Resumo: A ausência da previsão no Código Civil de 2002 do direito real de habitação do companheiro sobrevivente relegado a segundo plano pelo legislador. A previsão da Lei 9.278/1996 do direito real de habitação aos companheiros e a sua não revogação pelo Código Civil de 2002 – Lei 10.406/2002. A posição dos Tribunais e Tribunais Superiores garantiu o direito dos companheiros pela aplicação da analogia, dos princípios e garantias fundamentais constitucionais que reconhecem o direito social à moradia e a união estável como entidade familiar. Recente decisão do Supremo Tribunal Federal – STF equiparou o companheiro ao cônjuge nos direitos sucessórios e estabeleceu a igualdade entre eles.
Palavras–Chave: Direito Real. Habitação. Companheiro. Omissão CC. 2002. Direitos sucessórios. Igualdade companheiros e cônjuges.
Abstract: The absence of the provision in the Civil Code of 2002 of the real right of housing of the surviving companion relegated to the background by the legislature. The prediction of Law 9.278/1996 of the real right of housing to companions and its non-revocation by the Civil Code of 2002 – Law 10,406/2002. The position of the Courts and High Courts guaranteed the right of the comrades to apply the analogy, the fundamental constitutional principles and guarantees that recognize the social right to housing and the stable union as a family entity. Recent decision of the Federal Supreme Court – STF equated the companion with the spouse in the inheritance rights and established the equality between them.
Keywords: Real Law. Housing. Life partner. CC omission. 2002. Inheritance rights. Equal partners and spouses.
Sumário: Introdução. 1. Aspectos gerais dos direitos reais sobre coisa alheia. 2. A previsão legal do direito real de habitação e a união estável. 3. A garantia do direito real de habitação ao companheiro sobrevivente sob a ótica dos tribunais. 4. A igualdade entre cônjuges e companheiros. Conclusão.
INTRODUÇÃO
Os direitos reais são estabelecidos taxativamente por lei, limitam os poderes conferidos aos proprietários.
A propriedade é um direito real sobre coisa própria e o direito real de habitação sobre coisas alheias.
O direito real de habitação consiste no direito de seu titular morar na casa alheia, não podendo alugar ou emprestar, tem cunho constitucional, é um direito social previsto no artigo 6º Constituição Federal de 1988 que garante o direito social à moradia.
O Código Civil de 2002 previu a garantia ao direito real de habitação de forma expressa ao cônjuge sobrevivente e silenciou quanto à garantia do mesmo direito ao companheiro sobrevivente.
A garantia ao direito real de habitação do companheiro sobrevivente está prevista na Lei 9.278/1996, não revogada expressamente pelo Código Civil de 2002.
O Código Civil de 2002 prevê no artigo 1.225 os direitos reais e nos artigos 1.414 a 1.416 o direito à habitação, os quais limita o pleno direito de propriedade, como é o caso do direito real de habitação concedido ao companheiro ou cônjuge sobrevivente que recai sobre o direito de propriedade dos herdeiros.
Com as mudanças significativas dos conceitos familiares, nos institutos jurídicos que regulam o casamento e suas consequências nos direitos sucessórios, é necessário a análise e busca por soluções que assegurem a igualdade nas relações familiares, especificamente para o companheiro sobrevivente ante a omissão do Código Civil de 2002 quanto ao direito real de habitação.
Os Tribunais ante ao caso concreto têm procurado soluções que visem assegurar ao cônjuge e companheiro a igualdade de direitos, garantindo também ao companheiro sobrevivente o efetivo direito à moradia que foi tratado de maneira desigual pelo Código Civil de 2002 não só quanto ao direito real de habitação, mas também quanto aos direitos sucessórios.
Decisão do Supremo Tribunal Federal – STF trouxe ao mundo jurídico inovação quanto aos direitos sucessórios dos companheiros, igualando-os aos cônjuges.
1. ASPECTOS GERAIS DOS DIREITOS REAIS SOBRE COISA ALHEIA
Os direitos reais são delimitados de forma taxativa, não há direito real senão os declarados por lei. As normas que regulam os direitos reais têm natureza cogente, imperativas, restringe a autonomia da vontade, às partes não é dada a prerrogativa de estabelecê-los.
