Direito de recesso e abuso do direito nas sociedades por ações

Resumo: O propósito deste estudo é discutir algumas questões jurídicas em torno do exercício do direito de recesso (ou direito de retirada) que é outorgado pela ordem jurídica aos acionistas que dissentirem de decisões que impliquem mudanças no arcabouço jurídico da sociedade (no contrato ou no estatuto social), no tipo societário e na configuração operacional da empresa explorada, nas condições previstas em lei. A principal questão a ser analisada é a que diz respeito á possibilidade de caracterização de abuso de direito quando do exercício do direito de retirada.

Palavras-chave: Direito de Recesso. Direito de Retirada. Abuso do Direito. Poder de Controle.

Abstract: The purpose of this study is to discuss some legal issues regarding the exercise of the right of withdrawal that is granted by the legal order to shareholders who dissent from decisions that imply changes in the legal framework of the company (in the contract or bylaws), In the corporate type and in the operational configuration of the company operated, under the conditions established by law. The main issue to be analyzed is that concerning the possibility of characterizing abuse of rights when exercising the right of withdrawal.

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Key-words: Right of Withdrawal. Abuse of Rights. Power of Control.

Sumário: Introdução. 1. O direito de recesso na Lei n. 6.404/76. 2. O direito de recesso como direito essencial do acionista. 3. Direito de recesso e abuso do direito. Conclusão.

INTRODUÇÃO

A Lei n. 6.404/76 contém diversas normas (regras e princípios) sobre o direito de retirada dos acionistas em razão de mudanças no estatuto social ou na empresa explorada pela sociedade que sejam decididas pela assembleia geral. Esse direito consiste na faculdade que tem todo acionista de sair da sociedade mediante reembolso do valor de suas ações por parte da sociedade que, deste modo, se obriga a adquirir as ações de seu próprio capital. A possibilidade de sair da sociedade mediante reembolso não é disponível para o acionista a qualquer tempo; assim, ele tem uma simples expectativa de direito que se materializa com a realização da assembleia geral convocada para discutir matérias que, na forma da lei, permitem o exercício do direito.

As normas que dispõem sobre o direito de retirada visam a atender às demandas que decorrem da natural tensão entre os acionistas detentores do poder de controle e dos demais que não votam ou não têm votos suficientes para decidir de outro modo. Aqueles detêm poderes de determinar mudanças de grande vulto na sociedade (e na empresa) enquanto estes aspiram pela preservação da condição econômica ao menos equivalente de seus títulos de participação já que ficam obrigados a suportar as consequências do que vier a ser decidido pela maioria. A lei não desconhece a existência da referida tensão e, por isso, estabelece critérios que visam a preservar os direitos das partes e também de terceiros que são impactados pelas decisões tomadas pela maioria. Para alcançar esses desideratos a lei permite a realização de mudanças, mas impõe a adoção de medidas de compensação que visam a viabilizar, nas sociedades cujas ações não gozam e liquidez, um modo de saída dos acionistas que dissentirem das decisões aprovadas pela maioria.

O direito de retirada tem sido tratado como um mecanismo jurídico de compensação estabelecido em favor dos acionistas; todavia, parece claro que as normas sobre a matéria desempenham, também e ao mesmo tempo, a função de garantia da validade e prevalência do poder de controle (ou o poder da maioria) para impor mudanças na sociedade ou na empresa. Enfim, nos limites e condições da lei, os controladores têm o direito de propor e aprovar mudanças e os acionistas o direito de deixar a sociedade mediante reembolso do valor de suas ações.

1 O DIREITO DE RECESSO NA LEI N. 6.404/76

Direito de retirada (ou de recesso) é o que permite ao acionista dissidente deixar o quadro social mediante reembolso do valor de suas ações pela sociedade que fica obrigada a adquirir as ações e pagar o preço fixado determinado com base em critérios previstos em lei ou no estatuto social. É um meio de saída do quadro social de especial relevância para os acionistas que não podem vender suas ações no mercado de capitais por integrarem companhia fechada ou por serem titulares de ações de companhia aberta com baixa dispersão acionária, e, portanto, sem liquidez. As decisões suscetíveis de determinar o nascimento do direito de retirada são tomadas pelos acionistas por ocasião da realização das assembleias gerais, mas o reembolso, quando exigível, deve ser feito pela sociedade, que se obriga pelas decisões dos seus órgãos.

