Resumo: Trata-se de análise do princípio da primazia da realidade devido sua destacada importância no Direito do Trabalho
Palavras chaves: Princípio da primazia da realidade. Direito do Trabalho
Pretendemos com o tema proposto uma abordagem do princípio da primazia da realidade no Direito do Trabalho que estimule a busca da verdade real, que muitas vezes se distorce no âmbito do contencioso trabalhista, ocultando a verdade dos fatos e impede que se pratique a melhor justiça social, que se vislumbra Direito como ciência social, pela busca da verdade como resultado das convenções no trabalho. (PONTES, 2010).
A melhor forma de entendermos um conceito é conhecermos os fatos no geral para chegarmos ao específico, assim no direito também é feito quando usamos dos princípios gerais como meio de integração da norma trabalhista, como preceitua o art. 8º da Consolidação das Leis do Trabalho. (ZANGRANDO, 2011, p. 209).
“CLT – Decreto-lei nº 5.452 de 01 de maio de 1943
Art. 8º – As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público.
Parágrafo único – O direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho, naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste.”
Este artigo não só indica a função integrativa dos princípios, como também indica o princípio da primazia do interesse público, quando declara que nenhum interesse de classe ou particular deve prevalecer sobre o interesse público. (NASCIMENTO, 2011, p. 123).
A utilização dos princípios faz parte da integração da norma jurídica no preenchimento de lacunas e é previsto no artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB – Decreto-lei n. 4.657/42) que prevê: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.” Esses princípios gerais do direito servem para preencher lacunas ou brechas do pensamento jurídico quando representar o que há de mais homogêneo, podendo utilizar, se necessário, de métodos e critérios de direito comparado. (MACHADO; CHINELLATO, 2016, p. 7).
Dessa forma, iniciamos essa introdução com a explicação do que vem a ser os princípios gerais do direito, pois eles correspondem àquele ordenamento inseparável da vida, em que o legislador vai tirar seus mandamentos de cunho universal e que perduram no tempo por acomodarem a evolução das instituições jurídicas na ordem pública, tidos como diretrizes universais. (ZANGRANDO, 2011, p. 210).
Conforme a lição de Carlos Zangrando:
“No passado, os princípios gerais do direito costumavam ser vistos como meros apêndices do Direito Privado. Esse era o reflexo da concepção romanística do Direito, a qual vigorou até meados do século XX. Observe-se, contudo que, o movimento constitucionalista, que levou à revalorização dos princípios, e ao reconhecimento de sua função normativa própria, trouxe consigo uma mudança no entendimento da natureza dos princípios gerais do direito, os quais, hoje, se encontram indubitavelmente inseridos nas Constituições, o que fortalece seu potencial jurídico e traz ainda maior vigor à própria norma constitucional. (ZANGRANDO, 2011, p. 210).”
Em todo negócio jurídico deve-se buscar a vontade das partes, devendo o contrato traduzir os fins objetivados e o próprio comportamento repetido das partes, extraindo daí o real negócio firmado. No Direito laboral, interessa a verdade dos fatos, sobrepondo a qualquer formalidade, documento ou pacto convencionado entre as partes. (ZANGRANDO, 2011, p. 219).
Essa hegemonia da realidade sobre a forma é essencial para o Direito do Trabalho, bem como para o Direito Civil, Direito Tributário, Direito Administrativo, Direito do Consumidor e ao Direito Penal, pois em todos eles o valor formal é relativo. Assim, esse princípio não faz parte tão somente do Direito do Trabalho, por ser um princípio geral do Direito, e albergar outros ramos. (ZANGRANDO, 2011, p. 220).
Para Américo Plá Rodriguez: “O princípio da primazia da realidade significa que, em caso de discordância entre o que ocorre na prática e o que emerge de documentos ou acordos, deve-se dar preferência ao primeiro, isto é, ao que sucede no terreno dos fatos.” (PLÁ RODRIGUEZ, 2015, p. 339). Esta noção reporta a expressão cunhada por De La Cueva, que sustenta ser o contrato de trabalho um contrato-realidade. Ao expor a natureza jurídica do contrato de trabalho, ressalta-se a diferença essencial entre o contrato de trabalho, em que é necessário o cumprimento da obrigação contraída e os contratos de direito civil, os quais a aplicação do direito depende apenas do acordo de vontades; conclui-se que no direito civil o contrato não está adstrito a seu cumprimento, enquanto no direito do trabalho a sua execução é essencial para sua completitude. (PLÁ RODRIGUEZ, 2015, p. 339).