Carlos Roberto Gonçalves (2006, p. 14) conceitua que “os direitos reais são criados pelo direito positivo por meio da técnica denominada numerus clausus. A lei os enumera de forma taxativa, não ensejando, assim, aplicação analógica da lei. ”
Nos termos do artigo 1.225 do Código Civil de 2002 são direitos reais: a propriedade; a superfície; as servidões; o usufruto; o uso; a habitação; o direito do promitente comprador do imóvel; o penhor; a hipoteca; a anticrese; a concessão de uso especial para fins de moradia. (Incluído pela Lei nº 11.481/2007); a concessão do direito real de uso; (Incluído pela Lei 13.465/2017); a laje. (Incluído pela Lei nº 13.465/2017).
Os direitos reais possuem eficácia absoluta, direito de sequela, direito de preferência, inerência ou aderência e limitado, vistos como um poder direto e imediato sobre a coisa, classificados em direito real sobre coisa própria; direito real de aquisição; direito real de garantia; direito real sobre coisa alheia.
A propriedade é um direito real sobre coisa própria e o Código Civil de 2002 no artigo 1.228 Código Civil não a define, apenas enuncia os poderes do proprietário e lhe faculta os direitos de usar, gozar e dispor da coisa, reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
Conforme Luiz Antonio Scavone Junior (2012, p. 07) “O Código Civil não define a propriedade, mas o proprietário, o que faz a partir dos atributos da propriedade.
Certo é que a noção de propriedade está esculpida no estudo dos direitos reais do Código Civil e, não obstante, é também uma garantia constitucional preceituada no art.5ª, inc. XXII, da Constituição Federal.
Sendo assim, a propriedade nada mais é que o direito real de usar, fruir, dispor e reivindicar a coisa sobre a qual recai, respeitando sua função social. ”
A propriedade é a matriz dos direitos reais, sobre ela recai restrições que limitam os poderes inerentes ao proprietário. Ao limitar algum dos direitos do proprietário e transferi-lo para um terceiro, surge para este um direito real sobre coisa alheia e sobre esta propriedade recai mais de um direito ao mesmo tempo: o direito real de propriedade que fica temporariamente limitado e o direito real sobre coisa alheia, como ocorre no direito real de habitação.
Essa limitação é temporária, após cumprido o prazo ou termo, a propriedade volta para as mãos de seu proprietário que passa a ter novamente todos os poderes elencados no artigo 1.228 do Código Civil de 2002, como no caso da extinção do direito real de habitação que tenha recaído sobre a propriedade alheia.
O direito de real de habitação consiste no direito de seu titular morar na casa alheia, não podendo alugar ou emprestar. Trata-se de um direito real temporário e personalíssimo, que se extingue caso seja utilizado para outros fins diversos da moradia de seu titular e familiares ou ocorra o falecimento de seu titular.
A respeito escreveu Carlos Roberto Gonçalves (2006, p. 475) “O instituto em apreço assegura ao seu titular o direito de morar e residir na casa alheia. Tem, portanto, destinação específica: servir de moradia ao beneficiário e sua família. Não podem alugá-la ou emprestá-la. Acentua-se, destarte, a inacessibilidade assim do direito quanto ao seu exercício. ”
Os artigos 1.414 a 1416, todos do Código Civil de 2002, regulam o direito real de habitação e em razão de sua semelhança com o usufruto o código prevê que seja aplicada à habitação as disposições relativas ao usufruto, no que não for contrário à sua natureza.
“Art. 1.414. Quando o uso consistir no direito de habitar gratuitamente casa alheia, o titular deste direito não a pode alugar, nem emprestar, mas simplesmente ocupá-la com sua família.
Art. 1.415. Se o direito real de habitação for conferido a mais de uma pessoa, qualquer delas que sozinha habite a casa não terá de pagar aluguel à outra, ou às outras, mas não as pode inibir de exercerem, querendo, o direito, que também lhes compete, de habitá-la.
Art. 1.416. São aplicáveis à habitação, no que não for contrário à sua natureza, as disposições relativas ao usufruto. ”
O direito real de habitação previsto no artigo 1.225, inciso VI, do Código Civil de 2002, é um tipo de uso especial, garante apenas o direito de habitar, ele se divide em seu titular usar o bem para fins de moradia, remanescendo ao proprietário o direito de dispor e fruir.
