Xenotransplantação e suas implicações bioéticas: reflexões sobre os princípios da responsabilidade e da precaução

Resumo: Todo o comportamento humano pode ser considerado sob perspectivas éticas. Com o espantoso desenvolvimento técnico-científico, notadamente no campo biomédico, cada vez mais e cada vez maiores se apresentam os dilemas éticos. A xenotransplantação como técnica biomédica para o prolongamento da vida humana ou sua melhoria não foge à regra. Ainda em seu estágio inicial de desenvolvimento, inúmeros questionamentos podem e devem ser feitos no campo filosófico da bioética antes da aplicação corriqueira da técnica. O escopo deste artigo é, justamente, apresentar a temática e demonstrar sua complexidade para além da realização do procedimento, expondo alguns pontos a serem considerados no campo bioético. Para tanto, se abordará cada um dos tópicos sugeridos, justificando a necessidade de reflexão prévia na esfera ética com base em esparsas considerações doutrinárias, de forma dedutiva, especialmente à luz dos princípios responsabilidade (de Hans Jonas) e da precaução. Serão feitas considerações acerca da dignidade do animal (sacrificado para o xenotransplante) e da morte como etapa natural da vida. Tais considerações serão tomadas como norte para os questionamentos bioéticos (dentre outros possíveis) a respeito da gratuidade do transplante do órgão animal, da possibilidade de modificação do genoma de espécies animais para permitir a xenotransplantação, e dos riscos e benefícios para a pessoa individualmente considerada e para a humanidade. *

Palavras-chave: Xenotransplante. Biodireito. Dignidade animal. Princípio da responsabilidade. Princípio da precaução.

Abstract: All human behavior can be considered from ethical perspectives. With the amazing technical and scientific development, particularly in the biomedical field, more and bigger are the ethical dilemas. Xenotransplantation as a biomedical technique for prolonging life or improving it is no exception. Still in its early stage of development, many questions can na dshould be made ​​in the philosophical Field of bioethics before the ordinary application of the technique. The scope of this article is precisely to present the subject and demonstrate its complexity beyond the completion of the procedure, exposing some points to consider in the bioethical field. Therefore, it Will address each of the suggested topics, justifying the need for prior reflectionontheethicalspherebasedonsparsedoctrinalconsiderations, in a deductive way, especially from the perspective of the principles of responsibility (Hans Jonas) and precaution. Considerations Will be made ​​about the animal's dignity (sacrificed for xenotransplantation) and death as a natural stage of life. Such considerations Will be taken as North to bioethical questions (among others possible) about the gratuitousness of transplant animal organ, the possibility of modifying the genome of animal species to allow xenotransplantation, and the risks and benefits for the person individually considered and for Humanity.

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Key-words: Xenotransplantation. Bioethics. Animal rights. The Imperative of Responsability. Precautionary Principle.

Sumário: Apresentação: a ética na xenotransplantação. 1. Estado da técnica; 2. Um norte para o tema: dignidade animal e a morte; 2.1. Dignidade animal: o animal como sujeito de direitos; 2.2. A morte como fase da vida; 3. A questão da gratuidade e do mercado; 4. A questão da modificação genética no animal e o princípio da precaução; 5. A questão da beneficência e não-maleficência; 6. Consideração final: prestígio ao princípio da precaução; 7. Notas. Referências.

Apresentação: a ética na xenotransplantação.

A busca pela melhoria da qualidade de vida e seu prolongamento revelaram-se como objetivos sempre perseguidos pelo ser humano. A título de exemplo, o art. 22 do Código de Ética Médica (Resolução n. 1.931/2009 do CFM) dispõe que o consentimento do paciente é exigido para qualquer intervenção, salvo em caso de risco de morte; ou seja, o prolongamento da vida se sobreporá a liberdade do paciente.

Com o desenvolvimento tecnológico atual (que, hoje, representa um fim em si mesmo),[1] notadamente, o desenvolvimento tecnológico da biomedicina, surgem, progressivamente, novas técnicas visando a alongar a existência temporal das pessoas e melhorar seu dia a dia através da intervenção no corpo humano.

O transplante de tecidos, órgãos e partes do corpo humano (em regra, o alotransplante), bem como a modificação genética, seja de plantas, de animais (os alimentos transgênicos), ou do próprio Homem, são algumas dessas técnicas. Técnicas estas que suscitam, por evidente, infindáveis questionamentos de toda natureza: jurídicos, ético-morais, religiosos etc.

Inegavelmente o xenotransplante, o transplante de tecidos, órgãos e partes do animal para o ser humano, encaixa-se nessa perspectiva.

Aqui se destacará a vertente ética que o tema permite explorar, de modo a elencar muitas das questões que a moral apresenta ao tema, colaborando para posterior tomada de posição sobre cada uma delas.

Dá-se como marco mundial dos problemas éticos ligados à medicina o fim da Segunda Guerra Mundial, principalmente com a revelação dos experimentos nazistas, culminando com a edição do Código de Nuremberg, em 1947 (SANTOS, 2015, p. 354), como conjunto de princípios éticos para pesquisa em seres humanos.

Mais especificamente, aqui se destacará a vertente bioética sobre a xenotransplantação. E isso porque a bioética “representa um vetor do conhecimento que procura conciliar a vida interdisciplinarmente, com o avanço técnico-científico” (NAMBA, 2015, p. 11).

Nesse sentido, a “Bioética como disciplina intelectual emergiu como resultante de diferentes dilemas que se enfrentaram, sobretudo nas sociedades ocidentais, derivados do desenvolvimento de tecnologias médicas impensáveis outrora” (SANTOS, 2015, p. 355).

Por fim, conquanto não haja disciplina normativa específica sobre o xenotransplante, ressalta-se que a abordagem não se afastará da seara do biodireito, que representa o diálogo dentro do Direito e sua composição com a ética, com a bioética,[2] “ocupando-se da formulação das regras jurídicas em relação à problemática emergente do progresso técnico-científico da Biomedicina. O Biodireito questiona sobre os limites jurídicos da licissitude da intervenção técnico-científica possível” (BARACHO, 2004, p. 14).

1. Estado da técnica.

Antes de se adentrar no ponto de investigação deste trabalho, há de se situar o atual estágio do xenotransplante na biomedicina.

Aponta-se como motivo para o xenotransplante a falta de órgãos para o alotransplante (transplante de órgãos, tecidos ou parte de corpo humano). Como ressaltam Alessandra Furlan, Rita de Cássia Espolador e Karina Maziero, “Embora o crescente número de doações, existe inquestionável desequilíbrio entre o excesso de demanda e a escassez de oferta dos órgãos disponíveis” (FURLAN; ESPOLADOR; MAZIERO, 2010, p. 49), o que reflete em milhares de falecimento por ano, os quais poderiam ter sido evitados com alto grau de probabilidade.

Além do aumento da fila e do número de falecimentos, Denise Luz relembra que “o transplante é considerado um procedimento de baixo custo se comparado a outros procedimentos”, como a hemodiálise no caso de mal funcionamento dos rins, o que o torna uma opção recomendável do ponto de vista econômico tanto ao setor público como ao setor privado (LUZ, 2013, p. 8).

No que se refere ao estado da técnica da xenotransplantação, dois casos mostram-se emblemáticos: Baby Fae e São Petersburgo.