No direito do trabalho é a prestação de serviço, e não o acordo de vontades, que dá amparo ao trabalhador, ou seja, a prestação de serviço é o pressuposto necessário para a aplicação do Direito do Trabalho. (PLÁ RODRIGUEZ, 2015, p. 340).
Por essa razão, é que o contrato de trabalho foi denominado contrato-realidade, pois existe prestação de serviço que determina sua existência e não acordo abstrato de vontades. Assim, a relação de trabalho depende cada vez mais da situação objetiva e cada vez menos de uma relação jurídica subjetiva para caracterizar a sua existência. (PLÁ RODRIGUEZ, 2015, p. 340).
Algumas doutrinas confundem esse princípio com o contrato realidade; muitos usam como sinônimo, mas são institutos distintos e não devem ser confundidos, pois o contrato realidade é uma das teorias da relação de emprego, enquanto a primazia da realidade é um princípio. (BOMFIM, 2017, p. 188).
No Direito do Trabalho importa o que acontece na prática, mais do que aquilo que consta em documentos, instrumentos, formulários pactuados solenemente. Esse desarranjo entre fatos e forma pode ter várias procedências como: uma intenção deliberada de fingir ou simular uma situação jurídica diferente da real, ou seja, uma simulação; provir de um erro sobre a qualificação do trabalhador, que pode ser intencional; de uma falta de atualização de dados, visto o contrato ser dinâmico, exigindo mudanças constantes da prestação de serviço e mesmo a falta de algum requisito formal, por exemplo, nomeação por determinado órgão da empresa ou cumprimento de qualquer requisito omitido. (PLÁ RODRIGUEZ, 2015, p. 352).
Em qualquer dessas situações os fatos prevalecem sobre as formas. Não é necessário analisar ou responsabilizar cada uma das partes. O que importa são os fatos. Demonstrados os fatos eles não podem ser eliminados por documentos ou formalidades. (RODRIGUEZ, 2015, p. 353).
No nosso ordenamento, essa doutrina se concretiza no artigo 442, da CLT, que dispõe: “Contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego”. Vale salientar que o art. 9º da referida CLT traz a seguinte determinação: “Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.”.
Portanto, do princípio em estudo decorre que, numa situação de conflito envolvendo o trabalhador na sua relação de trabalho, deve o juiz do trabalho, ao dizer o direito, sempre buscar a verdade real, dando preferência aos fatos em detrimento das formas. (PONTES, 2010).
A jurisprudência elucida nos exemplos abaixo, em que os efeitos jurídicos são extraídos da forma que a prestação de serviços se efetua:
“Não importa a sua descaracterização a circunstância de constar da carteira profissional ou de documento escrito anotações diversas da realidade fática, pois é esta que prevalece, como relação de emprego.” (Ac. TRT 3ª Região, Rel. Juiz Ribeiro de Vilhena) (PLÁ RODRIGUEZ, 2015, p. 356).
“O fato de a empresa consignar na ficha de registro de seus empregados a designação genérica de operários não impede que adquiram eles ao longo da prestação de serviços, ocupação habitual, configuradora até de ofício, inalterável, daí por diante, pela só vontade do empregador.” (Ac. TRT 2ª Região, Rel. Juiz Antonio José Fava) (PLÁ RODRIGUEZ, 2015, p. 356).
No ensinamento de Vólia Bomfim:
“O que importa é o que aconteceu e não o que está escrito. (…). O princípio da primazia da realidade destina-se a proteger o trabalhador, já que seu empregador poderia com relativa facilidade, obriga-lo a assinar documentos contrários aos fatos e aos seus interesses. Ante o estado de sujeição permanente que o empregado se encontra durante o contrato de trabalho, algumas vezes submete-se às ordens do empregador, mesmo que contra sua vontade.” (BOMFIM, 2017, p. 187).
Vólia Bomfim pondera que, embora esse princípio priorize a realidade, ela coloca a questão da realidade quando a lei for violada, ou seja, no caso de objeto ilícito, ou em outras palavras o princípio da primazia nos limites da lei, por exemplo:
“Se um trabalhador executa de fato a função de enfermeiro, mas não tem habilitação legal para tanto, pois não fez o curso necessário para sua formação profissional, não poderá pretender os salários destinados ao piso da categoria, pois seu trabalho fere a lei, e seu contrato pode ser considerado nulo, por objeto ilícito, na forma dos arts. 104 e 606 do CC. Tampouco poderá pretender a equiparação salarial, pelos mesmos motivos – OJ nº 296 da SDI-I do TST.” (BOMFIM, 2017, p. 188).
