Resumo: O instituto dos alimentos tem por pressuposto garantir a sobrevivência do alimentando, proporcionando-o, sobretudo, uma vida digna e saudável. Quando o enfoque é alimentos sempre deverá ser observado, para a concessão de tal benefício, o binômio necessidade/possibilidade, pois deve se levar em consideração a necessidade do alimentando e a possibilidade do alimentante de arcar com a pensão alimentícia. É um tema bastante profundo e lastreado de conflitos, que provêm, sobretudo, da complexidade das relações sociais e de algumas omissões legais. Neste contexto, a pesquisa visa demonstrar, de forma clara e precisa, a natureza e as principais características do instituto. Abrange, como ponto de referência central, a análise dos parâmetros legais da transmissão da obrigação de prestar alimentos, conforme estabelecido no artigo 1.700 do Código Civil de 2002. Desta forma, liga-se também ao direito sucessório, no que tange a limitação da responsabilidade dos herdeiros em relação à herança e ao caráter personalíssimo da prestação de alimentos.
Palavras chave: Alimentos; assistência; necessidade; possibilidade; Transmissibilidade.
Abstract: The institute of aliment is assumed to ensure the survival of feeding, providing it mainly a dignified and healthy life. When the focus is aliment it should always be observed, for the grant of such a benefit, the binomial need / opportunity, as it must take into account the necessity of feeding and the possibility of provider to afford alimony. It is a very deep subject and supported conflict, stemming mainly from the complexity of social relations and some legal omissions. In this context, the research aims to demonstrate, clearly and precisely the nature and main features of the institute. Covers, as a central reference point, the analysis of the legal parameters of the transmission of the obligation to pay maintenance as set out in Article 1700 of the Civil Code of 2002. Beside, also binds to the inheritance law, regarding the limitation of liability of the heirs regarding inheritance and the personal nature of the maintenance.
Keywords: Food; assistance; necessity, possibility; Transferability.
Sumário: Introdução. 1. Alimentos. 1.1. Noções iniciais 1.2. Principais características 1.2.1. Pessoalidade 1.2.2. Transmissibilidade1.2.3. Irrenunciabilidade 1.2.4. Impenhorabilidade 1.2.5. Incedibilidade 1.2.6. Incompensabilidade.1.2.7. Imprescritibilidade 1.2.8. Irrepetibilidade 2. Relação jurídica obrigacional alimentar. 2.1. Constituição da obrigação 2.2. Requisitos 2.2.1. Necessidade 2.2.2. Possibilidade 2.2.3 Proporcionalidade 2.2.4. Reciprocidade 2.3. Extinção da obrigação 3. Relação jurídica obrigacional alimentar 3.1. Constituição da obrigação 2.2. Requisitos 3.2.1. Necessidade 3.2.2. Possibilidade 3.2.3. Proporcionalidade 3.2.4. Reciprocidade 3.3. Extinção da obrigação 4. A transmissão da obrigação alimentar 4.1. O Código Civil de 1916 e a intransmissibilidade da obrigação alimentar 4.2. Evolução na Legislação extravagante 4.3. O Código Civil de 2002: artigo 1.700 4.4. Direito Comparado 5 Limites da transmissão 5.1. Fixados antes ou após o óbito 5.2. Limite quanto ao valor transmitido 5.3. Legitimidade passiva para a transmissão 6. Confusão entre credor e herdeiro e o projeto de lei número 6960/2002 7. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
A história relata que desde os primórdios o ser humano sempre necessitou de amparo e cuidado por parte de seus semelhantes; com a evolução da espécie, passou a ter outras necessidades, essenciais à sobrevivência. Dentre elas, destaca-se a necessidade de alimentos.
Na sociedade moderna, muitas pessoas não conseguem, por si só, os recursos necessários para prover a própria subsistência. Os motivos são os mais variados possíveis, tais como: a má qualificação para o mercado de trabalho, os relativos à saúde, idade, taxas de desemprego, etc.
Cabe ao Estado, a fim de promover o bem estar social, socorrer estas pessoas através de sua atividade assistencial. Mas, em complemento a sua atividade, para aliviar-se de parte do encargo, impõe esta obrigação aos parentes do necessitado, como se observa no artigo 1694[1] do Código Civil de 2002, na forma da prestação de alimentos.
Menciona Washington de Barros Monteiro: “a obrigação alimentar constitui estudo que interessa ao Estado, à sociedade e à família.” [2] Diante disso, é matéria de ordem pública, a qual não pode o cidadão renunciar seu direito.
Tal esforço estatal busca empreender efetivamente o direito a vida e a dignidade da pessoa humana, em âmbito social, conforme previstos, respectivamente, no artigo 5º e 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988.
Pelo exposto, é de se notar que tal obrigação se localiza em um patamar superior as demais obrigações civis, visto que está diretamente relacionada aos princípios basilares da Constituição Federal. Em razão disso, ela apresenta características peculiares, tais como: caráter personalíssimo, imprescritível, inalienável, irrepetível, irrenunciável, que serão a seguir abordadas.
Ponto crucial deste trabalho é a análise da transmissibilidade da obrigação, característica peculiar, que passou por um grande processo de modificação, tanto legislativo, quanto jurisprudencial.
O artigo 1.700 do código civil de 2002[3] trouxe a previsão legal da transmissão da prestação alimentícia, como encargo da herança, rompendo com a regra da intransmissibilidade, que vigorava no código anterior (artigo 402 do Código Civil de 1916[4]). Desta forma, busca assegurar os princípios da assistência mútua entre parentes, cônjuges e companheiros.
2. ALIMENTOS
2.1 Noções iniciais
Preliminarmente, cabe resaltar que, quando comparados com a noção vulgar, popular, da palavra, o direito confere aos alimentos uma concepção mais abrangente. Caio Mario da Silva Pereira menciona que o vocábulo deve ter uma interpretação estendida para além da acepção fisiológica, passando a integrá-lo também tudo aquilo que é necessário à manutenção individual: sustento, habitação, vestuário, tratamento.[5]
Por conseguinte, unânime é a posição da doutrina, expondo que não existe diferença substancial entre as acepções da palavra “alimentos”. Yussef Said Cahali assevera ainda que “alimentos são, pois, as prestações devidas, feitas para aquele que as recebe possa subsistir, isto é, manter sua existência, realizar o direito a vida, tanto física (sustento do corpo) como intelectual e moral (cultivo e educação do espírito, do ser racional).” [6]
Noção que segue tal conclusão é referente à natureza dos alimentos, estes são ditos naturais quando remeterem as necessidades indispensáveis à sobrevida do indivíduo, não consideradas as particularidades, fixados em relação a um limite do necessário, o qual abrange a alimentação, vestuário e habitação.
Seguindo o desenvolvimento do conceito, a noção de alimentos civis é aquela que inclui aos já mencionados acima o auxílio prestado a pessoa para que ela possa prover suas necessidades em sentido amplo, devem ser taxados segundo as suas qualidades e deveres. Acompanhando a doutrina, os tribunais pátrios posicionam-se de forma unânime, veja-se como exemplo:
“AÇÃO DE ALIMENTOS. MANUTENÇÃO DO PADRÃO DE VIDA. NECESSIDADE-POSSIBILIDADE. NATUREZA COMPLEMENTAR. SENTENÇA REFORMADA. De acordo com o art. 1694, do CC, os alimentos devem ser fixados não apenas para atender às necessidade básicas com moradia e alimentação, mas também com a finalidade de manter o padrão de vida que o alimentando possuía. Comprovada a necessidade da alimentanda e a possibilidade do alimentante, é cabível a fixação de alimentos com o fito de complementar a renda da apelada. Cabível a redução dos alimentos para 10% dos rendimentos brutos do alimentante, uma vez que sua natureza é complementar. Recurso parcialmente provido.”[7] (Grifo nosso)
Sob outra análise, os alimentos apresentam finalidade provisional/provisória, quando eles são concedidos durante o trâmite processual, buscando a manutenção do suplicante. Cumpre ressaltar que nesse caso eles compreendem também o necessário para cobrir as despesas do processo.
Em contrapartida, são ditos definitivos aqueles já estabelecidos pelo juiz ou mediante acordo entre as partes, ainda que sujeitos a futuras alterações e revisões. Estes apresentam caráter definitivo, de prestações periódicas.
2.2 Principais características
2.2.1 Pessoalidade
Esta é considerada característica fundamental da prestação de alimentos, baseada no caráter de ordem pública das normas que o disciplinam, já que fundados em motivos humanitários e piedosos. A faculdade de perseguir os alimentos cria ao necessitado um direito especial e ao devedor uma obrigação da qual não pode se esquivar.
A titulo de ilustração, a materialização de tal característica é encontrada no seguinte julgado:
“APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. DÍVIDA ALIMENTAR EXECUTADA. RITO DO ART. 732, DO CPC. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL DEFERIDA NA PESSOA DA PROGENITORA DO EXEQUENTE FALECIDO NO CURSO DA LIDE EXECUTIVA. PRESTAÇÃO ALIMENTAR LIGADA AO PODER FAMILIAR ENTRE PAI E FILHO. CARÁTER PERSONALÍSSIMO DA OBRIGAÇÃO. INSUSCETIBILIDADE DE SUA TRANSFERÊNCIA. ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. EXTINÇÃO DA AÇÃO EXECUTIVA. RECURSO PROVIDO. 1 Do poder familiar do pai nasce o seu dever de prestar sustento aos filhos, com a assistência paterna sendo traduzida, quando não estiverem os menores sob sua guarda, pela prestação de pensão alimentícia, obrigação que tem como escopo garantir a subsistência dos mesmos. 2 O caráter personalíssimo do alimentos não permite que seja ele transmitido ou cedido a outrem, posto derivarem eles do vínculo singular existente entre pai e filho, sendo inseparável essa relação obrigacional. 3 Com o falecimento do alimentário, desfaz-se tanto o poder familiar como a relação obrigacional existente entre credor e devedor da prestação alimentícia, resultando na extinção da execução.”[8] (Grifo nosso)
2.2.2 Transmissibilidade
A regra da intransmissibilidade, constante no Código Civil de 1916, se justificava pela natureza de direito personalíssimo dos alimentos. No entanto, o atual Código reverteu a lógica anterior estabelecendo a transmissão da obrigação de prestar alimentos.
Com isso, a partir da taxatividade do texto legal, a doutrina majoritariamente admite a transmissão, estabelecendo, porém, algumas ressalvas. Consideram uma exceção ao caráter personalíssimo dos alimentos. Como defendem Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald:
“Ao nosso ver, tratando-se de uma obrigação personalíssima, os alimentos não deveriam admitir transmissão, impondo-se reconhecer sua automática extinção pelo falecimento do alimentante ou mes mo do alimentado. Somente as prestações vencidas e não pagas é que se transmitiriam aos herdeiros, dentro das forças do espólio, por se tratar de dívida do falecido, transmitida juntamente com o seu patrimônio, em conformidade com a transmissão operada por saisine (CC, art. 1.784). Não vemos, portanto, com bons olhos a opção do legislador civil, desprovida de sustentação jurídica e atentatória à natureza personalíssima da obrigação.”[9]
Mas, diante de uma análise mais profunda, tem-se que a qualidade de direito personalíssimo deriva do seu caráter tutelar, a fim de garantir a existência digna do indivíduo necessitado. Sendo assim, a prestação é direcionada ao alimentado, o que lhe confere tais características peculiares, aqui expostas.
O direito é personalíssimo, já que liga duas pessoas (credor alimentado e devedor alimentante) unidas por determinado vínculo levando em consideração suas situações pessoais (binômio da necessidade versus possibilidade).
Dito isto, certo é que o caráter personalíssimo não é abalado pela transmissiblidade. A obrigação alimentar segue como uma obrigação pessoal relativa ao falecido e seu credor, o que se transfere é a prestação. Nesse sentido, Walsir Edson Rodrigues Júnior:
“A obrigação de prestar alimentos se transmite aos herdeiros do devedor (nos limites das forças da herança), e não o direito a alimentos e a obrigação em si. Não é possível a transmissão da condição própria, personalíssima, de alimentário e de alimentante. Na verdade, a obrigação alimentar é pessoal e intransferível, mas a obrigação de prestá-la, não.”[10]
Questão relevante que merece atenção refere-se ao fato de que a regra da transmissibilidade deve ser aplicada exclusivamente na situação de morte do alimentante. Caso o alimentando venha a falecer a obrigação será extinta, não havendo sucessão para o recebimento das pensões desta data em diante, mas apenas das parcelas vencidas e não pagas como qualquer dívida contraída em vida pelo alimentante falecido. Nas palavras de Maria Helena Diniz:
“Todavia, se falecer o beneficiado, extingue-se a obrigação, e se, porventura, seus herdeiros forem carentes de recursos materiais, terão de requerer alimentos de quem seja obrigado a prestá-los, fazendo-o por direito próprio e não como sucessores do falecido.”[11]
Essa é uma abordagem preliminar, visto que é este o ponto central do presente estudo e será analisado mais profundamente no decorrer da argumentação.
2.2.3 Irrenunciabilidade
Conforme dita o Artigo 1.707 do Código Civil de 2002 (CC/02): “pode o credor não exercer, porém lhe é vedado renunciar o direito a alimentos, sendo o respectivo crédito insuscetível de cessão, compensação ou penhora”. Dito isto, é de fácil constatação a existência da irrenunciabilidade do direito de pleitear alimentos. Vejamos:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. FAMÍLIA. ACORDO DE RENÚNCIA DE ALIMENTOS DE INCAPAZ. DIREITO PERSONALÍSSIMO E IRRENUNCIÁVEL. NEGÓCIO JURÍDICO MANIFESTAMENTE NULO. Na espécie, o acordo entabulado pelas partes visa, em verdade, à renúncia aos alimentos a que tem direito a criança (filho comum), o que é vedado pelo ordenamento legal, consoante arts. 841 e 1.707, ambos do Código Civil, porquanto o direito a alimentos é personalíssimo e irrenunciável. Destarte, o negócio jurídico entabulado entre as partes é manifestamente nulo, consoante art. 166 do Código Civil. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO”.[12] (Grifo nosso)
É possível, apenas como faculdade, o credor não pleitear os alimentos, quando, por motivos pessoais, não acha necessário fazê-lo. Noção que se depreende da literalidade do artigo citado.
Como fundamento para tal está o interesse público que rege a norma, consequência natural do conceito e razão da prestação, sendo manifestação do direito a vida e dignidade da pessoa humana.
A discricionariedade trazida pelo Código Civil de 2002 fundamenta-se no exercício do direito que, neste sentido, admite que o credor não o pleiteie. É uma forma de renúncia às prestações passadas, com o não exercício do direito.
Neste sentido:
“CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE PENSÃO ALIMENTÍCIA. RENÚNCIA AOS ALIMENTOS PRETÉRITOS. ACORDO ENTRE AS PARTES. HOMOLOGAÇÃO. COMPLEMENTAÇÃO DE DÉBITO FALTANTE. PAGAMENTO COM CORREÇÃO. I – Em que pese ser irrenunciável o direito de alimentos presentes e futuros, o alimentando pode renunciar aos alimentos pretéritos devidos e não prestados. II – Homologação integral do acordo firmado pelas partes não deve ser objeto de recurso, notadamente quando essas estiverem acompanhadas por advogados e, ademais, com parecer favorável do Ministério Público. III – Complementação de débito alimentar ajustado entre os litigantes não se inclui nas parcelas em atraso dispensadas, devendo, pois, ser paga com a devida correção. III – Apelação conhecida e desprovida.”[13] (Grifo nosso)
Questão relevante a ser exposta se refere ao acordo de divórcio. Diante da súmula 379 do Supremo Tribunal Federal (STF) “no acordo de desquite não se admite renúncia aos alimentos, que poderão ser pleiteados ulteriormente, verificado os pressupostos legais”.
Deste dispositivo tem-se o entendimento que os alimentos eram irrenunciáveis, pois sob a égide do Código Civil de 1916 a competência para julgar tais ações era do Supremo Tribunal Federal, e esta súmula era a expressão do entendimento dos magistrados à época:
“PENSÃO. ALIMENTOS PROVISIONAIS. MULHER DESQUITADA. RENUNCIA. 1. Recurso. Não e conhecer-se do recurso extraordinário referente aos alimentos provisionais se não atende ele aos pressupostos que o justificariam, a par do que o julgamento da ação principal de qualquer sorte o prejudica. 2. Recurso. Embora tenha havido renuncia a pensão alimentar pela mulher, na ocasião da separação judicial, e possível possa ela futuramente obte-la se da prova dos autos resulta dela necessitar, já assim ocorrendo quando da separação. E pode pleitea-la, embora já divorciada, pois a perda do direito a alimentos – se deles precisava – somente se da no caso de novo casamento ou passando a levar vida irregular (art. 29 da lei 6515/77). Inaplicação, na espécie, do enunciado da súmula 379.”[14] (Grifo nosso)
“ALIMENTOS. DESCONSTITUIÇÃO DE CLÁUSULA ESTABELECIDA EM DESQUITE AMIGÁVEL. – OCORRENCIA DE DISSIDIO COM A SÚMULA 379 ('NO ACORDO DE DESQUITE NÃO SE ADMITE RENUNCIA AOS ALIMENTOS, QUE PODERAO SER PLEITEADOS ULTERIORMENTE, VERIFICADOS OS PRESSUPOSTOS LEGAIS'). RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO”.[15]
Ocorre que, atualmente, por se tratar de matéria infraconstitucional, abarcada no código civil de 2002, passou a ser apreciada pelo Superior Tribunal de Justiça, que apresentava outro entendimento em relação ao assunto. Prevalecia que a irrenunciabilidade dos alimentos somente era alcançada pelos incapazes.
Assim, a validade e a eficácia da renúncia eram reconhecidas em sede jurisprudencial, quando esta renúncia era feita pelo cônjuge ou companheiro no acordo de dissolução de casamento ou união estável, proibindo posterior cobrança de pensão, superando o entendimento sumulado.
Com o Novo Código Civil o assunto ganhou nova discussão por conta do artigo 1.707, supratranscrito. Este artigo veio restaurar o entendimento da súmula 379 do Supremo Tribunal Federal, mas o Superior Tribunal de Justiça continuou firme no seu entendimento de que somente serão alcançados pela irrenunciabilidade os incapazes.
E assim o Superior Tribunal de Justiça tem entendido em seus julgados deste então:
“DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. SEPARAÇÃO JUDICIAL. ACORDO HOMOLOGADO.
Cláusula de renúncia a alimentos, constante em acordo de separação devidamente homologado, é válida e eficaz, não permitindo ao ex-cônjuge que renunciou a pretensão de ser pensionado ou voltar a pleitear o encargo.[16]
PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DECLARATÓRIOS. RECEBIMENTO COMO AGRAVO REGIMENTAL. RENÚNCIA. ALIMENTOS DECORRENTES DO CASAMENTO. VALIDADE. PARTILHA. POSSIBILIDADE DE PROCRASTINAÇÃO NA ENTREGA DE BENS. PARTICIPAÇÃO NA RENDA OBTIDA. REQUERIMENTO PELA VIA PRÓPRIA. 1. Admitem-se como agravo regimental embargos de declaração opostos a decisão monocrática proferida pelo relator do feito no Tribunal, em nome dos princípios da economia processual e da fungibilidade. 2. A renúncia aos alimentos decorrentes do matrimônio é válida e eficaz, não sendo permitido que o ex-cônjuge volte a pleitear o encargo, uma vez que a prestação alimentícia assenta-se na obrigação de mútua assistência, encerrada com a separação ou o divórcio. 3. A fixação de prestação alimentícia não serve para coibir eventual possibilidade de procrastinação da entrega de bens, devendo a parte pleitear, pelos maios adequados, a participação na renda auferida com a exploração de seu patrimônio. 4. Embargos de declaração recebidos como agravo regimental, a que se nega provimento.”[17] (Grifo nosso)
“Alimentos. Renúncia. Precedentes da Corte. 1. Na linha de precedentes da Corte, a mulher pode renunciar aos alimentos, em acordo de divórcio, sendo válida e eficaz a cláusula que assim dispõe. 2. Recurso especial não conhecido.”[18]
Sob análise diversa, o caráter não transacional dos alimentos está intimamente ligado a sua irrenunciabilidade. A doutrina dizia ser a transação uma espécie de renúncia futura, estritamente vedada no ordenamento.
Em se tratando de prestações pretéritas, assim como explicitado acima, sempre foi plenamente possível houvesse convenção entre as partes. Pois aqui se trata de prestação útil ao sustento do necessitado em época passada, cessada a sua finalidade dirigida à subsistência.
Seguindo um rumo evolutivo, a jurisprudência tem admitido às convenções estipuladas entre as partes, que visam fixar a pensão, presente ou futura, e seu modo de prestação.
Ainda assim, resta demonstrar que não se perde o caráter obrigacional inerente à prestação, podendo sempre haver revisão, na forma da lei, quando houver mudança na situação fática em que o acordo foi firmado. Neste sentido:
“DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ALIMENTOS. RECURSO ESPECIAL. REVISÃO DE ALIMENTOS. PEDIDO DE MAJORAÇÃO. ELEMENTOS CONDICIONANTES. MUDANÇA NA SITUAÇÃO FINANCEIRA DO ALIMENTANTE OU DO ALIMENTANDO. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÕES. NOVO JULGAMENTO. – A modificação das condições econômicas de possibilidade ou de necessidade das partes, constitui elemento condicionante da revisão e da exoneração de alimentos, sem o que não há que se adentrar na esfera de análise do pedido, fulcrado no art. 1.699 do CC/02. – As necessidades do reclamante e os recursos da pessoa obrigada devem ser sopesados tão-somente após a verificação da necessária ocorrência da mudança na situação financeira das partes, isto é, para que se faça o cotejo do binômio, na esteira do princípio da proporcionalidade, previsto no art. 1.694, § 1º, do CC/02, deve o postulante primeiramente demonstrar de maneira satisfatória os elementos condicionantes da revisional de alimentos, nos termos do art. 1.699 do CC/02. – Se não houve análise concernente à modificação da situação financeira das partes – aumento das necessidades da alimentanda, bem como das possibilidades econômicas do alimentante – em relação à época em que homologado o acordo de alimentos, a justificar a majoração dos alimentos tal como ocorrida, deve ser cassado o acórdão recorrido, para que outro seja proferido, em consonância com o entendimento desta Corte – acima referenciado – desta vez pronunciando-se o Tribunal de origem a respeito da omissão apontada pelo recorrente, para que a revisão de alimentos atinja o seu fim precípuo. – A revisibilidade munida da efetiva alteração da ordem econômica das partes há de ser o fator desencadeante de um Judiciário mais atento e sensível às questões que merecem peculiar desvelo como o são aquelas a envolver o Direito a Alimentos em Revisional, permitindo a pronta entrega da prestação jurisdicional, no tempo e modo apropriados, sem interpretações deslocadas. Recurso especial conhecido e provido”.[19] (Grifo nosso)
“INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. ACORDO. ALIMENTOS. TERMO INICIAL. 1. Em regra, os alimentos fixados na sentença retroagem à data da citação. Inteligência do art. 13, § 2º da Lei de Alimentos. 2. Se a ação de investigação de paternidade foi proposta contra o pai biológico e o pai registral, e se as partes entabularam acordo, no qual foi admitida a paternidade pelo réu, consoante exame de DNA, e desconstituído o registro civil, sendo ajustado o valor da pensão alimentícia, então o encargo alimentar tem vigência a partir do acordo homologado. Recurso desprovido”.[20] (Grifo nosso)
2.2.3 Impenhorabilidade
Tal característica, expressamente prevista no 1.707 Código Civil, supratranscrito, decorre da própria função e natureza dos alimentos, qual seja manter a vida digna da pessoa alimentada, que não dispõe de recursos próprios para tal. Nesse sentido, admitir a penhora consiste em privá-la do que é estritamente necessário a sua subsistência.
Dentro dessa questão é importante ressaltar que impenhorabilidade dos salários não abarca o pagamento das pensões alimentícias, conforme previsto no parágrafo 2º do artigo 649 do Código de Processo Civil[21]. Isso se da em razão da função do instituto a luz dos princípios constitucionais e valores sociais. Nesse sentido:
“MANDADO DE SEGURANÇA. SALÁRIO. PENHORABILIDADE. A impenhorabilidade dos salários tem como exceção o pagamento de prestação alimentícia. O art. 649, IV, do CPC merece interpretação em harmonia com o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, que permite ao magistrado aplicar a lei em atendimento aos fins sociais a que se dirige e às exigências do bem comum. O princípio da isonomia autoriza que se dê tratamento paritário a situações equivalentes, em que se deverá preservar a natureza alimentar do salário como também do crédito trabalhista (art. 100, § 1ª-A, da Constituição Federal). O bloqueio de 30% do valor dos salários mensais não configura violação do direito líquido e certo. Segurança parcialmente concedida, com a cassação da medida liminar”.[22] (Grifo nosso)
“RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ORDEM DE PENHORA DE 30% DOS PROVENTOS DE APOSENTADORIA DOS EXECUTADOS. ILEGALIDADE CONFIGURADA. NATUREZA ALIMENTÍCIA DO CRÉDITO PENHORADO. O Juízo da execução determinou a penhora de 30% dos proventos de aposentadoria de cada um dos executados na ação trabalhista originária, sendo esse o ato impugnado, mantido no acórdão recorrido, que firmou-se pela legalidade da penhora de percentual de proventos aposentadoria, dada a falta de provas, pelos impetrantes, de que todo o valor dos proventos estaria comprometido com o sustento próprio e da família, com o que não estaria comprovado direito líquido e certo, podendo haver, portanto restrição razoável sobre a fonte de subsistência para cobrir dívida trabalhista. Entretanto, tal exegese não legitima a constrição parcial de salários, pois a regra do art. 649, IV, do CPC é taxativa e a exceção a que alude o seu parágrafo segundo – penhora para pagamento de prestação alimentícia – é aquela decorrente de quem tem o dever legal de prestar o sustento vital de quem não pode fazê-lo por si, quer por laços de parentesco, quer por obrigação legal; a prestação alimentícia do § 2º do art. 649 do CPC tem caráter pessoal e natureza extrapatrimonial, o que não se enquadra na relação de credor-devedor, como é o caso do crédito decorrente de ação trabalhista, de característica puramente patrimonial. Nessa senda, aplicam-se as regras legais pertinentes e, ao caso incide a regra estabelecida no inciso IV do art. 649 do CPC, da impenhorabilidade absoluta dos proventos de aposentadoria. Entendimento consolidado na Orientação Jurisprudencial nº 153 desta Subseção Especializada II e inúmeros precedentes. Ilegalidade configurada. Recurso ordinário em mandado de segurança provido para cassar o ato que determinou o bloqueio e a penhora de 30% dos proventos de aposentadoria, devolvendo-se aos impetrantes os valores bloqueados/penhorados.”[23] (Grifo nosso)
2.2.4 Incedibilidade
A cessão deste crédito, seja por qual modalidade for feita, se opõe a natureza do instituto. Conforme dito acima, o artigo 1707 do Código Civil[24] veda expressamente essa possibilidade.
Menciona Orlando Gomes:
“Outorgado, como é, a quem necessita de meios para subsitir, e, portanto, concedido para assegurara sobrevivência de quem caiu em estado de miserabilidade, esse direito é, por definição e substancia, intrasferivel, seu titular não pode sequer ceder o seu credito que obteve em razão de se terem reunido os pressupostos da obrigação alimentar.”[25]
A fim de acompanhar a exegese da norma, os tribunais manifestam-se unanimemente da seguinte forma:
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO LEGAL (ART. 557, § 1º, DO CPC). HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. NATUREZA ALIMENTAR. CESSÃO DE CRÉDITO. VEDAÇÃO. PRECEDENTES. 1. A teor do art. 1.707 do Código Civil, as verbas de natureza alimentar não podem ser objeto de cessão. Noutro passo, considera-se que os honorários advocatícios, sejam eles contratuais ou sucumbenciais, possuem natureza alimentar, conforme já reiteradamente decidido pela jurisprudência. 2. Agravo conhecido e improvido”.[26]
2.2.6 Incompensabilidade
Ainda corolário do caráter personalíssimo do direito de pleitear alimentos e tendo em vista a sua razão de ser, afirma-se como princípio geral que o crédito por este gerado não pode ser compensado. Essa natureza especial ligada à finalidade da obrigação gera a necessidade de pagamento efetivo, para que o credor possa prover, de forma direta, sua subsistência.
Ainda que, na maioria das vezes, o pagamento seja efetuado em dinheiro, forma que, em regra, admite a compensação, nesta obrigação especifica encontra-se uma exceção, prestigiada pelo entendimento doutrinário e jurisprudencial; e corroborada pelo artigo 1.707 do CC.
Vejamos:
“APELAÇÕES CÍVEIS. DIVÓRCIO. PARTILHA. ALEGAÇÃO DO REQUERIDO DE QUE O IMÓVEL A SER PARTILHADO PERTENCE A SEU PAI. AUSÊNCIA DE PROVAS NESSE SENTIDO. REGISTRO DE IMÓVEL E FINANCIAMENTO DESTE APONTAM A TITULARIDADE DO REQUERIDO E DA SUA EX-COMPANHEIRA. PARTILHA MANTIDA. ALIMENTOS EM FAVOR DA MENOR. POSSIBILIDADE. VERBA QUE NÃO É SUSCETÍVEL À COMPENSAÇÃO EM RAZÃO DA GUARDA DE CADA UM DOS FILHOS ESTAREM COM PAIS DISTINTOS. FIXAÇÃO EM 50% SOBRE O SALÁRIO MÍNIMO. PREQUESTIONAMENTO SANADO. RECURSOS CONHECIDOS, SENDO DESPROVIDO O DO RÉU E PROVIDO O DA AUTORA. Não se pode falar em compensação de alimentos, já que tratam os alimentos de direito indisponível e personalíssimo, conforme inteligência do artigo 1.707, do Código Civil.”[27] (Grifo nosso)
No entanto, é pertinente mencionar que parte da doutrina faz uma importante ressalva, exemplificada nas palavras de Yussef Cahali: “parece-nos que o principio da não compensação das dividas deve ser aplicado ponderadamente, para que dele não resulte eventual enriquecimento sem causa da parte do beneficiário.” [28]
2.2.8 Imprescritibilidade
A Lei 5.478 de 25 de julho de 1968, que disciplina o rito procedimental da ação de alimentos, menciona expressamente no artigo 23[29] que o direito aos alimentos é imprescritível, sendo apenas as prestações mensais alcançadas pela prescrição do Código Civil.
Quanto ao dispositivo do código civil, tem-se que o atual artigo de lei que estabelece o prazo é o 206, §2º [30], o qual traz o prazo prescricional de dois anos. Conclusão relevante, então, é que o novo código civil não repetiu o prazo de cinco anos presente no artigo 178, §10, I do Código Civil de 1916 [31].
Assevera Cahali que “considera-se, assim, o direito de alimentos imprescritível, no sentido daquele poder de fazer surgir, em presença de determinadas circunstancias, uma obrigação em relação a uma ou mais pessoas (direito potestativo).” [32]
No que se refere às prestações prescritíveis, é forçoso concluir que se trata de prescrição em relação às prestações alimentares já fixadas, consideradas a partir da data em que se venceram, após a citação, convencionadas ou arbitradas judicialmente.
Com efeito, seguem essa linha os Tribunais de todo o pais:
“EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. PRESCRIÇÃO DO DÉBITO ALIMENTAR. OCORRÊNCIA. 1. Não corre o prazo prescricional entre ascendentes e descendentes durante o poder familiar, sendo que o prazo prescricional passou a fluir a partir da data em que o recorrente completou a maioridade civil, aplicando-se daí o biênio legal. Incidência dos art. 197, inc. II, e art. 206, § 2º, do CC. 2. Tendo transcorrido prazo muito superior a dois anos e sendo o alimentando maior de idade quando as prestações alimentares venceram, evidentemente é forçoso reconhecer a prescrição da verba alimentar objeto da ação de alimentos.”[33]
“Embargos do devedor. Execução de alimentos. Prescrição. 1 – Sendo maior e capaz o credor e tendo a execução sido promovida sob a égide do Código Civil em vigor, aplica-se o prazo prescricional nele previsto, podendo a prescrição ser reconhecida de ofício. Inteligência do art. 219, § 5º do CPC e do art. 206, § 2º, do CC/2002. 2 – A obrigação alimentar não cessa, por si só, com a maioridade do alimentando, e não havendo qualquer prova da exoneração do encargo alimentar, não há empecilho algum à execução. 3 – A prescrição não atinge a obrigação alimentar, apenas as parcelas alimentares anteriores ao último biênio contado da propositura da ação. Incidência do art. 219, ª 1º, CPC. Recurso provido”.[34] (Grifo nosso)
2.2.8 Irrepetibilidade
A verba alimentar, independentemente da natureza provisional ou definitiva, não admite repetição. Posição pacifica na doutrina e jurisprudência. Conforme demonstrado a seguir:
“Ação de execução de alimentos julgada extinta pelo pagamento do débito, com base no artigo 794, inciso I do CPC, impondo ao Executado os ônus da sucumbência. Apelação do Executado. Pretensão do Apelante de compensação do débito, que não é cabível, pois a obrigação alimentar é irrepetível, não se admitindo a sua compensação com quaisquer outras verbas. Conjunto probatório que evidencia o adimplemento do Apelante referente às despesas mensais de sua responsabilidade, pois ficou comprovado que todas as contas encontravam-se pagas, inclusive, por vezes, antes de seus vencimentos. Comprovação que somente foi apresentada pelo Apelante quando do oferecimento da exceção de pré-executividade, sendo de se concluir que tal comportamento deu causa à propositura da execução. Ônus da sucumbência corretamente impostos ao Apelante. Honorários advocatícios de sucumbência que comportam redução para R$ 1.000,00, montante mais compatível com critérios do art. 20, §§ 3º e 4º do CPC. Provimento parcial da apelação”.(Grifo nosso) [35]
“EMBARGOS. AÇÃO CONSTITUTIVA NEGATIVA. REJEIÇÃO LIMINAR. INTERESSE PROCESSUAL. MEMÓRIA DE CÁLCULO. ALIMENTOS. IRREPETIBILIDADE. PROCEDIMENTO DOS EMBARGOS. DETERMINAÇÃO JUDICIAL NÃO CUMPRIDA. 1. Os embargos têm o intuito de desconstituir a ação principal. 2. Pela inteligência do artigo 739 do cpc, o juiz pode rejeitar os embargos quando for inepta a petição. 3. O interesse de agir é provado pelo binômio necessidade e adequação. Necessidade porque é indispensável a atuação jurisdicional para a solução do conflito e adequação porque o caminho escolhido é apto a corrigir a lesão cometida pelo autor e descrita em sua exordial. 4. Por exigência do parágrafo 5º do artigo 739-a do cpc, caso os embargos tenham como fundamento o excesso de execução é necessária a memória de cálculo com o valor que entende correto, além, obviamente, da planilha do que eventualmente já foi adimplido. 5. O quantum recebido a título de obrigação alimentar é irrepetível, e uma vez pagos presumem-se consumidos, eis que se destinam a própria subsistência do alimentado. 6. A incompatibilidade do pedido com o procedimento dos embargos leva à sua rejeição, pois sobrevém a falta de interesse de agir. 7. A falta de cumprimento de determinação judicial quanto à emenda à inicial, leva ao indeferimento da exordial, em observância ao que dispõe o art. 295, vi, da lei adjetiva”. (Grifo nosso)[36]
O alimentado jamais terá o ônus de restituir o que recebeu, pois, visto o caráter subsistencial da prestação, este não incorrerá em enriquecimento ilícito, não havendo, então, causa para a sua oneração.
Entretanto, uma ressalva deve ser feita. Tem se admitido a repetição, nos tribunais, quando quem adimpliu a obrigação não a devia, ou seja, havendo prova de que caberia a um terceiro a prestação de alimentos, caberá contra este o pedido de restituição. Toma-se como base a vedação ao enriquecimento ilícito, visto que este, não cumprindo sua obrigação, enriquece em detrimento de outrem.
Outra questão que vem sendo relativizada, admitindo-se a repetição, é no caso da divorciada esconder, dolosamente, a constituição de um novo vinculo conjugal, a fim de manter a pensão, contrariando o disposto no artigo 1.708 do Código Civil [37]. Neste caso, tendo em vista a conduta ilícita da parte credora, deve a mesma restituir o valor recebido desde o momento em que se romperia a obrigação, a constituição da nova sociedade afetiva.
3. RELAÇÃO JURÍDICA OBRIGACIONAL ALIMENTAR
3.1 Constituição da obrigação
Passada a análise conceitual preliminar, sabe-se que a prestação alimentícia tem a finalidade de atender a necessidade do ser humano, que não consegue, por si só, prover sua própria manutenção. Dito isto, tendo como base o atual ordenamento, a obrigação apresenta diversas formas de se constituir, que serão por ora analisadas.
Preliminarmente, é pertinente esclarecer que o legislador não se preocupou em distinguir a obrigação em razão da sua origem, seja ela relação de parentesco, como os destinados a ascendentes ou descendentes, rompimento da sociedade conjugal, ato ilícito, etc.
A vontade das partes é uma forma de constituição da obrigação, podendo ser manifestada através de contrato ou testamento. É necessário considerar que a primeira forma raramente ocorrera na prática, tendo maior incidência nos casos de separação consensual, nos quais há uma convenção da pensão a ser paga.
A segunda materializa a vontade do de cujos na forma de um testamento, pelo qual pode o testador impor a um herdeiro a obrigação de prestar alimentos a um legatário. Aqui não se tem a prestação em razão de uma relação de parentesco, pois não é necessário esse vinculo para a manifestação de vontade no testamento.
Outra fonte a ser mencionada é o ato ilícito. Neste caso o causador de um dano fica obrigado a pagar pensão alimentícia à vítima ou a sua família, é instituto de responsabilização civil, posto em prática mediante ao pagamento da indenização. Esta forma não é disciplinada no direito de família. Ocorre, por exemplo, nos casos de homicídio em acidente automobilístico, em que o causador do evento danoso é compelido a pagar alimentos à família da vítima.
Por fim, a prestação de alimentos derivada de lei. Fundamenta-se no artigo 1694 do Código Civil de 2002[38], pelo qual os parentes, cônjuges ou companheiros podem, mutuamente, solicitar uns dos outros alimentos, a fim de viver de modo compatível com sua condição de vida, inclusive para suprir as necessidades referentes à educação.
Os alimentos de que tratamos decorrem, então, de três causas:
a) do Poder Familiar (dever de sustento entre pais e filhos);
b) da relação de parentesco; e
c) da condição de cônjuge ou companheiro.
Vale ressaltar que cônjuge também é parente. Porém, como a lei civil cuidou de individualizá-lo quando elencou expressamente aqueles que podem pleitear os alimentos, assim também é feito aqui[39]. Nesse sentido, considera-se como efeito do casamento e da união estável o dever de assistência recíproca dos cônjuges/companheiros, o qual integra a prestação de alimentos.
3.2 Requisitos
A doutrina aponta os requisitos necessários à concessão dos alimentos sob diferentes parâmetros. No presente trabalho segue-se a classificação exposta por Caio Mario da Silva Pereira, em seu manual do Direito de Família[40].
3.2.1 Necessidade
Os alimentos são devidos quando o alimentando não possui bens suficientes, e, além disso, está impossibilitado de prover, pelo seu trabalho, à própria subsistência. Neste sentido, se depreende que não importa o motivo que o levou aquela situação, tanto de incapacidade quanto de desemprego.
É fundamental que quem pleiteie os alimentos não tenha bens nem capacidade para prover a sua subsistência. A base de criação do instituto é a necessidade vital e a manutenção da vida digna do alimentando. Não se cogita ou pretende estimular a ociosidade ou o parasitismo. Conclusão correta então é que a obrigação de prestar alimentos é subsidiaria, posto que o indivíduo, em regra, deve prover o próprio sustento.
Salienta Yussef Said Cahali:
“A impossibilidade de prover, o alimentando, a própria mantença pode advir da incapacidade física ou mental para o trabalho; doença, inadaptação ou imaturidade para o exercício de qualquer atividade laborativa; idade avançada; ou crise econômica de que resulte absoluta falta de trabalho.”[41]
3.2.2 Possibilidade
Tal requisito vem complementar o citado anteriormente, de forma que representam em conjunto o pilar da obrigação, o binômio necessidade/possibilidade, conforme o exposto no artigo 1695 do CC/02[42].
Assim sendo, para que exista a obrigação alimentar é necessário que a pessoa a quem se reclamam os alimentos tenha condição de fornecê-los, sem que haja qualquer privação a sua condição natural.
Nas palavras de Caio Mario: “o alimentante os prestará sem desfalque do necessário ao próprio sustento. Não encontra amparo legal que a prestação de alimentos vá reduzi-lo a condições precárias, ou lhe imponha sacrifício para a sua condição social.” [43]
Dessa forma, caso o alimentante não tenha meios para fornecer a totalidade dos alimentos necessários, em razão do prejuízo ao próprio sustento, deverá fazê-lo dentro do limite possível, respeitada uma proporção que não lhe afete a dignidade e condições anteriores. Caso não seja suficiente, caberá ao alimentando reclamar a outro parente a complementação.
Por fim, importa salientar que o parâmetro para a fixação de tal requisito são os rendimentos auferidos pelo alimentante. Visto que não seria cabível que este fosse obrigado a se desfazer de seu patrimônio para adimplir a obrigação.
3.2.3 Proporcionalidade
Os alimentos, para sua fixação, devem levar em consideração o binômio supracitado, tendo em vista que este instituto não visa o enriquecimento do alimentando. Sendo assim, não se justifica a exigência para além das necessidades do alimentando, ainda que o devedor tenha elevada condição financeira.
No mesmo sentido, não pode o devedor arcar com uma alta prestação, que venha a sacrificar o seu próprio sustento ou de sua família, em razão da alta estima ou necessidade do alimentando.
Desta forma, os alimentos deverão ter, quando da sua fixação, as condições pessoais e sociais do alimentante e do alimentado, conciliadas.
Veja-se:
“Agravo de instrumento. Alimentos provisórios. Observância do art. 400 do código civil. Binômio necessidade/possibilidade. Manutenção da verba em trinta salários mínimos. Admissibilidade. Família que detinha alto padrão de vida. Recurso não provido. Analisando o binômio necessidade e possibilidade a ser empregado nos casos de fixação de alimentos, admite-se a fixação destes no equivalente a trinta salários mínimos quando o alimentante é um empresário, ostentando vasto patrimônio, considerando, além disso, que a família, que era composta por seus dois filhos e sua esposa, ora alimentados, possuía elevado padrão de vida, razão pela qual deve ser mantida a decisão do juízo a quo que fixou os alimentos no percentual supracitado, precipuamente quando o alimentante, conquanto a aponte excessiva, não deixa evidenciada, por prova robusta, a sua impossibilidade financeira de suportar com o valor fixado. PRETENDIDA DISCUSSÃO ACERCA DOS BENS DO CASAL EM SEDE DE AGRAVO DE INSTRUMENTO. INADMISSIBILIDADE. AÇÃO PRÓPRIA. Não se admite a discussão acerca da divisão dos bens do casal em sede de agravo de instrumento, devendo ser decidida nos autos de ação própria.”[44] (grifo nosso)
3.2.4 Reciprocidade
A Constituição Federal (CF) traz parâmetros sociais de amplo amparo e assistência nas relações familiares, regra que norteia todo o ordenamento e visa garantir o desenvolvimento digno a todos os membros da família. Imerso nesse contexto, o artigo 229 da Constituição Federal [45] remete á regra da reciprocidade nas relações familiares entre pais e filhos, no que toca, inclusive, as prestações de alimentos.
Ou seja, na mesma relação familiar, o parente que, em principio, é devedor de alimentos, pode se tornar credor, podendo reclama-los, se vier a necessitar deles, inclusive daquele que anteriormente era seu credor. Os pólos da relação podem variar de acordo com as condições fáticas dos indivíduos inseridos na relação.[46]
3.3 Extinção da obrigação
A legislação civil prevê expressa e objetivamente apenas algumas poucas situações de extinção da obrigação alimentar: casamento, união estável ou concubinato do credor (CC/02, artigo 1.708[47]), além de comportamento indigno do credor em relação ao devedor.
Quanto ao casamento, por se tratar de ato jurídico solene, a prova se faz mediante apresentação da certidão expedida pelo Oficial do Registro Civil. Todavia, quanto à união estável e ao concubinato dependerão de prova de sua configuração e/ou declaração judicial de sua existência, em processo regular, sob o crivo do contraditório ou, ainda, no caso da primeira, mediante apresentação de escritura pública, caso existente.
Já no que diz respeito à indignidade, esta também poderá ser provada nos próprios autos da ação de alimentos ou de exoneração de pensão, assim como poderá também, ser utilizada prova emprestada de eventual ação declaratória ajuizada para fins sucessórios. Isso porque se aquele que postula alimentos foi declarado indigno no juízo sucessório (da herança) também será considerado indigno para pleitear alimentos do cônjuge, do ascendente e dos descendentes do falecido.
Aplicam-se aos casos de (des)obrigação alimentar as mesmas causas de indignidade previstas para a sucessão causa mortis, artigo 1.814 CC/02[48].
No que tange aos alimentos devidos entre pais e filhos, a lei não cuidou de tratar expressa e minuciosamente das causas de cessação da obrigação alimentar. Não há na lei civil um critério objetivo para o término de tal obrigação alimentar.
Como visto, mesmo cessado o dever de sustento decorrente do Poder Familiar, os filhos maiores têm direito de pleitear alimentos dos pais, caso venham a necessitar de auxílio para prover o próprio sustento, desde que os pais possam arcar com tal encargo.
