Resumo: Este trabalho faz uma análise interdisciplinar do Direito brasileiro em seus aspectos socioculturais, com a intenção de oferecer uma alternativa à visão tradicional a qual o coloca como uma ciência restrita a um conjunto de normas positivadas. Cogita acerca das relações entre a esfera jurídica e a esfera sociocultural, no sentido de se demonstrar como valores e fatos culturais implicam percepções diversas no discurso forense, de forma de o Direito não pode fechar os olhos acerca da realidade em que se encontra inserido. Esta proposta deve estar inserida em uma perspectiva que propõe que o Direito seja visto não apenas em sua perspectiva legal, mas, também, como objeto do campo cultural, ultrapassando limites do positivismo jurídico. Desse modo, nota-se que, atualmente, há uma possível correlação entre mudanças culturais que presenciamos no cenário brasileiro e transformações na esfera jurídica que nos parecem seguir em direção bastante similar, na medida em que mudanças no Direito podem implicar mudanças culturais, e vice-versa.
Palavras chave: Direito. Cultura. Interdisciplinaridade. Produto Cultural. Pós-positivismo.
Abstract: This work makes an interdisciplinary analysis of Brazilian Law in its sociocultural aspects, with the intention of offering an alternative to the traditional view, as a science and a set of positive norms. Cogita on the relations between a legal sphere and a sociocultural sphere, without the sense of showing how cultural values and facts imply different perceptions without forensic discourse, so that Law can not close its eyes on the reality in which it is inserted. This proposal must be inserted in a perspective that proposes that the Law be seen not only in its legal perspective, but also as an object of the cultural field, beyond the limits of legal positivism. Thus, there is a possible correlation between cultural changes that we witness in the Brazilian scenario and transformations in the legal sphere that seem to follow us in a very similar direction, since changes in the Law may imply cultural changes, and vice -versa.
Key words: Law. Culture. Interdisciplinarity. Pluralism. Cultural Product. Post-positivism.
Sumário: 1 Introdução; 2 A interdisciplinaridade na ciência jurídica; 3 O Direito como um produto cultural; 4 Conclusão; Referências.
1. Introdução
Tradicionalmente, o campo do Direito tem uma visão voltada para um conjunto de normas positivadas, leis escritas em um documento emitido pelo Poder Legislativo, de modo que os costumes são colocados como algo secundário, dando-se ênfase às normas e regramentos expressos no ordenamento. Paralelamente, o campo da sociocultural abrange um conjunto de práticas adotadas por certo grupo ou segmento da sociedade, práticas essas que se diversificam conforme haja necessidade de adaptações, novos hábitos e crenças, refletindo seu caráter heterogêneo.
Muitas vezes, o Direito é compreendido como dissociado de seu contexto social, tendo em vista seu caráter imparcial e seu status de norma positivada pelo Estado. A desconsideração do Direito costumeiro chamou nossa atenção para a validade de uma análise interdisciplinar que visse o Direito como uma ciência que não está isolada da cultura e da diversidade cultural que marca as sociedades contemporâneas, nem está cega perante as manifestações expressas nos setores organizados da sociedade civil.
Observa-se que, no Brasil, há poucos trabalhos e pesquisas interdisciplinares as quais examinam o fenômeno jurídico como objeto dos estudos culturais, havendo uma provável lacuna tanto nos estudos jurídicos quanto nos estudos culturais no que tange a abordagens do Direito como instância cultural. Tal fato pode se dar porque a ciência jurídica é vista como um elemento estático, já que aborda um conjunto de regras e instituições preestabelecidas, o que acaba limitando o interesse dos cientistas sociais; do mesmo modo que os pesquisadores do Direito não veem esse estudo interdisciplinar como uma área nobre e parecem não perceber suas contribuições para uma visão mais ampla do universo jurídico.
Com o intuito de se aprofundar nessa questão, escolheu-se examinar a justiça em sua visão interdisiplinar, de modo que o Direito pode ser visto como um conjunto de pressupostos que envolvem crenças e fatores sociais.
2. A interdisciplinaridade na ciência jurídica
Na atualidade, vêm perdendo espaço estudos que colocam a ciência jurídica como um campo isolado das demais e restrito ao estudo de regras positivadas. Apesar de muitos estudiosos do Direito ainda o verem como um conhecimento fechado e autossuficiente por se tratar se normas arroladas em um texto objeto de uma disciplina, esse entendimento vem sendo questionado uma vez que não se pode interpretar uma regra dissociada do seu contexto sociocultural.
Contudo, essa questão ainda tem sido objeto de grande resistência, pois muitos teóricos não consideram relevante atrelar à ciência forense estudos de outras áreas como sociologia, história, filosofia, entendendo, até mesmo, que, ao fazem tal fato, seu conhecimento se empobreceria já que no ramo da academia, tecnicamente, interessa muito mais desvendar cada norma em si do que aprofundar e interligar os saberes. Não se desconhece o preconceito existente ainda por parte dos teóricos tanto do campo das ciências jurídicas quanto por parte das demais ciências sociais aplicadas, especialmente quando pretende se atrelar estudos interdisplinares que não contêm “regras predeterminadas que possam ser aplicadas rigidamente ao processo de avaliação” (LEIS, 2011, p. 112).
Acontece que quando aproximamos a alçada jurídica dos estudos sociais, históricos e culturais, pretendemos compreender a lei como uma instância que reflete na sociedade e que precisa estar atrelada aos fatores culturais e sociais, sob pena de perder seu aspecto valorativo.
Se não bastasse, em uma sociedade plural e desigual, poderes locais e sociabilidades alternativas podem ter seus direitos expressos em normas informais, normalmente criadas pela figura de um líder local. E essas normas retiram do Poder Público a centralidade de elaboração de regras, reconhecendo que, embora o líder local não tenha sido eleito democraticamente, há um processo de legitimação social na medida em que as normas são mais próximas de seus destinatários e dentro da realidade vivenciada.
Assim sendo, um Estado que tradicionalmente era positivista, passa a ter que abrir espaço para uma visão mais social, não podendo fechar os olhos para nova realidade que lhe sonda. Sabe-se que em princípio os estudos jurídicos não aprofundam rigorosamente em pesquisas envolvendo instituições sociais informais que são regidas por regras diferentes das do direito posto brasileiro. Tal fato pode decorrer de a hermenêutica forense, muitas vezes, considerar apenas as leis formais elaboradas pelo Poder Público como instituições reais e, portanto, merecedoras de uma análise rigorosa. Desse modo, “os discursos produzidos no (e pelo) direito estatal são, em sua maioria, de ordem exclusivista e de negação de toda e qualquer prática que vise estabelecer outra ordem, que não aquela ditadas pelos representantes estatais.” (SILVA, 2012, p. 16).
Ocorre que os direitos informais são uma realidade no cenário brasileiro. Processos decorrentes de lutas por reconhecimentos são problemas que o campo teórico e empírico jurídico não pode fechar os olhos.
Observa-se que, no Brasil, há poucos trabalhos e pesquisas interdisciplinares os quais examinam os direitos informais sob a perspectiva sociocultural paralela à tradicionalmente conhecida, havendo uma provável lacuna tanto nos estudos jurídicos quanto nos estudos sociais. Tal fato pode ocorrer porque a ciência jurídica é vista como um elemento estático, já que aborda um conjunto de regras e instituições preestabelecidas, o que acaba limitando o interesse dos cientistas sociólogos; do mesmo modo, os pesquisadores do Direito não veem esse estudo interdisciplinar como uma área nobre e parecem não perceber suas contribuições para uma visão mais ampla do universo jurídico.
Isto significa que entendemos que o corpus teórico dos estudos sociais nos servem de referência para trazermos à baila um outro olhar sobre este campo, perguntando sobre a permeabilidade das fronteiras imaginárias entre justiça e sociologia.
A proposta analítica que se pretendeu realizar aqui, ao não desassociar o campo jurídico do campo sociocultural, faz crítica às abordagens redutoras e que parecem isolar o campo jurídico de uma dada engrenagem social. Desse modo, reconhece que a abordagem interdisciplinar é a mais adequada no intuito de se trabalhar um possível cotejamento com o processo se luta por reconhecimento e o modelo ideal de justiça no contexto da democracia brasileiro.