No caso Baby Fae um paciente pediátrico recebeu o coração de um babuíno, tendo os médicos conhecimento de que a técnica não lhe solucionaria a enfermidade, tanto que o paciente morreu após 20 dias. O caso, por óbvio, suscitou muitos questionamentos bioéticos. Dois deles se referem à utilização de um bebê como objeto de experimentação em humanos e o sacrifício de um babuíno para a realização do experimento.[3]

No caso de São Petersburgo (Cf. LUZ, 2013, p. 9), um paciente com hepatite-B, no ano de 1992, recebeu um fígado de um babuíno porque os médicos acreditavam que os rins dos babuínos seriam resistentes à doença e que outro rim humano não resistiria a ela.

Após cinco dias da cirurgia, o paciente caminhava e comia, e, após um mês, recebeu alta. Contudo, o babuíno era infectado pelo vírus HIV e o paciente, no segundo mês, foi internado com inúmeras complicações. A causa da morte foi uma infecção no cérebro. O HIV, segundo os médicos, não teria influenciado a morte, embora eles não tenham descartado a hipótese de complicações decorrentes da rejeição do órgão animal como causa do falecimento.

A aplicação da técnica do xenotransplante em animais da mesma ordem zoológica que o Homem, a priori, impede que haja rejeição aguda, além de haver semelhanças anatômicas e funcionais, daí porque a escolha pelos primatas.

Contudo, a proximidade com os macacos traz maiores riscos de infecção, uma vez que muitas doenças são comuns para Homens e macacos. Outrossim, a reprodução dos primatas é mais demorada, e apresenta maiores dificuldades na criação em cativeiro, o que desindica o xenotransplante nesses termos (Id., Ib.).

Por essa razão a comunidade científica optou por realizar pesquisas em outros animais, elegendo-se os porcos como os preferidos. Várias foram as razões da escolha: existem em abundância, até porque a cria é múltipla; o desenvolvimento e a reprodução são acelerados; crê-se que o risco de transferência de infecções é menor; e há menor contestação pública no aspecto ético porque servem de alimento (MENESES, 2010, p. 37).

É mais do que conhecida e corriqueira a técnica pela qual se inserem válvulas no coração humano advindas dos corações de porcos.

Doutro lado, Denise Luz ressalta que, por estarem os suínos mais distantes dos humanos na escala genética, a rejeição é aguda, de modo que a reação do organismo humana é rápida e intensa, visando a destruição do organismo invasor. Por essa razão, “passou-se a adotar a técnica de introduzir genes humanos em porcos, modificando-os geneticamente, a fim de minimizar o risco de rejeição para os seres humanos quando recebessem esses órgãos” (LUZ, 2013, p. 11-12).

No mesmo sentido, noticia Roberta Adena:

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“Mas o uso de células e órgãos de porcos e de outros animais ainda tem grande limitação. No intuito de melhorar esse quadro, pesquisadores vêm lançando mão de técnicas sofisticadas de terapia genética. Há grupos testando a produção de porcos com órgãos mais compatíveis com o organismo humano, o que diminuiria a chance de rejeição em casos de xenotransplante. Nesses experimentos, Galvão explica que partes desses animais que provocam a rejeição hiperaguda são substituídas por genes humanos” (2013, online).

Vale dizer, em busca do prolongamento da vida e de sua qualidade, não só se está a realizar o transplante de tecidos, órgãos e partes do corpo de animal para o humano, mas, também, está-se a modificar os próprios animais, em sua genética, para beneficiar o ser humano, chegando ao ponto de aproximar, artificialmente, as espécies pelos genes.

2.Um norte para o tema: dignidade animal e a morte.

Norteando todo o debate, duas grandes questões se apresentam: a dignidade animal e a morte como etapa da vida.

Na discussão sobre o xenotransplante, deve-se discutir a dignidade animal e a questão da morte, que parecem temas-tabu ao ser humano.

2.1.Dignidade animal: o animal como sujeito de direitos.

Desde logo, “Indaga-se: é ético modificar uma espécie para que esta sirva ao homem? Para melhorar o corpo humano, podemos modificar o da outra espécie?” (GIMENES; VIEIRA, 2009, p. 212). E mais: é ético sacrificar um animal, sem seu “consentimento”, para auxiliar o ser humano?

Essa é a primeira suscitação que o xenotransplante oferece.

Cada vez mais se defende que os animais possuem dignidade, assim como o Homem. Se este não pode ser usado como meio/objeto/instrumento de realizações, por que aqueles poderiam? A vida não é igual? Ou possui valoração diversa conforme o bel-prazer do Homem?

Ao Superior Tribunal de Justiça chegou um habeas corpus em favor da liberdade de dois chipanzés: HC 96344/SP. O Ministro Castro Meira indeferiu o writ liminarmente, porém, em sede de agravo regimental, o Min. Herman Benjamin pediu vista. O julgamento, contudo, não foi concluído porque houve desistência do recurso. No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro também já se abordou a questão: HC 0002637-70.2010.8.19.0000.

Comumente sempre se negou a condição de sujeito de direitos aos animais, negando-lhes, também, dignidade. Ramiro Délio Borges de Meneses, pesquisador português do tema, sustenta que o animal não possui direitos, mas, ao contrário, é o Homem que possui deveres para com o animal, especialmente o de evitar o sofrimento (MENESES, 2010).

Escreve o autor citado que “os animais não são dotados do nível de consciência, racionalidade e sensibilidade que caracterizam o Homem, pelo que não é legítimo extrapolar para o animal tudo que causa dor e desconforto para o Homem” (Id., Ib.).

Conforme apontam Paula Maria Lara e Paula Cristiane Sales, “essa visão decorreu de um enraizado conceito religioso de que os animais não possuíam alma”. Não só Descartes propagou essa ideia como Aristóteles e Platão defendiam a superioridade do Homem sobre os animais (LARA; SALES In ZANITELLI; SILVA, 2015, p. 465-466).

Doutro lado, ainda conforme as autoras citadas, a desconstrução desse pensamento começou a ocorrer com Darwin, que, com seus estudos e suas obras, demonstrou que o Homem e os animais derivam duma evolução única, dum tronco comum, negando a criação especial humana (Id. Ib., p. 466).

Seguindo, mais um passo foi dado com Bentham e Rousseau, que afastaram o foco da racionalidade/irracionalidade, passando-o para a senciência, para a capacidade que humanos e animais têm de sentirem dor, sofrimento (Id. Ib., 470-471).

Vários estudos, a partir de Darwin, demonstram, inclusive, que o comportamento de animais como cavalo, cachorro e macaco expressam semelhanças com o do ser humano, especialmente quando sentem dor, como contração nos músculos faciais e aceleração dos batimentos cardíacos.

A ponderação é importantíssima, porque, a priori, o Código Civil trata os animais como coisas, como patrimônio, como bens semoventes. E interpretação diversa, a partir da Constituição, em especial, os alçaria a outra condição, à condição de sujeitos de direitos (com reflexos processuais, inclusive).

Vale dizer, de objetos para satisfação humana, instrumentos, os animais passariam a ser vistos como fins em si mesmos (na melhor acepção da filosofia kantiana expandida para além do antropocentrismo).[4]

Nesse sentido, ainda com Paula Maria Lara e Paula Cristiane Sales, é de se diferenciar os conceitos de “pessoa” e “sujeito de direitos” (Cf. LARA; SALES, cit., p. 468-469).

No Código Civil, estatui-se no art. 1º que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”. Ou seja, toda pessoa (natural ou jurídica) é sujeito de direitos, porque capaz de contrair obrigações e titularizar direitos.

Contudo, a interpretação sobre esse texto legal, ou seja, a norma que dele se deve extrair, não pode ser limitativa. Ainda que toda pessoa seja capaz de direitos e deveres na ordem civil, essa afirmação não conforma norma negativa no sentido de que quem não for pessoa não é capaz desses mesmos direitos e deveres.