Conforme se depreende dos seguintes julgados:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE EXONERAÇÃO DE ALIMENTOS. PEDIDO ALTERNATIVO DE FIXAÇÃO DE LIMITE TEMPORAL DE VIGÊNCIA DOS ALIMENTOS. FILHA MAIOR QUE FREQUENTA CURSO SUPERIOR. Descabe fixar termo final para a obrigação alimentar devida à filha maior que freqüenta curso superior e não trabalha, porque o que extingue a obrigação alimentar é a ausência de necessidade ou de possibilidade, e não a maioridade do alimentado. APELAÇÃO DESPROVIDA”. (grifo nosso) [49]
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ALIMENTOS. MAIORIDADE CIVIL. ALIMENTANDA ESTUDANTE UNIVERSITÁRIA. MAJORAÇÃO DO QUANTUM. IMPOSSIBILIDADE. OBRIGAÇÃO ALIMENTAR QUE DECORRE DA SOLIDARIEDADE FAMILIAR. ALIMENTOS PRETÉRITOS. COBRANÇA. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. cálculo dos honorários de advogado. regra do art. 20, § 3º, do cpc. incidência. anuidade. 1 -odever de sustento entre pais e filhos cessa com a maioridade destes, sendo essa uma das causas de extinção do poder familiar. todavia, na forma estabelecida pelo artigo 1.694 do código civil,se o filho maior encontrar-se em fase de complementação da sua educação, ressurge a obrigação alimentar do ascendente, derivada da solidariedade familiar e fundamentada no parentesco. 2- com base no artigo 1.695 do cc, no caso de filho maior e estudante, a obrigação alimentar tem caráter complementar, portanto, a necessidade do alimentando se circunscreve à sua incapacidade de exercer atividade remunerada que lhe dê condições de prover seus estudos, devendo o valor da prestação ser aquele suficiente para arcar com a sua formação profissional. 3- a cobrança de alimentos pretéritos do alimentante que, por liberalidade, efetua depósitos bancários em favor da alimentanda anteriores ao ajuizamento da ação de alimentos não encontra guarida no ordenamento jurídico brasileiro, pois tal voluntariedade não se traduz em relação obrigacional capaz de gerar os efeitos da inadimplência. 4- o arbitramento dos honorários advocatícios nas ações de alimentos segue o mesmo parâmetro para a fixação do valor da causa, qual seja a soma das doze prestações mensais (artigo 259, vi, cpc), o que significa dizer que o valor-base sobre o qual deve incidir o percentual previsto no § 3º do artigo 20 do cpc para o cálculo dos honorários advocatícios corresponde a uma anuidade da verba alimentar. 5 – recurso parcialmente provido. Unânime”.[50]
Sob outra análise, prevê o artigo 1.699 Código Civil de 2002[51] a possibilidade do interessado reclamar ao juiz alteração/exoneração da prestação, caso lhe sobrevenha mudança na situação patrimonial. Esta norma retrata os critérios da necessidade/possibilidade, que devem ser observados ao longo de toda a prestação.
Diante do princípio da proporcionalidade, o valor deve ser alterado caso seja comprovada a alteração na situação de fato de uma das partes, podendo então ocorrer a extinção da obrigação, com a exoneração do devedor, por mudança superveniente.
Assevera Caio Mario:
“Se a situação econômica do alimentante ou do alimentado mudar de tal modo que o primeiro não os possa prestar, ou não os suporte no quantitativo determinado; ou e o alimentado melhorar as condições, poderá o juiz exonerar o devedor, ou reduzir o encargo. Reversamente, se o credor de alimentos vier a necessitar de reforço da prestação, e o devedor o suportar, pode o suprimento ser agravado. Em qualquer dessas circunstancias, cabe ao interessado ingressar com ação própria de revisão de cláusula ou exoneração de pensão, na qual será comprovado o fato que justifique a mudança.” [52]
4. A TRANSMISSÃO DA OBRIGAÇÃO ALIMENTAR
4.1 O Código Civil de 1916 e a intransmissibilidade da obrigação alimentar
A intransmissibilidade dos alimentos decorreria do caráter personalíssimo conferido a obrigação, estando prevista no artigo 402 do Código Civil de 1916[53]. Neste caso, tanto o direito aos alimentos quanto a obrigação alimentar se extinguiriam com a morte de uma das partes da relação jurídica.
Em se tratando de morte do credor é fácil compreender a intransmissibilidade, visto que o direito é pessoal, intransferível. Sendo assim, os herdeiros do credor da obrigação alimentar não poderiam demandar a continuidade da prestação.
Já nos casos de morte do devedor, a literalidade do artigo 402 do Código Civil de 1916 era aplicada. Depreende-se então que nesta situação, da mesma forma que a anterior, não ficariam os herdeiros do devedor obrigados a cumprir a prestação. Veja-se um julgado datado do ano de 2001, o qual demonstra claramente a posição dos tribunais, consoante a letra da lei:
“PROCESSUAL CIVEL. OBRIGACAO ALIMENTAR. FALECIMENTO DO ALIMENTANTE. INTRANSMISSIBILIDADE. ART. 267,IX, DO CPC.EXTINGUE-SE O PROCESSO SEM JULGAMENTO DO MERITO, PORQUENTO, IN CASU, DETECTADO O FALECIMENTO DO ALIMENTANTE, E OSTENTANDO A OBRIGACAO ALIMENTAR CARATER PERSONALISSIMO, A REGRA GERAL E A INTRANSMISSIBILIDADE DAQUELA.PROCESSO EXTINTO”. [54]
Neste cenário, importa ressaltar que tais herdeiros, caso fossem igualmente necessitados, poderiam reclamar alimentos em nome próprio, caso apresentassem os requisitos necessários para a configuração da obrigação. Não haveria então que se falar em sucessão do direito aos alimentos.
Situação diversa ocorre quando o crédito já constituído se encontra em atraso. Neste caso a soma já faz parte do patrimônio do credor, integrando assim o monte hereditário. Nas palavras de Pontes de Miranda:
“Os alimentos, que em vida do necessitado se venceram e não lhe foram pagos, os seus herdeiros os poderiam reclamar, eis que se tratava de direito definitivamente adquirido pelo alimentário, já integrado em seu patrimônio, e, como tal, perfeitamente transmissível.” [55]
4.2 Evolução na Legislação extravagante
A inovação legislativa no tocante a transmissibilidade da obrigação alimentar se deu, inicialmente, com o artigo 23 da Lei do Divórcio (número 6.015 do ano de 1977), que apresenta a seguinte redação: “a obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor, na forma do art. 1.796 do Código Civil.”
De acordo com o autor do projeto:
“O que se pretendeu foi contrariar uma doutrina tradicional de que os alimentos são intransferíveis, porque neste caso, pelo artigo 23 asseguramos, ainda depois de morto o marido, à mulher, se ele deixou bens, o bastante para que ela seja alimentada. Portanto, não é um dispositivo desumano, não é um dispositivo cruel. É um dispositivo que atende à realidade.” [56]
Os que corroboravam tal entendimento, em sede doutrinária, sustentavam que o artigo 402 do Código Civil de 1916 teria sido derrogado pelo artigo supracitado. Dentre eles, Theotônio Negrão[57] e Domingos Sávio Brandão de Lima[58].
Dessa forma, a herança responderia pelo pagamento de dívidas do de cujus, a partir da partilha os herdeiros responderiam em nome próprio, respeitado o quinhão recebido. Sendo assim, até o encerramento do inventário caberia ação de alimentos contra a herança, efetuada a partilha, a ação passaria a ser direcionada aos herdeiros que receberam tal herança.
No entanto, esta inovação não foi bem recebida de forma unânime pela doutrina. Os argumentos amparavam-se nas mais variadas vertentes. Levenhagen, por exemplo, menciona que tal artigo extinguiu o caráter personalíssimo da obrigação, que sempre fora reconhecido pelo nosso direito. [59]
Acompanha-o Mário Moacyr Porto, usando como argumento a distinção entre a obrigação de natureza alimentar e a obrigação alimentar de caráter indenizatório, ou seja, aquela que visa ressarcir prejuízo que um dos cônjuges causou ao outro, paga na forma de pensão alimentícia. Seria transmissível apenas esta última, pois seria considerada dívida do espólio. A regra da intransmissibilidade do art. 402 CC/1916 estaria plenamente em vigor, não se transmitindo a dívida de natureza alimentar.[60]
No mesmo sentido, vinha prevalecendo na jurisprudência que o termo final da obrigação é o mesmo do falecimento de uma das partes, permanecendo intacto o dispositivo 402 do Código Civil de 1916.
Então, isto equivale a dizer que responderiam os herdeiros do devedor apenas pelos débitos alimentares do próprio de cujus, vencidos até a sua morte e obedecidas às forças da herança, em respeito ao artigo 1.796[61] do mesmo diploma legal.
Nas palavras de Yussef Cahali:
“O que, em realidade, vinha sendo sustentado por alguns autores é que o principio da intransmissibilidade da obrigação, a que se referia o 402 do CC/1916, teria sido preservado na sua integridade, de tal modo que o artigo 23 da Lei do Divórcio nada teria de inovador, tendo o cuidado apenas de expicitar a responsabilidade dos herdeiros pelas prestações atrasadas, nos limites do artigo 1.796 do CC/1916.” [62]
Quanto a esta conclusão, Bertoldo Mateus de Oliveira Filho acentua:
“Entretanto, era evidente que o advento do artigo 23 da Lei do Divórcio não se resumia a preconizar a transmissão da obrigação alimentar aos herdeiros enquanto dívida existente no momento do falecimento daquele incumbido de prestar alimentos, vez que isso serio ocioso e redundante quando tal já estabelecia o artigo 1.796 do então Código Civil.” [63]
Em verdade, a partir de uma evolução interpretativa, admitiu-se que a alteração trazida na Lei do Divórcio, por se tratar de norma especial, abrangeria as relações delimitadas na citada Lei, ou seja, aquelas ligadas à separação judicial. Nestes termos, o Superior Tribunal de Justiça se manifestava:
“CIVIL. ALIMENTOS. ESPÓLIO. A transmissibilidade da obrigação de prestar alimentos, prevista no artigo 23 da Lei nº 6.515, de 1977, é restrita às pensões devidas em razão da separação ou divórcio judicial, cujo direito já estava constituído à data do óbito do alimentante; não autoriza ação nova, em face do espólio, fora desse contexto. Recurso especial não conhecido.”[64] (Grifo nosso)
Sendo assim, não se poderia dizer que o dispositivo em nada alterou a intransmissibilidade da obrigação alimentar, mas, desta mesma forma, afirmar que houve a derrogação do artigo 402 do Código Civil de 1916 ainda era equivocado e precipitado.
Seguindo essa argumentação, Silvio Rodrigues menciona:
“O fato de a Lei 6.515, de 26/12/1977, não ter alterado o artigo 402 (a despeito de seu artigo 50 ter modificado muitos outros), conduz o intérprete ao convencimento de que o legislador, embora não fosse claro ao determinar a tranquilidade aos herdeiros da obrigação alimentícia, quis se referir aos alimentos devidos por um cônjuge ao outro e não aos alimentos derivados do parentesco (arts 396 e ss do CC).”[65]
Assevera Cahali: “Assim, mantido como norma geral o principio da intransmissibilidade, a transmissibilidade introduzida pela reforma inovadora teria caráter excepcional: coexistiria com aquela, aplicando tão somente a situação nela implícita.” [66]
Desse entendimento emergiu outra questão: e quanto aos alimentários filhos? Seriam estes abrangidos pela transmissibilidade da obrigação?
Cabe analisar que a transmissão da obrigação em relação aos filhos não tem muita justificativa prática, visto que estes, a quem foi garantido o direito a alimentos, seja na separação dos pais ou por outro motivo, serão herdeiros do de cujus.
Assim, sendo o quinhão hereditário o bastante para lhes garantir a vida digna, não há que se falar em continuidade da prestação alimentícia. Da mesma forma, se o quinhão não for suficiente, pode o herdeiro solicitar alimentos, de acordo com a situação patrimonial em questão. Antunes Varela compartilha tal entendimento em seu manual.[67]
Impende ressaltar que, a época, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) se manifestava a favor da concessão da pensão alimentícia ao herdeiro quando este demonstrasse necessidade no decorrer do processo, conforme ementas a seguir:
“DIREITO CIVIL. OBRIGAÇÃO. PRESTAÇÃO. ALIMENTOS. TRANSMISSÃO. HERDEIROS. ART. 1.700 DO NOVO CÓDIGO CIVIL. 1 – O espólio tem a obrigação de prestar alimentos àquele a quem o de cujus devia, mesmo vencidos após a sua morte. Enquanto não encerrado o inventário e pagas as quotas devidas aos sucessores, o autor da ação de alimentos e presumível herdeiro não pode ficar sem condições de subsistência no decorrer do processo. Exegese do art. 1.700 do novo Código Civil. 2 – Recurso especial conhecido mas improvido.”[68]
“ALIMENTOS. Sucessão. Ação contra espólio. O filho menor tem o direito de promover ação cautelar para obter alimentos provisionais do espólio do pai, enquanto se processa o inventário. Interpretação do art. 23 da Lei 6.215/77. Art. 402 do CCivil. Recurso conhecido e parcialmente provido.”[69]
Dito isso, seguindo adiante, é certo que o interesse a respeito do qual a matéria se torna controvertida é relativo à obrigação alimentícia fora da separação judicial ou divórcio, que se trata da pretensão dos filhos ainda não reconhecidos, e, por conta disto, não investidos na condição de herdeiro.
