Reflexões acerca do abandono existencial e do abandono afetivo

Resumo: Abandono afetivo e abandono existencial são temas complexos para o direito das famílias contemporâneo. Parece haver muita confusão no entorno da caracterização dos elementos configuradores de cada fenômeno. O intuito deste artigo é o de promover uma reflexão complementar ao debate, ainda carente de delimitações precisas do ponto de vista jurídico.

Palavras-chave: Abandono afetivo – Abandono existencial – Direito das Famílias.

Abstract: Emotional abandonment and existential abandonment are complex themes for contemporary family law. There seems to be much confusion surrounding the characterization of the configurator elements of each phenomenon. The purpose of this article is to promote a complementary reflection to the debate, still lacking precise delimitations from the legal point of view.

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Key-words: Affective abandonment – Existential abandonment – Family law.

É bem verdade que não se pode obrigar ninguém a amar outrem, mas a relação filial exige responsabilidades e compromissos, sendo fonte de obrigação jurídica. A afetividade geradora de direitos e deveres pertence a um vínculo cuja envergadura enseja proteção jurídica em virtude, sobretudo, da pessoa que deve receber o necessário para um bom desenvolvimento biopsicossocial, frisando-se a questão justamente no aspecto continuativo do conceito de desenvolvimento.

Por este motivo, não se impõe, com efeito, dever originário de amar ou dever de afeto, sendo, por isso, perigoso falar-se propriamente n’algo como abandono afetivo nesse aspecto. Se não há dever de afeto, tampouco inicial afeto, inexiste ação ou omissão posterior que se caracterize no respectivo contrário ou, se se quiser, no seu ilícito. Talvez, como supõe-se, a dimensão do abandono afetivo esconda um fenômeno ainda mais originário, mais fulcral, este sim ligado a um dever jurídico, porquanto normativo e vinculante, que é a proteção existencial, da qual pode decorrer algo como um abandono existencial.

Os contornos do dever de assistência existencial são dados pelo Direito pátrio, por intermédio de diversos diplomas legais.

Pela supremacia da Constituição Federal, tem-se o comando da responsabilidade e obrigação, por meio do princípio da dignidade humana, do princípio da solidariedade, do princípio da paternidade/maternidade responsável, e, obviamente, do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.

É preciso compreender que a ausência filial pode trazer consequências desestruturantes ao sujeito. E mais, não se pode esquecer das responsabilidades parentais, pois os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, como estabelece o art. 229 da CR/88:

"Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores […]”

Não se trata, pois, de monetarizar o afeto, ou indenizar o sofrimento, mas acima de tudo, de ancorar a responsabilidade pelos atos praticados que possuam índole de afastamento de um dever objetivo.

A paternidade/maternidade deixou de ser apenas um conjunto de competências atribuídas aos pais, convertendo-se em um conjunto de deveres para atender ao melhor interesse da criança e do adolescente, principalmente no que tange à convivência familiar, que deve ser vista de forma independente da existência ou não do tipo de relacionamento entre os pais.

O Código Civil dispõe nos arts. 1.634, inciso II, 8, e 1.566, inciso IV, que os pais são responsáveis pela criação e educação dos filhos. Também o Estatuto da Criança e do Adolescente traduz em regras e desdobra os princípios constitucionais essa responsabilidade em seus arts. 3º,[1] 4º,[2] 19,[3] 22[4] e 33[5].

Logo, o descumprimento do exercício do poder familiar (art. 1.634/CCB) por qualquer um dos genitores configura um ilícito, sendo, portanto, o fato gerador da indenização.

Qualquer pessoa, qualquer criança, para se estruturar como sujeito e ter um desenvolvimento saudável, necessita de alimentos para o corpo e para a alma.

Certo é que o alimento imprescindível para a alma é o amor, o afeto. E afeto significa "afeição por alguém", "dedicação". Afeiçoar significa também "instruir, educar, formar", "dar feição, forma ou figura". Esta é uma diferença entre afeto e amor. O afeto não é somente um sentimento, contudo, mostra-se como uma ação, um dever de agir em continuidade, isto é, se presente presume-se como razoável sua perpetuação no tempo.

É cuidado no sentido de ocupação, preocupação, responsabilização e envolvimento com o outro, como bem explicitado pela decisão do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:

"(…) o cuidado, na lição de Leonardo Boff, ‘representa uma atitude de ocupação, preocupação, responsabilização e envolvimento com o outro; entra na natureza e na constituição do ser humano. O modo de ser cuidado revela de maneira concreta como é o ser humano. Sem cuidado ele deixa de ser humano. Se não receber cuidado desde o nascimento até a morte, o ser humano desestrutura-se, definha, perde sentido e morre. Se, ao largo da vida, não fizer com cuidado tudo o que empreender, acabará por prejudicar a si mesmo por destruir o que estiver à sua volta. Por isso o cuidado deve ser entendido na linha da essência humana’ (apud PEREIRA, Tânia da Silva. Op. cit. p. 58). Com fundamento na paternidade responsável, ‘o poder familiar é instituído no interesse dos filhos e da família, não em proveito dos genitores’ e com base nessa premissa deve ser analisada sua permanência ou destituição. Citando Laurent, ‘o poder do pai e da mãe não é outra coisa senão proteção e direção’ (Principes de Droit Civil Français, 4/350), segundo as balizas do direito de cuidado a envolver a criança e o adolescente." (STJ, REsp nº 1.106.637/SP, Relª Minª Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJE 01.07.2010)

À toda norma jurídica, obviamente, deve corresponder uma sanção, sob pena de se tornar inócua. Por isso a necessidade de responsabilização dos pais pelo não cuidado e, principalmente, pelo abandono dos filhos.

Logo, o caráter punitivo e preventivo, aliado a uma necessidade pedagógica da reparação civil, significa um freio a tal ato danoso àquele que não escolheu nascer, mas, em nascendo, pouco ou quase nada recebeu para que lograsse algo de sadio em seu desenvolvimento biopsicossocial.

Neste sentido, caminha o vasto manancial de precedentes jurisprudenciais.

No Tribunal de Justiça de Santa Catarina:

“(…) Ora, julgar-se inexistente ilícito quando um ou ambos os pais, comprovadamente e de forma omissiva, deixam seus filhos em abandono moral e material é não garantir a eficácia do próprio direito no ordenamento jurídico, o que levaria ao ceticismo jurídico, incluindo-se aí a ceticemia, consistente na doença moral que corrói todo o sistema jurídico que nos envolve. Para que não haja essa ceticemia jurídica decorrente de ofensas (positivas ou negativas) à lei, ao direito e à justiça, tenho necessidade de entender que o abandono afetivo é ilícito capaz de gerar danos morais e ensejar a sua reparação. Nesse diapasão, indispensável afirmar-se que a responsabilidade civil do requerido está patenteada não somente contra a pessoa do seu filho, mas também contra a requerente, por via reflexa, pelo que desnecessária é a perquirição sobre o elemento subjetivo da culpa, por ser esta presumida às escâncaras. (…)." (TJSC, AC nº 2006.015053-0, Rel. Desig. Des. Monteiro Rocha, 2ª Câmara de Direito Civil, j. 10.12.08).

No mesmo sentido, há duas emblemáticas decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

 

“A educação abrange não somente a escolaridade, mas também a convivência familiar, o afeto, amor, carinho, ir ao parque, jogar futebol, brincar, passear, visitar, estabelecer paradigmas, criar condições para que a criança se autoafirme. Desnecessário discorrer acerca da presença do pai no desenvolvimento da criança. A ausência, o descaso e a rejeição do pai em relação ao filho recém-nascido ou em desenvolvimento violam a sua honra e a sua imagem. Basta atentar para os jovens drogados e ver-se-á que grande parte deles derivam de pais que não lhe dedicaram amor e carinho; assim também em relação aos criminosos. (…) Por óbvio que o Poder Judiciário não pode obrigar ninguém a ser pai. No entanto, aquele que optou por ser pai – e é o caso do autor – deve desincumbir-se de sua função, sob pena de reparar os danos causados aos filhos. Nunca é demais salientar os inúmeros recursos para evitar a paternidade (vasectomia, preservativos etc.). Ou seja, aquele que não quer ser pai deve precaver-se. (…) Assim, não estamos diante de amores platônicos, mas sim de amor indispensável ao desenvolvimento da criança. (…) A função paterna abrange amar os filhos. Portanto, não basta ser pai biológico ou prestar alimentos ao filho. O sustento é apenas uma das parcelas da paternidade. É preciso ser pai na amplitude legal (sustento, guarda e educação). Quando o legislador atribui aos pais a função de educar os filhos, resta evidente que aos pais incumbe amar os filhos. Pai que não ama filho está não apenas desrespeitando função de ordem moral, mas, principalmente, de ordem legal, pois não está bem educando seu filho." (Ação de Indenização nº 141/1030012032-0, 2ª Vara da Comarca de Capão da Canoa/RS, j. 15.09.03, in: Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese/IBDFAM, v. 25, p. 149, ago./set. 2004.)