Tanto é verdade que a massa falida, o espólio, o condomínio, o Ministério Público, o Tribunal de Justiça, não se constituem como pessoas. Esses entes, entrementes, são dotados de personalidade judiciária para o processo (civil ou criminal), e a eles se reconhece a capacidade de titularizar direitos e contrair obrigações, a demonstrar que a condição de “pessoa” não é essencial para a condição de “sujeito de direitos”.

Fábio Ulhoa Coelho, justamente por considerar que nem todo sujeito de direitos é pessoa, define “sujeito de direitos” como “centro de imputação de direito e obrigações pelas normas jurídicas”, e classifica os sujeitos como: personificados e não personificados; humanos e não humanos (COELHO, 2014, p. 159-160).

Os termos em questão (“sujeito” e “pessoa”), portanto, não são sinônimos, e a condição jurídica de “pessoa” do Código Civil não exclui outras posições jurídicas para a qualificação como “sujeito de direitos”. Dessa forma, especialmente pela moderna leitura constitucional que se deve fazer, a condição de animal pode muito bem possibilitar a titularização de direitos.

Nesse sentido, aos animais se deve creditar direitos fundamentais, típicos da personalidade, como a vida, a saúde, a integridade física, a liberdade de serem e perseguirem o que a natureza lhes reservou; direitos capitaneados pelo conceito de dignidade (não humana, no caso).

Nesse sentido, ainda, Denise Luz, analisando a específica criminalização das condutas dispostas no art. 32 da L. 9.605/1998[5] sustenta que “o bem jurídico objeto de tutela é a dignidade animal”, e não o meio ambiente, a fauna ou o equilíbrio ecológico (LUZ, 2013, p. 15).

Quem realiza maus-tratos, fere ou mutila animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos, e quem com eles realiza experiência dolorosa ou cruel, ainda que para fins didáticos ou científicos, pratica crime contra o animal, e não contra a fauna.

A função ecológica é um bem coletivo; mas a vida do animal, sua integridade física, sua saúde, é um bem individual, próprio, decorrente de sua dignidade, de sua condição de sujeito de direitos.

Luis Greco, da mesma forma – e com pretensão parecida à deste trabalho (fundamento para a permissão ou proibição do xenotransplante) –, a partir do Direito Alemão, tenta justificar o porquê da proibição penal de praticar crueldade com animais (preocupação válida num ambiente em que cada vez mais se restringe a incidência do Direito Penal), embasando-se na proibição alemã, muito semelhante àquela do mencionado art. 32 da L. 9.605/98 (GRECO. 2010, online).

Após breve exposição da evolução histórica sobre a proteção dos animais pelo Direito Penal alemão, que passa pelo dever moral do Homem para com o animal e por um meio de luta contra atitudes interiores cruéis, Greco distingue três grandes justificativas para a criminalização em comento: a proteção indireta do Homem, a proteção do animal (representando a quebra com o liberalismo antropocêntrico míope) e aquela que julga a penalização das condutas contrárias aos animais como uma exceção aos princípios tradicionais (do Direito Penal em especial) (Id. Ib., item 1, p. 48-50).

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O autor afasta a proteção indireta do ser humano.

Ele salienta que, para uma vertente de pensamento, os cidadãos sentem-se revoltados quando têm conhecimento de maus tratos de animais (fls. 50), e, por isso, é que se mostraria justificada a punição do comportamento. Contra esse raciocínio opõem duas críticas: que não se puniria a conduta em si, mas o escândalo que provoca, e, ainda, que aproximaria o Direito Penal da punição provocada por paixões e sentimentos, abrindo portas ao moralismo prejudicial, como, por exemplo, aquele que suscita sentimentos contrários à homoafetividade (p. 50-51).

Seguindo, em oposição àqueles que defendem a penalização com base num interesse coletivo, contra-argumenta o autor que essa justificativa só oferece uma explicação “histórico-causal”, mas não uma justificativa “jusfilosófica-normativa”, sem contar o fato de que o interesse coletivo na proteção dos animais pode muito bem justificar um interesse coletivo na proteção da moralidade, na perspectiva de um interesse social na “vida sexual normal” (p. 51), o que seria muito prejudicial aos considerados “anormais”.

Contra aqueles que veem no agente dos maus tratados um comportamento que permite uma prognose de realização de outros maus futuros, argumenta que essa mesma visão pode ser usada para outros aspectos moralistas: o homoafetivo, para alguns, demonstraria um caráter voltado à transgressão, e, por isso, ao puni-lo se evitaria um mal maior possível, imaginado (p. 52).

Contestando aqueles que sustentam que os maus tratos aos animais quebram a paz jurídica e que a falta de criminalização levaria à realização de justiça contra as próprias mãos, indica que essa mesma fundamentação poderia ser utilizada para reforçar preconceitos. A título de exemplo cita as sociedades em que a intolerância à homossexualidade é manifesta: ora, tal comportamento violaria a paz jurídica, provocando reação social, e, por isso, deveria ser criminalizada (p. 52).

Por fim, contrapondo-se àqueles que sustentam haver na criminalização uma proteção ao meio ambiente, deixa claro que a visão do meio ambiente é holística, de tal modo que a supressão da vida do animal, caso não afete o equilíbrio ecológico, poderia ser considerada insignificante ante a totalidade do meio ambiente que não se mostrou desequilibrado (p. 52-53) – e cuja prova talvez seja impossível ou só se revele em data muito posterior, acrescenta-se.

E daí conclui: “Deve-se retirar uma lição do fracasso de todas as tentativas de uma fundamentação indireta: os animais são protegidos pelo Direito Penal não em função do ser humano, mas em função de si mesmos” (Id. Ib., p. 53).

Por esse raciocínio, assim como os seres humanos, os animais possuiriam valor intrínseco; possuiriam dignidade.

E, com essa afirmação, o autor também afasta qualquer argumentação positivista (lógico-formal). A uma porque a positivação da proteção animal, por si só, ainda que inserida na Carta Maior, não corresponde à explicação para o porquê da positivação, para o porquê da norma (que se encontra no campo filosófico). A duas porque o consenso democrático atrela a questão à formação momentânea da maioria, suscetível a reviravoltas, podendo, sempre, ser revista e, eventualmente, ser suprimida tal proteção (p. 53-55).

E, por isso, afirma ser imprescindível “inserir a proteção estatal dos animais no interior de uma teoria liberal das tarefas do Estado” (Id. Ib., p. 55).

Nesse sentido, em favor da dignidade animal, apresenta, como valor intrínseco, uma finalidade central do pensamento liberal: enxergar a dominação do outro como um mal a ser evitado (Id. Ib., p. 56).

Sobre a possibilidade de objeção limitadora à relação humana, argumenta que a dominação, em si, é um desvalor, o que abre as portas para a dignificação animal, que não deve ser dominado mediante dor e sofrimento, “Afinal, na relação entre ser humano e animal, é o animal o mais fraco, aquele que possivelmente será objeto de heterodominação”. E, ainda sobre a possibilidade de objeção limitadora à autonomia humana, o autor relembra que os animais superiores (com formação encefálica avançada), possuem um grau de autonomia, com capacidade de “iniciar ações por terem [assim como os Homens] desejos e finalidades (desires) e suporem que podem satisfazer ou alcançar esses desejos ou finalidades por meio da prática de determinada ação” (Id.Ib., p. 57).