Então, de acordo com Oliveira Filho, a razão de ser da norma funda-se na preservação dos meios de sobrevivência do alimentado em caso de morte do alimentante, quando eventual demora na sucessão possa significar a privação de recursos essenciais à uma vida condigna e assistida.[70] Nesse sentido menciona ainda o seguinte acórdão do Superior Tribunal de Justiça:
“ALIMENTOS. Sucessão. Ação contra espólio. O filho menor tem o direito de promover ação cautelar para obter alimentos provisionais do espólio do pai, enquanto se processa o inventário. Interpretação do art. 23 da Lei 6.215/77. Art. 402 do CCivil. Recurso conhecido e parcialmente provido”.[71]
Majoritariamente[72], não era admitida configuração da obrigação após a morte do legitimado passivo. Dessas forma, se transmitia aos filhos do de cujus a obrigação alimentícia quando já houvesse o reconhecimento de paternidade, transferindo a carga do pagamento das pensões ao espólio.
Brilhantemente, conclui Sergio Gilberto Porto:
“Como bem demonstram as manifestações enunciadas, com o advento da Lei do Divórcio, instaurou-se verdadeira crise em torno da questão da intransmissibilidade da obrigação alimentar, e esta se tornou tese de trânsito não muito fácil, nos meios jurídicos. Realmente, a tranqüilidade de antes em torno do assunto passou a ser representada pela incerteza de, no mínimo, três posições diferentes, a saber: (a) aqueles que entenderam ser o art.23 da Lei do Divórcio inútil, pois sua singeleza no poderia abalar uma estrutura tradicional preexistente; (b) os que entenderam que o art 23 revogou totalmente o art. 402 CC/1916, mudando, portanto, por completo o sistema que ate então estava a viger; (c) finalmente, aqueles que sustentaram não ter havido revogação do art. 402 do CC/1916, e que este coexistia com o art. 23 da Lei do Divórcio.”[73]
4.3 O Código Civil de 2002: artigo 1.700
Há de se perceber que o cenário introduzido pelo artigo 23 da Lei do Divórcio era bastante controvertido, tanto no entendimento doutrinário quanto jurisprudencial. Nesse contexto, a época da confecção do novo Código Civil, os operadores da matéria já esperavam que tais controvérsias fossem sanadas, através do texto legislativo.
Com efeito, após demorada tramitação do projeto do novo Código Civil, mediante emenda feita pelo Senado Federal, foi aprovada a seguinte redação para o artigo 1.700: “ A obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor, na forma do artigo 1.694.”
Daí emergem algumas questões que devem ser abordadas, a começar pelo fato de que foi confirmada a derrogação do artigo 402 do Código Civil de 1916. Desta forma, aqueles que já partiam desse pressuposto com a interpretação do artigo 23 da Lei do Divorcio, tiveram seus estudos e conclusões aproveitadas.
Neste diapasão, não foi repetida no Código Civil atual a regra da intransmissibilidade e, por conta disto, deixou também de existir a transmissibilidade excepcional das relações de separação judicial e divórcio, defendida anteriormente por parte da doutrina.
Seguindo esta linha, é certo que o artigo 1.700 do atual Código Civil não é uma simples reprodução do artigo 23 da Lei do Divórcio. Uma diferença acentuada entre os dois artigos está na forma que a transmissão deve se efetuar, no primeiro caso respeitando o delimitado no artigo 1.694[74] do Código Civil de 2002, e no segundo, o 1.796[75] do Código Civil de 1916.
Nas palavras de Yussef Said Cahali:
“A se aceitar como intencional e correta a remissão feita pelo novel legislador ao artigo 1.700 do CC/2002, ter-se-á instituído uma categoria especial de obrigação alimentícia de natureza hereditária, na medida em que o beneficiário a quem o falecido deveria prestar alimentos não estará sempre, e necessariamente, vinculado aos herdeiros legítimos e testamentários do de cujus por uma relação de parentesco ou muito menos conjugal.” [76]
Por conseguinte, é certo que a transmissibilidade ora mencionada torna-se regra geral e exclusiva, na forma do artigo 1.700 do Código Civil de 2002. Nessas condições, podem reclamar alimentos aos herdeiros do falecido alimentante o cônjuge, ou ex-conjuge, ex-companheiro, os filhos, e todos os demais, compreendidos no rol do artigo 1.696 do Código Civil de 2002.
Porém, não é unânime na doutrina a concordância com tal dispositivo, Washington Epaminondas Medeiros Barra, em sua manifestação sobre o tema no manual referente ao Novo Código Civil, assim expõe:
“a regra é injusta, salvo erro ou engano. Imagine-se a hipótese de ser o alimentário herdeiro do alimentante juntamente com a viúva deste, que não é genitora do beneficiado. Estar-se-á transferindo a terceiro, estranho, a obrigação de alimentar alheio.”[77]
Cumpre salientar que a transmissão hereditária da obrigação de prestar alimentos somente poderá ocorrer nos casos de sucessão aberta após a entrada em vigor do Código Civil de 2002, conforme dispõe no artigo 1.787[78].
Ressalte-se que não se pode confundir a data da abertura da sucessão com a data da abertura do inventário. A primeira ocorre no momento do falecimento, por isso será aplicada a lei em vigor neste exato momento, pouco importando se os autos do inventário tenham sido abertos em data posterior.
Por fim, deve ser tratada a questão do termo final da sucessão da obrigação alimentar constante no art. 1.700 do Código Civil. Com brilhantismo nos explica Yussef Said Cahali:
“Não se pode deixar de reconhecer uma distinção do devedor originário de alimentos, cuja morte determina a sucessão de seus herdeiros na obrigação alimentar; e devedor de alimentos por sucessão do devedor primitivo, e cuja morte não determina a transmissão sucessiva do encargo aos seus eventuais herdeiros. Em outros termos, a sucessão da obrigação alimentar estatuída pelo art. 1.700 não vai além do primeiro grau, isto é, não vai além dos herdeiros do devedor primitivo.”[79]
Francisco José Cahali, diante da nova regra trazido pelo atual Código Civil, diz que "antes de trazer solução, o novo Código, também neste particular, inaugura nova fase de conflitos e incertezas, desafiando Tribunais e estudiosos a encontrar a melhor exegese à regra da transmissibilidade da obrigação alimentar, projetada para também ocorrer nos alimentos originados do vínculo de parentesco." [80]
4.4 Direito Comparado
No direito estrangeiro, a tendência quanto a obrigação alimentar é moderada. As soluções encaradas nos outros países nos ervem de embasamento e ajudam na construção da interpretação doutrinária e jurisprudencial.
Iniciamos a análise pelo Código Civil Português, o qual observa o caráter pessoal da obrigação a partir da norma trazida pelo artigo 2.013[81]. Desta forma, obrigação de prestar alimentos não se transmite aos herdeiros, nem do alimentante, tampouco do alimentado.
Somente pode o alimentado requerer alimentos dos herdeiros caso sejam eles legitimados passivos da nova obrigação a que o mesmo pleiteia, ou seja, por direito próprio. Sendo assim, considera-se extinta a prestação com a morte de uma das partes da relação jurídica.
Uma observação interessante, prevista no artigo 2018[82] do Código Civil Português, remete ao “apanágio do cônjuge sobrevivo”. Restando um dos cônjuges viúvo, o mesmo tem direito a buscar alimentos dos frutos dos bens deixados pelo falecido. Os herdeiros ou legatários são vinculados a este com relação aos bens que lhes foram transmitidos.
Ressalta-se que aqui não se trata de transmissão da obrigação de prestação de alimentos em razão da sucessão, visto que ela em nenhum momento esta obrigação se constituiu. Tal instituto tem por objetivo apenas remediar uma possível necessidade do viúvo.
Nas palavras de Jose de Oliveira Ascensão: “representa um direito a alimentos, que o cônjuge sobrevivo tem por direito próprio, e só repercute em matéria de sucessões por constituir um encargo da herança.”[83]
Seguindo a abordagem, tem-se que no Código Civil Argentino a transmissão da obrigação também não é admitida, norma taxada no artigo 374[84]. Ao regular a obrigação entre parentes, menciona que a mesma se extingue com a morte de uma das partes.
Porém, o próprio Código Civil, no artigo 208, §2º, estabeleceu uma ressalva. Nos casos delimitados no artigo, que se referem à prestação entre cônjuges, ficando um deles viúvo, pode, então, requerer alimentos à herança. Essa obrigação aqui delimitada deve ser considerada de forma subsidiária, não existindo parentes mais próximos para prestar alimentos busca-se os herdeiros do de cujus.
Na Espanha repetem-se os entendimentos anteriores. A obrigação cessa com a morte de uma das partes (artigos 150[85] e 152[86] do Código Civil). Há ressalva também aos cônjuges viúvos, quando houver pensão alimentícia fixada em razão de separação ou divórcio. Nesse ponto destaca-se que os herdeiros podem pedir revisão desta pensão a qualquer tempo, buscando alteração com razoabilidade, demonstrada a possibilidade do patrimônio hereditário.
Em se tratando da intransmissibilidade da obrigação alimentar, o direito Italiano acompanha o entendimento dos demais, acima mencionados. O Código Civil expõe que a obrigação cessa com a morte de uma das partes, a qual extingue o vínculo existente entre elas. Tal posição se dá em razão do caráter personalíssimo da obrigação.
Quanto à França, também em respeito ao caráter personalíssimo inerente à obrigação em questão, a regra é a intransmissibilidade. No entanto, a lei traz como ressalva a transmissão hereditária do direito de alimentos em favor dos filhos adulterinos e do divorciando inocente.
Por fim, na Alemanha, o artigo 1.615, 1, do BGB,determina a extinção da obrigação com a morte do credor ou devedor, ressalvadas apenas as prestações já vencidas ou pendentes de cumprimento, que podem ser buscadas nas forças da herança.
Apenas mais uma questão apresentada no artigo 1.586-A do BGB, que se refere aos alimentos devidos em razão do divorcio. Estes são abrangidos pela transmissibilidade sucessória. No entanto, caso o cônjuge viúvo contraia novo matrimonio tal obrigação automaticamente cessa, podendo ser retomada com a dissolução do matrimônio.
Diante dessa sucinta abordagem, pode-se inferir que grande parte dos ordenamentos mantém como regra a intransmissibilidade, ressalvadas algumas hipóteses particulares, geralmente ligadas a condição do (ex) cônjuge.
5 LIMITES DA TRANSMISSÃO
5.1 Fixados antes ou após o óbito
O artigo 1.700 do Código Civil de 2002 sana as divergências quanto à transmissibilidade da prestação de alimentos. No entanto, a norma é silente no tocante às suas limitações e, por conta disso, emergem questões quanto a sua devida aplicação. A primeira delas refere-se ao tempo em que os mesmos foram fixados. A divergência ocorre em sede doutrinária, gerando as seguintes orientações:
Em primeira análise, parte majoritária da doutrina considera que podem ser transmitidos os alimentos já configurados, estabelecidos por convenção ou decisão judicial. Sendo, então, impossível postular alimentos em face do espólio ou herdeiros se inexistia a obrigação prévia. Exige-se ao menos que a ação de alimentos já tenha ido proposta contra o de cujus, quando este ainda encontrava-se vivo.
Consultado o website do Superior Tribunal de Justiça, segue recente publicação compilando o entendimento do Tribunal, representado pela Quarta Turma, nos seguintes termos:
“Não cabe ação alimentar contra espólio de alimentante sem que haja pensão estabelecida por acordo ou sentença judicial.
A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu não ser possível o ajuizamento de ação de alimentos contra espólio de alimentante, se quando do falecimento do autor da herança, não havia alimentos fixados em acordo ou sentença em seu favor. A decisão foi unânime.
O recurso era contra decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF) que entendeu que o cabimento de ação de alimentos contra o espólio do alimentante só ocorre nos em que já havia a obrigação de prestar alimentos antes do falecimento.