“A responsabilidade civil, no Direito de Família, é subjetiva. O dever de indenizar decorre do agir doloso ou culposo do agente. No caso, restando caracterizada a conduta ilícita do pai em relação ao filho, bem como o nexo de causalidade e o dano, cabe indenização por danos materiais e morais”. (TJRS, AC nº 70021427695, Des. Relator Claudir Fidelis Faccenda, 8ª Câmara Cível, Comarca de São Gabriel, j. 29.11.07, DJ 07.12.07)

Em raciocínio semelhante o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou:

“Responsabilidade civil. Dano moral. Autor abandonado pelo pai desde a gravidez da sua genitora e reconhecido como filho somente após propositura de ação judicial. Discriminação em face de irmãos. Abandono moral e material caracterizados. Abalo psíquico. Indenização devida. Sentença reformada. Recurso provido para este fim. (…) O pai teve oportunidades reiteradas de aproximação, inclusive quando da mudança do filho para aquela Comarca, ou mesmo, o que seria de se esperar, quando do nascimento do neto, em condição de saúde abalada definitivamente. Omitiu-se de forma consciente à responsabilidade, nada obstante tenha sofrido declaração judicial e, hoje comprovada cientificamente, através do exame que durante anos se negou a submeter. (…) Se o pai não alimenta, não dá amor, é previsível a deformação da prole. Isso pode acontecer, e acontece, com famílias regularmente constituídas. (…) o afastamento, o desamparo, com reflexos na constituição de abalo psíquico, é que merecem ressarcidos, diante do surgimento do nexo de causalidade.” (TJSP, AC nº 511.903-4/7-00, Rel. Des. Caetano Lagrasta, 8ª Câmara de Direito Privado, Comarca de Marília, j. 12.03.08, data do registro: 17.03.08).

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“Indenização por danos morais. Alegado abandono afetivo imputado ao requerido, genitor da autora, reconhecida como filha após ação de investigação de paternidade. Sentença de improcedência. Peculiaridade da indenização pleiteada que torna imprescindível a prova pericial. Necessidade de se perquirir acerca da extensão e repercussão do dano psicológico. Sentença anulada para prosseguimento da instrução. Recurso provido. (TJSP, APL 3004256572009826/SP, 3004256- 57.2009.8.26.0506, Rel Des. Caetano Lagrasta, 8ª Câmara de Direito Privado, j. 25.10.2011)

“Ação intentada pela filha em face do genitor. Alegação de abandono afetivo. Prescrição. Inocorrência. Conduta imputada ao apelado que se repetiu ao longo dos anos (desde a separação com a mãe da apelante) e que não foi cessada quando a autora atingiu a maioridade. Prazo prescricional (art. 177 do Código Civil) que, por conta disso, não se iniciou com a maioridade da autora. Inviável supor que os alegados danos tenham ocorrido apenas durante a menoridade da apelante. Afastada a prescrição, devem os autos retornar à origem para dilação probatória (permitindo que a autora demonstre a alegada instabilidade emocional advinda do abandono paterno, bem como seus reflexos ao longo da vida). Sentença anulada. Recurso provido”. (TJSP, Processo: CR 6111284900/SP, Rel Des. Salles Rossi, 8ª Câmara de Direito Privado, publ. 12.01.09).