“O conhecimento interdisciplinar, até bem pouco tempo condenado ao ostracismo pelos preconceitos positivistas, fundados numa epistemologia da dissociação do saber, começa a ganhar direitos de cidadania, a ponto de correr o risco de converter-se em moda. Incessantemente invocado e levado a efeito nos domínios mais variados de pesquisa, de ensino e de realizações técnicas, o “fenômeno” interdisplinar está muito longe de ser evidente.” (JAPIASSU, 1976, p. 30).
Com efeito, torna-se pressuposto dessa pesquisa a utilização do elemento da interdisciplinaridade, de modo que o especialista do Direito, em especial, transcenda sua própria especialidade, tendo consciência das limitações do campo forense para explicar a emergência e proliferação de direitos informais, o que o leva a buscar contribuições das outras disciplinas. (JAPIASSU, 1976, p. 26).
Nessa vertente, assume que o Direito não pode ser visto apenas como a norma positivada, desvinculada da realidade, nem como o conjunto de valores seguidos socialmente. Na verdade, o problema dos direitos informais tem sua origem social e história, no processo de luta de reconhecimento, de modo que o doutrinador jurídico não pode se desvincular dos fatores que foram essenciais para chegarem a realidade atual da proliferação do pluralismo jurídico.
Segundo Leis (2011, p. 115), os recursos interdisciplinares funcionam como meio de se reproduzir a realidade que os contextualizam como modo de se solucionar efetivamente problemas que não poderiam ser resolvidos por uma só disciplina.
“Interdisciplinaridade como um processo de resolução de problemas ou de abordagem de temas que, por serem muito complexos, não podem ser trabalhados por uma única disciplina. Dessa forma, a interdisciplinaridade é percebida em uma integração de visões disciplinares diversas, construindo assim uma perspectiva mais abrangente” (LEIS, 2011, p. 107).
Desse modo, propõe-se um diálogo entre as ciências sociais aplicadas a fim de se reconfigurar os pontos de vista e as visões pré-estabelecidas que se tem de mundo, a fim de se compreender que o fenômeno humano é um só (JAPIASSU, 1976, p. 70-71), e, por isso, deve ser estudado em sua totalidade, não podendo o Direito restringir ao estudo apenas das normas positivadas porque assim foram impostas por uma ordem oficial do Estado.
3. O Direito como um produto cultural
Esta proposta está ancorada em uma interpretação da esfera jurídica como uma instância que é também cultural. Isto significa que entendemos que o corpus teórico dos estudos culturais nos servem de referência para trazermos à baila um outro olhar sobre este campo, perguntando sobre a permeabilidade das fronteiras imaginárias entre justiça e cultura, pelos impactos das transformações culturais no meio jurídico e vice-versa. A proposta analítica que se pretendeu realizar aqui, ao não desassociar o campo jurídico do campo cultural, faz crítica às abordagens redutoras e que parecem isolar o campo jurídico de uma dada engrenagem social. Por ser uma questão complexa, entende-se que ela não pode ser compreendida tendo como referência um único campo de conhecimento e sim pela conexão de perspectivas mais integradas.
Quando aproximamos a alçada jurídica dos estudos culturais, pretendemos compreender a lei não em relação à cultura, como disciplinas autônomas, mas dar sentido à lei como uma instância geradora de cultura e que também reflete a cultura. Esse pressuposto torna necessário estabelecer a natureza da correlação entre a seara jurídica e a cultural, evidenciando que é preciso interpretar a legislação em termos culturais, bem como reconhecer que os valores culturais podem fundamentar precedentes jurisprudenciais.
Uma análise cultural do Direito demanda um trabalho interdisciplinar envolvendo as ciências sociais, abrangendo um balanço do que a cultura pode significar para o Direito e vice-versa. Assim como hábitos, crenças e estilos de vida, a justiça é um componente relevante da cultura, incluindo todas as suas vertentes, como regras e princípios articulados no ordenamento jurídico. Paralelamente, o campo jurídico não pode desconsiderar o contexto social em que está incluída e elaborada, não devendo a justiça se restringir às normas que a conduz (MEZEY, 2001, p. 35).