Na lei que rege o funcionamento das sociedades por ações há o enunciado do art. 137 da Lei n. 6.404/76, que estabelece que: “a aprovação das matérias previstas nos incisos I a VI e IX do art. 136 dá ao acionista dissidente o direito de retirar-se da companhia, mediante reembolso do valor das suas ações”. Em razão desse preceito, o acionista tem direito de solicitar o pagamento do reembolso de suas ações nas hipóteses de:

(a) criação de ações preferenciais ou aumento de classe de ações preferenciais existentes, sem guardar proporção com as demais classes de ações preferenciais, salvo se já previstos ou autorizados pelo estatuto;

(b) alteração nas preferências, vantagens e condições de resgate ou amortização de uma ou mais classes de ações preferenciais, ou criação de nova classe mais favorecida;

(c) redução do dividendo obrigatório;

(d) fusão da companhia, ou sua incorporação em outra;

(e) participação em grupo de sociedades;

(f) mudança do objeto da companhia; e,

(g) cisão da companhia.

Nos casos das hipóteses referidas em “a” e “b”, por força do disposto no art. 137, I, somente é possível o exercício do direito de retirada pelo titular de ações de espécie ou classe que forem prejudicadas pela decisão da assembleia. Em relação às hipóteses referidas em “d” e “e”, o direito de retirada não é acessível ao titular de ações que tenham liquidez e dispersão no mercado (item II do art. 137). No caso da hipótese do item “g”, o direito de retirada só pode ser exercido se da cisão resultar mudança do objeto social, salvo se o patrimônio cindido for vertido para sociedade cuja atividade preponderante coincida com a decorrente do objeto social da sociedade cindida (item III do art. 137).

Outras normas da Lei n. 6.404/76 dispõem sobre o direito de retirada em hipóteses não contempladas nos artigos 136 e 137. Assim, de acordo com o art. 221 da mesma Lei, o acionista tem o direito de sair da sociedade com pagamento do valor do reembolso em caso de deliberação não unânime sobre a transformação da sociedade. No art. 223, §§ 3º e 4º da mesma Lei está prevista a possibilidade de exercício do direito de recesso nos casos de incorporação, fusão ou cisão, que envolvam companhias abertas, se, no prazo de 120 (cento e vinte) dias, não for requerido o registro de companhia aberta para as sociedades sucessoras.

Em seguida, o § único do art. 236 da Lei n. 6.404/76 assegura o direito de recesso nos casos em que uma pessoa jurídica de direito público adquirir, por desapropriação, o controle de companhia em funcionamento salvo se a companhia já se achava sob o controle, direto ou indireto, de outra pessoa jurídica de direito público, ou no caso de concessionária de serviço público. O art. 252 da mesma Lei, ao dispor sobre a incorporação de ações prevê o exercício do direito de retirada, salvo se as ações tiverem liquidez e dispersão. O § 2º do art. 256 da Lei n. 6.404/76 concede direito de retirada quando a sociedade vier a adquirir o controle de outra sociedade mercantil nas condições ali indicadas, salvo nos casos em que as ações tenham liquidez e dispersão. Finalmente, com a edição da Lei n. 13.129/15, foi acrescentado o art. 136-A no texto da Lei n. 6.404/76, que estabelece que aprovação da inserção de convenção de arbitragem no estatuto social obriga a todos os acionistas, assegurado ao acionista dissidente o direito de retirar-se da companhia mediante o reembolso do valor de suas ações,

Os preceitos referidos são normas de ordem pública, e, portanto, não podem ser desprezadas ou ignoradas e nem modificadas ou revogadas por normas constantes do contrato ou do estatuto social. Essas normas, no entanto, permitem – em certos aspectos – uma margem de liberdade para que os acionistas possam agir na normatização da matéria; é o que ocorre, por exemplo, com a norma que dispõe sobre o reembolso, quando diz que o seu valor será calculado com base na própria lei ou com base em cláusula estatutária. Havendo cláusula estatutária, esta, como ato-regra, integra o ordenamento jurídico interno da sociedade ao qual estão vinculados os administradores e os acionistas.