Arrematando:

“E com isso está cruzada a ponte para a fundamentação do tipo de crueldade com animais. A inflição de “dores ou sofrimentos consideráveis” a um animal não é, por si mesma, problema do Estado. Ela se torna, no entanto, problema do Estado quando as crueldades alcancem uma tal intensidade, a ponto de que um ser capaz de autodeterminação se torne heterodeterminado, não restando mais praticamente nada dessa capacidade de autodeterminação: isso porque a provocação de dores e sofrimentos pode gerar o mais complete controle sobre o outro, qual seja, um controle que torne possível determiner não apenas que ações o outro praticará – nada mais do que gritar – como também o conteúdo de seus desejos e de sua vontade – de que as dores cessem – e por fim também de suas crenças e pensamentos sobre o mundo – até o ponto em que o mundo da vítima dos atos de crueldade passe a conter nada além da dor. O caso paradigmático de crueldade não elimina apenas a capacidade de agir, mas também a de querer e a de pensar, e por isso o impedimento desse tipo de conduta é da competência do Estado, cuja legitimidade também se deriva do fato de que ele existe para impeder tais ocorrências” (Id. Ib., 57-58).

Também nesse caminho, defende-se na doutrina que o Estado Social de Direito já foi ultrapassado pelo Estado Pós-Social, o Estado Socioambiental de Direito, com uma dimensão ecológica visível, no qual se visa conciliar os direitos liberais, sociais e ecológicos.

E tal entendimento suscita uma revisão do conceito kantiano de dignidade, essencialmente antropocêntrico e individualista, “ampliando-o para contemplar o reconhecimento da dignidade para além da vida humana”, para a vida mesmo, “ou seja, para incidir também em face dos animais não-humanos, bem como de todas as formas de vida de um modo geral, à luz de um matriz filosófica biocêntrica (ou ecocêntrica)” (FENSTERSEIFER, 2007, p. 19-20),[6] objetivando, com isso, o reconhecimento de valor intrínseco da e na natureza (status moral).

Dentro de toda essa perspectiva de proteção animal, pode-se identificar, na doutrina, duas correntes (classificações de pensamento): a do bem estar animal e a do abolicionismo animal (Cf. SILVA, 2009, p. 20-21).

A primeira contenta-se com a ausência do sofrimento animal, admitindo experiências, sua venda, ou qualquer outro tipo de prática sem sofrimento. A segunda, mais radical, vai mais longe, e repugna qualquer utilização dos animais como instrumento de realização humana (até mesmo para fins de alimentação), independente da existência de dor ou sofrimento.

Para os fins deste trabalho, não obstante, depois de toda a exposição neste tópico, bastará a fixação deste ponto: a temática relativa aos direitos dos animais não pode ser excluída do debate acerca do xenotransplante, conforme se avançará.[7]

Não se quis (ou mesmo se quer por agora) definir uma posição, mais ou menos radical, negar ou afirmar os direitos dos animais (e do restante da natureza), propor novas delimitações e distinções doutrinárias. Pretende-se, noutro giro, demonstrar que essa temática, cada vez mais candente, deve permear toda a discussão acerca da xenotransplantação e seus aspectos éticos, bioéticos e normativos (biodireito). Não se cuida mais só da vida humana, mas também de outras, destacadamente a do animal em matéria de xenotransplantação.

2.2.A morte como fase da vida.

Para além do assunto apresentado no item anterior (que, admite-se, ocupa boa parte da presente reflexão), outro aspecto deve ser considerado quando da consideração do xenotransplante: a morte (e a vida).

“A finitude humana é um assunto politicamente inadequado e socialmente temido, pois remete a sentimentos de dor, separação, angústia e sofrimento”, como ressaltam Amanda Gimenes e Tereza Vieira. E seguem: “A morte não é vista como parte integrante da vida, mas sim, como algo que deve ser negado, aniquilado. É tratada como um castigo inquietante, pois envolve a perda de entes queridos” (GIMENES; VIEIRA, 2009, p. 196).

“A cultura ocidental tenta evitá-la [a morte] a qualquer custo, prolongando a vida por meio da obstinação terapêutica, reanimação, transplantes, próteses etc.” (Id., Ib), levando a extremos de sua negação pelo Homem, tal como a criônica.

Noticia-se, inclusive, que a morte é encarada como fracasso e como uma inimiga a ser derrotada (Cf. SIQUEIRA In MORITZ, 2011, p. 15).

Contudo, “A morte é uma realidade contra a qual não se pode lutar”, ainda que possa ser retardada por técnicas biomédicas, a exemplo da xenotransplantação. “A morte, além de ser um fato biológico, é uma realidade metafísica, um fato social e histórico. Assim, sempre haverá uma grande preocupação envolvendo o tema. A reflexão bioética é o cenário ideal para o debate das discussões em torno do assunto” (GIMENES; VIEIRA,2009, p. 216).

Nesses termos, é óbvio que a morte (e a vida) e as considerações que sobre ela se faz devem permear as questões bioéticas impostas pela xenotransplantação, afinal de contas, essa técnica foi desenvolvida para prolongar a vida (burlar a morte) e, quiçá, melhorá-la em termos de qualidade.

“Vemos uma cultura de exagerado apego à vida e negação da morte”. Entrementes, o fim da vida deve ser visto de forma natural, cabendo ao Homem adequar-se a um contínuo processo de sua aceitação, possibilitando encará-la de maneira consciente e serena (ARAÚJO In MORITZ, 2011, p. 143 e 141, respectivamente).

Daí porque, aqui, coloca-se como primordial o tema, devendo-se debater até que ponto o Homem pode e deve chegar, com o auxílio da técnica, da biomedicina, para evitar a morte (prolongamento a vida), e até que ponto se pode e deve buscar melhorar a qualidade de vida com o uso da xenotransplantação em detrimento da vida e/ou integridade física dos animais.

Como freio a todo e qualquer impulso científico, a dignidade (humana e não-humana) e a ética se colocam para evitar catástrofes. No caso da xenotransplantação, a morte tem de ser vista como fato natural, como acontecimento inevitável, como elemento característico do ser vivo, como estágio da vida.

O controle (como probabilidade) sobre o momento da morte pode ser maior ou menor. Sobre como se dará a morte, também, incluindo o grau de sofrimento. Mas, ela é inevitável.

Já se disse, “A mortalidade não tem cura. É nessa confluência entre a vida e a morte, entre o conhecimento e o desconhecido, que se originam muitos dos medos contemporâneos” (BARROSO; MARTEL, 2012, online). Doutro lado, “O fenômeno da medicalização da vida pode transformar a morte em um processo longo e sofrido” (Id., Ib.), e sem sentido, acrescenta-se.

Sem melindres sobre o tema, na xenotransplantação, há de se sopesar a morte humana, infalível, incontornável, com os riscos da técnica para o homem (receptor do órgão animal) e para o Homem (universo coletivo). Há, ainda, que se refletir sobre a possibilidade de êxito do emprego da técnica, os efetivos ganhos em qualidade de vida, a dignidade animal, seus direitos e outros padrões éticos, como o lucro sobre a técnica e a possibilidade de o ser humano recriar a natureza a partir de modificações genéticas.

Ora, o mote que se coloca, tão simples e tão tormentoso, é o do custo-benefício: se todos morrerão, há justificativa ética para ofender a integridade física de um animal, sua vida, sua herança genética (que é natural), torná-lo coisa mercantilizável?

São esses os desafios que se pontuará a seguir (sem qualquer pretensão exaustiva, até pela natureza do trabalho), deixando-se de lado, aqui, a questão da experimentação em humanos, a questão da experimentação em animais, a questão do consentimento e, ainda, a questão sobre a real falta de órgãos humanos para transplante com relação ao tema da xenotransplantação.