Para se analisar o Direito sob a perspectiva cultural, é importante partir do conceito de cultura e de suas implicações, com o intuito de compreender em que medida a cultura pode se correlacionar à esfera jurídica e vice-versa. Desse modo, propõe-se averiguar seu conceito clássico, bem como seu conceito atual, o que demanda uma apreciação reflexiva das ciências sociais, de forma a se colacionar a identidade e tradições de grupos ou comunidades com o constante processo de transformação da sociedade moderna.
Tradicionalmente, via-se a cultura sob o ponto de vista antropológico, como fruto das atividades do ser humano e de suas práticas sociais (HALL, 2003, p. 136). Nesta visão, englobam-se significados que são construídos na sociedade abrangendo modos de vida e práticas cotidianas, além de incluir uma série de noções filosóficas.
“Se a palavra «cultura» descreve uma decisiva transição histórica, ela também codifica várias questões filosóficas fundamentais. Num único termo, os contornos de questões como liberdade e determinismo, actividade e resistência, mudança e identidade, o que é dado e o que é criado, surgem difusamente”. (EAGLETON, 2003, p. 12-13).
Extrai-se desse contexto uma concepção de cultura que se relacionava a historicidade, tendo em vista que reflete o conjunto de fatores sociais e atividades no ambiente no qual a sociedade se encontra. Além de tudo, a própria concepção de cultura pode variar, uma vez que as acepções particulares sobre os fenômenos históricos relacionados aos estilos de vida também variam.
Dessa maneira, em uma comunidade, podem existir várias culturas diferentes, o que, até mesmo, pode gerar interesses antagônicos. O Estado, para cumprir seu papel social, deve harmonizar as relações entre culturas diversas para que haja respeito e convivência mútua, até porque muitas culturas tendem a se afirmar para garantirem sua hegemonia, confrontando com as demais culturas da sociedade (EAGLETON, 2003, p. 18).
Todavia, a sociedade atual está em constante processo de alterações e rupturas. Cesnik e Beltrame (2005, p. 18) afirmam que o conceito de cultura é atrelado às práticas globais, o que lhe atribui um caráter muito mais móvel do que estático, não sendo viável se pensar em cultura baseando nas amarras da sociedade local. Nessa linha de reflexão, o reconhecimento da cultura não se dá mais pela valorização da devoção ou erudição. Cultura deve ser analisada sob seu aspecto histórico e econômico, bem como deve ser constantemente questionada. Segundo relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, 2009, p. 09) sobre diversidade cultural e diálogo intercultural, “as culturas não são entidades estáticas nem encerradas em si mesmas. Uma das principais barreiras que dificultam o diálogo intercultural é o nosso hábito de concebê-las como algo fixo, como se houvera linhas de fratura que as separam”.
Nesse sentido, pode-se compreender por cultura um “conjunto dos processos sociais de significação ou, de modo mais complexo, cultura abarca o conjunto de processos sociais de produção, circulação e consumo da significação na vida social” (CANCLINI, 2009, p. 41). Conforme explica Arocena (2012, p. 25), cultura comporta um conjunto de significados compartilhados que orientam as condutas das pessoas e proporciona um entendimento entre diversas crenças, convicções ou hábitos que coexistem em uma sociedade.
Ocorre que a complexidade das culturas, processos de diásporas e misticismos, decorrentes de transformações no cenário cultural, acabaram intensificando o processo de hibridismo cultural, refletindo o caráter de heterogeneidade. Sob esse parâmetro, vale a pena lembrar a concepção de cultura híbrida. Segundo Canclini (2000, p. 285), cultura híbrida decorre do processo de expansão urbana permitindo que diversas comunidades se interajam, rompendo liames que separavam as culturas tradicionais, locais e homogêneas das culturas mais modernas. Esse termo é utilizado no sentido de abranger “diversas mesclas interculturais” (CANCLINI, 2000, p. 19), afastando barreiras que possam existir entre diferentes culturas inseridas em uma mesma comunidade.
O que se propõe neste trabalho é abordar esta relação entre cultura e Direito sob duas vertentes. A primeira delas analisa a cultura como um direito fundamental do ser humano, previsto em um ordenamento jurídico de forma expressa, indispensável ao exercício da cidadania. Já sob o segundo aspecto, trabalha-se com a esfera jurídica sob uma perspectiva dos estudos culturais, o que se trata, especificamente, do objeto a ser desenvolvimento nesse capítulo.
