A não observância do bloco da intervenção mínima e as consequências na atividade da polícia civil

Resumo: O artigo tem por objeto a análise das consequências que a inobservância do princípio da intervenção mínima e os demais princípios correlatos acarretam na atividade da polícia civil, tratando, pormenorizadamente, de cada um desses princípios que formam o bloco da intervenção mínima e que são responsáveis por informar o trabalho dos agentes policiais. Além disso, o artigo busca expor tais consequências quando provocadas pela própria polícia civil, sobretudo no que tange à questão dos boletins de ocorrência de fato penalmente atípico, também conhecidos como boletins de ocorrência para preservação de direitos, bem como quando as referidas consequências são causadas por outros órgãos e entidades estatais, com maior ênfase para àquelas que são acarretadas pelos policiais militares no cumprimento de suas funções. Vale ainda ressaltar que o artigo propõe soluções para os problemas decorrentes da inobservância dos princípios da intervenção mínima e correlatos na atividade policial, buscando, assim, sanar alguns vícios recorrentes no sistema policial brasileiro.  

Palavras-chave: Polícia Civil. Bloco da Intervenção Mínima. Boletim de Ocorrência.

Abstract: This paper has as its object the analysis of the consequences that the neglect of the minimal intervention principle and the others related principles brings to the civil police activities, showing, in details, each one of these principles that form the minimal intervention block and that are responsible to inform the policemen work. Although, this paper tries to expose those consequences when provoked by the civil police itself, mostly about the police report of facts that do not belongs to police competence, and the consequences provoked by other estate organs and entities, with emphasis to those who are caused by the military officers in the fulfillment of their duty. It is worth mentioning that this paper proposes solutions for the problems that the neglect of the minimal intervention principle and related principles leads to the civil police, seeking, that way, to remedy some of the frequent vicious that involve the brazilian police system.

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Keywords: Civil Police. Minimal Intervention Block. Police Report.

Sumário: Introdução. 1. Arcabouço principiológico. 1.1 Conceito de princípio. 1.2 Bloco da intervenção mínima ou da ultima ratio. 1.2.1 Princípio da intervenção mínima. 1.2.2 Princípio da lesividade. 1.2.3 Princípio da adequação social 1.2.4 Princípio da fragmentariedade. 1.3 Poder de polícia e princípios orientadores da atividade policial. 1.3.1 Conceito de poder de polícia. 1.3.2 Poder de polícia sob à ótica da segurança pública. 1.3.3 Polícia administrativa. 1.3.4 Polícia judiciária. 1.3.5 Princípio da legalidade. 1.3.6 Princípio da eficiência. 1.3.7 Princípio da razoabilidade. 1.3.8 Princípio da oficialidade. 1.3.9 Princípio da justiça. 1.3.10 Princípio da impessoalidade. 1.3.11 Princípio da liberdade. 2. Consequências da não observância do bloco da intervenção mínima na atividade policial. 2.1 Boletim de ocorrência de fato penalmente atípico e a violação ao bloco da intervenção mínima. 2.1.1 Definição e características do boletim de ocorrência. 2.1.2 Boletim de ocorrência de fato penalmente atípico. 2.1.3 Conflito entre o bloco da intervenção mínima e a lavratura de boletins de ocorrência de fato atípico. 3. Reflexos nas atividades da polícia civil em razão da inobservância do bloco da intervenção mínima pela polícia militar. Conclusão.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho de pesquisa para conclusão de curso pretende analisar a não observância do princípio da intervenção mínima e as conseqüências na atividade da Polícia Civil, uma vez que o referido princípio é uma das vigas mestras do Direito Penal e informa, não apenas a atividade policial, mas, também, a atividade do Ministério Público e do Judiciário no que tange a seara penal. Tais consequências, decorrentes da não observância da intervenção mínima, atrapalham a ação policial, prejudicando o bom desempenho e alocação de recursos humanos e financeiros.

Os problemas decorrentes deste descumprimento, praticado tanto por particulares como por servidores públicos, inclusive policiais militares, é o objeto deste artigo, como, por exemplo, a multiplicação de boletins de ocorrência registrando o acontecimento de fatos atípicos, ou seja, indiferentes para o Direito Penal e, por conseguinte, tumultuando as delegacias com situações desnecessárias e muitas vezes inconvenientes.