3.A questão da gratuidade e do mercado.

Quem pagará pelos xenotransplantes? Quem detiver o animal cujo órgão se retirará para o transplante poderá ser remunerado? Admitir-se-á um nicho comercial desta estirpe: criadouro de animais (geneticamente modificados ou não) prontos para morrerem em benefício dos humanos que precisam de órgãos?

E o Estado, manterá criadouros de animais (geneticamente modificados ou não) para realizar o transplante de seus órgãos para os cidadãos gratuitamente (pressupondo seu dever constitucional de assegurar o direito à saúde)? Isso sem se cogitar a fonte de custeio e a relação com os planos de saúde.

Poder-se-á autorizar que o setor privado (laboratórios) crie animais modificados para benefício humano e patenteie suas descobertas científicas? E o uso dessas descobertas só será utilizada mediante contraprestação, fixada pela mão invisível que rege o mercado?

Essas questões não podem deixar de ser ponderadas quando se pensa na xenotransplantação. Daí porque os temas são pontuados.

O art. 1º da L. 9.434/97, que disciplina os transplantes de órgãos no país, e a própria Constituição Federal, em seu art. 199, §4º, impõem a gratuidade na transplantação. Assim também é imposto pelo estadunidense Comitê de Moral e Ética da Transplantation Society e pela quase totalidade dos países europeus e africanos (Cf. DINIZ, 2014, p. 446).

Ainda que médicos, filósofos e juristas sustentem a liberação dos órgãos, tecidos e partes do corpo para o comércio e haja dissenso no ponto, fato é que tal tipo de comércio é vedado peremptoriamente, tanto que a conduta afim é criminalizada internamente pelo art. 15 da L. 9.434/97.[8]

E isso basta para este trabalho: a gratuidade imposta para o alotransplante não seria aplicada ao xenotransplante?

Curiosamente, mais de duas mil patentes de genes já foram requeridas, número que só aumenta (Cf. BERLINGUER, 2004, p. 202). Como noticiam Berlinguer e Garrafa, o National Institute of Health (NIH) dos Estados Unidos “apresentou requisição para patentear 2.375 sequencias decifradas do DNA de células do cérebro humano”; assim, se fossem descobertas informações relevantes sobre doenças, o instituo ganharia parte do lucros obtidos com as aplicações práticas do conhecimento (BERLINGUER; GARRAFA, 1996, p. 35).

Isso é assaz perigoso. A toda evidência, “O mercado exercita uma forte influência sobre a vida, a saúde, a natureza e sobre a própria ciência. E exerce esta influência tanto para o bem como para o mal” (Id. Ib., p. 40).

Para o mal, é evidente que o corpo (do Homem e do animal) seria tratado como mercadoria, em que cada sequência de DNA descoberta seria objeto de patenteamento, cuja função é a de proteger os interesses capitalistas das multinacionais, e não a saúde do ser humano.

O transplante deixaria de ser um ato altruístico. O animal e o humano deixariam de ser fins em si mesmos.

É muito difícil afastar as considerações econômico-mercadológicas dos espaços sociais. Argumentos dessa classe sempre assumem posições de destaque (para o bem ou para o mal).

Por exemplo, noticia-se que, “Em certos casos, o enxerto de órgãos representa uma economia. É o caso do rim. A diálise renal pesa muito no orçamento das sociedades modernas representando 1% das despesas de saúde da França. Os enxertos de rins, limitando o número de diálises, são financeiramente vantajosos” (BERNARD, 1994, p. 49, e GIMENES; VIEIRA, In VIEIRA, 2009, p. 211). Ainda, alguns hospitais priorizam a transplantação em jovens, com intuito de valorizar a percentagem de sucesso e reforçar a imagem da técnica (BERLINGUER; GARRAFA, 1996, p. 113).

Contudo, o mais barato não deve preponderar sobre a dignidade, sobre os direitos à vida, à integridade e demais direitos da personalidade e outros direitos fundamentais.

Parece que essa linha de argumentação é muito bem aceita com relação aos seres humanos e a transplantação de seus órgãos, tecidos e partes do corpo. O transplante deve ter caráter de doação, e não de compra e venda.

Nesse passo, por que os animais se sujeitariam à venda de seus órgãos? Sem que eles dos proveitos da venda desfrutassem ainda por cima…

O fato de serem eles criados para servirem de alimento não pode servir de argumento para a permitir a prática da xenotransplantação. A cadeia alimentar que privilegia o Homem não lhe dá a prerrogativa de sobreviver, perdurar, em detrimento das outras espécies. Primeiro porque a humanidade depende do funcionamento ecológico equilibrado (ainda que o ser humano ainda não tenha se dado conta disso plenamente), e, em segundo lugar, servir de alimento diverge muito de servir como repositório de órgãos humanos. A comparação se daria mais com a experimentação em humanos, já que ambas se tratam de técnicas experimentais.

Outrossim, por que não se admitiria a clonagem humana e mesmo a criação e descarte de embriões e se admitiria a criação de animais com a exclusiva finalidade de reposição de órgãos? Não se poderia criar um clone humano ou células pluripotentes/totipotentes para servir à transplantação? Mas se pode criar animais para tal fim? E quem pagaria pela criação?

O que se aplica aos seres humanos seria burlado no que toca à aplicação em relação aos animais, indefesos.

A gratuidade da transplantação humana (doação) daria lugar à criação de animais (geneticamente modificados ou não) por quem detém condições de fazê-lo em larga escala para suprir a demanda (lei da oferta e da procura) dos hospitais públicos e privados (compra e venda). E, evidentemente, o setor privado, de algum modo, lograria obter órgãos melhores e mais rapidamente, deixando em segundo plano, como costuma ocorrer na área de saúde ao redor do globo, os pobres.

Deixar-se-ia de promover tratamentos e campanhas preventivas, especialmente aquelas ligadas ao modo de vida saudável, que pouco contribuem ao mercado, para substituir os órgãos humanos pelos de animais (geneticamente modificados ou não).

As patentes de cada órgão geneticamente “humanizado” dos animais impediriam o acesso global e, doutro lado, sujeitariam a saúde ao alvedrio das multinacionais (dos grandes laboratórios) detentoras do gene, do órgão, do animal. Assim, a xenotransplatação se tornaria um negócio, apropriado pelo mercado (que tudo apropria).

Pensar o contrário beiraria a ingenuidade, e, não se pode pensar que, sem dignidade, tendo-se o animal como bem móvel (semovente), não haveria contraprestação à xenotransplantação. Esses fatores devem ser considerados antes de sua realização como técnica terapêutica.

4.A questão da modificação genética no animal e o princípio da precaução.

Jean Bernard já afirmou que “Na teoria, só dois métodos poderiam permitir mudar a pessoa. Em primeiro lugar, a engenharia genética, transformando o patrimônio genético de um indivíduo. E, em seguida, o enxerto do cérebro” (BERNARD, 1994, p. 48).

Ou seja, para o médico, a modificação genética muda o próprio ser humano, sua essência. O mesmo não se passa com o animal? Por evidente que sim.

Nessa linha, assenta Pietro Alarcón que “o conjunto de genes de uma espécie ou de um indivíduo particularmente considerado denomina-se Genoma. Cada espécie tem o seu número ou padrão genômico próprio” (LORA ALARCÓN, 2004, p. 120). Mudar o gene, o Genoma, por conseguinte, implica mudar o ser ou a espécie.