2. A PREVISÃO LEGAL DO DIREITO REAL DE HABITAÇÃO E A UNIÃO ESTÁVEL
O direito real de habitação já fazia parte do direito sucessório brasileiro desde o Código de Civil de 1916, o qual conferiu no artigo 1.611, §2º, ao cônjuge sobrevivente, casado sob o regime de comunhão universal, o direito real de habitação, enquanto viver e permanecer viúvo e desde que fosse o único bem daquela natureza a inventariar, alteração introduzida pela Lei 4.121 de 1962, Estatuto da Mulher Casada.
Na década de 1980, iniciou-se o processo de democratização que culminou em transformações no plano interno, tendo como marco inicial a Constituição Federal de 1988, pelo qual o Brasil se tornou signatário de vários Tratados e Convenções Internacionais em que os direitos humanos foram elevados ao grau máximo de proteção, com isso o direito à moradia foi elevado a nível constitucional instituída de forma indireta, não existia na forma expressa, mas de maneira implícita.
Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a Lei 8.971, de 29 de dezembro de 1994, garantiu os direitos sucessórios provenientes da união estável e a Lei n.º 9.278, de 10 de maio de 1996 garantiu o direito real de habitação em favor do companheiro sobrevivente, nos termos do artigo 7º, parágrafo único e concedeu ao companheiro o mesmo tratamento dado pelo Código Civil de 1916 ao cônjuge, porém não ressalvou a necessidade de ser único bem daquela natureza a inventariar.
“Art. 1º É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família.
Art. 7° Dissolvida a união estável por rescisão, a assistência material prevista nesta Lei será prestada por um dos conviventes ao que dela necessitar, a título de alimentos.
Parágrafo único. Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família. ”
A Lei 9.278/1996 regulamentou o parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição Federal definiu a união estável como a convivência duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituir família e não estipulou prazo mínimo de convivência para o seu reconhecimento. A união estável foi equiparada ao instituto do casamento, vez que ambos são considerados como entidade familiar.
“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. “
O direito real de habitação tem o escopo de proteger a moradia, direito social incluído no rol do artigo 6º da Constituição Federal de 1988, entretanto, nas relações jurídicas ocorre por ocasião da garantia de tal direito ao cônjuge sobrevivente, de forma expressa no artigo 1.831 do Código Civil de 2002, o qual se omitiu quanto à previsão do direito real de habitação do companheiro, já previsto na Lei 9.278/1996, não revogada expressamente pelo Código Civil de 2002.
“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. “
A Emenda Constitucional nº. 26 de 14 de fevereiro de 2000 alterou a redação do artigo 6º da Constituição Federal, que originalmente tutelou o direito social e acresceu em seu rol o direito à moradia, tornando-o expresso. Essa alteração deu maior relevância ao direito real de habitação e conferiu ao Estado e à sociedade a necessidade de uma prestação mais efetiva de sua garantia.
O legislador ao elaborar o texto da Lei 10.406/2002, atual Código Civil Brasileiro, previu o direito real de habitação apenas ao cônjuge sobrevivente, não restringiu o regime de bens adotado no casamento, estendeu o direito real de habitação a qualquer regime de bens adotado, mas se calou sobre a necessidade da permanência ou não do estado de viuvez que constavam no Código Civil de 1916 e manteve a necessidade do bem ser o único daquela natureza a inventariar.
”Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar. “
O Código Civil de 1916, tal qual o Código Civil de 2002, trouxeram como um dos requisitos para garantir o direito real de habitação ao cônjuge sobrevivente que o imóvel tem que ser o único daquela natureza a inventariar, enquanto, a Lei 9.278/96 que garantiu o direito real de habitação ao companheiro impôs que o direito será concedido enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família e nada falou sobre a possibilidade do companheiro ter outros bens de mesma natureza a inventariar, além daquele utilizado como residência da família.
Por conta da omissão do Código Civil de 2002 e o reconhecimento da união estável pelo artigo 226, § 3º, o direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro sobrevivente, seja pela previsão na Lei 9.278/96, seja por analogia, conforme Enunciado 117 da I Jornada de Direito Civil, a fim de garantir-lhe os mesmos direitos conferidos ao cônjuge sobrevivente.