2 O DIREITO DE RECESSO COMO DIREITO ESSENCIAL DO ACIONISTA

O direito de retirada está catalogado entre os direitos essenciais dos acionistas mencionados no art. 109 da Lei n. 6.404/76. Segundo o texto do caput e do inciso V do referido artigo, nem o estatuto social nem a assembleia geral poderão privar o acionista do direito de retirar-se da sociedade nos casos previstos em lei. Em decorrência, em princípio, somente a Lei pode reduzir o catálogo das hipóteses que dão azo ao surgimento do direito de recesso; todavia, não há impedimento para que os estatutos contemplem outras hipóteses além das mencionadas nas normas anteriormente citadas.

O direito de retirada ou de recesso decorre do ato de dissentir que é manifestado pelo acionista que pretenda se desligar da sociedade. Dissentir, neste contexto, significa o mesmo que discordar ou negar aprovação de qualquer matéria que, segundo a lei, dá ao acionista o direito de retirar-se mediante reembolso. O direito de recesso não é vinculado à existência do direito de voto; por isso, é permitida a dissenção por parte de todos os acionistas exceto aqueles que, tendo direito de votar, assintam na aprovação durante a assembleia geral. Nesse sentido, o § 1º do art. 137 da Lei n. 6.404/76 prevê que pode ser acionista dissidente “inclusive o titular de ações preferenciais sem direito a voto”. Em seguida, o preceito do § 2º do mesmo artigo prevê que estão aptos a exercer o direito de retirada todos os titulares de ações que tenham se abstido de votar contra a deliberação ou não tenham comparecido à assembleia.

Os acionistas que quiserem exercer o direito de retirada deverão comunicar a decisão à companhia no prazo legal. Não se exige do acionista nenhuma justificação sobre as razões de sua decisão exceto nos casos em que a lei exige a demonstração da ocorrência de algum prejuízo. A rigor, as publicações acerca da convocação da assembleia geral devam fazer referência à possibilidade, se for o caso, da haver dissidência.

Deita a comunicação, surge para o acionista dissidente o direito ao reembolso e que tem como contrapartida a obrigação da sociedade em lhe fazer o pagamento no devido tempo. Para comunicação, o prazo assinado na lei é de 30 (trinta) dias contados da publicação da ata da assembleia geral (art. 137, V e VI, da Lei n. 6.404/76). Todavia, a manifestação do direito de recesso, no prazo legal, não é suficiente para criar a obrigação da sociedade já que, em tese, é possível a reversão da decisão na forma do disposto no § 3º do art. 137 da Lei n. 6.404/76. A decisão sobre a retratação deve ser tomada no prazo de 10 (dez dias) contados da data de expiração (decadência ou caducidade) do prazo para exercício do direito ao recesso.

3 DIREITO DE RECESSO E ABUSO DO DIREITO

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O direito de recesso é garantido por normas de ordem pública que, de certo modo, espelham as decisões políticas do legislador acerca da matéria segundo as valorações que faz na proteção dos interesses em jogo – da sociedade (e da empresa por ela explorada) e dos acionistas. Ao estabelecer as hipóteses e condições do exercício do referido direito, parece claro que a lei afasta a possibilidade da virtual ocorrência, em situações concretas, de “abuso do direito”. Acerca do conceito normativo de abuso do direito, o Código Civil de 2002, no art. 187, diz: “comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa fé ou pelos bons costumes”. 

