, não se admitindo cobrança antecipada. A regra é a indivisibilidade, sendo os serviços fracionáveis a exceção.[29]
O critério espacial, por sua vez, diz respeito a “onde” deve ocorrer o fato para que ele possa ser entendido como fato jurídico tributário. BARRETO (2009) ressalta que esse critério dá ensejo a diversos conflitos de Lei no espaço entre os entes Municipais, bem como calorosas divergências doutrinárias e jurisprudenciais. Para ele, o único critério prestigiado por nossa Constituição é o local onde se produzirem os resultados da prestação de serviço, conquanto a Lei Complementar 116/2003 tenha adotado como regra geral a Tese da Prevalência do Estabelecimento Prestador, elencando exceções nos incidos de seu art. 3º. E continua o mesmo autor, apontando como Estabelecimento Prestador o local onde a atividade é efetivamente exercida (não importando a denominação de matriz, filial, sucursal, agência, entre outras), entendimento esse que foi acolhido pelo STJ[30].
No tocante ao critério pessoal, há que se dividi-lo em sujeição ativa e passiva. O sujeito ativo do ISS é o Município (ou Distrito Federal) em cujo território ocorre a prestação de serviços. O sujeito passivo é quem produz a materialidade da hipótese de incidência (hipótese tributária), isto é, o prestador de serviços. BARRETO (2009) assevera que a substituição do sujeito passivo do ISS, ainda que admissível, deve se restringir à absoluta excepcionalidade[31].
Por fim, o critério quantitativo compreende, segundo BARRETO (2009), base de cálculo e alíquota. A base de cálculo natural desse imposto é o preço do serviço. Já a alíquota é o percentual da base de cálculo definido em lei que serve de critério para determinar o quantum devido.[32]
5.1.3. Lei Complementar nº 157/2016 e as alterações na Lei do ISS (Lei Complementar nº 116/2003).
Publicada dia 30/12/2016, último dia útil do ano, a LC nº 157 alterou Lei do ISSQN (LC 116/2003). Vejamos, pois, as novidades trazidas por esta lei no âmbito tributário, pertinentes ao objeto deste artigo.
A LC 157/2016 alterou diversos itens da lista do Anexo da LC 116, editada em 2003. De 2003 até agora, surgiram novos serviços que, como não estavam expressos na lista, não podiam ser tributados com ISS.
Deste modo, aludida alteração teve o intuito de incluir expressamente estes novos serviços, como é o caso da tecnologia streamging.
E a LC 157/2016 incluiu expressamente a transmissão on line de mídia na lista do Anexo da LC 116/2003, de modo que agora, esta atividade passa a ser tributada com ISS. Veja-se:
“1.09 – Disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos (exceto a distribuição de conteúdos pelas prestadoras de Serviço de Acesso Condicionado, de que trata a Lei nº 12.485, de 12 de setembro de 2011, sujeita ao ICMS).” (grifo nosso)
Quanto à vigência, a LC 157/2016 entrou em vigor no momento de sua publicação (30/12/2016). Contudo, a inclusão do streaming na hipótese de incidência do ISS só começará a valer partir de março de 2017.
Isto porque, houve a inclusão de novo fato gerador e o ISS se submete ao princípio da noventena (anterioridade nonagesimal) prevista no artigo 150, III, c, da CF/88:
“Art. 150. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
III – cobrar tributos:
c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b; (Incluído pela EC 42/2003)” (grifo nosso)
Eis o que nos cabia mencionar aqui.
5.2. Subsunção do streaming à hipótese de incidência tributária do ISS
A despeito da LC 157/2016 ter incluído o fluxo de dados na lista de serviços, não é toda modalidade de fluxo de mídia que configura a hipótese de incidência tributária apontada. Para se compreender melhor, necessário abordarmos dois aspectos: a subsunção do streaming na modalidade on demand, e o terreno nebuloso em que se encontra o live streaming (bodas streaming).
5.2.1. A subsunção do “streaming on demand” ao ISS
Na modalidade streaming on demand, impossível a subsunção do fluxo de mídia à hipótese tributária do ISS. Nela, o software de transmissão on line é apenas um instrumento que possibilita o acesso a filmes, séries, música, dentre outros, de modo que o objeto do contrato entre usuário e empresa não é a utilização do software, mas sim o acesso a conteúdo pré-estabelecido.
Ora, tal equivale à locação de bem móvel (obrigação de dar), o que, segundo orientação dominante do Supremo Tribunal Federal consolidada na Súmula Vinculante nº 31[33], não se enquadra na incidência do ISSQN.
A locação de coisas é inconfundível com a prestação de serviço. A respeito, ensinam GONÇALVES (2016) e GOMES (2007) que:
“(…) característico da locação é o regresso da coisa locada a seu dono, a passo que o serviço prestado fica pertendendo a quem o pagou e não é suscetível de restituição.”[34]
O que a Constituição confere aos Municípios é, pois, a competência para tributar a prestação de serviços. Vale dizer, a locação de serviços; jamais a locação de coisas. A locação é vera cessão de direitos e traduz-se na cessão do direito ao uso de um objeto, mediante remuneração.[35] Colocar algo à disposição de alguém, para seu uso (como na hipótese do streaming on demand), não é o mesmo que produzir um esforço humano em benefício de terceiro. Consequentemente, é inconstitucional a cobrança de ISSQN de empresas (como Netflix, Amazon Prime, Spotify, Apple TV, Globo Play, Deezer, dentre outras), que se utilizam da tecnologia streaming on demand.
5.2.2. A subsunção do “live streaming” ao ISS
Doutra feita, o tratamento jurídico a ser destinado à modalidade live streaming, apesar de basear-se na mesma tecnologia, encontra-se em terreno nebuloso. Isto porque, nesta hipótese, o software de transmissão on line destina-se a cobertura de eventos que estejam acontecendo ao vivo, com possibilidade de interação do usuário, o que pode configurar prestação de serviços se existir “o necessário esforço humano em benefício de terceiro” (mencionado no tópico 5.1.2). Como exemplo, tem-se a hipótese em que empresa fornecedora da tecnologia streaming, à disponibiliza com intuito de transmitir on line e ao vivo casamento, bodas, ou ainda, evento comprorativo de determinado usuário. Sendo assim, a incidência, ou não, de ISS das empresas que se utilizam da tecnologia live streaming deve ser analisada pelos operadores do direito caso a caso, de acordo com o cenário fático apresentado em cada hipótese.
6. O papel do judiciário
6.1. O indispensável posicionamento da jurisprudência brasileira acerca do live streaming.
De fato, como a tributação da tecnologia streaming está só começando no Brasil, ainda não há uma interpretação consolidada do assunto pelos tribunais.
Todavia, diante da evidente inconstitucionalidade da incidência do ISSQN na modalidade streaming on demand, e da dificuldade fática em saber se o live streaming se encaixa, ou não, na hipótese de incidência do ISSQN, o Poder Judiciário assume papel essencial neste processo.
Assim, como solucionador de conflitos e garantidor da segurança jurídica e paz social, já é possível vislumbrar quão indispensável será o papel do Poder Judiciário sobre o tema: seja adequando o fato gerador à legislação tributária atual (obsoleta, desatualizada quanto ao modo de se fazer negócios e engessada pela “reserva mental pressuposta” mencionada no tópico 2.3), seja analisando se o conceito de bens e serviços digitais se emolduram nas regras de competência fixados na Constituição de 1988 (como dito no tópico 2.2.1).
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Aos operadores do Direito, a dificuldade do sistema legal em acompanhar a evolução da sociedade sempre se mostrou evidente e, na Era Digital, o que já era muito difícil tornou-se hercúleo.
Na atualidade, a legislação pátria atual tem se mostrado obsoleta e insuficiente (para resolver os litígios surgidos com a Revolução Tecnológica) e, por isso, muitas vezes, o julgador tem que se utilizar de princípios gerais do Direito para equalizar litígios.
No âmbito do Direito Tributário brasileiro, contudo, é onde se encontram os maiores obstáculos, dada a reserva material pressuposta decorrente das regras atributivas de competência tributária.
Neste contexto, enquanto o Poder Legislativo brasileiro não criar um novo Sistema Tributário (mais atual e de acordo com o novo paradigma social e econômico), o Poder Judiciário possui papel fundamental na solução das lides oriundas do ambiente digital, devendo fazer uma “releitura do Direito tradicionalmente conhecido, sob a ótida dos impactos e reflexos tecnológicos” (o que alguns chamam de Direito Digital[36]).
Por fim, conquanto a LC 157/2016 tenha incluído na lista anexa da Lei do ISS (LC 116/2003) a tecnologia streaming como hipótese de incidência do imposto sobre serviços, o tratamento tributário da transmissão on line de multimídia encontra caminho árduo, o que se conclui pela inconstitucionalidade evidente da subsunção do streaming on demand ao ISS, e pela dificuldade fática (e indispensável interpretação pela jurisprudencia brasileira) de enquadramento da modalidade live streaming à hipotese de incidência de aludido imposto.
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Informações Sobre o Autor
Tatiana Trícia de Paiva Revoredo
Assistente Jurídica no Tribunal de Justiça desde 1999, Especialista em Direito Constitucional formada pela PUC-SP, Assistente jurídica atuante em Câmara Especializada de Tributos Municipais do Tribunal de Justiça de São Paulo