“Enunciado 117 da I Jornada de Direito Civil: O direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não ter sido revogada a previsão da Lei 9.278, seja em razão da interpretação analógica do artigo 1.831, informado pelo artigo 6º, caput, da Constituição Federal de 1988. “
Nas palavras de Sérgio Eglesias Nunes de Souza o direito à moradia decorre do princípio da dignidade da pessoa humana, como segue:
“(…) o direito à moradia, por se constituir em direito essencial do ser humano, está protegido como decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana positivado no texto constitucional, como verdadeira consequência da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Resolução 217 A, III, da Assembleia Geral das Nações Unida, em 10.12.1948. De fato, há que se conceber o direito à moradia como elemento primacial do reconhecimento de sua dignidade enquanto pessoa, já que a questão da dignidade, não obstante tratar-se de um valor espiritual e moral, também é instituto de proteção jurídica, daí o direito à moradia estar intimamente relacionado a outros direitos (…).” (SOUZA, 2008, p. 131)
Quanto a previsão do direito real de habitação na união estável há aqui uma antinomia[i] entre o Código Civil de 2002 e a Lei 9.278/96, vez que o artigo 2.045 do Código Civil de 2002 revogou apenas o Código Civil de 1916 e nada falou sobre a legislação extravagante, restando, portanto, vigente a Lei 9.278/96, conforme dispõe o artigo 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB.
“Art. 2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§1o A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
§ 2o A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior. “
Como se vê o Código Civil de 2002 não revogou expressamente a Lei 9.278/1996, nem regulou a matéria trazida por ela ao que se refere ao direito real de habitação do companheiro sobrevivente.
3. A GARANTIA DO DIREITO REAL DE HABITAÇÃO AO COMPANHEIRO SOBREVIVENTE SOB A ÓTICA DOS TRIBUNAIS
A omissão do Código Civil de 2002 sobre o direito real de habitação do companheiro sobrevivente trouxe ao mundo jurídico questões a serem debatidas e solucionadas pelos Tribunais, que se incumbiram em garantir a proteção constitucional do direito à moradia, concedendo o direito real de habitação ao companheiro sobrevivente frente ao reconhecimento da união estável como entidade familiar.
A falta de previsão legal expressa no Código Civil de 2002, levou os Tribunais ante ao caso concreto solucionar os conflitos com base em princípios constitucionais, uso da analogia[ii] e aplicação de leis extravagantes como forma a garantir a dignidade da pessoa humana e o direito social à moradia.
Os Tribunais analisam as particularidades de cada conflito nas relações jurídicas e utilizam da razoabilidade para alcançar um resultado justo, de modo a não prejudicar o direito de um, em detrimento ao direito do outro, conferem vigência à Lei 9.278/96, não revogada expressamente pelo Código Civil de 2002 e a interpretam conforme a regra contida no artigo 226, § 3º, da CF/88, que reconheceu a união estável como entidade familiar.
A jurisprudência colacionada apresenta algumas situações já enfrentadas pelos Tribunais brasileiros acerca do tema.
O Superior Tribunal de Justiça – STJ conferiu vigência à Lei 9.278/1996, não revogada pelo Código Civil de 2002, fez prevalecer o princípio da especialidade, as garantias constitucionais fundamentais à moradia e a dignidade da pessoa humana.
“EMENTA: DIREITO CIVIL. SUCESSÃO. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. COMPANHEIRO SOBREVIVENTE. POSSIBILIDADE. VIGÊNCIA DO ART. 7° DA LEI N. 9.278/96. RECURSO IMPROVIDO.
1. Direito real de habitação. Aplicação ao companheiro sobrevivente. Ausência de disciplina no Código Civil. Silêncio não eloquente. Princípio da especialidade. Vigência do art. 7° da Lei n. 9.278/96. Precedente: REsp n. 1.220.838/PR, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/06/2012, DJe 27/06/2012.
2. O instituto do direito real de habitação possui por escopo garantir o direito fundamental à moradia constitucionalmente protegido (art. 6º, caput, da CRFB). Observância, ademais, ao postulado da dignidade da pessoa humana (art. art. 1º, III, da CRFB).