Com relação à cultura como um direito fundamental do ser humano, nota-se que tal regra, no caso brasileiro, é uma garantia expressa na Constituição Federal de 1988, a qual impõe que é incumbência União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios proporcionar acesso à cultura como meio de se reduzir as desigualdades sociais e de se ajustar uma melhor qualidade de vida. Ao se reconhecer a diversidade cultural como um Direito, firma-se a identidade de um grupo ou segmento social, o que propicia um equilíbrio no ambiente social e respeito às disparidades. Tanto é que o próprio Estado recebe a incumbência de garantir a todos o integral exercício dos direitos culturais, bem como apoiar e incentivar a valorização e difusão de manifestações culturais[1]. Na oportunidade, cabe lembrar que o direito à cultura já era reconhecido expressamente desde a Declaração Universal de Direitos Humanos em 1948, a qual dispõe que todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, já que a cultura consiste em um direito indispensável à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade (NAÇÕES UNIDAS, 1948).
Sob outro enfoque, é possível abranger a justiça como objeto dos estudos culturais, trabalhando Direito e cultura não como disciplinas autônomas, vistas, cada uma em seu campo próprio e delimitado, mas como ciências que se correlacionam, ultrapassando uma visão intuitiva de o Direito não se relacionar a uma dimensão cultural.
Nesse cenário, o Direito pode ser visto como um produto cultural (MEZEY, 2001, p. 47), uma vez que fora criado pelos próprios homens, visando estabelecer regras jurídicas que devem ser seguidas para o bem-estar social. A lei constitui-se uma prática da cultura, e, como tal, está sujeita a variações na medida em que a sociedade se transforma e se desenvolve no decorrer do tempo e para atender aos anseios sociais.
Assim como os hábitos de vida, o Direito é um fruto cultural que passa por processos de mudança e adequação. O ambiente jurídico é constituído por normas decorrentes da vontade humana em um contexto histórico, refletindo a realidade política, econômica e os valores sociais. Com efeito, o fenômeno jurídico não pode se limitar às normas jurídicas as quais relevam, abstratamente, a vontade do povo. Caso o Direito fosse visto apenas no seu sentido positivo, ele não observaria elementos sociais que são indispensáveis para garantia da justiça. Como consequência, o Direito deve refletir também o ambiente social e cultural em que for produzido, obervando suas peculiaridades locais e temporais.
Insta lembrar que tal visão do Direito opõe-se ao pensamento jusfilosófico de Hans Kelsen, autor da teoria pura do Direito. Segundo ele, Direito deve ser compreendido em seu sentido positivo, desvinculado de fatores sociais ou culturais que vigoram em certas conjecturas. Justamente por isso, constitui-se um campo da ciência “pura”, desvinculada de quaisquer outras ciências sociais. Nesse enfoque, exclui-se do conhecimento do Direito tudo que não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa determinar como Direito (KELSEN, 1999, p. 01).
Para se compreender a correlação entre Direito e cultura, pode-se recorrer, ainda, à teoria tridimensional do Direito, proposta por Miguel Reale, a qual aponta para uma correlação entre as concepções normativas, fáticas e axiológicas. No primeiro caso, tem-se uma proposição lógica expressa no ordenamento jurídico, de forma abstrata e imparcial. Com relação ao aspecto fático, nota-se que o Direito deve observar os fatos sociais enquadrados em um determinado cenário histórico. Por fim, elementos axiológicos dizem respeito aos valores culturais de uma sociedade.
“Fato, valor e norma estão sempre presentes e correlacionados em qualquer expressão da vida jurídica, seja ela estudada pelo filósofo ou o sociólogo do direito, ou pelo jurista como tal, ao passo que na tridimensionalidade genérica ou abstrata, caberia ao filósofo apenas o estudo do valor, ao sociólogo o do fato e ao jurista o da norma”. (REALE, 1994, p. 57).
O Direito, como consequência, é uma realidade trivalente (REALE, 1994, p. 121) composta pelo fato, valor e norma, uma vez que as normas jurídicas são elaboradas pelos homens, que se encontram permeados pela sua cultura e pela sua vida cotidiana. A correlação entre esses três aspectos implica um diálogo entre elas, o que não significa que uma tenha mais valor do que outra, mas se complementam e se integram.