O Tribunal de Justiça do Espírito Santo:

“(…). O pedido de reparação por danos morais sofridos é um pedido juridicamente possível e reconhecido pelo nosso ordenamento jurídico. 2. No caso de pedido de indenização por danos moral em decorrência de abandono moral e falta de afeto por parte do genitor, é necessária a caracterização dos elementos ensejadores da responsabilidade civil, quais sejam, o dano experimentado pelo filho, o ato ilícito praticado pelo pai e liame causal que conecta os referidos elementos. 3. Impõe-se a remessa dos autos à instância de origem, a fim de propiciar a angularização do processo, citando-se o réu/apelado para exercer o contraditório e a ampla defesa, bem como proceder a dilação probatória necessária ao deslinde da quaestio. 4. Recurso conhecido e provido.” (TJES, AC 15096006794, Rel. Álvaro Manoel Rosindo Bourguignon, Rel. Subs. Fernando Estevam Bravin Ruy, Segunda Câmara Cível, j. 21.09.2010, publ. 11.11.2010)

O que permanece como tema para o pensamento é a exata caracterização do abandono existencial, que parece mostrar-se complexa do ponto de vista epistemológico.

Neste sentido, preliminarmente, sua caracterização não pode ser suscitada em meio à carência de afeto, pois esta é, em verdade, decorrência de uma omissão anterior e mais proeminente, da perspectiva existencial. Quer-se com isso dizer que não se pune, à toda evidência, a falta de afeto; pune-se, ao contrário, a falta de amparo existencial. Ora, a existência de uma pessoa é condição mesma para o exercício da sua própria liberdade e dignidade. A ausência de afeto, como cediço, bem pode resultar em danos psicológicos de variadas intensidades, todavia, no plano do Direito, embora a prova do dano psicológico seja importante, porquanto demonstra (e deve demonstrar) que houve ali a interferência de um agente externo no processo de desenvolvimento normal da psique, não é efetivamente o sofrimento psicológico que se está a procurar. Este é, na verdade, uma consequência, cuja causa espraia-se pela ideia de abandono existencial.

Por tais razões é preciso distinguir a doutrina do afeto no campo das relações familiares, quanto à constituição de vínculos de natureza conjugal e de companheirismo, daquelas relações supostamente afetivas entre pais e filhos. A diferença é flagrante porque, no primeiro caso, as pessoas unem-se mediante ímpetos prévios de comoção, isto é, por ímpetos de vontades manifestadas no sincero interesse de compartilhamento de mesmos ou próximos horizontes de sentido. Há um ânimo existencial que condiciona a união entre duas pessoas, seja para efeito de um casamento, para uma união estável ou mesmo em situações de pluralidade acentuada, como ocorre nas relações poliafetivas.

No segundo caso, quanto ao afeto do ponto de vista filial, não há exatamente um ímpeto de comoção, muito embora nossa tradição judaico-cristã insista no contrário – e por este motivo seja tão difícil ao pensamento discernir exatamente a possibilidade de este preconceito viger no âmbito da intelecção fenomênica sob reflexão. Malgrado possa se dizer que é natural o amor e o afeto entre pais e filhos, ou culturalmente sedimentado, não há nenhuma razão para dizer-se que este amor é obrigatório, ao menos do ponto de vista do Estado Democrático de Direito, ante à sua laicidade e presença de direitos e garantias afeitos às liberdades fundamentais, que, afinal, nos importa.

Isso não quer dizer, por outro lado, que o afeto não seja juridicamente relevante nas relações filias e socioafetivas, portanto, em situações especiais. Ora, é perfeitamente possível e crível que haja intenso afeto entre pais e filhos e, num determinado momento ocorra uma brusca interrupção apta a gerar consequências e repercussões no plano do Direito, sobremodo no campo indenizatório. Situação diversa é quando, no horizonte histórico daquele específico relacionamento entre pais e filhos, não se comprovou sequer a existência de um mínimo grau de algo como o afeto, hipótese na qual o abandono existencial configurar-se-á (e não o afetivo) diretamente apenas se se demonstrar que a inércia ou desprezo no âmago da relação filial resultou em insegurança à estabilidade biopsicossocial ou, notadamente, em dano decorrente de omissão reiterada por parte daquele que tem o dever legal de promover justamente o contrário.