3. A disciplina geral promovida pelo Código Civil acerca do regime sucessório dos companheiros não revogou as disposições constantes da Lei 9.278/96 nas questões em que verificada a compatibilidade. A legislação especial, ao conferir direito real de habitação ao companheiro sobrevivente, subsiste diante da omissão do Código Civil em disciplinar tal direito àqueles que convivem em união estável. Prevalência do princípio da especialidade. 4. Recurso improvido. ” (STJ – Recurso Especial nº 1156744 (2009/0175897-8. MG))
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – RS reconheceu o direito real de habitação do companheiro nos termos do artigo 7º, parágrafo único da Lei 9.278/96, e negou provimento ao recurso de Apelação Cível em ação de imissão de posse[iii] por entender que os Apelantes não merecem ser imitidos na posse.
“APELAÇÃO CÍVEL. POSSE. AÇÃO DE IMISSÃO DE POSSE. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. INJUSTIÇA DA POSSE NÃO CONFIGURADA.
Ausente comprovação da injustiça da posse exercida pelo demandado, tendo em vista que a ocupação do imóvel está amparada pelo direito real de habitação, decorrente da união estável que manteve com a falecida, proprietária do bem. Confirmada a sentença de improcedência. NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO. UNÂNIME. ” (TJ/RS – Apelação Cível nº 70072316722) (grifo original)
No caso concreto, os Apelantes afirmaram não existir o direito real de habitação em favor do Apelado, vez que não se tratava de cônjuge, mas apenas companheiro da falecida e a Constituição Federal não igualou os direitos entre cônjuges e companheiros, bem como o Código Civil não outorgou o direito real de habitação ao companheiro sobrevivente, razões pelas quais requereram o reconhecimento do direito de imissão na posse por serem proprietários do bem, tese não acolhida pelo Relator.
O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais – MG, com base no mesmo direito real de habitação do companheiro, negou provimento à Apelação interposta pela excompanheira por ter contraído novas núpcias e determinou a desocupação do imóvel.
“EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE IMISSÃO NA POSSE – COMPANHEIRA – DIREITO REAL DE HABITAÇÃO – NOVO MATRIMÔNIO – REVOGAÇÃO DO DIREITO – SENTENÇA MANTIDA. 1. Por força da lei 9.278/1996, artigo 7°, parágrafo único à companheira possui direito real de habitação referente ao imóvel destinado à residência familiar. 2. Em 27 de setembro de 2014, a ex-companheira do falecido contraiu novo matrimonio. Diante desse contexto pede os autores a imissão na posse do bem. 3. A excompanheira de seu pai contraiu novo matrimonio, portanto, deve desocupar o bem, uma vez que desapareceu a condição de fragilidade diante da ausência de moradia. 4. Recurso conhecido e não provido. ” (TJ/MG- Apelação nª1.0026.15.000677-8/001)
Mais uma vez o Tribunal conferiu vigência à Lei 9.278/1996, que regulamentou o direito real de habitação ao companheiro sobrevivente, pois traz em seu bojo a proibição do titular em gozo desse direito, contrair novas núpcias, o que conferiu aos herdeiros do imóvel o direito de imissão na posse. Nesse caso a causa da extinção do direito real de habitação da excompanheira do pai falecido foi o novo matrimonio.
O Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu o direito real de habitação ao cônjuge viúvo meeiro que contraiu novas núpcias por preencher os requisitos trazidos pelo Código Civil de 2002 e julgou improcedente a ação de arbitramento de aluguel proposta pelos filhos em face do pai.
“Ação de arbitramento de aluguel. Pretensão dos herdeiros, ora autores, a compelir o genitor a pagar aluguel pela permanência no imóvel, residência da família. Direito real de habitação. Proteção legal conferida ao cônjuge supérstite desde que o imóvel seja destinado à residência da família e que seja o único dessa natureza a inventariar, sem limitação de outra ordem. Direito que permanece ainda que convolada novas núpcias. Sentença de improcedência mantida. Recurso desprovido. ” (TJ/SP – Apelação nº 3000697-50.2013.8.26.0022)
Nesse caso prevaleceu a aplicação do artigo 1.831 do Código Civil de 2002, que garantiu o direito real de habitação ao cônjuge sobrevivente e nada disse a respeito de seu titular contrair novas núpcias, enquanto estiver no exercício desse direito, diferentemente da Lei 9.278/1996 que trouxe a proibição do companheiro contrair novas núpcias.