Maria Celeste Cordeiro sobre a dignidade humana como vetor do biodireito, então, assim se expressa: “descartaríamos, assim, eticamente condutas incompatíveis com tal condição, como por exemplo, determinadas experiências com seres humanos, que claramente resultariam em aberrações”; citando: “a clonagem, produção de quimeras, gravidez masculina, gestação com animais, intercâmbio genético humano, recombinações com espécies diversas para produção de seres híbridos, a gestação em cadáveres, guerras biológicas, coquetéis de sêmen, etc.” (SANTOS In MOSER, 1995, p. 33).

Sobre a dignidade animal, se aceita, poder-se-ia dizer a mesma coisa.

Justamente, como aqui se viu (item 2 – O estado da técnica), na xenotransplantação não só se está a tentar a inserção do órgão, tecido ou parte do corpo do animal no organismo humano, como também se está a tentar a modificação do gene animal para incluir características humanas visando à mitigação da evidente incompatibilidade.

Vale dizer, está-se a modificar a natureza do animal. Está-se a criar novas espécies em laboratório. Está-se a mudar o evolucionismo; o Homem passa a com ele parear, dividir a atividade de criação. E, por fim, está-se a combinar materiais genéticos interespécies (animal humano e não-humano).

Isso é perigoso; ao Homem, ao animal, ao ecossistema.

“Os conhecimentos tecnológicos e científicos, que deveriam ter o desenvolvimento, o bem-estar social e a dignidade da vida humana como suas finalidades maiores” – reflete Fensterseifer – “passam a ser (…) a principal ameaça à manutenção à sobrevivência da espécie humana, assim como de todo ecossistema planetário, caracterizando um modelo de sociedade de risco, como bem diagnosticou o sociólogo alemão ULRICH BECK” (FENSTERSEIFER, 2007, p. 16).

O avanço tecnológico permite ao Homem alcançar patamares antes inacreditáveis, vencendo barreiras de forma cada vez mais rápida; de outro lado, sem ética, sem responsabilidade, permite igualmente a destruição de seu entorno e de si próprio como espécie.

Contra isso, em favor do animal e sua herança genética, antes de seguir-se com a xenotransplantação como atividade científica livre, há de se considerar a alteração das espécies, seus riscos, e até mesmo a posição humana de interveniente na evolução natural.

Daí porque Sporleder, cravando o conceito de bem jurídico-penal como “valor considerado digno de tutela jurídico-penal”, considera o patrimônio genético como digno de tutela do Direito Penal (SOUZA, 2004, p. 139).

A genética, dentro das ciências biomédicas, preocupa-se com a transmissão hereditária dos microrganismos, das plantas, dos animais e do ser humano (Id., Ib., p. 164). No estágio atual, conseguiu-se quebrar a cadeia do DNA para, no espaço em que ocorreu a quebra, inserir-se o DNA de outra espécie, o que pode trazer consequências nefastas ao Homem, aos animais e ao ecossistema. Daí por que a necessária criação de limites (Id., Ib., p. 169 e 173).

Na xenotransplantação, hoje, já se pode quebrar a sequência genômica dos animais para “humanizar” seus órgãos.

Com Sporleder, tem-se que a engenharia genética pressupõe a supressão, adição ou substituição de genes (Id., Ib., p. 176), e como técnica pode ser aplicada em células somáticas (não reprodutivas) e/ou células germinativas (reprodutivas) (Id., Ib., p. 180). A intervenção sobre essas últimas é mais drástica, porque se afeta não só a individualidade do ser, mas também sua descendência (a hereditariedade).

Vale dizer, no intuito de “humanizar” os órgãos animais para a xenotransplantação, pode-se alterar o animal em si ou mesmo sua espécie, criando uma nova, sob o sentimento egoísta de beneficiar a espécie humana. Espécie esta que mal compreende a morte e tenta ludibriá-la o todo o custo, depositando na técnica mais do que fé, porque a tem como fim em si mesmo (se se pode fazer, faz-se e ponto).

Essa possibilidade de novas formas de seres vivos (Cf. SOUZA, 2004, p. 183 e 192) merece profunda reflexão antes da experimentação e da práxis, que certamente recomendará o freio, evitando a criação de seres híbridos, quimeras, a partir da modificação do patrimônio genético.

Com Alarcón, a proteção ao patrimônio genético cabe no art. 225, §1º, II, da Carta Magna, ainda que não seja o ideal (Cf. LORA ALARCÓN, 2004, p. 224-230, item 7.4.1), de forma que a modificação do genoma humano seria inconstitucional. Mas, a biodiversidade abrange não só o Homem, como também os animais, as plantas, e todo o patrimônio genético produzido mediante a evolução darwiniana.

Com relação ao ser Humano, o autor citado divisa que “a proteção integral da vida humana funda-se em um pressuposto biológico de respeito às características que identifica, o indivíduo, seu genótipo, que o individualiza e o distingue” (Id., Ib., p. 299).

De fato, o que isola as espécies é a impossibilidade de hibridação natural entre elas, ainda que, no caso do Homem, chegue-se a incríveis 99,5% de identidade génica com o chimpanzé. A diferença numérica e de estrutura cromossômica impede a mistura natural interespécie (SOUZA, 2004, p. 272), de forma que, modificar o genoma implica a modificação do ser ou da própria espécie.

E o resultado disso não se conhece ou se é capaz de prever.

A recombinação gênica interespécies capaz de modificar seres e as próprias espécies pode resultar num desequilíbrio ecológico (haja vista que cada espécie cumpre sua função no equilíbrio da natureza), além de permitir o desenvolvimento de novos vírus e doenças que encontrarão terreno fértil num organismo inédito na natureza, colocando em risco a espécie e o ser humano, direta ou indiretamente.

Trazendo para o terreno prático, “Com a [alegada] escassez de órgãos humanos para transplantes, muitos defendem os xenotranplantes, ou seja, o transplante de órgãos provenientes de outras espécies biológicas diversas do receptor”, resumem Amanda Gimenes e Tereza Vieira. “Os porcos e os macacos são os mais lembrados nestes tipos de pesquisa” e “As tentativas atuais são no sentido de ‘humanizar’ estes animais antes dos transplantes transgenizando-os, vencendo aos poucos as barreiras impostas pela rejeição”.“[C]ontudo” – continua –“o risco maior encontra-se na possibilidade de transmissão de doenças advindas dos animais para a raça humana, onde os riscos seriam maiores que os benefícios” (GIMENES; VIEIRA In VIEIRA, 2009, p. 212).

Pontua, outrossim, Roberta Adena: “Existe a possibilidade de haver transmissão de infecção proveniente desses animais, o que poderia levar a complexas epidemias” (2013, online).

Nesse quadro, não é demais lembrar que a pandemia de 2009 do vírus H1N1 decorreu da recombinação de genes de origem humana, suína e aviária;[9] assim com o HIV decorreu duma primeira recombinação genética que deu origem ao vírus SIV, e depois aos vírus HIV-1 e HIV-2. Fenômenos de tal monta seriam extremamente facilitados pela hibridação interespécie.

Daí porque se mostra extremamente recomendável o agir humano com cautela sobre a xenotransplatação, pois, ao se modificar os genes dos animais de forma artificial, os resultados não são previsíveis e controláveis pelo Homem (tanto no sentido probabilístico quanto prático).

Lora Alarcón já alertou que, “Na prática, como foi observado, não há como predizer os efeitos no genoma desse tipo de alterações, e ainda, mesmo que se tenha certeza quanto à introdução do gene, existem riscos próprios da imprevisibilidade e complexidade do sistema não explorado suficiente pela Ciência” (LORA ALARCÓN, 2004, p. 299).

