As duas faces da democracia brasileira

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Quem sobreviveu a regime autoritário em qualquer país do mundo tem possibilidade de analisar pessoalmente aquilo que os “cientistas políticos” denominam de contraste entre duas faces do mesmo poder. Realmente, qualquer manual (v. “El Poder”, de Bertrand de Jouvenel) costuma traçar paralelismo entre a derrotas dos ditadores e a implantação de uma pseudo-democracia em que a liberdade sofre, igualmente, restrições significativas. Assim aconteceu em Portugal, logo depois de Salazar, e em países outros. Sob o argumento de ser necessário enfrentamento aberto da corrupção e de defeitos comuns aos governos de força, os restauradores do Estado Democrático partem para comportamento assemelhado, restringindo os limites da liberdade jurídica e transformando o cidadão em amedrontado componente da sociedade. De outro lado, a repressão aumenta, a sangria econômica transborda, inventam-se métodos de aperfeiçoamento do controle social e se reduz o direito de estar só. O povo se apavora com a violência praticada pelo criminoso habitual, mas não vê no policial (ou nas forças do bem) quem possa defendê-lo confiavelmente. As promessas de reequilíbrio, transmitidas à nacionalidade por enorme tarefa da mídia regiamente paga, começam a assumir coloração cinzenta. Percebe-se, além disso, série rotunda de rescaldos ferventes deixados no entremeio da disputa eleitoral.

Dir-se-á que não existe, em razão do tempo ultrapassado, ponto de comparação entre a ditadura brasileira e o momento político vertente. Há sim. O resultado da revolução francesa ainda se faz sentir, por exemplo, no tratamento a ser outorgado universalmente aos direitos e garantias individuais.  A Magna Carta, outorgada ao povo inglês por João Sem Terra, é tema obrigatório de qualquer tratado de Direito Constitucional ou de Direito Processual Penal. Assim, os quase cinqüenta anos ultrapassados do fatídico 1964 à data de hoje são, no Brasil, um grão de areia.

A síntese imprescindível a uma crônica impede reflexão demorada sobre o tema. Basta lembrar, entretanto, como sinal de aproximação entre o autoritarismo e a denominada democracia popular brasileira, o sofisticado sistema montado, ainda no governo Fernando Henrique, para o entrelaçamento entre o “RG” e o “CIC”. A resultante aparece, hoje, com o cinturamento dos brasileiros dentro de autêntica armadura, porque  a relação de causalidade se ampliou da Receita Federal a múltiplos bancos de dados,  envolvendo, inclusive, hospitais e laboratórios de análises clínicas, muito atentos, enquanto fornecem diagnósticos, ao número cabalístico especificado no cartão exibido pelo examinando. Parta-se, a seguir, para a diabólica lei que rege a interceptação telefônica, fruto de deformação ideológica de quantos a plasmaram. A legislação em vigor transformou juízes em escabujantes violadores de intimidades, eles que deveriam ser responsáveis, sim, pela equilibrada concretização do direito.

Por fim, em pleno regime democrático, os próprios – ou alguns deles – determinam buscas e apreensões absolutamente genéricas, com desrespeito à especificidade que toda a dogmática exige a título de pressuposto básico da legitimidade de tal conduta em si execrável. Por fim, a imprensa, na quase unanimidade, conserva postura laudatória a tais atividades, deliciando-se com a violação dos lares e exposição nua e crua daqueles que, delinqüentes ou não, mereceriam proteção constitucional quanto às intimidades. No meio disso, e enquanto no período dito democrático, a estatística concernente à violência policial aumenta, o regime prisional é enrijecido de forma assustadora, os prazos atinentes ao término da instrução criminal são deixados as calendas, os prisioneiros apodrecem em cadeias infectas e  o Presidente da República adquire uma nova  aeronave, pois  ninguém é de ferro e todos precisam dormir bem, em dossel de seda ou  no leito seguro de um “Boeing”devidamente adaptado. Há uma espécie de humor negro. Não se sabe, no fim das contas, qual ou quais cérebros mandam no sistema, mas é certo que há no meio de tais tentáculos uma inteligência qualquer direcionando as atividades do todo. Aliás, no período ditatorial, o Brasil teve, como expoente, um Golbery. Fernando Henrique Cardoso elegeu, num primo seu, um “personal trainer”  razoavelmente competente, com a vantagem de ser do mesmo sangue.  Se não mandava, sabia das coisas, porque chefiava o serviço de inteligência (ABIN). Lula deve ter o seu “Richelieu”. Não é Dirceu.  Nos “Três Mosqueteiros”, nunca se viu o cardeal levando a pior, a não ser no episódio “O Colar da Rainha”. Mas, naquilo, havia questões de amor, que antecedem a tudo…

Temos, na Corte, nosso Márcio Thomaz Bastos.  É um ministro criminalista (ou um criminalista ministro).  Vêm acontecendo coisas terríveis a advogados. São presos (até aí, vá lá. Não há quem se ponha à margem da lei).  Acontece que os escritórios têm sido varejados, os arquivos destruídos, os computadores apreendidos, tudo numa horrível violação de segredo, valendo, inclusive, mandados advindos de longínquas regiões do país. O ministro se aquieta. Entre o poder do príncipe e a toga do mosqueteiro, sobra a perplexidade de quem não sabe o que fazer. Nós, os quatrocentos e cinqüenta mil soldados da democracia, temos receio imenso de  que as coisas fiquem piores  do que acontecia no autoritarismo.  Afinal,  a ditadura torturou uns poucos, enterrando-os no Araguaia ou dando os corpos aos peixes.  Fizemos melhor: de uma só tacada, fuzilamos 111, sem preconceito de cor, pois a maioria era cafuza. Noutro episódio, transformamos um ônibus em peneira. Eliminamos doze. Arredondando: a estatística de bandidos mortos, em São Paulo, principalmente nos fins-de-semana, faz jus à lua cheia e ao trabalho dobrado dos “rabecões”.  Eis aí. Resta a crítica irônica, mas, pelo jeito, o cronista fica em solidão.

No tempo de Juscelino, o Brasil comprou o “Minas Gerais”, até hoje fundeado na Guanabara (Dizem que vai virar clube noturno).  Quanto ao “Força Aérea I”, bons ventos o tragam. Votei no Comandante Geral. Estou muito triste com a face negra da democracia brasileira.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Paulo Sérgio Leite Fernandes

 

Advogado criminalista em São Paulo e presidente, no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas do Advogado.

 


 

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