No enunciado do art. 187 do Código Civil podem ser identificadas pelo menos duas espécies de abuso do direto.  Em primeiro lugar há abuso-desvio. Ele ocorre quando há desvirtuamento da função do direito; isto é, nos casos em que o agente comete abuso por exercer um direito em desacordo com a finalidade do direito prevista na lei ou no ordenamento jurídico. O abuso-desvio pode ocorrer, também, quando o sujeito age de maneira contrária à boa-fé e aos bons costumes, porquanto estes são valores intrínsecos da ordem jurídica que delimitam o campo material teleológico de cada direito individualmente considerado. Em segundo lugar há o abuso-excesso. Este tipo de abuso surge nos casos em que alguém excede aos limites impostos pela norma atributiva do direito (ou pela ordem jurídica como um todo) indo além do razoável segundo cada circunstância ou situação de fato. A rigor, quem age com excesso o faz de forma contrária a essa mesma norma porquanto age sem direito; em suma: o excesso, do ponto de vista pragmático, corresponde à inexistência do direito.

Em qualquer caso, o abuso do direito participa da categoria dos atos ilícitos. Por ilicitude deve ser entendida toda ação ou omissão contrária ao direito posto e que cause prejuízo ou dano a interesses coletivos ou individuais. O acionista que exerce o direito de recesso nas hipóteses previstas e lei tem a seu favor a presunção de legalidade dos seus atos em virtude do exercício regular de um direito. Essa circunstância atua como causa excludente da responsabilidade do agente e exclui o caráter ilícito da ação ou omissão; afinal, quem é titular de um direito não pode ser punido por exercê-lo. Essa proposição encerra o princípio lógico da identidade, segundo o qual algo não pode ser e deixar de ser ao mesmo tempo, ou, dizendo de outro modo: uma ação ou omissão não pode ser lícita e ilícita ao mesmo tempo.

A possibilidade de haver abuso de direito de retirada é cogitada pela doutrina nos casos em que o acionista exerce o direito de retirada com a finalidade exclusiva de aproveitar a oportunidade de ganhar dinheiro, sem se importar com os reflexos para as finanças da empresa. O direito de retirada, por esse ponto de vista, pode ser exercido de modo oportunista e abusivo e só seria legítimo no caso de haver algum prejuízo ou ilegalidade da deliberação da assembleia. No fundo, há a pressuposição de que o direito de retirada é um mecanismo sancionatório em qualquer caso, o que não é correto, pois existem hipóteses legais em que é exigida a ocorrência de prejuízo e em outras não. Aqui é necessário ter em conta que a deliberação da assembleia que porventura vier a causar prejuízo para certa classe de ações não é ilícita prima facie já que a ordem jurídica admite a retirada de privilégios, assim como permite a redução do valor percentual dos dividendos obrigatórios. Portanto, há, no caso, um direito de prejudicar que não sofre reprovação da ordem jurídica, e, portanto, não constitui ato ilícito a deliberação que prejudique certos direitos dos acionistas em geral ou de uma classe deles. A demonstração da ocorrência de prejuízo não é exigível senão nas hipóteses previstas em lei; fora delas, a ação é livre e o acionista não precisa justificar sua decisão. Seja como for, essa preocupação doutrinária produz ecos na jurisprudência, tanto que há uma decisão proferida pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento do Recurso Especial n. 197.329, cuja ementa oficial é a seguinte:

“O direito de recesso visa a garantir a posição do sócio minoritário, quando ocorram modificações substanciais nos estatutos da sociedade, ou que possam afetar o significado econômico das ações de que seja titular. Não merece essa proteção o simples propósito de auferir lucros injustificados como se verifica com a aquisição das ações após a convocação da assembleia que objetiva introduzir as modificações estatutárias de que pode resultar o direito de retirada. Entendimento que se justificava antes mesmo da modificação introduzida pela Lei 9.457/97, tendo em vista a norma de interpretação constante do artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil”.