O Superior Tribunal de Justiça ao apreciar conflito de direito entre coproprietários e o direito real de habitação, deu provimento ao Recurso Especial nº 1.184.492 e fez prevalecer o direito dos coproprietários em ação reivindicatória ajuizada pelos cunhados do cônjuge sobrevivente com o intuito de reaver o imóvel que ela ocupava, cuja copropriedade pertence aos autores e ao falecido marido da ré, configurando a colisão entre o direito de propriedade dos recorrentes e o direito real de habitação.
“CIVIL. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. INOPONIBILIDADE A TERCEIROS COPROPRIETÁRIOS DO IMÓVEL. CONDOMÍNIO PREEXISTENTE À ABERTURA DA SUCESSÃO. ART. ANALISADO: 1.611, § 2º, do CC/16.
1. Ação reivindicatória distribuída em 07/02/2008, da qual foi extraído o presente recurso especial, concluso ao Gabinete em 19/03/2010.
2. Discute-se a oponibilidade do direito real de habitação da viúva aos coproprietários do imóvel em que ela residia com o falecido.
3. A intromissão do Estado-legislador na liberdade das pessoas disporem dos respectivos bens só se justifica pela igualmente relevante proteção constitucional outorgada à família (art. 203, I, da CF/88), que permite, em exercício de ponderação de valores, a mitigação dos poderes inerentes à propriedade do patrimônio herdado, para assegurar a máxima efetividade do interesse prevalente, a saber, o direito à moradia do cônjuge supérstite.
4. No particular, toda a matriz sociológica e constitucional que justifica a concessão do direito real de habitação ao cônjuge supérstite deixa de ter razoabilidade, em especial porque o condomínio formado pelos irmãos do falecido preexiste à abertura da sucessão, pois a copropriedade foi adquirida muito antes do óbito do marido da recorrida, e não em decorrência deste evento.
5. Recurso especial conhecido e provido. ” (STJ – Recurso Especial nº 1184492 (2010/0037528-2) )
No caso, na decisão proferida no Recurso de Revista prevaleceu o direito dos coproprietários em detrimento do direito real de habitação do cônjuge sobrevivente, sob o argumento que entre a cônjuge sobrevivente e os irmãos do marido falecido não há elos de solidariedade, existe apenas vínculo de afinidade, que se extingue com a dissolução do casamento, reconhecer o direito real de habitação ao cônjuge sobrevivente seria admitir direito real de habitação sobre imóvel de terceiros, visto que o condomínio entre o marido do cônjuge sobrevivente e os irmãos preexistia à abertura da sucessão.
A respeito da solidariedade familiar escreveu Maria Berenice Dias (2016, p. 51) : “A solidariedade é o que cada um deve ao outro. Esse princípio, que tem origem nos vínculos afetivos, dispõe de acentuado conteúdo ético, pois contém em suas entranhas o próprio significado da expressão solidariedade, que compreende a fraternidade e a reciprocidade. A pessoa só existe enquanto coexiste (…). “
Tanto o Superior Tribunal de Justiça, quanto os Tribunais de Justiça dos Estados, têm utilizado da razoabilidade e das particularidades inerentes a cada caso concreto ao reconhecerem ou não o direito real de habitação, quer seja aos companheiros ou aos cônjuges sobreviventes. A omissão do Código Civil de 2002, quanto à previsão do direito real de habitação do companheiro sobrevivente faz com que os Tribunais se utilizem da legislação extravagante que trata do assunto, princípios gerais de direito e a observância das garantias dos direitos constitucionais fundamentais.