“Direito não é só norma, como quer Kelsen, Direito, não é só fato como rezam os marxistas ou os economistas do Direito, porque Direito não é economia. Direito não é produção econômica, mas envolve a produção econômica e nela interfere; o Direito não é principalmente valor, como pensam os adeptos do Direito Natural tomista, por exemplo, porque o Direito ao mesmo tempo é norma, é fato e é valor.” (REALE, 1994, p. 118-119).
Deduz-se que o Direito não pode ser visto apenas como a norma positivada, desvinculada da realidade, nem como o conjunto de valores seguidos socialmente. É por isso que se afasta a ideia de uma teoria unilateral do Direito, propondo uma visão tridimensional. É possível que o Direito não seja analisado como mero fruto da vontade codificada e positivada. Isso induz à reflexão que a lei não pode se distanciar dos aspectos culturais, no momento em que for aplicada ao caso concreto.
Para Bobbio (2004), os direitos devem ser analisados conforme o quadro político, econômico, cultural, social e moral vigente em determinada sociedade. Tal fato procede de cada cultura ter suas especificidades, valores e costumes, os quais devem ser respeitados, eis que a própria cultura é um direito do ser humano.
“Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender, fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez, e nem de uma vez por todas.” (BOBBIO, 2004, p. 25).
Segundo Bobbio (2004, p. 09), os direitos do cidadão são direitos históricos, já que não podem ser dissociados das circunstâncias da época, além de serem caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades, e nascidos gradualmente, conforme as demandas da coletividade. Para ele, essa perspectiva engloba o direito natural, que surge espontaneamente para propiciar o bem-estar e o convívio social.
Todavia, o direito natural, fruto da teoria jusnaturalista, impede que haja uma mutação do Direito conforme as necessidades sociais mudem com o passar do tempo. Isso porque as normas são vistas como algo inerte, imutável, que derivam da própria natureza do ser humano. Uma vez emanado das necessidades humanas, o direito natural via como justo aquilo que se fundava na natureza, por se tratar de um direito intrínseco ao homem.
“Essa ilusão foi comum durante séculos aos jusnaturalistas, que supunham ter colocado certos direitos (mas nem sempre os mesmos) acima da possibilidade de qualquer refutação, derivando-os diretamente da natureza do homem. Mas a natureza do homem revelou-se muito frágil como fundamento absoluto de direitos irresistíveis”. (BOBBIO, 2004, p. 12).
Acontece que esse entendimento, ao colocar os direitos como algo fixo, pode não garantir a justiça ou a efetiva resolução de um caso concreto. Nesse sentido, Bobbio (2004) introduz o direito positivista, fruto de uma codificação ou positivação das necessidades de uma coletividade.
A ideia de um direito positivista surgiu no contexto de regimes autoritários do final século XVII e início do século XVIII na Europa. Tal fato deu-se em razão da necessidade de o próprio homem formular direitos que fossem aplicados para se garantir a dignidade da pessoa humana.
“A partir do século XVIII, mais especificamente a partir da Revolução Francesa, as doutrinas jusnaturalistas começaram a não ter tanto respaldo dentro do contexto revolucionário, independe do seu fundamento, se teológico, cosmológico ou racionalista. O próprio contexto histórico envolvido durante este período fez com que a necessidade de uma segurança acerca dos mecanismos de regulação de comportamentos sociais fosse positivada através dos textos legais, tendo em vista o contexto de instabilidade social e os recentes históricos de regimes autoritários.” (SILVA, 2012, p. 62).
Assim, a concepção positivista do direito é tida como um “conjunto de regras que tem sua sustentação na força monopolizada” (BOBBIO, 2004, p. 65), afastando o problema trazido pelo direito natural de uma resistência às sucessões e aos fatos sociais. Segundo Silva (2012, p. 64), o Direito passa a ter um sentido técnico-operacional no que se refere à gestão de condutas previstas por um ordenamento jurídico, o qual permite ou proíbe condutas, sanciona ou premia comportamentos sociais. O direito positivo tem como intuito manutenção da ordem, de modo que essa ordem represente a justiça.