A companhia aberta autora da ação sentiu-se prejudicada porque um grupo de quatro acionistas, no exercício do direito de recesso, reclamou o pagamento do valor de suas ações por discordarem da decisão proferida na Assembleia Geral Extraordinária de 25 de abril de 1994 que aprovou aumento de capital com a emissão de ações preferenciais, sem guardar proporção entre as mesmas. Os acionistas adquiriram as ações em 19 de abril de 1994, quatro dias após a divulgação de edital do Conselho de Administração da companhia que convocou os acionistas para a assembleia geral que ocorreria em 25 de abril. A companhia ajuizou ação pretendendo não honrar os pagamentos reclamados aduzindo que os acionistas pretendiam unicamente – com o exercício do direito de retirada – obter vantagem econômica indevida. A autora foi vencida duas vezes: em primeira instância e quando do julgamento do recurso de apelação que ajuizou perante o Tribunal de Justiça de São Paulo. 

Quando do ajuizamento do Recurso Especial, que foi provido pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, a companhia aberta autora da ação judicial argumentou que:

(a) o pressuposto do direito de recesso exige uma deliberação majoritária relevante, que prejudique interesse de acionista minoritário;

(b) se ao adquirir as ações o réu já tinha conhecimento pleno das mudanças societárias isto implica na ausência de um dos requisitos para exercício do direito de recesso que é prejuízo a interesse seu;

(c) os acionistas iriam embolsar uma alta soma de dinheiro, correspondente à diferença entre o valor de mercado e o valor patrimonial contábil das ações;

 (d) a matéria deveria ser analisada também à luz da Lei n. 9.457/97 a despeito de terem os fatos ocorridos em 1994. A Lei n. 9.457/97 introduziu a regra segundo a qual acionista legitimado a exercer o direito de recesso é aquele que é titular das ações na data da primeira convocação da assembleia ou da data da divulgação de eventual fato relevante acerca da deliberação, se este for anterior;

(e) a questão deveria ser decidida levando-se em consideração o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil de modo a afastar a ideia do “direito absoluto” para que não fosse permitida a utilização do direito de recesso como instrumento para a percepção de ganho fácil, lesivo aos interesses da sociedade.

Esses argumentos foram acolhidos pelo Tribunal para dar razão à autora e serão analisados a seguir.

Em primeiro lugar, o Tribunal entendeu que o exercício do direito de retirada, para que seja considerado legítimo, pressupõe a ocorrência de mudança substancial nos estatutos da sociedade ou que possa vir a afetar o valor econômico das ações. Esse pressuposto – o da ocorrência de mudança substancial (ou relevante, como argumentou a autora) – não encontra amparo texto da lei que não a exige. Convém recordar que os fatos jurídicos que ensejam o direito de retirada, no Brasil, estão delineados em numerus clausus na Lei, e, em momento algum, há – no enunciado normativo – qualquer juízo de valor acerca da extensão da mudança societária para o rumo dos negócios ou para o ordenamento jurídico específico da sociedade; o juízo acerca da importância e da provável repercussão para as partes envolvidas (sociedade e acionistas) é feito pela própria lei ao dispor sobre as hipóteses em que o direito de recesso existe. Se a lei é omissa acerca de condições para o exercício do direito de recesso é razoável supor que essa omissão decorre de valorações feitas pelo legislador e, portanto, não pode ser suprimido senão por lei. Afinal, como observa (LARENZ, 1997, p. 297 e 525), a tarefa de legislar pressupõe valorações, de modo que: “o legislador que estatui uma norma, ou, mais precisamente, que intenta regular um determinado setor da vida por meio de normas, deixa-se nesse plano guiar por certas intenções de regulação e por considerações de justiça ou de oportunidade, às quais subjazem em última instância determinadas valorações. Estas valorações manifestam-se no fato de que a lei confere proteção absoluta a certos bens, deixa outros sem proteção ou protege-os em menor escala”.