Deve o Judiciário, na condição de guardião da lei, deve coibir irregularidades, pois o exercício ilegal de profissão é crime, portanto, rejeitado no Direito. (BOMFIM, 2017, p. 188).
É nesse sentido que se pretende analisar o princípio da realidade no Direito do Trabalho, estimulado pela busca da verdade real que muitas vezes se mostra distorcida no contencioso trabalhista, e que o juiz precisará despir-se de preconceitos e tradições para poder bem-dizer o direito que visa à melhor justiça social. (PONTES, 2010).
Outra questão apontada por Vólia Bomfim surge quando o princípio em questão é utilizado de forma contrária ao trabalhador, pois alguns entendem que o princípio pode prevalecer em qualquer situação que seja legal, mesmo que contrário aos interesses do empregado e outros defendem que o princípio não poderá ser aplicado em detrimento do empregado. Vejamos um exemplo.
“Empregada doméstica que executa trabalhos exclusivamente domésticos em casa de família, mas tem sua CTPS assinada pela pessoa jurídica da qual o patrão é o sócio majoritário. A Lei Complementar 150/2015 determina que o empregador doméstico seja uma pessoa física. Pelo princípio da norma mais favorável, deveria ser aplicada a CLT para reger todo o contrato. Por outro lado, como de fato a empregada executava serviços domésticos e o patrão de fato era a pessoa física, que não se valia da mão de obra doméstica para fins lucrativos, poderia ser aplicado o princípio da primazia da realidade, mesmo em prejuízo do trabalhador. Entendemos que deveria prevalecer a lei do doméstico e não a CLT para reger aquele contrato, cabendo ao empregador ou ao Judiciário retificar a CTPS para passar a constar o real empregador (pessoa física), apesar da CLT conter mais benesses que a lei do doméstico. Deve ser aplicado o art. 112 do CC, que determina que nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção que ao sentido literal da linguagem (leia-se: ao sentido literal do que foi escrito).” (BOMFIM, 2017, p. 190).
A jurisprudência orienta-se, nestes casos, no sentido de proteger o trabalhador não aplicando o princípio da primazia da realidade, e sim a lei. (BOMFIM, 2017, p. 190).
Atribui-se aos princípios uma função integrativa. Cabe a eles o papel de orientar a exata compreensão das normas quando o sentido for obscuro. Mas, se houver norma jurídica para solucionar o caso concreto esta deve ser aplicada; os princípios atuariam no caso de lacunas da lei. (NASCIMENTO, 2011, p. 123).
Como escreveu Alice Monteiro de Barros:
“O princípio da primazia da realidade significa que as relações jurídicas co-trabalhistas se definem pela situação de fato, isto é, pela forma como se realizou a prestação de serviços, pouco importando o nome que lhes foi atribuído pelas partes. Despreza-se a ficção jurídica. É sabido que muitas vezes a prestação de trabalho subordinado está encoberto por meio de contratos de Direito Civil ou Comercial. Compete ao intérprete, quando chamado a se pronunciar sobre o caso concreto, retirar essa roupagem e atribuir-lhe o enquadramento adequado, nos moldes traçados pelos art. 2º e 3º da CLT. Esse princípio manifesta-se em todas as fases da relação de emprego.” (BARROS, 2008, p. 185).
No Direito do Trabalho deve-se atentar pela prática concreta da prestação de serviço, independentemente da vontade das partes manifestada na relação jurídica. O princípio da primazia da realidade sobre a forma torna-se um poderoso instrumento para confrontar a verdade real em uma situação de litígio trabalhista. Não deve ser usado unilateralmente pelo operador do direito, que deve investigar e aferir se a substância da regra protetiva foi atendida na prática entre as partes. (DELGADO, 2011, p. 202).
O contrato, ao regular a prestação da atividade humana, deve prestigiá-la face ao texto contratual. Neste sentido, convém às partes atualizarem a documentação conforme a dinâmica da relação trabalhista, com anotações e modificações inevitáveis, sob pena de, em casos de divergência entre o real e o formal, prevalecer aquele. (PONTES, 2010).
Concluindo nossa análise sobre o princípio da primazia da realidade no Direito do Trabalho, como explica Vólia Bomfim (2017, p. 187): “Para o Direito do Trabalho prevalecem os fatos reais sobre as formas. O que importa é o que realmente aconteceu e não o que está escrito.”.
Informações Sobre o Autor
Ana Carolina Godoy Tercioti
Advogada. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestra em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas