Resumo: Este artigo analisa o estudo do Direito no Brasil numa perspectiva pedagógica e traz uma reflexão, do ponto de vista institucional, sobre o papel do ensino superior na contemporaneidade. Para tanto, expõe-se uma breve genealogia do ensino jurídico no Brasil e no exterior, em comparação com os “modelos de universidade” constituídos ao longo da história, tais como a “multiversity norte-americana”, o “movimento de Córdoba” e os modelos “humboldtiano” e “newmaniano”. Além disso, sob um viés crítico-metodológico, analisa-se o tripé ensino-pesquisa-extensão, traçando-se um balanço e uma projeção indutiva dos principais desafios e oportunidades para os estudantes de Direito no século XXI. Conclui-se que a formação acadêmica jurídica não pode ficar alheia à reflexão sobre a função institucional do ensino superior.
Palavras-chave: Ensino jurídico. Pesquisa. Extensão. Universidade. História da educação.
Abstract: This article analyzes the study of law in Brazil within a pedagogical perspective and brings a reflection from an institutional point of view on the role of higher education in contemporary times. To do so, it exposes a brief genealogy of legal education in Brazil and abroad, compared to the "universitys models" made throughout history, such as "American multiversity", the "Cordoba movement" and "Humboldtian" and "Newmanian" models. In addition, under a critical-methodological bias, it analyzes the teaching-research-extension tripod, drawing up a balance sheet and an inductive projection of the main challenges and opportunities for law students in the XXI century. The conclusion is that the legal academic education cannot remain oblivious to the reflection on the institutional role of higher education.
Keywords: Legal education. Research. Extension. University. Education history.
Sumário: Introdução: A escolha diante de um “eterno retorno”. 1. Ser estudante universitário ao longo dos séculos. 2. Breve histórico das faculdades de Direito no Brasil 3. O jurista inserido na “sociedade em rede”. Conclusão: A justiça nas veredas do estudante.
Introdução
A escolha diante de um “eterno retorno”
As leis são belas, meu querido… (Machado de Assis)[1]
Essas palavras do agregado José Dias, aconselhando Bentinho a estudar Direito, continuam na ordem do dia. O universo jurídico é fascinante e, muito além da época do romance de Machado de Assis, quando prevalecia a “cultura do bacharelismo”, hoje o mundo do Direito se apresenta aberto a diversas oportunidades.
Vivemos numa “sociedade em rede”, nos diz o sociólogo Manuel Castells, em que a complexidade e a pluralidade são conceitos intransponíveis. [2] Nesse contexto o Direito surge de forma múltipla, fazendo uma releitura e expandindo seus campos de atuação, que vão desde uma vocação para a cultura geral e para a formação do gentleman (conforme a tradição inglesa do século XIX), passando pela militância a favor da responsabilidade social (de origem latino-americana), até o dinamismo profissional do jurista contemporâneo, inserido num mundo globalizado (tal como prezam os teóricos da New Production of Knowledge).
Esses conceitos e tradições, que veremos mais adiante, revelam a amplitude e a diversidade que envolvem o universo jurídico. Além disso, eles trazem à baila perguntas inevitáveis – Seria o Direito aquilo que eu quero estudar? Onde me encaixar nessa série de possibilidades? –, nas quais os estudantes acabam imergindo.
Mas ao contrário do mundo anglo-saxônico, onde há diversos projetos e publicações destinados à legal education research, o conjunto dessa temática é muitas vezes negligenciado pela literatura jurídica no Brasil. Este artigo busca então mostrar a dinâmica que envolve o estudante de Direito no século XXI, numa reflexão ao mesmo tempo pedagógica e institucional: partindo de uma abordagem genealógica do ensino superior (2), passando pela análise crítica do estudo jurídico no Brasil (3), até chegar a uma síntese das oportunidades abertas pelo Direito (4), nosso principal objetivo é trazer uma visão panorâmica do curso, capaz de facilitar a trajetória acadêmica e as escolhas profissionais dos discentes.
Ser estudante, poderia dizer Nietzsche, é um rito de passagem, quando as pessoas precisam encarar a possibilidade de um “eterno retorno”.[3] De que maneira então o Direito pode ser uma escolha de vida?
2. Ser estudante universitário ao longo dos séculos
“Questionar de forma constante e frequente é a primeira chave para a sabedoria… É por meio da dúvida que somos levados a inquirir; e pelo inquérito nós percebemos a verdade.” Pedro Abelardo[4]
O filme Em nome de Deus (Stealing Heaven), do diretor Clive Donner, narra a história verídica de um “amor proibido” entre Pedro Abelardo (eclesiástico, professor de filosofia, que fizera voto de castidade) e Heloísa de Argenteuil (uma jovem estudante). Para além desse “romance herético”, o filme mostra algumas cenas interessantes de quando Abelardo, rompendo com o conservadorismo da Igreja, decide abandonar o ensino na Catedral de Notre Dame, reunindo um grupo de estudantes ao seu redor, partindo para lecionar numa Igreja menos conservadora do outro lado do rio Sena.