Em segundo lugar, o Tribunal concordou com a tese de que o exercício de direito de recesso pressupõe a ocorrência de prejuízo para o acionista. Nesse caso, a decisão se volta contra o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento de Embargos de Declaração opostos contra a decisão proferida no julgamento do Recurso Extraordinário n. 104.895-6, onde está dito que o prejuízo da minoria “não é pressuposto do direito de recesso”.

A Lei vigente à época dos fatos não exigia a demonstração de prejuízo porque considerou que o direito de retirada não é sanção de ato ilícito porquanto supõe que ao acionista controlador é dado o direito de mudar o rumo dos negócios e de modificar a arcabouço jurídico da companhia e esse direito existe ainda que possa haver algum prejuízo aos acionistas minoritários e estes devem decidir livremente se deixam ou permanecem na sociedade. Na lição de COMPARATO (1990, p. 227), o exercício do direito de recesso não requer a prova da ocorrência de prejuízo sofrido pelo acionista dissidente porquanto “os únicos pressupostos para o exercício desse direito consistem na deliberação, pela assembleia, sobre matéria especificada em lei como ensejadora do recesso e a manifestação de vontade do acionista retirante, no prazo legal”. Assim, – argumenta –: “não se cuida de ressarcir prejuízos individuais, mas compensar interesses particulares sacrificados legitimamente ao interesse social”. O interesse do acionista – ou bem jurídico tutelado – já foi previamente considerado na norma que está integrada no mesmo corpus juris da Lei que garante o direito da maioria de decidir por modificar as estruturas societárias e operacionais da empresa. A norma, como elemento indutor de condutas, persegue sempre uma finalidade e esta, no caso, é permitir uma contraposição ao princípio da maioria que deve ser exercido no interesse social e o direito do acionista de deixar a sociedade se entender que isso é conveniente aos seus interesses individuais.

Em terceiro lugar, o Tribunal entendeu que os acionistas dissidentes não poderiam ganhar dinheiro com aquele negócio. De fato, na ementa da decisão está dito que “não merece essa proteção o simples propósito de auferir lucros injustificados”. Esse argumento me parece o mais problemático de todos porque ele pretende cercear o direito de alguém ir ao mercado e adquirir ações para ganhar dinheiro. Não se pode negar a importância da tese em prol da proteção da empresa; todavia, no caso, esse argumento não tem qualquer sustentação quando lembramos que a sociedade teria de desembolsar o mesmo valor se os antigos acionistas viessem a exercer o seu direito de retirada; portanto, a conduta dos acionistas réus não criou risco financeiro adicional para a sociedade. Ora, se o direito de retirada pode vir a causar problema financeiro à companhia, cabe à administração advertir o acionista controlador sobre a inconveniência da decisão já que ele é o responsável pela mudança societária que permitiu o exercício do direito de recesso e tem condições práticas de se valer do fenômeno da assimetria de informações que existe entre os acionistas que detêm o controle da sociedade e os demais. O acionista controlador certamente sabia que a mudança poderia vir a ensejar o exercício do direito de retirada, mas, mesmo assim, prosseguiu porque certamente considerou necessária ou, ao menos, oportuna a decisão. Logo, a companhia reclamante não foi surpreendida pelo exercício do direito de retirada e teria de arcar com o mesmo desembolso caso os antigos acionistas exercessem o direito de retirada e nenhum fato demonstrava que não viriam a fazê-lo. Chega a ser chocante o fato de o Tribunal não ter visto as coisas por esse prisma.

Em quarto lugar, o Tribunal entendeu de considerar a matéria à luz de Lei editada três anos após os fatos. De fato, em 5 de maio de 1997 foi editada a Lei n. 9.457/97, que introduziu no ordenamento jurídico a regra segundo a qual acionista legitimado a exercer o direito de recesso é aquele que é titular das ações na data da primeira convocação da assembleia ou do fato relevante da deliberação, se este for anterior. O Tribunal entendeu que essa circunstância estava pressuposta na ordem jurídica vigente à época dos fatos, e, deste modo, considerou (sem dizer explicitamente) que nova lei ostentava caráter “interpretativo” com efeitos retroativos, o que é altamente questionável. Nesse aspecto, a decisão proferida pelo Tribunal é criticável porque o advento de norma posterior decorre da realização de novas valorações feitas pelo legislador e, portanto, deveriam alcançar apenas e tão somente os fatos praticados após o advento da nova norma para que se preserve a segurança jurídica como valor fundamental da ordem jurídica.