Para o TJDF, o espólio não tem legitimidade para figurar no polo passivo de ação de alimentos que tem por fim o estabelecimento de obrigação originária, principalmente quando a pretensão do autor é de receber a pensão por morte deixada por seu genitor, caso em que o meio adequado é a habilitação como beneficiário junto ao órgão pagador.
A defesa insistiu no argumento de que, por ser filho do autor da herança, ele poderia ajuizar ação contra o espólio para obter alimentos provisórios até a solução do inventário. Argumentou, ainda, que o falecido prestava assistência material ao filho e que os artigos 1.695 e 1.696 do Código Civil (CC) não afastam a possibilidade do ajuizamento de ação.”[87]
Representando tal posicionamento, as seguintes ementas:
“CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DE ALIMENTOS. CONCUBINATO. PENSÃO AINDA NÃO INSTITUÍDA PELA JUSTIÇA AO TEMPO DO ÓBITO. IMPOSSIBILIDADE DE PROSSEGUIMENTO CONTRA O ESPÓLIO. LEI N. 6.515/1977, ART. 23. EXEGESE. I. A hipótese prevista no art. 23 da Lei n. 6.515/1977, sobre a transmissão aos herdeiros da obrigação de prestar alimentos supõe que esse ônus já houvesse sido instituído em desfavor do alimentante falecido, hipótese diversa da presente nos autos, em que quando do óbito ainda não houvera decisão judicial estabelecendo os provisionais. II. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ). III. Recurso especial não conhecido.”[88] (Grifo nosso)
“APELAÇAO CÍVEL AÇAO DE ALIMENTOS – OBRIGAÇAO ALIMENTAR – ESPÓLIO – INTRANSMISSIBILIDADE DO DIREITO PLEITEADO – OBRIGAÇAO NAO CONSTITUÍDA EM VIDA – EXTINÇAO DO PROCESSO COM FULCRO NO ART. 267, VI, DO CPC – RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO – SENTENÇA MANTIDA. Os alimentos trasmissíveis aos herdeiros são somente os débitos alimentares do próprio de cujus, vale dizer, os vencidos até a sua morte e obedecidas as forças da herança, ou seja, o que se transmite aos herdeiros não é a obrigação de prestar alimentos propriamente dita, mas a de pagar as prestações atrasadas. Extinção do feito, nos termos do artigo 267, inciso VI, do CPC”.[89]
“APELAÇÃO CÍVEL. ALIMENTOS. CARÁTER PERSONALÍSSIMO. INTRANSMISSIBILIDADE. ILEGITIMIDADE PASSIVA DO ESPÓLIO. Manutenção da sentença. De fato, o espólio não tem legitimidade para figurar do polo passivo de demanda em que se pretende constituir obrigação de prestar alimentos, já que esta tem caráter personalíssimo, sendo, portanto, intransmissível.Não há de se confundir a obrigação de prestar alimentos, esta sim transfere-se aos herdeiros, com a transmissão do dever jurídico de alimentar. Assim, deve existir uma obrigação prévia do autor da herança (seja por sentença, condenatória ou homologatória de acordo, ou, pelo menos, mediante acordo extrajudicial, mesmo que tácito) de se prestar alimentos àquele que os pleiteia, o que não se verifica no caso dos autos. Assim, escorreita a sentença em reconhecer a ilegitimidade passiva do espólio.PRECEDENTES DO STJ E DO TJRJ. Recurso a que se nega seguimento, na forma do caput do artigo 557 do CPC”.[90] (Grifo nosso)
Importa acrescentar que os Tribunais excepcionam tal entendimento em hipóteses nas quais, mesmo não havendo obrigação prévia, fique demonstrada a dependência do alimentando, sua impossibilidade de sustento, cumulada com o cumprimento voluntário de tal encargo por parte do de cujus, quando vivo. Essa conclusão é decorrência natural do dever de assistência e sustento, ancorada no Principio da Dignidade da pessoa humana.
Em complemento a tal entendimento:
“O que se transmite é a obrigação, e não o dever jurídico. Assim, deve existir obrigação devidamente preconstituída, mediante sentença, condenatória ou homologatória de acordo, ou, pelo menos, mediante acordo extrajudicial, admitindo até que este acordo não seja escrito, mas resulte de costumeiro e regular pagamento de alimentos. Não concordo é que a ação de alimentos seja proposta contra a sucessão ou contra os herdeiros, se os alimentos não vinham sendo pagos antes da morte do alimentante; aí me parece uma demasia, um excesso não confortado pelo sistema legal.”[91]
Em contrapartida, partindo da premissa de que a própria obrigação alimentar é transmissível aos herdeiros do alimentante, há o posicionamento de que não é necessário que o encargo tenha sido imposto judicialmente antes do falecimento do alimentante, inclusive pela possibilidade de cumprimento espontâneo da obrigação alimentar, não se restringindo aos alimentos em favor do herdeiro.
Assim, Maria Berenice Dias, invoca a lição de Euclides de Oliveira e conclui: "Devedor não é apenas quem se acha obrigado por débitos vencidos, mas também a pessoa legalmente obrigada à prestação, mesmo que esteja em dia com os pagamentos ou não lhe tenha sido cobrada a prestação."[92]
5.2 Limite quanto ao valor transmitido
Há preocupação com a questão do quantum a ser transmitido diante da regra do artigo 1.700 do Código Civil de 2002, que se reporta ao artigo 1.694 e não menciona dispositivo legal pertinente à herança. No entanto, isto em nada altera o fato de que a transmissão só ocorre dentro das forças da herança, por ser este princípio geral orientador no direito das sucessões.
Importa é que o artigo 1.700 é claro ao falar em transmissão aos herdeiros: isto significa que cabe aplicar as normas de direito hereditário e nestas é absolutamente pacífico que os débitos do falecido estão limitados pelas forcas da herança.
Assevera Cahali:
“É de todo óbvio que sua possibilidade jurídica depende da existência da herança, cujas forças suportem o pagamento da dívida, que era do falecido. Não havendo espólio, não subsiste responsabilidade alguma, enquanto conclusão que, não menos óbvia, aproveita a hipótese de débito proveniente obrigações transmitidas nos termos do artigo 23 da Lei do Divorcio, em que persiste igual limitação de responsabilidade (intra vires hereditatis).”[93]
Portanto, nos casos em que o patrimônio deixado pelo falecido for menor do que a obrigação a ser satisfeita, esta deverá ser reduzida com proporcionalidade. E, consequentemente, não havendo patrimônio não haverá também transmissão da obrigação. Nesse sentido, certo é que jamais os herdeiros responderão com o próprio patrimônio por obrigação alimentar de que não sejam titulares.
Corroborando tal entendimento, na IV Jornada de Direito Civil foi aprovado o enunciado nº 343 que assim dispõe: “A transmissibilidade da obrigação alimentar é limitada às forças da herança.” Tornando pacificada a questão.
Em acréscimo, afirma-se que não basta que o de cujus deixe patrimônio para compor o espólio, deve ainda haver rentabilidade, caso não haja não é possível o a antecipação do direito em detrimento dos demais. Sobre esta análise:
“AÇÃO DE EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. Tendo a exequente ajuizado a ação de execução dentro do prazo previsto em lei, não há prescrição de parcelas alimentares a ser reconhecida. LEGITIMIDADE PASSIVA. Tendo em vista o falecimento do devedor de alimentos no curso do processo de execução, os sucessores devem integrar a lide, já que o alimentante deixou bens a inventariar, Tais bens passam a responder pelo débito alimentar. Apelação desprovida, de plano.” [94]
“AÇÃO DE ALIMENTOS CONTRA ESPÓLIO.TRANSMISSIBILIDADE DOS ALIMENTOS. art. 1.700, CCB. nos termos do art. 1.700 do CCB, a obrigação alimentar – e não somente eventual débito se transmite aos herdeiros do alimentante, desde que comprovada a necessidade de quem pleiteia os alimentos e que o patrimônio deixado produza frutos suficientes para adimplir a pensão fixada, nos termos dos arts. 1694 e 1695, ambos do CCB. Já existindo pensão arbitrada ainda em vida do alimentante, e possuindo o espolio forças para adimpli-la, persiste a obrigação, devendo o pedido que visa a fixação ser recebido como ação revisional. Tendo o alimentante, em vida, oferecido majoração dos alimentos (o que só não se consumou dado o seu falecimento antes do julgamento da revisional), evidencia-se o reconhecimento dele acerca do incremento da necessidade do alimentado. Tal circunstancia, aliada ao fato de que o espólio possui bens cuja renda é suficiente para custear o pagameto da verba alimentar, justifica o deferimento do reajuste postulado.”[95] (grifo nosso)
5.3 Legitimidade passiva para a transmissão
Superado o ponto anterior, volta-se a análise para a legitimidade da obrigação, após a transmissão. Apesar do artigo 1.700 do atual Código Civil ser taxativo no que se refere a transmissão da obrigação alimentar aos herdeiros do devedor, a doutrina majoritariamente considera que tal ônus é atribuído ao espólio do de cujus.
Arnaldo Rizzardo, por exemplo, considera que não há transmissão aos herdeiros da obrigação de prestar alimentos, pois a sucessão é que recebe o encargo, dentro das forças da herança, proporcionalmente ao quinhão da herança que couber ao herdeiro, por força do disposto no art. 1.997 do código vigente.[96]
Sílvio de Salvo Venosa anota que: "embora o dispositivo em berlinda fale em transmissão aos herdeiros, essa transmissão é ao espólio. É a herança, o monte-mor, que recebe o encargo. De qualquer forma, ainda que se aprofunde a discussão, os herdeiros jamais devem concorrer com seus próprios bens para alimentar o credor do morto."[97]
Seguindo tal entendimento, considera-se que a responsabilidade do espólio abrange também as prestações posteriores ao óbito, até a ultimação da partilha e dentro das forças da herança. Nesse caso, as prestações tem o condão de suprir a necessidade do alimentando no decorrer do processo do inventário. Nesse sentido:
“TRANSMISSIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO ALIMENTAR.
ESPÓLIO. ART. 1.700 CC. Conforme expressa previsão legal, a obrigação alimentar transmite-se aos herdeiros do devedor, bastando que estejam presentes a necessidade do alimentado e a possibilidade do acervo hereditário. ALIMENTOS FIXAÇÃO. Dispondo o espólio de condições para prestar alimentos, em razão de dispor de considerável patrimônio e de perceber valores a título de locativos de imóveis, e estando demonstradas as necessidades do alimentado, que enfrenta sérias dificuldades financeiras e freqüenta curso superior, cabível a fixação de pensão até o encerramento do inventário. Apelo provido, em parte.[98]
O espólio tem a obrigação de prestar alimentos àquele a quem o de cujus devia, mesmo vencidos após a sua morte. Enquanto não encerrado o inventário e pagas as quotas devidas aos sucessores, o autor da ação de alimentos e presumível herdeiro não pode ficar sem condições de subsistência no decorrer do processo. Exegese do art. 1.700 do novo Código Civil.[99]
Transmite-se aos herdeiros alimentante, a obrigação de prestar alimentos, nos termos do art. 1.700 do CC/02. O espólio tem a obrigação de continuar prestando alimentos àquele a quem o falecido devia. Isso porque o alimentado e herdeiro não pode ficar a mercê do encerramento do inventário, considerada a morosidade inerente a tal procedimento e o caráter de necessidade intrínseco aos alimentos.”[100]
Se depreende dos julgados do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que a partilha extingue o direito de receber os alimentos, que eram pagos pelo autor da herança e, posteriormente, pelo espólio. Nesse caso, subsistindo a necessidade cabe ao necessitado ingressar com o pedido contra quem tenha legitimidade para figurar no pólo passivo, de acordo com os requisitos para a configuração da obrigação, aqui já abordados.