Lá podemos ver esses jovens alunos conhecidos como goliardos[5], reunidos com o mestre, muitos deles exaltados, contestando os dogmas da Igreja, abrindo-se às ideias racionalistas do novo pensamento escolástico. O filme acaba não mostrando, mas foi poucos meses depois que diversos professores, como Abelardo, buscando maior autonomia com relação à Igreja, se reuniram para fundar uma associação de docentes, que seria o berço da primeira universidade da França.
Era o começo dessa instituição milenar – a universidade –, que teve na participação dos alunos um componente fundamental.[6] Na Itália, o envolvimento estudantil aconteceu de forma ainda mais intensa, já que foi por meio de uma associação de alunos, nesse mesmo contexto de luta pela emancipação do ensino, que surgiu a Universitas Bononiensis, primeira universidade da história e maior centro de estudos do Direito na Idade Média.[7]
Como podemos perceber, ser estudante universitário carrega consigo uma genealogia e uma atitude particulares. Tanto na França como na Itália, nesse período que o historiador C. H. Hanskins definiu como o Renascimento do século XII[8], tinha início uma ruptura paradigmática em direção ao Iluminismo, que encontrou na juventude da época uma atenção especial.
E esse protagonismo não parou por aí. Ao longo da história, há diversos momentos em que os estudantes assumiram um papel preponderante: da Great Butter Rebellion (iniciada em Harvard, no século XVIII)[9], passando pelo Free Speech Movement (na Universidade de Berkeley)[10] e por Maio de 1968 (na Universidade de Nanterre)[11], até a intensa participação da União Nacional dos Estudantes[12], no combate ao regime militar brasileiro, a juventude sempre esteve à frente de importantes transformações sociais.
Diante desse vasto universo que atravessa a história da educação, gostaríamos de destacar o movimento de Córdoba, em 1918, na Argentina. Trata-se de um acontecimento importante, que acabou reinventando parte do ensino superior, tanto na América Latina como em outros países ao redor do mundo.
Como mostram Cria e Sanguinetti, a universidade de Córdoba era considerada a mais conservadora das instituições de ensino superior da Argentina.[13] Pouco a pouco um clima de inquietação foi tomando conta dos estudantes, que passaram a fazer manifestações, exigindo uma reforma universitária. Após uma eleição que manteve na reitoria o grupo conservador conhecido como Corda Frates, os protestos se intensificaram, chamando a atenção de todo o país. Liderados por Deodoro Roca (advogado egresso da Universidade), o grupo lançou um manifesto conhecido como o Grito de Córdoba e decidiu invadir a Universidade, sendo fortemente reprimido pela polícia. Mas a Argentina estava com os estudantes. Não demorou muito para eles ganharem o apoio de políticos, intelectuais, movimentos sociais e outros alunos, que foram desembarcando nas ruas de Córdoba. Exemplo disso foi o discurso do professor e líder político Alfredo Palacios diante de 10 mil pessoas, exigindo uma mudança radical do ensino superior do país, no sentido de incorporar uma gestão mais democrática, liberdade acadêmica, ensino gratuito e responsabilidade social das universidades.[14] Diante da pressão, o governo decretou intervenção na Universidade, dando início a uma série de reuniões com a presença de representantes do movimento estudantil, até que foram aprovadas diversas mudanças no estatuto da Universidade de Córdoba.
Para Juan Carlos Portantiero, autor do livro mais importante sobre o assunto, Córdoba foi o grande movimento de transformação de iniciativa estudantil na história do Ocidente. Depois da Argentina, as reformas ainda ganharam o continente, estendendo-se por outros países (Peru, Chile, México, Cuba, Uruguai, Venezuela etc.), com o intuito de acabar com a herança colonial, religiosa e oligárquica das universidades latino-americanas, e reivindicar uma pauta de mudanças, que só foram incorporadas por outras instituições espalhadas pelo mundo na segunda metade do século XX.[15]
Por outro lado, talvez a pretensão do movimento tenha sido muito grande. Deodoro Roca, por exemplo, dizia que a transformação da universidade equivalia à transformação social, ou seja, que o objetivo das mudanças nas instituições de ensino superior era transformar a sociedade como um todo.[16] Diante desse contexto, num período de intensa disputa política, com o mundo dividido entre capitalismo e socialismo, o grito de Córdoba acabou interrompido pelas ditaduras militares, que encerraram os movimentos de reformas. Como disse o controvertido poeta Leopoldo Lugones, a “hora da espada” tinha chegado.[17]
Mas o espírito de Córdoba sobreviveu. Muito além dessa discussão política, marcada pela polarização que caracterizou o século XX, não há dúvidas de que o movimento deixou um legado importante na história da universidade, em especial no que toca à participação estudantil. Esse protagonismo, cuja genealogia pudemos observar desde a Idade Média, pode se refletir hoje em diversas formas na vida do estudante universitário, seja numa escala macro (com demandas por mudanças no cenário nacional, como por exemplo a mobilização estudantil no Chile, em 2011-2012; a Revolução Laranja na Ucrânia em 2004-2005; o Occupy movement iniciado nos EUA, em 2011 etc.) seja numa escala micro (envolvendo questões internas à vida acadêmica, como por exemplo a organização dos Diretórios Acadêmicos, que representam os estudantes nas universidades; a participação dos alunos em órgãos deliberativos, como os Conselhos Superiores; a possibilidade de participar de algumas votações etc.).