Em quinto lugar, o Tribunal adotou a tese da ocorrência de abuso do direito com base na regra do artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, que tem a seguinte redação:

“Art. 5o Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

Esse mesmo preceito foi invocado quando, em 1996, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça julgou o Recurso Especial n. 31.515-SP. A eventual abusividade advém, por esse ponto vista, da suposição de que as normas sobre o direito de recesso têm uma única finalidade que é a de permitir a saída com reembolso apenas nos casos em que houver modificação essencial na sociedade ou nos casos de supressão de direitos; enfim, sob essa perspectiva, se não há modificação essencial ou de grande repercussão para a empresa ou para os acionistas as normas não se aplicam e a eventual reclamação se converte em ato oportunista, e, portanto, abusivo. Ocorre que esse adjetivo não foi mencionado pela Lei vigente à época dos fatos; a essencialidade está pressuposta nas normas sobre a matéria que, no caso, é estruturada em tipos e não em enunciações de caráter geral, com textura normativa aberta. Ademais, como já foi dito, as normas sobre direito de retirada não têm caráter sancionatório e não visam a proteger interesses exclusivos dos acionistas minoritários; elas existem para permitir que os controladores façam as modificações que entendam necessárias ou oportunas. No contexto do caso submetido a julgamento, é natural que esse argumento tenha sido considerado válido se considerarmos que o próprio Tribunal considerou que o proveito financeiro perseguido pelos acionistas dissidentes era ilícito.

Desde que li esse acórdão pela primeira vez me chamou a atenção o fato de que a companhia teria de pagar o mesmíssimo valor ao antigo acionista se este viesse a exercer o seu direito de retirada. Portanto, a ação dos acionistas não foi causa do dever de pagar a quantia considerada exorbitante; a causa foi a deliberação da assembleia cujas consequências deveriam ter sido consideradas pelos administradores e acionistas controladores. Por isso, sempre me incomodou o fato de que o Tribunal simplesmente se “esqueceu” da responsabilidade do acionista controlador que tem o dever de conhecer e considerar as regras sobre direito de retirada quando vier a deliberar sobre alguma matéria dentre as previstas em lei que dão ensejo ao direito de recesso. Considerar tais regras é prever as consequências econômicas e financeiras para a sociedade e estar preparado, para, se for caso, voltar a atrás na decisão com fulcro no preceito do § 3º do art. 137 da Lei n. 6.404/76 que é claro ao permitir que os acionistas reconsiderem a decisão caso entendam que o exercício do direito de retirada afetará, de modo significativo, a estabilidade financeira da empresa. Assim, os acionistas controladores e os administradores têm duas oportunidades de evitar problemas financeiros para a empresa: eles podiam ter evitado a decisão ou podiam ter evitado as consequências da decisão tomada. A lei, nesse ponto, é amplamente favorável à companhia e aos acionistas controladores, na medida em que lhes concede poderes para modificar o estatuto social e lhes dá a oportunidade de reverter uma decisão infeliz e podem fazê-lo ex post, isto é, depois de conhecer as consequências dos fatos.

Não critico a decisão por ter adotado uma linha de interpretação baseada na finalidade da norma; o que não se pode deixar de apontar é a falta de consideração de aspectos relevantes dos fatos. A interpretação jurídica é tarefa de descoberta dos fatos e da norma (do seu sentido e alcance) à luz das valorações pressupostas no ordenamento jurídico. As valorações adotadas pela Lei, a meu ver, davam guarida aos acionistas que não agiram de modo abusivo ao aproveitarem uma oportunidade negocial, como é a praxe no mercado de ações. De outra parte, se a modificação que deu ensejo ao exercício do direito de retirada estiver dentre as mencionadas na lei, esse fato deve ser considerado como exercício regular de um direito e que tem a virtude de afastar a ilicitude da ação ou omissão e suas consequências. Enfim, se os acionistas réus cometeram ato ilícito o fizeram com o concurso do acionista controlador que deveria prever as consequências da decisão e se preparar para retroceder.