4. A IGUALDADE ENTRE CÕNJUGES E COMPANHEIROS
Como se não bastasse o Código Civil de 2002 nada dispor sobre o direito real de habitação do companheiro sobrevivente, também o relegou a segundo plano quando determinou seus direitos sucessórios no artigo 1.790 de forma diversa da previsão dada ao direito sucessório dos cônjuges, previsto no artigo 1.829, denotando a flagrante desigualdade de tratamento entre a união estável e o casamento:
“Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: (Vide Recurso Extraordinário nº 646.721) (Vide Recurso Extraordinário nº 878.694)
I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança. ”
“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: (Vide Recurso Extraordinário nº 646.721) (Vide Recurso Extraordinário nº 878.694)
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais. ”
Maria Berenice Dias se manifestou a respeito dessa desigualdade (2013, p. 72) “O companheiro nem foi incluído na ordem de vocação hereditária (CC.1.829). O seu direito encontra-se previsto entre as disposições da sucessão em geral, em um único artigo com quatro incisos (CC. 1.790). Este tratamento diferenciado não é somente perverso. É flagrantemente inconstitucional. A união estável é reconhecida como entidade familiar pela Constituição Federal (CF 226 § 3.º), que não concedeu tratamento diferenciado a qualquer das formas de constituição da família. ”
Em recente decisão do STF – Supremo Tribunal Federal, julgou o Recurso Extraordinário nº 878694, sob a Relatoria do Ministro Roberto Barroso e declarou inconstitucional o artigo 1.790 do Código Civil de 2002, que dispõe sobre o direito sucessório dos companheiros e equiparou-os aos cônjuges, afastando as diferenças entre eles para fins de sucessão.
“RE/878694 – RECURSO EXTRAORDINÁRIO
Decisão: O Tribunal, apreciando o tema 809 da repercussão geral, por maioria e nos termos do voto do Ministro Relator, deu provimento ao recurso, para reconhecer de forma incidental a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002 e declarar o direito da recorrente a participar da herança de seu companheiro em conformidade com o regime jurídico estabelecido no art. 1.829 do Código Civil de 2002, vencidos os Ministros Dias Toffoli, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, que votaram negando provimento ao recurso. Em seguida, o Tribunal, vencido o Ministro Marco Aurélio, fixou tese nos seguintes termos: “É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002”. Ausentes, justificadamente, os Ministros Dias Toffoli e Celso de Mello, que votaram em assentada anterior, e, neste julgamento, o Ministro Luiz Fux, que votou em assentada anterior, e o Ministro Gilmar Mendes. Não votou o Ministro Alexandre de Moraes, sucessor do Ministro Teori Zavascki, que votara em assentada anterior. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 10.5.2017. ” (STF – RE/878694 (AC 10439091037481001))
Essa decisão priorizou a entidade familiar de forma igualitária, quer seja oriunda do casamento ou da união estável, vez que consoante a previsão na Constituição Federal de 1988 os legisladores já reconheceram a união estável como entidade familiar.
O Supremo Tribunal Federal – STF ao declarar a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil de 2002 afastou as diferenças entre cônjuges e companheiros em relação aos direitos sucessórios e entendeu que ao companheiro deve ser aplicado o estabelecido no artigo 1.829 do Código Civil de 2002.
Em que pese a existência no ordenamento jurídico dois dispositivos que regulamentam os direitos reais de habitação, um destinado aos companheiros sobreviventes, Lei 9.278/1996, outro destinado ao cônjuge sobrevivente, artigo 1.831 do Código Civil de 2002 a decisão do Supremo Tribunal Federal – STF afastou a desigualdade entre cônjuges e companheiros, para fins de direitos sucessórios. Esse entendimento deve ser utilizado também quando tratar-se do direito real de habitação que é passível de aplicação somente após a abertura da sucessão pelo falecimento do companheiro ou cônjuge
Em julgamento no dia 26 de julho de 2017, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, RS fundamentou sua decisão na igualdade de direitos sucessórios entre cônjuges e companheiros e concedeu à companheira sobrevivente o direito de permanecer no imóvel por entender que o artigo 1.831 do Código Civil se estende aos companheiros.
“(…) Destaco, ainda, que a ausência de previsão expressa para tal direito ao companheiro, no Código Civil vigente, não exclui o direito real de habitação àqueles que conviveram em união estável, pois não houve revogação expressa de tal direito previsto no art. 7º, parágrafo único, da Lei nº 9.278/96, e recente decisão do STF assegura ao companheiro igualdade de direito sucessórios, estando o direito real de habitação previsto para o cônjuge no art. 1.831 do CCB, o que se estende também para os companheiros.” (TJ/RS- Agravo de Instrumento nº 70072917263)
No mesmo sentido havia se posicionado a Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, RS, que reconheceu a aplicação do artigo 1.831 do Código Civil de 2002 ao companheiro e garantiu o direito real de habitação à companheira sobrevivente.