Essa participação dos estudantes é essencial para a vida acadêmica e para a sociedade. Ela carrega consigo uma voz própria – capaz de lançar um alerta, de sonhar mais alto, de proporcionar mudanças etc. –, lá onde muitas vezes as vozes mais experientes permanecem em silêncio. Como disse o ainda adolescente Pablo Neruda, em 1921, entusiasmado com o grito de Córdoba: “A juventude com sua lâmpada clara / pode iluminar os mais duros destinos, / ainda que na noite crepitem suas chamas / seu lume de ouro fecunda o caminho.”[18] Que os estudantes do século XXI, em especial no campo do Direito, continuem fazendo jus a essa tradição.
3. Breve histórico das faculdades de direito no Brasil
“Fora, outrora, diretor-geral do Ministério do Reino, e sempre que dizia "El-rei", erguia-se um pouco na cadeira. Os seus gestos eram medidos, mesmo a tomar rapé. Nunca usava palavras triviais; não dizia vomitar, fazia um gesto indicativo e empregava restituir. Dizia sempre "o nosso Garrett, o nosso Herculano". Citava muito. Era autor.“ Eça de Queiroz[19]
O personagem descrito na epígrafe acima, o Conselheiro Acácio, tornou-se conhecido no universo do Direito. A partir dele, Eça de Queiroz dirigia uma crítica aos juristas do século XIX, em especial à maneira de falar, de se vestir e de se apresentar perante a sociedade. Criou-se até mesmo um termo pejorativo – “acacianismo” –, para denunciar o excesso de pompa que até hoje cerca o mundo do Direito.
Além disso o Conselheiro Acácio é um personagem interessante para ilustrar a história e as transformações na formação e na atuação dos juristas no Brasil. Até o começo do século XIX, Portugal não permitia a criação de faculdades de Direito na colônia. Foi somente a partir da independência, em 1822, que surgiram as primeiras escolas jurídicas em Pernambuco e São Paulo.[20] Na época, como o Brasil ainda estava consolidando suas instituições, era preciso formar os funcionários da administração estatal, inseridos nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além de outros profissionais liberais. É nesse período que surge a “cultura do bacharelismo”, ligada à necessidade de os jovens passarem pelo ensino superior, em especial o Direito, para se tornarem respeitados e alcançarem cargos importantes na sociedade. E é nesse sentido que o Conselheiro Acácio, ainda que inserido na realidade portuguesa, ilustra esse novo “grupo social” que foi se formando no seio da burguesia, destacando-se das massas, criando suas redes de relacionamentos, com o intuito de fazer parte da elite dirigente.[21] Eles eram, conforme o título do livro clássico de Sérgio Adorno, os “aprendizes do Poder”.[22]
É importante destacar esse contexto que envolve o surgimento do estudo jurídico no Brasil, uma vez que a ideia de uma “cultura elitista” continua no imaginário das faculdades de Direito. Se pensarmos na história da universidade, essa tradição de formar uma “elite dirigente” foi sendo formulada na Inglaterra e atingiu seu paroxismo com o chamado “modelo newmaniano”. Em meados do século XIX, o célebre acadêmico de Oxford, John Newman, proferiu diversas palestras sobre sua ideia de como e para que deveriam existir as universidades. Na época, com a Revolução Industrial, uma série de novas técnicas e profissões estavam surgindo, incorporando-se aos currículos e às atividades das universidades. Newman partiu então para o ataque. Na visão dele a universidade era o local para duas coisas: adquirir uma “educação liberal” (ou seja, uma cultura geral, conforme a tradição grega) e formar o gentleman (ou seja, o homem público, parte da elite nacional). Nada do utilitarismo ligado às novas profissões emergentes ou de valorizar o universo da Ciência, segundo a vasta tradição do empirismo inglês. Conforme sintetizou Clark Kerr, na visão de Newman era preciso:
“elevar o nível intelectual da universidade, cultivar o espírito público, apurar o gosto nacional, contribuir com princípios verdadeiros para o entusiasmo popular (…), facilitar o exercício do poder político e refinar o relacionamento da vida privada”.[23]