CONCLUSÃO

Diante das considerações expostas, parece razoável supor que a interpretação e aplicação das normas sobre o exercício do direito de retirada não pode ser feita a partir do pressuposto de que a sociedade é, ou pode vir a ser, vítima e que os acionistas dissidentes agem sempre de modo abusivo. As hipóteses previstas na lei são resultados de valorações já levadas a efeito pelo legislador, de modo que não cabe à sociedade o direito de impor restrições não contempladas na lei em nome da sua sanidade financeira. Antes de tomar a decisão que possa ensejar o exercício do direito de retirada devem os administradores e acionistas controladores sopesar as consequências possíveis de seus atos e, portanto, devem assumir as consequências de suas decisões; assim, se o detentor do poder de agir (do poder de controle) decide pela aprovação da deliberação que dá azo o exercício do direito de dissentir é razoável supor que ele examinou as consequências possíveis, e, portanto, não pode pretender negar as consequências dos seus atos porque isto configura comportamento contraditório com finalidade abusiva (vernire contra factum proprio). O mesmo padrão de conduta é exigível dos administradores que estão obrigados a agir, em qualquer circunstância, com diligência e em prol do interesse social, por força das normas cogentes dos artigos 153 e 154 da Lei n. 6.404/76. Se não forem prudentes o suficiente para evitar a eventual decisão ainda têm uma oportunidade de reverter os efeitos da mesma, mediante a convocação de assembleia de retratação prevista no § 3º do art. 137 da Lei 6.404/76.

Por fim, quero deixar claro que não defendo a tese de que o direito de recesso é absoluto e que os problemas de interpretação se resolvem com técnicas de subsunção. Considero, por isso, que o argumento da proteção da saúde financeira da sociedade só poderia ser considerado razoável se houvesse uma situação em que o acionista controlador fosse obrigado, pelas circunstâncias, a tomar a decisão passível de ensejar o exercício do direito de retirada e que não pudesse retroceder; em tais casos, ele assume o dever de justificar a decisão como sendo algo compatível com a ideia de “estado de necessidade” para negar o direito de retirada mesmo diante de norma escrita, mas desde que pudesse comprovar a lesão financeira. A eventual inaplicabilidade da regra seria justificada pelo mecanismo da redução teleológica do sentido e alcance das normas, de modo que certos fatos típicos deixam de ser considerados para incidência das referida normas para preservar a densidade normativa de outras normas – regras e princípios. Por isso, me parece razoável afirmar que a interpretação das regras sobre direito de retirada não é infensa à uma eventual redução teleológica para excluir do seu alcance as decisões que não fossem tomadas por livre e espontânea vontade pelos acionistas majoritários. É o caso, por exemplo, da mudança de objeto social que é imposta por circunstâncias de caráter econômico como o surgimento de uma nova tecnologia que torne inviável a continuidade da empresa como fonte de geração de riquezas. Assim, considero que não direito de recesso diante de uma decisão da assembleia que vise a dar forma a um fato concreto – a mudança do objeto social – que foi produzido independentemente da vontade dos administradores e dos controladores.

 

Referências
COMPARATO, Fábio Konder. Direito empresarial. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Lisboa: FCG, 1997.


Informações Sobre o Autor

Edmar Oliveira Andrade Filho

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Advogado em São Paulo. Mestre e Doutor em Direito Público pela PUC-SP. Autor dos livros: Sociedade de Responsabilidade Limitada 1. ed. São Paulo: Quartier Latin 2004; Planejamento Tributário 2. ed. Saraiva 2016; e Imposto de Renda das Empresas 13. ed. Atlas 2016


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