Homenageando as palavras de Emerson Coan, “[A]o mesmo tempo em que o devir do progresso humano permite a invenção da novidade, o aumento de conhecimento e o alargamento das possibilidade de um bem-estar maior trazem o risco do imponderável, da agressão à natureza e à própria espécie humana” (In SANTOS, 2001, p. 247).

A tentativa de obter alimentos transgênicos, produzir enzimas e hormônios artificialmente, praticar a xenotransplantação, com o desenvolvimento de novas moléculas e novos genes nunca antes vistos pela natureza etc., tudo é uma temeridade (SOUZA, 2001, p. 39).

Nessa mesma perspectiva é que Hans Jonas desenvolveu seu O princípio responsabilidade, baseado na heurística do medo, formando uma ética que vai além da relação intraespécie, entre seres humanos (JONAS, 2006, passim).

Conforme o pensamento jonasiano, todas as formulações morais anteriores à pós-modernidade, especialmente a de Kant, não passavam da relação espaciotemporal limitada à intersubjetividade. Isso porque as ações humanas dos tempos remotos não colocavam em risco o ecossistema e/ou a própria essência ou sobrevivência do Homem.

Mas o desenvolvimento da ciência, da biomedicina, da técnica, permitiu ao Homem exterminar espécies e a si mesmo, destroçando o meio ambiente. E, mais: percebeu-se que as consequências das ações acumulam-se com o passar do tempo.

Em contrapartida, porém, as formulações morais não acompanharam a capacidade tecnocientífica humana, e as formulações morais continuaram a não se preocupar com outra coisa que não a relação intersubjetiva, a relação entre os seres humanos.

Ocorre que Jonas, a partir da capacidade destrutiva adquirida pelo Homem, enxerga a necessidade de se alargar a moral, estendendo-a para a natureza (o extra-humano), parte vulnerável sobre a qual o ser humano possui responsabilidade, por se encontrar sob sua esfera do agir.[10]

É representativa sua assertiva segundo a qual, “Em vista do potencial quase escatológico dos nossos processos técnicos, o próprio desconhecimento das consequências últimas é motive para uma contenção responsável – a melhor alternativa, à falta da própria sabedoria” (JONAS, 2006, p. 64).

As consequências dos atos humanos só poderão ser medidas no futuro, depois que toda a cumulação dos efeitos das escolhas feitas no presente se manifestarem. Por isso é que a heurística do medo recomenda a predileção pelo mau prognóstico, visando a evitar, por exemplo, que a alteração genética provoque aberrações nos animais ou nos seres humanos, que ocorram recombinações genéticas, que se mude o metabolismo do receptor do órgão animal etc.

A heurística do medo é responsável por fundar, pois, uma nova ética, limitativa do comportamento humano em razão da imprevisão futura sobre o resultado do exercício da técnica nestes tempos. E a xenotransplatação se mostra como exemplo que se encaixa perfeitamente na preocupação de Jonas, aliada ao princípio da precaução, que a materializa juridicamente, a instrumentaliza.[11]

Assim, não só O princípio responsabilidade de Jonas como o próprio princípio da precaução devem ter enorme importância no campo da xenotransplatação aqui apresentada. Tudo caminha para esse ponto.

5.A questão da beneficência e não-maleficência.

Finalmente, há de se ponderar acerca dos ganhos e dos riscos para o doador (animal) e para o receptor (humano) no que se refere a saúde de ambos. Afinal, vale a pena a colocação de órgãos de animais no organismo humano?

O princípio bioético básico da beneficência impõe aos médicos e cientistas que lidam com a vida humana o dever de usar o tratamento para o bem do enfermo e, como desdobramento lógico, o princípio bioético básico da não-maleficência impõe a obrigação de não ocasionar dano intencional ao enfermo, agravando sua situação (Cf. DINIZ, 2014, p. 39-40).

Vale dizer, escancarar as portas para o comércio de órgãos de animais e transgredir seus direitos, sua dignidade, vale a pena ou, talvez, encarar a morte de outra forma não seria melhor? Modificar o Genoma animal e submeter-se a riscos inimagináveis vale a pena para possibilitar a xenotransplatação? O xenotransplante faria o bem ou faria o mal?

O alotransplante exige a ministração de imunossupressores ao receptor, que fragilizam sua saúde, tornando o organismo suscetível de contrair várias doenças que não decorrem imediatamente da técnica de transplantação. O receptor, aliás, deve recondicionar seu viver, alterá-lo.

Os imunossupressores requeridos na xenotransplação devem ser ministrados em maior dose, fragilizando ainda mais o corpo humano e o tornando mais suscetível a doenças.

Outrossim, doenças que só afetavam animais podem atingir os humanos com a xenotransplantação (ou os médicos são capazes de detê-las?). E os vírus dos animais podem, por sua vez, recombinarem-se com aqueles comumente encontrados nos humanos, colocando em risco não só o receptor como toda a coletividade (afinal, os vírus se disseminam).

Nesse cenário, há de se considerar, ainda, que os imunossupressores necessários para combater a rejeição do órgão animal reduzem ainda mais a capacidade de defesa do organismo humano, facilitando o desenvolvimento de doenças, a recombinação de vírus, etc. (Cf. COAN In SANTOS, 2001, p. 212).

Ou seja, os imunossupressores podem causar mais mal ao receptor e até mesmo ao Homem do que gerar benefícios. (E o animal terá sua integridade violada, ou mesmo sua vida ceifada.)

Em contrapartida, a ética médica, baseada no juramento de Hipócrates, impõe a beneficência e não-maleficência. A título de exemplo, o §3º do art. 9º da L. 9.434/97 dispõe que só é permitida a doação “cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável” (não-maleficência), e, ainda, “corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora” (beneficência).

Da mesma forma, para além dos requisitos instituídos na L. 9.434/97, o art. 20 do Decreto n. 2.268/97 que a regulamenta impõe que “A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo vivo será precedida da (…) verificação das condições de saúde do doador para melhor avaliação de suas consequências e comparação após o ato cirúrgico”. O art. 24 dispõe no mesmo sentido.

Mas, no atual estágio da xenotransplatação, só se tem riscos ao receptor, à humanidade, ao ecossistema, ao patrimônio genético, e ao animal, que dá sua vida em detrimento de sua dignidade e tem seus direitos violados, tudo para aplacar uma ânsia humana em relação à morte. Sequer se sabe quais são todas as doenças e vírus a que estão sujeitos os animais (os doadores).

Diante do exposto, parece que não há beneficência aos seres humanos, ao animal e ao ecossistema, além de não se respeitar a não-maleficência, devendo ser ponderado se a xenotransplantação cumpre com os princípios básicos da bioética antes de prosseguir com a técnica.

6.Consideração final: prestígio ao princípio da precaução.

Do exposto, vê-se como possível uma consideração final que valoriza a aplicação do princípio da precaução, que cada vez alarga-se como instrumento jurídico para fora do campo do Direito Ambiental stricto sensu.

Antes de indicá-la, não obstante, crava-se o termo “consideração final” justamente porque o termo “conclusão” não tem cabimento aqui, uma vez que a temática não só é vasta a ponto de impedir um fechamento completo, como é tão delicada que admite infinita revisitação.