De fato, essa “ideia de universidade”, que no século XX ganhou uma releitura com um livro bombástico de Allan Bloom[24], ainda paira na cabeça de muitas pessoas. E no caso do Brasil (em outros países também), numa época em que o Direito era o único curso ligado às Humanidades, o ensino jurídico passou a ser o locus por excelência para a “cultura do bacharelismo” ou, numa expressão que se tornou famosa, para a construção do mito do “meu filho doutor”.[25]
Ainda que numa menor escala, não há dúvidas de que essa imagem do Direito permanece viva na contemporaneidade. Como atesta o jurista brasileiro e professor em Harvard, Mangabeira Unger, falando de uma realidade internacional:
“Nesses países, os alunos procuram as faculdades de direito como porta de entrada para a elite nacional. E lá esperam aprender qual o “deal” na sociedade – os pactos fundamentais do poder – e qual a linguagem em que se descreve e se revê esse “deal”. A quase ausência, fora dos países de fala inglesa, de um ensino universitário genérico e pré-profissional motiva a busca de um outro instrumento para habilitar jovens a entrar nos quadros dirigentes da sociedade. Para isso servem as faculdades de direito.”[26]
Mangabeira Unger tem razão. Além disso, no que toca a essa “falta de um ensino universitário genérico e pré-profissional”, a que ele se refere, o Brasil corre um sério risco de ficar para trás. Recentemente a Europa, por meio do Processo de Bolonha, começou a se adequar a esse “modelo norte-americano”, em que os discentes fazem um bacharelado interdisciplinar, de três a quatro anos, optando por disciplinas de diversas áreas, antes de decidir qual profissão gostariam de seguir. Isso evita escolhas precoces, deixando uma margem para o aluno, que pode transitar em várias áreas, ampliando sua formação e sua cultura geral, para depois especializar-se.[27]
No caso do Brasil, em face desse atraso institucional, o Direito acabou se constituindo no porto seguro das Humanas, ou seja, o curso onde muitos estudantes desembarcam, ainda indecisos, em busca de uma formação mais genérica, capaz de abrir um leque amplo de escolhas.
Diante dessa realidade, que talvez explique o vasto número de faculdades de Direito no Brasil, e da heterogeneidade dos alunos que buscam essa formação, nos parece importante delinear uma cartografia das possibilidades acadêmicas e profissionais para o estudante de Direito. Por onde anda Têmis, a deusa da Justiça, neste século XXI?
4 O jurista inserido na “sociedade em rede”
“A multiversity não adora um único Deus”. Clark Kerr[28]
Até o começo do século XX, as universidades mais importantes do mundo estavam na Alemanha. Eram instituições voltadas para a “pesquisa pura”, no sentido de descobrir as teorias ou as regras científicas de cada campo, sem uma preocupação imediata com a aplicabilidade daquele conhecimento. Prova disso é que diversos reitores de universidades americanas – como C. W. Eliot (Harvard) – cruzaram o Atlântico em busca de ideias para modernizar suas instituições. E tão logo o “modelo alemão” chegou à América, o mundo acadêmico ficou entusiasmado. No seu livro clássico, Abraham Flexner (1968), um dos mais importantes intelectuais ligados à educação, não poupou elogios àquela iniciativa, seguro de que em breve os EUA teriam as mais importantes instituições acadêmicas do planeta.
Mas se Flexner estava correto com relação ao futuro das universidades norte-americanas, seu diagnóstico da época estava equivocado. “A história – disse Clark Kerr mais tarde, criticando-o – corre mais rápido do que a pena do observador”. Afinal, enquanto Flexner escrevia o seu livro, a universidade norte-americana, muito além de Berlim, se transformava numa “instituição de tipo inédito”.[29]
Definida por Kerr, a multiversity foi um grande sucesso. É verdade que existem críticas[30], mas não há dúvidas de que esse “modelo norte-americano”, incorporando todas as tendências de universidades da época (pesquisa pura, cultura geral, profissionalização, responsabilidade social, parcerias com outras instituições etc.), se tornou o paradigma institucional do mundo contemporâneo. Tal como o “multiverso”, de William James, a universidade passava a ser um local onde cabiam diversas atividades, intercaladas numa escala contínua e plural, ligando alunos, professores, empresas, governos, ong’s, associações culturais etc., em torno do conhecimento.