“APELAÇÃO CÍVEL. ANULAÇÃO DE PARTILHA. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO.
1. Considerando a previsão legal que outorga à companheira direitos de meação e também participação na sucessão, e sendo incontroversa a união estável ao tempo do óbito do autor da herança, bem como que a apelada não participou da escritura pública de inventário e partilha, somados aos indícios de que houve no curso da convivência realização de benfeitorias nos terrenos do de cujus, há que ser mantida a sentença que declarou a nulidade da escritura pública de inventário e partilha.
2. O instituto do direito real de habitação visa a proteger aqueles que constituíram uma entidade familiar e viviam sob o mesmo teto, sendo que o art. 1.831 do CCB assegura a permanência da autora no imóvel no qual residia com o companheiro. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. ” (TJ/RS – Apelação Cível nº 70072870603)
A igualdade aos direitos sucessórios reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal entre cônjuges e companheiros privilegiou o tratamento isonômico previsto na Constituição Federal de 1988, bem como afastou o retrocesso trazido ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Código Civil de 2002 relacionado às Leis 8.971/1994 e 9.278/1996 que regulavam a união estável anteriores ao referido código.
Dada a equiparação entre essas duas relações familiares de rigor a aplicação do artigo 1.831 do Código Civil de 2002 que garante o direito real de habitação ao cônjuge sobrevivente para regular as relações entre companheiros sobreviventes e garantir-lhes o direito social à moradia e o tratamento igualitário constitucionalmente previsto.
CONCLUSÃO
O direito real de habitação do companheiro é direito personalíssimo, e, portanto, não é permitido sob pretexto algum cedê-lo para terceiros, emprestar o bem, ou alugá-lo, sob pena de sua extinção. Confere ao seu titular ocupar gratuitamente a propriedade alheia para sua moradia e de sua família enquanto viver, por se tratar de um direito temporário, intransferível e se extingue com a morte de seu titular.
Como visto em alguns dos julgados juntados não basta ser companheiro ou cônjuge sobrevivente, há outros requisitos que estão sendo levado em conta no momento de reconhecer ou não o direito real de habitação, não estando, os julgadores se restringindo a existência ou vigência desta ou daquela lei.
No ordenamento jurídico brasileiro, o direito real de habitação tem previsão no artigo 1.225, do Código Civil de 2002. O artigo 1.831 do mesmo código trouxe a previsão do direito real de habitação apenas ao cônjuge sobrevivente e se omitiu quanto ao direito real de habitação do companheiro.
O parágrafo único do artigo 7º da Lei 9.278/1996 prevê o direito real de habitação ao companheiro sobrevivente na união estável, reconhecida como entidade familiar no artigo 226 §3º, da Constituição Federal de 1988.
Para suprir a omissão normativa do Código Civil, os tribunais amparados pelas garantias constitucionais fundamentais têm concedido tanto ao companheiro sobrevivente, quanto ao cônjuge sobrevivente o direito real de habitação, vez que entendem que a Lei que regula o direito real de habitação do companheiro sobrevivente não foi revogada pelo Código Civil de 2002, que regulou o direito real de habitação apenas ao cônjuge sobrevivente.
O Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 878694, declarou a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, que trata dos direitos sucessórios dos companheiros e declarou o direito da companheira a participar da herança de seu companheiro em conformidade com o regime jurídico estabelecido no art. 1.829 do Código Civil de 2002.
Desse modo, o direito real de habitação do cônjuge sobrevivente, previsto no artigo 1.831 do Código Civil, pode pelo mesmo entendimento ser estendido ao companheiro sobrevivente, em respeito à igualdade e ao direito social à moradia previsto no artigo 6º da Constituição Federal de 1988.
Importante, frisar, que a adequação a cada caso concreto se faz imprescindível para se chegar a um resultado equânime e justo após a igualdade reconhecida entre cônjuges e companheiros pelo Supremo Tribunal Federal e o direito real de habitação ao cônjuge sobrevivente, previsto no artigo 1.831 do Código Civil de 2002, deve ser aplicado ao companheiro sobrevivente.
Informações Sobre o Autor
Maria Leonice Basso Amarante
Advogada formada pela FDSBC- Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e pós graduanda em Civil e Processo Civil pela Faculdade Legale SP