Segundo Mezey (2001, p. 38), o reconhecimento do Direito como esfera cultural decorre de três fatores, quais sejam, a influência das leis sobre a cultura, o poder que a cultura pode ter sobre o Direito, bem como uma síntese instável entre os dois, formado por uma reciclagem contínua e rearticulação de significados legais e culturais.
Com relação à influência das leis sobre a cultura, atenta-se a uma relação dinâmica, interativa e dialética entre elas, de modo que práticas culturais não podem ser logicamente separadas das leis que as moldam. Assim como a lei é uma prática significativa que constitui a cultura, as práticas sociais também não podem ser dissociadas das normas que lhes moldam (MEZEY, 2001, p. 46).
As normas podem influenciar a cultura, uma vez que, ao delimitar regras a serem seguidas e sanções, pode-se, gradativamente, mudar os costumes da sociedade, a qual se encontra sujeita à jurisdição do Estado. Com efeito, enfatiza-se o poder penetrante de lei, mitigando uma possibilidade de autonomia cultural a qual não recorra à lei (MEZEY, 2001, p. 48). Nesse ponto, a base do Direito deve encontrar anuência em uma regra fundamental a ser seguida pela comunidade. Tal fato demonstra que as proposições jurídicas são verdadeiras quando representam a aceitação pela comunidade. (DWORKIN, 1999, p. 42).
Com efeito, norma é uma das práticas significantes que constituem a cultura e, por isso, ela não pode ser dissociada da cultura, assim como a cultura não pode ser dissociada da lei (MEZEY, 2001, p. 46).
Por outro lado, o Direito pode ser visto, também, como um produto cultural, como reflexo de uma herança histórica e ideológica, decorrente da vontade popular, a qual é detentora do Poder Constituinte, responsável pela elaboração das leis de um Estado, seja de forma direita, ou indireta, por meio de representantes devidamente eleitos por meio do voto. Isso é corroborado pela estrita ligação dos direitos com a transformação da sociedade, como a relação entre a proliferação dos direitos do homem e o desenvolvimento social o mostra claramente (BOBBIO, 2004, p. 35).
Desse modo, normas jurídicas podem mudar conforme práticas culturais, a fim de promover a resolução justa de um caso concreto. A regra jurídica deve ser conjugada com as tradições culturais, sendo que, a maioria dos atos culturais, símbolos e práticas são rastreáveis para a presença ou ausência de regras jurídicas. A relevância que vai ser atribuída à cultura, por consequência, fica condicionada e restrita a situações legais específicas. Uma vez visto o universo legal como fenômeno cultural, a interpretação de uma lei também se deve dar consoante a cultura em que se está imersa.
4 Conclusão
Na contemporaneidade, as ciências jurídicas podem ser vistas como disciplinas dependentes e correlacionadas às demais ciências sociais e humanas. Embora o ordenamento jurídico preze pelo positivismo, ao atribuir valor a norma escrita, não se pode desconsiderar os valores e fatos existentes em uma sociedade, uma vez que o Direito existe justamente para assegurar que haja harmonia e bem-estar social. Isso porque não se tratam de campos completamente distintos.
A área do Direito preza pela integralidade das normas, regulando situações sociais que possam vir a ser objeto de conflitos, por meio de direitos e deveres que são coercitivamente impostos à sociedade. A área da cultura reflete frequentes mudanças de valores e paradigmas sociais, incluindo formas de pensar, hábitos, estilos de vida, dentre outros.
Em um estudo interdisciplinar, mostra-se o inevitável processo de interseção desses campos. Sob esse aspecto, trabalha-se com o Direito como uma esfera da cultura, com intuito de evidenciar como o Direito pode influenciar na formação de novos valores culturais e como as alterações na cultura podem repercutir na área jurídica, representando uma via de mão dupla.
Partindo-se dessa premissa, o Direito pode tanto construir uma cultura como ser construído por ela, já que o fato de adotar normas positivadas coercitivas não impede que transformações sociais e culturas sejam levadas em consideração.
Informações Sobre o Autor
Carolline Leal Ribas
Advogada e Assessora Jurídica na Advocacia-Geral do Estado de Minas Gerais. Doutoranda em Humanidades pela UNIGRANRIO. Mestre em Estudos Culturais pela FUMEC e especialista em Direito Público e em Gestão Pública