Ora, a visão de Sporleder se aplica, ainda que com uma visão menos antropocêntrica:

“(…) consideramos que o laissez-faire biotecnocientífico pode ser desastroso para a humanidade se não forem impostos alguns limites, inclusive de ordem jurídico-penal. Assim a “gestão do vivo” ou a “biopolítica” merecem uma estratégia coactada com os princípios humanitários que regem a civilização, pois a humanidade atual e futura assim como o meio ambiente estão em jogo, devendo, portanto, serem asseguradas as condições mínimas de sobrevivência no planeta com vistas a isto. Assim, a humanidade está sendo chamada a administrar responsavelmente o presente e o futuro da sua evolução nos limites de seu saber e poder, e o progresso tecnocientífico alcançado pelas genetecnologias não devem esquecer disso, já que não apenas a natureza (meio ambiente) pode agora ser manipulada, mas também o próprio homem. Por isso reconhece-se a necessidade de se fixar limites a certas intervenções genetecnológicas a fim de proteger a dignidade humana” (SOUZA, 2004, p. 237-238).

O ser humano desenvolveu a tal ponto as técnicas científicas e biomédicas que é capaz de destruir a natureza e de autodestruir-se (não só num ato, como Hiroshima e Nagasaki, mas, também, gradualmente). O que parece impedi-lo, juridicamente, é um instrumento fluido, um princípio, o princípio da precaução, o qual conclama a formulação de uma ética que transborda da antiga consideração intersubjetiva dos seres humanos, passando para sua relação com a natureza, plantas, animais, Genoma, e tudo aquilo que não está ou não merece estar sob seu controle, como a morte.

Nesse diapasão, as formulações de Hans Jonas mostram-se extremamente valiosas e fundam, a partir do campo filosófico, as bases para a aplicação do princípio da precaução.

Com sua heurística do medo, pela qual se deve valorizar o mau prognóstico sobre o bom prognóstico, a xenotransplatação como técnica para prolongar a vida humana em detrimento da herança genética de cada espécie, em detrimento da vida animal, especialmente pelo viés da precaução, suscita algumas questões, parte das quais aqui se apontou.

Impossível não se questionar sobre o prolongamento da vida e até que ponto isso é desejável; a que custo (a herança genética duma espécie ou de um ser indefeso?; a vida de um animal?; a criação de condições para novas epidemias?). Ou mesmo se o Homem está a altura de assumir o papel de criador, colocando sob sua batuta a evolução.

Só o Homem é capaz de alterar artificialmente o curso da História (afora a evolução darwiniana), e, pelo estado atual da técnica, cada vez mais coloca em risco “os grandes equilíbrios cósmicos e biológicos” (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2005, p. 207-208), a ponto de erigir uma nova ética para evitá-los ou mitigá-los.

No campo na xenotransplantação, os temas dos direitos e da dignidade animal devem ser reconhecidos para evitar a instrumentalização pelo Homem sem maiores considerações, especialmente no que concerne ao domínio mercadológico. A alteração genômica deve ser tateada com cautela, com base na ética do princípio responsabilidade, sob pena de consequências maléficas que podem até ser esboçadas, mas não calculadas e evitadas.

Como assinala o próprio Jonas, os sistemas éticos antropocêntricos não são abandonados. “Mas agora a biosfera inteira do planeta, com toda a sua abundância de espécies, em sua recém-revelada vulnerabilidade perante as excessivas intervenções do homem, reivindica sua parcela do respeito que se deve a tudo o que é um fim em si mesmo, quer dizer, a todos os viventes”. E isso a ponto de considerar crime “toda e qualquer extinção arbitrária e desnecessária de espécies” (JONAS, 2013, p. 55 e 56, respectivamente).

Dessa forma, no mínimo, todos esses fatores apontados devem ser considerados à luz da precaução e do Princípio responsabilidade, antes de se cogitar e exercitar a técnica da xenotransplantação, sopesando sempre a dignidade e os direitos do animal e a morte como fase natural da vida humana.

Inúmeros temas bioéticos podem e devem ser suscitados no terreno dos transplantes de órgãos e tecidos animais, antes de sua adoção como técnica pelo simples fato de ter-se essa capacidade (e ela se mostrar economicamente vantajosa). E todos eles conduzem à cautela.[12]

 

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SIQUEIRA, José Eduardo de. Definindo e aceitando a terminalidade da vida IN MORITZ, Rachel Duarte (org.).Conflitos bioéticos do viver e do morrer, Brasília: CFM, 2011, p. 15.
SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. A criminalidade genética, São Paulo: RT, 2001.
SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Bem jurídico-penal e engenharia genética humana, São Paulo: RT, 2004.
 
Notas
* Artigo apresentado como requisito para a aprovação no crédito Filosofia do Direito I–a filosofia jurídica nos desafios contemporâneos: ética, bioética e biodireito, do programa de mestrado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP; 14 de junho de 2016.

[1] Cf. as ponderações de Hans Jonas (2006) e Zygmunt Bauman (1997).

[2] “A normatização, sobre bases éticas, de condutas relacionadas com a saúde, constitui uma das mais antigas iniciativas institucionais” (SANTOS In MOSER, 1995, p. 31).

[3] Caso Baby Fae narrado por José Roberto Goldim (1997, online).

[4] Expandida porque, “Na concepção kantiana, apenas, o homem teria o atributo da dignidade, valor absoluto de possuir vontade própria e autoconsciência com a capacidade de agir de maneira distinta de um mero espectador e de tomar decisões, perseguindo seus próprios interesses” (SILVA, 2009, p. 40). Só o Homem teria, portanto, nessa visão limitada, valor absoluto.

[5] Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa. § 1º. Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. § 2º. A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.

[6] Entendimento mantido na obra Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do estado socioambiental de direito (2008, p. 36-56).

[7] Perceba-se, por exemplo, que existem vertentes dentro da própria corrente do bem-estar animal, a partir do grau de dor que se impõe ao animal, cuja análise escaparia dos propósitos deste trabalho. Para tanto, veja-se Tagore Trajano de Almeida Silva (2009, p. 22).

[8] Art. 15. Comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano: Pena – reclusão, de três a oito anos, e multa, de 200 a 360 dias-multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem promove, intermedeia, facilita ou aufere qualquer vantagem com a transação.

[9] Informe epidemiológico da Divisão de Doenças de Transmissão Respiratória da Secretaria de Estado da Saúde, disponível em <http://www.cve.saude.sp.gov.br/agencia/bepa66_influenza.htm>; acesso dia 27/03/16.

[10] Não se quer referir ao termo responsabilidade no sentido jurídico, como dever, obrigação, ônus, etc. Para Jonas, O princípio responsabilidade não se funda na reciprocidade (direito-dever). O alicerce advém do dever existencial humano de perpetuar-se enquanto espécie, possuindo as presentes gerações o dever de criar condições para que as futuras gerações também cumpram o mesmo dever existencial.

[11] Com a mesma análise sobre O princípio responsabilidade de Jonas se pode indicar Paulo Vinícius Sporleder de Souza (2004, especialmente item 10.2.3, p. 277-283) e também Leocir Pessini em coautoria com Christian de Paul de Barchifontaine. (2005, p. 202-212 – Ética da responsabilidade em Hans Jonas).

[12] Sem embargo, a comprovação detida acerca dos princípios da precaução e responsabilidade, seus contornos, suas construções lógico-filosóficos e suas capacidades de reger uma ética destinada não só a relação entre os humanos, mas também a relação dos humanos para com seu entorno recomenda um espaço destacado, cuja suficiência não se vislumbra neste trabalho.


Informações Sobre o Autor

Ricardo de Sant’Anna Valenti

Mestrando em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Defensor Público do Estado de São Paulo


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