No que toca ao Direito, essa análise de Kerr fazia ainda mais sentido. Para além de um conjunto de leis, fechadas e lecionadas na perspectiva de uma “teoria pura”, o universo jurídico passou a se apresentar de forma abrangente, contemplando outras disciplinas, abrindo várias possibilidades no mundo acadêmico e profissional. Assim, da advocacia e dos concursos públicos à gestão empresarial numa economia globalizada, passando pelas organizações da sociedade civil, pelas políticas públicas e pesquisas teórico-empíricas, os discentes devem ficar atento às diversas perspectivas que o curso de Direito lhes oferece. Vejamos uma parte desse “multiverso”.
Para começar, gostaríamos de sublinhar a vocação que o Direito tem para compreender e transformar as instituições sociais. Essa temática parece importante, uma vez que ela é transversal a todos os campos jurídicos, independente do caminho que os estudantes queiram seguir. Mangabeira Unger, falando sobre como deveriam ser as faculdades de Direito no Brasil, defende esse “enfoque institucionalista” por duas razões. A primeira delas é por conta do fenômeno da globalização. Num mundo onde cada vez mais os juristas precisam lidar com problemas transnacionais – envolvendo empresas, governos, indivíduos, associações etc. –, a principal ferramenta que eles têm em mãos, na impossibilidade de dominar todas as legislações, é conhecer como funcionam as instituições sociais. Não que haja uma homogeneidade nesse sentido, diz Mangabeira Unger, mas, sobretudo depois da queda do Muro de Berlim, as formas de organização institucional espalhadas pelo mundo vêm se estreitando, sendo que
“ao dominar o repertório, o jurista, ou o advogado prático, consegue traduzir uma linguagem do direito de um país na linguagem do direito de outro país. Consegue distinguir entre diferenças verdadeiras e equivalências funcionais. Consegue, enfim, abrir caminho numa floresta de pormenores e dar forma a um amontoado de acidentes.”[31]
De fato, no curso de Direito, o aluno tem a possibilidade de compreender as linhas gerais dessas instituições – a família, as associações da sociedade civil, o Poder Judiciário, o Ministério Público, os parlamentos, os tribunais de contas etc. –, que são as principais formas de organização social, inseridas no mundo jurídico. Além disso, na visão de Mangabeira Unger, há uma segunda razão para se valorizar um “enfoque institucionalista”. Trata-se da necessidade de os profissionais do Direito, sobretudo num país ainda marcado pela corrupção e pela exclusão social, voltarem a ter um protagonismo maior na organização da sociedade. Afinal, diz ele, “a vocação do pensamento jurídico numa democracia, para além das fronteiras da praxe do advogado, é transformar-se numa prática de imaginação institucional, no terra a terra dos problemas imediatos e das possibilidades próximas”.[32]
Para exemplificar essa “importância institucional”, vale a pena fazer alusão a um dos trabalhos mais importantes sobre o assunto no Direito. O livro Acesso á justiça, de Cappelletti e Garth[33], tornou-se um clássico, com linguagem acessível para os estudantes. No geral, os autores levantam as seguintes perguntas: O que fazer para que os processos judiciais se tornem mais céleres?; De que forma viabilizar advogados para as pessoas que não têm condições de contratar um?; Como evitar que o Judiciário fique abarrotado de demandas?; É possível modernizar e diminuir os custos do sistema? Ora, como podemos perceber, a grande preocupação de Capelletti e Garth é refletir sobre maneiras de melhorar ou de consolidar algumas instituições ligadas à Justiça. Dessa forma, se levarmos em conta os profissionais ligados ao Direito – juízes, promotores, delegados de polícia, gestores de políticas públicas, pesquisadores universitários, advogados que prestam consultoria para organizações civis, entidades de classe, grandes empresas etc. – é fácil imaginarmos as diversas questões ligadas à “análise institucional”com que os alunos irão se deparar ao longo de suas carreiras. Enfim, conforme a célebre expressão do cientista político Adam Przeworski, institutions matters.[34]
Outro ponto importante nesse “multiverso” do estudo do Direito é a pesquisa. Cada vez mais os estudantes são instigados a analisar e depois escrever sobre um determinado tema. Grosso modo, isso é fazer uma pesquisa. Na vida acadêmica, ela pode surgir de diferentes formas: por meio de um artigo (para ser publicado num jornal, revista ou sítio); nos trabalhos de iniciação científica; nos grupos de estudo e pesquisa; nos trabalhos de conclusão de curso; na especialização, no mestrado, no doutorado etc. No meio acadêmico norte-americano, há uma expressão – publish or perish (publique ou desapareça) – que ilustra a relevância da pesquisa. Vejamos porque ela é importante para o aluno desde o começo do curso.
O filósofo da USP e ex-ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro, tem um artigo interessante sobre pesquisa. Com um título provocador – Não há pior inimigo do conhecimento que a terra firme –, o texto fala da importância de as pessoas se arriscarem e buscarem mais inovação nas pesquisas, colocando nelas seus anseios, suas paixões, lançando-se no tema e na construção do texto, de forma intrínseca, conscientes de que esse processo, consoante com aquilo que os alemães chamam de Bildung, faz parte de uma educação e de uma formação diante do mundo.[35] Assim como o Direito é um campo vasto, não é difícil para os alunos encontrarem algo que os motive. Basta eles pensarem nos posts que compartilham nas redes sociais. Mas, em vez de de emitir uma breve opinião sobre um assunto (por exemplo, o grande problema do Brasil é a corrupção; o governo deveria diminuir a carga tributária; o sistema prisional não reeduca ninguém; a eutanásia deveria ou não deveria ser autorizada), o aluno poderia aprofundar no assunto, procurar dados, entrevistar pessoas, comparar com outros países etc. E é justamente à medida que eles entram na complexidade do tema (com suas contradições, nuances, riscos, oportunidades etc.) e à medida que vão construindo sua narrativa (escolhendo isso em vez daquilo, priorizando uma análise em detrimento de outra) é que eles vão se conhecendo melhor, desenvolvendo sua capacidade crítica, abrindo-se para questões que vão muito além do objeto pesquisado. Trata-se de um momento, parafraseando Deleuze e Guattari, em que encontramos “um pouco de ordem para nos proteger do caos”.[36]
Também vale a pena destacar a importância das pesquisas e das publicações no curriculum vitae dos discentes. Hoje em dia, com a concorrência no mundo do trabalho, não basta uma simples graduação. Exige-se cada vez mais uma formação complementar, por meio de especialização, mestrado, doutorado etc. Nesse sentido, a participação em projetos de pesquisa e a publicação de artigos são quesitos valorizados, contando pontos nos editais para entrar numa pós-graduação. E mesmo diante de uma seleção de emprego (para trabalhar, por exemplo, num escritório de advocacia) ou de uma promoção no serviço público (um juiz, por exemplo, que queira se tornar desembargador), ter trabalhos publicados é um diferencial que revela a capacidade crítica e a presença no debate público. Isso sem contar a internet, que vem se tornando o principal cartão de visita das pessoas. Aparecer ou existir no Google, por conta de uma publicação, além de trazer visibilidade, abre diversas portas num mundo cada vez mais conectado.
Ainda no “multiverso” do Direito, outro grande tema que podemos destacar é o ensino. A relação entre professores e alunos na sala de aula constitui a essência da educação. Quantos livros e filmes retratam as influências recíprocas e histórias de vida que nos dão a certeza de que não iremos sucumbir ao ensino virtual. Allan Bloom, por exemplo, tem falas geniais – seja nos seus livros ou na voz de Saul Bellow, prêmio Nobel de literatura, que escreveu um romance inspirado nele –, mostrando que quando um aluno procura pessoalmente um professor existe uma “possibilidade” (ou a chance de uma “arte do encontro”), seja por meio de um conselho, de um livro indicado, de um sentimento de empatia, de uma ideia ou uma frase qualquer, que podem transformar ou trazer uma nova direção à vida das pessoas.
Nesse sentido, a participação dos alunos em sala de aula é fundamental, sobretudo no Brasil, onde ainda prevalecem as “aulas expositivas” (em que o professor dá uma palestra). Nos Estados Unidos, além de outros países anglo-saxões (de tradição da common law), há muito tempo prevalece o “método socrático” (diálogo entre professores e alunos) ou as “discussões de casos” (o professor apresenta um caso jurídico para ser debatido em sala). Mas não há dúvidas de que as coisas estão se transformando. Ainda nos anos 1950, num texto que se tornou clássico no Direito, San Tiago Dantas já defendia uma mudança do nosso text system (modelo de ensino sistemático e expositivo) para o case system (modelo com discussões a partir de casos concretos).[37] Isso sem falar em Paulo Freire, cuja célebre prática dialógica e emancipatória da educação, apesar de não ter reverberado muito nas faculdades de Direito na época em que foi formulada, vem ressurgindo nos planos pedagógicos e diretivas nacionais para o ensino jurídico.[38]
É importante então que os alunos, mesmo diante de aulas mais expositivas, se envolvam com o conteúdo ministrado, por meio de perguntas e questionamentos. Essa participação ajuda na retórica e no poder de convencimento, elementos que sempre fizeram parte do savoire faire do Direito. Outras oportunidades, nesse mesmo sentido, são os júris simulados, as competições de debates, as simulações de negócios etc., organizadas pelos professores em sala de aula ou por instituições espalhadas pelo Brasil e pelo mundo.[39] Resumindo, saber falar em público é importante – que o diga Cícero, autor do livro De Oratore, considerado por muitos o maior jurista da história – e é através da prática e da experiência que aprendemos essa arte.
Outro componente importante ligado ao ensino, mas que vai muito além dele, é a inserção dos alunos no desenvolvimento das novas tecnologias digitais e da internet. Há um vasto campo, referente à inovação, sendo aberto no universo que perpassa o Direito, como por exemplo as start ups que buscam automatizar o trabalho dos advogados, as novas plataformas de pesquisa e comunicação, a governança digital, o processamento de big data, a compreensão da arquitetura técnica, dos códigos e das auto-regulações da internet etc. Não há dúvidas de que as faculdades de Direito, ao longo deste século, terão que se adaptar a essa nova realidade, inserindo os alunos e preparando os profissionais do Direito para os desafios e as possibilidades desse novo contexto de aceleração da “era da informação”.[40]
Para terminar nosso “multiverso”, gostaríamos de falar da extensão. Essa palavra é desconhecida da maioria das pessoas, apesar de ser uma das funções da universidade, conforme disposto na Constituição. É importante então que os alunos se informem a respeito das atividades de extensão, uma vez que todas as faculdade no Brasil têm um núcleo ou um departamento para esse fim. Vejamos o que isso significa.
O termo “extensão” surgiu na Inglaterra, durante a Revolução Industrial, quando as universidades se viram obrigadas a responder às demandas sociais, diversificando suas atividades para atender à formação técnica que o novo modo de produção exigia.[41] Criou-se uma extended university, ou seja, uma instituição que se abria em direção à sociedade, por meio de pequenos cursos profissionalizantes ou de formação contínua, diferenciando-se do modelo mais fechado e elitista da época. Com o tempo, o conceito acabou se transformando, sobretudo na América Latina, onde continua a ser bastante utilizado, ao contrário do que acontece em outros países ocidentais. Para tanto, o movimento de Córdoba foi fundamental. A partir dele, passou-se a identificar a extensão não somente com cursos oferecidos para a sociedade, mas com uma verdadeira responsabilidade social. A universidade deveria assumir um papel preponderante, desenvolvendo atividades que pudessem trazer uma melhora na vida das pessoas não de forma vertical, como se a instituição apenas transmitisse um saber, mas de maneira dialógica e circular, permitindo uma troca entre a universidade e a sociedade, algo fundamental para o conjunto das atividades produzidas pela instituição.[42]
Como podemos perceber, trata-se de um conceito ambicioso, inserido num vasto debate sobre qual o papel da universidade no tecido social. De forma mais pragmática, tal como é feito na maior parte das faculdades de Direito do Brasil, podemos trazer uma definição a contrario sensu da extensão, no sentido de que ela envolve um conjunto de atividades, no meio acadêmico, diferentes daquelas voltadas para o ensino em sala de aula e para a pesquisa, ou seja, congressos e seminários, eventos culturais e desportivos, iniciativas de responsabilidade social, parcerias com outras instituições etc.
O projeto de extensão mais conhecido no universo do Direito, presente em diversas faculdades, é o Núcleo de Assistência Jurídica. Por meio dele é fornecido serviço de advocacia de forma gratuita para pessoas menos favorecidas, sendo que os estudantes podem trabalhar como estagiários. Há várias outras iniciativas interessantes ligadas à responsabilidade social, espalhadas pelo Brasil: núcleos de mediação jurídica, clínicas de direitos humanos, trabalhos com comunidades indígenas e quilombolas, caravanas de justiça, oficinas de cidadania, projetos ligados ao meio ambiente, ao direito previdenciário etc. Essas atividades quase sempre contam com parcerias institucionais – Ministério Público, tribunais de Justiça, secretarias de políticas públicas, organizações não-governamentais etc. – e abrem diversas oportunidades de bolsas e estágios para os estudantes. Participar delas, como defende Miracy Gustin, muito além da aquisição de competências instrumentais, contribui para nosso “processo emancipatório” diante do mundo.[43]
Fora essas atividades mais ligadas à responsabilidade social, os estudantes devem ficar atentos às outras oportunidades inseridas no universo da extensão, que vão das ações culturais (cineclubes, saraus literários, festivais de música, concursos artísticos etc.) às iniciativas acadêmicas e comunicativas (congressos, seminários, rádios e jornais universitários), passando pelos eventos desportivos (treinamentos, campeonatos internos, jogos jurídicos) e por parcerias institucionais (com empresas, escritórios, parlamentos, tribunais, sistemas prisionais etc.).[44] Para o êxito dessas atividades, é fundamental o engajamento dos estudantes, em especial por meio dos diretórios acadêmicos, que muitas vezes organizam os eventos de extensão em conjunto com os professores e membros da administração.
Como podemos perceber, a extensão proporciona uma “universidade viva”, por meio da qual os alunos podem se socializar e engrandecer sua formação, passando por diversas experiências ligadas ao universo acadêmico. E muito além da possibilidade de constituir uma rede de contatos (ou networking, como chamam os norte-americanos, que enfatizam muito seu valor), o conjunto dessas atividades contribui para aquilo que Flaubert, numa célebre história de um estudante de Direito que se aventura por Paris, definiu como a “educação sentimental”[45], algo que é essencial em nossas vidas.
Conclusão
A justiça nas veredas do estudante
“O justo que era, aquilo estava certo. Mas, de outros modos – que bem não sei – não estava. (…) Quem sabe direito o que uma pessoa é? Antes sendo: julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado. Eh, bê. Mas, para o escriturado da vida, o julgar não se dispensa; carece?“ Guimarães Rosa[46]
As palavras de Riobaldo, durante o julgamento do jagunço Zé Bebelo, mostram a angústia de um ser humano diante da justiça. O que é certo ou errado – pensava ele, após o chefe da tribo autorizar os discursos a favor e contra o acusado –, naquele sertão miserável, onde impera a lei da vida? Essa pergunta, que se repete ao longo da obra de Guimarães Rosa, revela um dos grandes arquétipos do Direito, presente em todas as épocas e em todos os lugares: O que é a justiça? De que maneira alcançá-la?
Trata-se de questões complexas. O jurisconsulto Ulpiano, num dos mais importantes textos do Direito Romano, disse que a Justiça é a “firme vontade de dar a cada um o que é seu”.[47] O sucesso dessa definição, talvez a mais famosa da história do Direito, se dá justamente pelo fato de Ulpiano não entrar no conteúdo material daquilo que ele indica. Afinal, poderíamos perguntar, qual o critério para definir o que pertence às pessoas?
Uma lição que os estudantes devem aprender, desde o início do curso, é que o Direito nunca foi e parece ser cada vez menos uma ciência exata. Mas esse ideal de “dar a cada um o que é seu”, por mais complexo que seja, pode ser encontrado em diversas etapas do “multiverso jurídico”: projetos de extensão (a partir do contato com a realidade social), ensino (por meio de uma prática dialógica), pesquisa (por meio da construção de um saber), exercício da advocacia (com uma postura ética na defesa dos direitos), serviço público (com o aperfeiçoamento das instituições) etc. Isso confirma que a ideia de justiça não pode ser negligenciada.
Nesse sentido, o professor de Princeton Christopher L. Eisgruber, no título de um artigo interessante, faz a seguinte pergunta: Can Law Schools Teach Values? Segundo ele, a resposta afirmativa para essa questão, insere-se numa crítica à recorrente anedota que se conta sobre o grande juiz norte-americano O. W. Holmes. A caminho da Suprema Corte, quando um colega lhe disse, “Faça justiça”, Holmes teria dito, “Esse não é o meu trabalho, meu trabalho é praticar o jogo conforme as suas regras”. Para Eisgruber, é preciso então reforçar a conexão entre Direito e Justiça: esse é um dos valores, diz ele, que as faculdades podem ensinar.[48]
Mas se Eisgruber é pessimista com relação ao papel da universidade na mudança estrutural da sociedade (ele acredita que a importância do ensino desses valores, como justiça, está muito mais ligada à formação ética individual dos alunos para sua atuação profissional), nós gostaríamos de concluir defendendo a tese contrária.
Num livro famoso, Burton J. Bledstein mostrou como a universidade norte-americana foi a principal instituição para formar o espírito de competitividade, mérito, competência, daquilo que ele chamou de “culture of professionalism” dos EUA.[49] O que Bledstein está nos dizendo, em comparação com os “modelos de universidade” que vimos anteriormente, é que a multiversity norte-americana, em meio às suas diversas atividades, acabou privilegiando a formação dos alunos, preparando-os para um mundo competitivo, e que com isso ela foi responsável por constituir uma parte importante da ética e do know-how da economia de mercado nos EUA. Ora, não seria possível imaginar um equilíbrio maior na universidade – valorizando-se, por exemplo, as práticas do tripé ensino-pesquisa-extensão que valorizam a ideia de justiça –, capaz de difundir para a sociedade uma “cultura da cidadania”?
Enfim, contra a descrença de Eisgruber, não podemos subestimar o poder institucional da universidade na constituição de uma “consciência coletiva”, tal como demostra a análise de Bledstein. E muito além das faculdades de Direito, apesar de sobretudo nelas, a valorização dessas práticas envolvendo o “dar a cada um o que é seu”, ao longo da vida acadêmica dos estudantes, contribui para aquilo que Guimarães Rosa, no canto de cisne de Riobaldo, definiu como “travessia”.
Informações Sobre o Autor
André Rubião
Mestre em Filosofia do Direito Universidade Paris 2. Doutor em Ciência Política Universidade Paris 8. Professor na Faculdade de Direito Milton Campos