No caso em que, numa relação normal, há afeto, a continuidade do mesmo é gerada porque lidamos com as coisas à maneira da expectação, isto é, esperamos a continuidade do que já experienciamos no passado. A frustração desta expectativa pode ser cogitada como um problema jurídico quando desta decorrerem flagelos consideráveis.

O abandono existencial consiste n’algo que evoca o cumprimento de deveres jurídicos já eclipsados no ordenamento. Abandono afetivo e existencial são diversos, malgrado possam ocorrer conjuntamente. Por exemplo, imagine um pai que passou a vida inteira negligenciando seu filho, colocando-o reiteradamente em situação de flagelo, insegurança e temeridade. O filho ingressa com ação judicial com intuito de obter indenização por abandono afetivo contra seu pai. Logra êxito na demanda (embora fosse o caso de abandono existencial). Muitos anos depois, o pai, já enfermo, demanda contra o filho por abandono afetivo, face ao dever de cuidado doravante insculpido no artigo 230 da Constituição da República e na Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso). Indaga-se: poderia o filho escusar-se do afeto em relação ao seu pai enfermo? E outra: poderia o filho escusar-se da assistência existencial ao seu pai enfermo?

Ora, o exemplo extremo nos ajuda a refletir sobre as dimensões fenomênicas do abandono existencial e do abandono afetivo. Com efeito, por decorrência legal, o filho não pode escusar-se do dever de assistência a título existencial, provendo alimentos necessários, por exemplo. Por outro lado, não pode ser responsabilizado por eventual ausência de afeto; não porque outrora não recebera de seu pai, contudo porque o afeto não é dever vinculante. Ao menos o afeto ligado a uma visão romântica de cuidado fraternal, amor, sentimento, etc.

Deste modo, embora possível, o abandono afetivo revela uma circunstância de continuidade, um vínculo a partir do qual é esperada sua ocorrência, notadamente nas relações filiais. Pode-se até dizer que o abandono afetivo seja uma forma qualificada de abandono existencial, pois se está, ao mesmo tempo, negligenciando uma postura sob ambos os aspectos. O que não se pode dizer é que todo abandono seja, com efeito, afetivo. Casos há em que jamais houve afeto, o que não quer dizer que, do ponto de vista do cuidado existencial, não tenha havido aí abandono, que significa ou deixar a pessoa à mercê da sua própria sorte ou colocá-la em situações de grave insegurança e/ou temeridade.

No abandono existencial inexiste uma postura ativa no asseguramento de deveres ínsitos à responsabilidade (legal) no âmbito da filiação, do qual decorre a responsabilidade civil e até mesmo criminal. O abandono afetivo, por outro lado, pressupõe necessária e prejudicialmente o inicial afeto, para que, do ponto de vista da ação, possa ser suspenso ou interrompido e, somente a partir de então, perscrutar-se acerca de responsabilização.

Do ponto de vista jurídico e existencial, não se pode esperar, nem cobrar por afeto. Havendo, no entanto, e sendo suspenso ou interrompido, há responsabilização, pois colocada em xeque a relação de continuidade que razoavelmente se poderia esperar naquela determinada situação.

Por outro lado, do ponto de vista jurídico e existencial espera-se razoável amparo àquele que, pela condição biopsicossocial, esteja em estado de dependência, notadamente quando a lei expressamente o prevê.

 

Notas
[1] Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

[2] Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

[3] Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.

[4] Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.

[5] Art. 33. A guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais.


Informações Sobre o Autor

Luiz Felipe Nobre Braga

Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Advogado especialista em Direito Público. Autor dos livros: Direito Existencial das Famílias da dogmática à principiologia Ed. Lumen Juris 2014; Metapoesia Ed. Protexto 2013; Educar Viver e Sonhar dimensões jurídicas sociais e psicopedagógicas da educação pós-moderna Ed. Publit 2009. Professor da Pós-graduação em Direito da Faculdade Pitágoras em Poços de Caldas


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