Há uma pequena divergência no que toca a possibilidade de compensação das prestações pagas no curso do processo. Em oposição ao entendimento manifestado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), Fábio Ulhoa apresenta argumentação favorável. Manifesta-se sob o argumento de que o art. 1.700 quis dizer que o espólio continuará a pagar os alimentos devidos pelo de cujus até a partilha, computando-se os valores recebidos como antecipação da quota cabível, dentro das forças da herança, "na parte proporcional ao quinhão do alimentado." [101]
Nestes termos:
“DIREITO CIVIL. OBRIGAÇÃO. PRESTAÇÃO. ALIMENTOS. TRANSMISSÃO. HERDEIROS. ART. 1.700 DO NOVO CÓDIGO CIVIL. 1 – O espólio tem a obrigação de prestar alimentos àquele a quem o de cujus devia, mesmo vencidos após a sua morte. Enquanto não encerrado o inventário e pagas as quotas devidas aos sucessores, o autor da ação de alimentos e presumível herdeiro não pode ficar sem condições de subsistência no decorrer do processo. Exegese do art. 1.700 do novo Código Civil. 2 – Recurso especial conhecido mas improvido”.[102]
6 CONFUSÃO ENTRE CREDOR E HERDEIRO E O PROJETO DE LEI NÚMERO 6960/2002
Sanadas as questões anteriores, acerca das limitações à transmissão da obrigação alimentar com a morte do alimentante, discute-se ainda a possibilidade do alimentando, sendo herdeiro do alimentante falecido, continuar recebendo a prestação alimentar.
Normalmente nas hipóteses de sucessão da obrigação alimentar o alimentando será herdeiro do alimentante falecido. Essa condição pode trazer ao alimentado a extinção do seu direito a alimentos, ocorrendo a confusão entre credor e devedor, ou ainda gerar a redução da prestação em razão de sua nova situação, que pode até conduzir ao reconhecimento de que não mais necessite de assistência.
Nas palavras de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald:
“Em verdade, admitida a transmissibilidade dos alimentos, por força do texto legal, a melhor solução é afirmar que somente poderá receber alimentos do espólio aquele que não tiver direito à herança. Se o alimentando é herdeiro, todo e qualquer valor que venha a receber do espólio deverá ser reputado antecipação da tutela jurisdicional e, por conseguinte, abatido do seu quinhão, quando da partilha.”[103]
Outra parte da doutrina entende que nesses casos deve ser revisto o critério de fixação da pensão, pois a situação de necessidade do herdeiro que recebe os alimentos seria outra. Deve-se levar em conta que não é a qualidade de herdeiro credor da pensão alimentícia que influencia na transmissibilidade, mas sim sua situação econômica. De acordo com os Tribunais:
“ALIMENTOS. RESPONSABILIDADE DO ESPÓLIO.
TRANSMISSIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO. Configurados os pressupostos necessidade-possibilidade, cabível a estipulação dos alimentos. Isso nos remete ao tema da transmissibilidade da obrigação alimentar, agora tornada inquestionável pelo artigo 1.700 do Código Civil. E não se diga que a transmissão se restringe apenas às parcelas eventualmente vencidas, deixando de abranger as vincendas. É que, em primeiro lugar, esse dispositivo legal refere-se a obrigação e não a dívidas, o que, por si só, deve bastar. Há mais, porém. É que interpretá-lo como abrangendo apenas eventuais parcelas inadimplidas até o ensejo da morte do devedor de alimentos é tornar a regra inteiramente vazia, pelo simples fato de que o artigo 1.997 do CC já torna o Espólio responsável pelo pagamento das dívidas do falecido, não havendo, portanto, necessidade de que a mesma disposição constasse em local diverso. Por isso, e não podendo entender-se que a lei contém palavras inúteis, é evidente que o art. 1.700 determina a transmissão da obrigação, abrangendo parcelas que se vençam inclusive após o óbito do devedor, como no caso. LIMITE DA OBRIGAÇÃO. É certo que o apelante, como filho que é do autor da herança, é também seu herdeiro, em igualdade de condições com os demais descendentes. Logo, mais cedo ou mais tarde lhe serão atribuídos bens na partilha que se realizará no inventário recém iniciado. Nesse contexto, os alimentos subsistirão apenas enquanto não se consumar a partilha, pois, a partir desse momento desaparecerá, sem dúvida, a necessidade do alimentado. PROVERAM. UNÂNIME.”[104]
A revisão do quantum da prestação alimentar é possível com base no art. 1.694 do Código Civil. Então, dependendo da nova situação de necessidade do alimentante a pensão pode ser reduzida ou extinta. Atenta-se para o fato de que esse segundo entendimento pode até ter a mesma consequência do primeiro.
Em contrapartida, há situações em que o alimentando não é herdeiro do de cujus, por
exemplo, nos casos de ex esposa ou ascendente do devedor. Aqui, a solução é mais simples: transmite-se a obrigação alimentar, nos limites do quinhão de cada herdeiro, respeitada a legítima dos herdeiros necessários.
A questão delicada desses casos nos remete à possibilidade do herdeiro alimentante não guardar qualquer vínculo com o alimentado. Como, por exemplo , um filho que fique obrigado a prestar alimentos a primeira esposa de seu pai.
Ainda assim, a regra não deve ser encarada como desproporcional, visto que o filho não presta esses alimentos em razão de vínculo próprio, mas sim em caráter de cumprimento de uma obrigação deixada por seu pai falecido.
Diante destes pontos controvertidos, existe no Congresso Nacional um Projeto de Lei que em seu bojo, dentre outras intenções, visa alterar a redação do art. 1700 do Código Civil, de autoria do Deputado Ricardo Fiúza.
A proposta é que o artigo passe a apresentar a seguinte redação: “a obrigação de prestar alimentos decorrente do casamento e da união estável transmite-se aos herdeiros do devedor, nos limites das forças da herança, desde que o credor da pensão alimentícia não seja herdeiro do falecido.”
Esta alteração tem por propósito adequar o artigo às circunstâncias em que o credor não seja herdeiro do falecido. Tem, então, como foco apenas o cônjuge e o companheiro, desde que não tenham direito à herança, e exclui os parentes, sob o fundamento destes já configurarem como herdeiros, e também porque, se sobrevier necessidade, teriam como pleitear alimentos por direito próprio em relação aos demais sucessores.
Tal projeto compartilha do primeiro entendimento, acompanhando a posição atual dos Tribunais, conforme demonstrado a seguir:
“EXTINÇÃO DO PROCESSO – AÇÃO DE EXECUÇÃO – ALIMENTOS – FALECIMENTO DO ALIMENTANTE – CONFUSÃO – Art. 381 do Código Civil. Quando o autor e réu forem, ao mesmo tempo, credor e devedor da obrigação objeto da ação, ocorre a confusão (CC, art. 381), devendo o processo, em conseqüência, ser extinto sem resolução do mérito, a teor do art. 267, inciso X, do CPC. Ao falecer o alimentante, seus filhos, dele credores, se tornam seus sucessores no feito, o que caracteriza o instituto da confusão. [105]
Transmissibilidade da Obrigação Alimentar. Alimentos devidos Pelo espólio a herdeiro. Confusão. Inocorrência. Vigência do arts. 1700 e 1707 do código civil. Em matéria de alimentos devidos pelo espólio a herdeiro não ocorre confusão. Não obstante o princípio da saisine "segundo o qual ´´aberta a sucessão a herança transmite-se desde logo aos herdeiros ´´ a efetiva fruição do quinhão hereditário somente será possível após ultimada a partilha. Até então, subsiste a necessidade do agravado e a obrigação do espólio, em vigor a disposição do art. 1.700 do CC. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME”.[106]
7 CONCLUSÃO
O instituto dos alimentos tem extrema importância como forma de garantia efetiva dos princípios da dignidade da pessoa humana, assistência familiar, entre outros, consagrados na Constituição Federal. Desta forma, é forçoso reconhecer que sua tutela deve ser especialmente estudada e garantida pelos meios judiciais.
Nesta análise, o ponto chave deste trabalho, relacionado à possibilidade de transmissão em caráter sucessório da obrigação de prestar alimentos e suas limitações, é um ponto crucial para aplicação do instituto. De onde se depreende a notória importância de tal estudo.
Conforme foi demonstrado, tal previsão legislativa, hoje positivada no artigo 1.700 do Código Civil, passou por uma grande evolução histórica. Durante o inicio da abordagem, ficou demonstrado que o ponto partia de um principio denegatório da transmissibilidade, presente no artigo 402 do Código Civil de 1916.
Desta forma, não era encarado com grande dificuldade o fato de que não havia a transmissão sucessória desta modalidade de obrigação. Ocorre que, em razão de diversas modificações sociais, as quais seguem sendo acompanhadas por alterações também na forma de legislar, foram trazidos para o direito civil princípios basilares da Constituição Federal, ligados aos alimentos, de forma ampla.
Sob este prisma de discussão, retoma-se a questão da transmissibilidade com a inovação trazida pela Lei do Divórcio (6.015/1977), a qual foi profundamente debatida no decorrer deste trabalho. Diante de seu artigo 23 e a possibilidade da transmissão aqui analisada, um cenário de incertezas e divergências passou a cercá-la, causando grande insegurança jurídica.
A fim de sanar esses pontos controvertidos, o novo Código Civil (2002) trouxe a regra da transmissibilidade explícita, taxativa, conforme devidamente abordado nesta exposição. Tal previsão trouxe maior segurança e ampliou o cenário de aplicação do instituto. Porém, ainda restaram questões abertas à discussão, tanto doutrinária quanto jurisprudencial.
Nesse sentido, no desenvolver do presente estudo, constou-se a dificuldade dos operadores do direito na harmonização e aplicação da norma, foram então apresentadas diversas questões e posicionamentos, acompanhados da manifestação dos Tribunais a respeito da matéria tratada.
Quanto a esta regra, seguindo a evolução legislativa, associada aos novos valores constitucionais, restou demonstrada a preocupação do legislador em garantir o cumprimento das prestações alimentícias após a morte do devedor, em razão do seu importante caráter assistencial.
Quando da determinação legislativa para a transmissão da obrigação, pareceu mais acertado concluir que a intenção do legislador, explicitada na forma do artigo 1.700 do Código Civil de 2002, buscou abranger os alimentos já estabelecidos antes do falecimento, salvo exceções de necessidade efetivamente comprovadas.
Estes alimentos acima mencionados são reconhecidos como efetiva obrigação do devedor, a época do seu falecimento. Dessa forma, entende-se como possível de transmitir-se a potencialidade do dever legal de prestar alimentos e não a sua atualidade.
Quanto a limitação do quantum, entende-se que a obrigação de prestar alimentos transmitida aos herdeiros do devedor deve ficar limitada aos frutos da herança, não fazendo sentido que os herdeiros do falecido passem a ter obrigação de prestar alimentos ao credor segundo suas próprias possibilidades. Tal situação configuraria uma nova obrigação, constituída em relação às partes, de acordo com a necessidade e possibilidade apresentada.
Em relação às diversas questões apresentadas, é certo que não há uma única forma para que tal prestação seja feita, por isso, o juiz que preside o inventário será o maior responsável para regular a transmissão e prestação da obrigação alimentar com base nos casos concretos. O magistrado terá um relevante papel na resolução da questão.
Deve sempre se recordar que a transmissibilidade irrestrita da obrigação alimentar ainda causa certa insegurança, não apenas pelas situações inusitadas que se verificarão no dia a dia forense, mas também pelo silêncio do artigo no que se refere às suas limitações.
Por fim, considera-se acertada a interpretação e aplicação de maneira ampla do referido dispositivo legal, de acordo com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da solidariedade e da paternidade responsável. Qualquer entendimento rígido (dogmático), a respeito do art. 1.700 do Código Civil, pode causar perplexidade, injustiças, desequilíbrio entre as partes, de modo que a melhor solução do aplicador é sopesar todas as circunstâncias de cada caso concreto.
Informações Sobre o Autor
Taisa Soares Pacheco
Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pós Graduada pela Universidade Cândido Mendes – Servidora Pública na Agência Nacional de Saúde Suplementar