Cumpre ressaltar que a análise do bloco principiológico da “ultima ratio” e sua correta aplicação deve nortear a atividade policial, servindo como filtro para a consecução do mister investigativo. Logo, faz-se necessário o estudo do princípio da intervenção mínima combinado com os demais princípios componentes do bloco da “ultima ratio” para uma maior compreensão acerca do proposto pelo artigo.

O tema tem grande importância, uma vez que se correlaciona ao princípio constitucional da eficiência, bem como trata de questão atual que é a conduta errônea derivada da consciência popular de que o boletim de ocorrência tem tanto valor jurídico quanto uma decisão judicial, o que tem levado tumulto às delegacias, que ficam sobrecarregadas de trabalho desnecessário, tendo que registrar “ocorrências atípicas”, basicamente fundadas em ilícitos civis.

A atuação da polícia militar também é objeto do trabalho, já que traz consequências para a atividade da polícia civil, consequências nem sempre positivas, pois em virtude do despreparo das praças é comum o “flagrante por atacado” ou por englobamento, situação em que pessoas não envolvidas em determinado fato típico são levadas à presença da autoridade policial como suspeitas de crime apenas por estarem no mesmo local do ocorrido, bem como em casos que por desconhecimento das regras de Direito Penal, as praças cometem equívocos ao encaminhar para a delegacia pessoas que não cometeram crimes, mas ilícitos na ordem civil.

Assim, busca-se estabelecer possíveis soluções para os problemas surgidos em decorrência da não observância do princípio da intervenção mínima, mandamento que versa sobre a subsidiariedade do Direito Penal, que deve ser acionado apenas como último recurso para solução de conflitos.

O primeiro capítulo do presente trabalho tratará do bloco da intervenção mínima, esmiuçando todos os seus princípios componentes, apresentando as visões doutrinárias clássicas e de vanguarda acerca do tema. Já o segundo capítulo versará sobre as consequências da inobservância do bloco da intervenção mínima pela própria Polícia Civil, trazendo um ponto de vista interno sobre o problema. Por fim, o capítulo terceiro trata das consequências externas da inobservância do referido bloco, sobretudo no que tange à atividade da Polícia Militar e seus reflexos na atividade da Polícia Civil.

1 ARCABOUÇO PRINCIPIOLÓGICO

1.1. Conceito de Princípio

Segundo Alexy (2011, p.57) “princípios são mandamentos de otimização, isto é, normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes”.

Para Cassar (2014, p.73) “princípio é a postura mental que leva o intérprete a se posicionar desta ou daquela maneira”.

Princípios são proposições que informam determinado campo do saber. Transportando tal conceito para o campo jurídico são elementos de sustentação do ordenamento jurídico, elementos estes que lhe dão coerência interna. Servem como fundamento e são responsáveis pela gênese de grande parte das regras que, por consequência, deverão ter sua interpretação e aplicação condicionadas por aqueles princípios, dos quais se originaram.

1.2. Bloco da Intervenção Mínima ou da Última Ratio

O Direito Penal só deve preocupar-se com a proteção dos bens mais importantes e necessários à vida em sociedade. O legislador, por meio de um critério político, que varia de acordo com o momento em que vive a sociedade, sempre que entender que os outros ramos do direito se revelem incapazes de proteger devidamente aqueles bens mais importantes para a sociedade, seleciona, escolhe as condutas, positivas ou negativas, que deverão merecer a atenção do Direito Penal.

Percebe-se, assim, um princípio limitador do poder punitivo do Estado, devendo o Direito Penal, portanto, interferir o menos possível na vida em sociedade, deve ser solicitado somente quando os demais ramos do Direito, comprovadamente não forem capazes de proteger aqueles bens considerados da maior importância. Ressaltando o caráter subsidiário do Direito Penal, Roxin (2008, p.101) assevera:

“A proteção de bens jurídicos não se realiza só mediante o Direito Penal, senão que nessa missão cooperam todo o instrumental do ordenamento jurídico. O Direito penal é inclusive, a última dentre todas as medidas protetoras que devem ser consideradas, quer dizer que somente se pode intervir quando falhem outros meios de solução social do problema – como a ação civil, os regulamentos de polícia, as sanções não penais etc. Por isso se denomina a pena como a 'ultima ratioda política social' e se define sua missão como – proteção subsidiária de bens jurídicos”.

Sabe-se, que a doutrina penal reconhece a existência de um bloco principiológico conhecido como bloco da “última ratio”, composto pelos princípios da intervenção mínima, da lesividade, da adequação social e da fragmentariedade. Tais princípios, conjuntamente, são responsáveis pela observação do caráter subsidiário do Direito Penal e entre esses o de maior relevo é o da intervenção mínima, objeto do trabalho.

1.2.1. Princípio da Intervenção Mínima

O Direito Penal só deve ser aplicado quando estritamente necessário, de modo que a sua intervenção fica condicionada ao fracasso das demais esferas de controle (caráter subsidiário), observando somente os casos de relevante lesão ou perigo de lesão ao bem juridicamente tutelado (caráter fragmentário).

O Direito, independentemente do ramo em que se considere, tem a função precípua de garantir a manutenção da paz social, solucionando ou evitando conflitos de forma a permitir a regular a convivência em sociedade. Por isso, normas, por exemplo, de Direito Civil determinam que, uma vez praticado um ato ilícito, faz-se necessária a reparação, e, por sua vez, o Direito Processual Civil prevê mecanismos aptos a compelir o autor de tal ato a remediar o dano causado.

No entanto, há casos em que somente o Direito Penal é capaz de evitar a ocorrência de atos ilícitos ou de puni-los à altura da lesão ou do perigo a que se submeteram determinado bem jurídico, dotado de relevância para a manutenção da convivência social pacífica.

É a partir daí que se verifica a importância do princípio da intervenção mínima (destinado especialmente ao legislador), segundo o qual o Direito Penal só deve ser aplicado quando estritamente necessário (última ratio), mantendo-se subsidiário. Deve servir como a de última trincheira no combate às condutas indesejadas, aplicando-se de forma subsidiária e racional à preservação daqueles bens de maior significação e relevo (CUNHA, 2014, p.71)

1.2.2. Princípio da Lesividade

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O Princípio da Lesividade ou da Ofensividade no Direito Penal exige que do fato praticado ocorra lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado.

Daí decorre que, no direito brasileiro, não se pune quem pratica a auto-lesão, como o sobrevivente da tentativa de suicídio.

Também surge deste princípio a ideia de que, toda lesão consciente a bem jurídico protegido de terceiro é crime, ainda que seja ocasionada mediante auto-lesão, pois não se pune nesse caso a auto-lesão, mas a lesão secundária e consciente a terceiro.

É em obediência a este princípio que o Direito Penal brasileiro só pune o iter-criminis a partir da execução deste, não punindo o planejamento e a preparação. Acontece que, como só há crime a partir do momento em que bem é efetivamente lesionado, ou, ao menos, ocorre a efetiva tentativa de lesão, não é possível se punir fases e atos incapazes de provocar lesão (CAPEZ, 2013, p.41).

Outra consequência do princípio da lesividade diz respeito ao crime impossível. Segundo Greco (2015, p.117) “o fundamento para a não punição do crime impossível se encontra no fato de que a conduta perpetrada pelo agente, em virtude do meio escolhido ou do objeto, não é capaz de lesar a esfera de interesses de um terceiro”. Logo, é em razão do princípio da lesividade que não se pune o crime impossível.

1.2.3. Princípio da Adequação Social

Na precisa lição de Prado (2014, p.143):

“A teoria da adequação social, concebida por Hans Welzel, significa que apesar de uma conduta se subsumir ao modelo legal não será considerada típica se for socialmente adequada ou reconhecida, isto é, se estiver de acordo com a ordem social da vida historicamente condicionada”.

A vida em sociedade nos impõe riscos que não podem ser punidos pelo Direito Penal, uma vez que essa sociedade com eles precisa conviver da forma mais harmônica possível.

O princípio em análise possui uma relação bastante próxima com o princípio da insignificância. Nesse último, a conduta formalmente típica, em razão de sua irrelevância, não é considerada materialmente típica. Quando se trata do princípio da adequação social, ao contrário, a conduta em questão é típica, ilícita e culpável.

Contudo, trata-se de um comportamento que já se tornou aceitável, visto que a sociedade já se acostumou com esses fatos. Diante disso, os doutrinadores que defendem o princípio da aceitação social dizem que a aceitação da sociedade faz com que a conduta não configure um ilícito penal (PRADO, 2014, p.141).

1.2.4. Princípio da Fragmentariedade

O direito penal só deve se ocupar com ofensas realmente graves aos bens jurídicos protegidos. Tem-se, aqui, como variante, a intervenção mínima, que nasce o princípio da insignificância desenvolvido por Claus Roxin. Entende-se que devem ser tidas como atípicas as ofensas mínimas ao bem jurídico. Não há tipicidade material. Há, apenas, tipicidade formal (CUNHA, 2013, p.92).

1.3. Poder de Polícia e Princípios Orientadores da Atividade Policial

1.3.1. Conceito de poder de polícia

O conceito de poder polícia no ordenamento jurídico brasileiro foi exaustivamente trabalhado pela doutrina, que tem como maior expoente no assunto o jurista paulista Meirelles, que conceitua poder de polícia como “a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado”. A par do esforço doutrinário em oferecer um conceito apropriado do instituto, o Código Tributário Nacional em seu artigo 78 possui um conceito legislativo de poder de polícia: “Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos”. Embora tal conceito seja bastante amplo, não é taxativo, pois é possível aduzir outras hipóteses para a fórmula legal.

Assim, tem-se que poder de polícia é a atividade da Administração Pública, balizada por lei e na supremacia geral, consistente no estabelecimento de limitações à liberdade e propriedade dos particulares, regulando a prática de ato ou a abstenção de fato, em benefício do interesse público.

Vale ainda ressaltar que, considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do devido processo legal e, como se trata de atividade discricionária, sem abuso ou desvio de poder (MEIRELLES, 2014, p.140).

1.3.2     Poder de Polícia sob à ótica da Segurança Pública

O poder de polícia constitui um complexo de atividades administrativas mais abrangentes do que as atuações de segurança pública. Assim, o poder de polícia não é privativo de órgãos ou entidades relacionados à segurança pública, tais como a Polícia Civil e a Polícia Militar, também sendo atribuído à Receita Federal, por exemplo. Tradicionalmente, a doutrina costuma dividir as atuações de segurança pública em polícia administrativa e polícia judiciária (MEIRELLES, 2014, p.152).

1.3.3. Polícia Administrativa

A polícia administrativa tem caráter predominantemente preventivo, atuando antes de o crime ocorrer, para evitá-lo, submetendo-se essencialmente às regras de Direito Administrativo. No Brasil, a polícia administrativa é associada ao policiamento ostensivo, sendo realizada pela Polícia Militar. Cumpre ainda comentar que tal polícia relaciona-se mais com a atividade das pessoas.

Incide sobre bens, direitos e atividades e esgota-se no âmbito da função administrativa, que é exercida por órgãos administrativos de caráter fiscalizador, ou seja, por integrantes dos mais diversos setores da Administração Pública (MEIRELLES, 2014, p.154).

1.3.4     Polícia Judiciária

A polícia judiciária tem atuação preponderantemente repressiva, agindo após a ocorrência do crime para apuração da autoria e materialidade, sujeitand-se aos princípios e normas do Direito Processual Penal. No sistema atual, a polícia judiciária é exercida pela Polícia Civil e pela Polícia Federal, tendo uma atuação voltada às pessoas, justamente o contrário da polícia administrativa.

O objeto da polícia judiciária é a pessoa, na medida em que lhe cabe apurar as infrações penais, exceto as militares, descobrindo e conduzindo ao judiciário os infratores da ordem jurídica penal. A polícia judiciária é,como cediço, composto por órgãos de segurança do Estado que tem como principal função apurar as infrações penais e sua autoria por meio do inquérito policial, que é um procedimento administrativo com característica inquisitiva, servindo, em regra, de base à pretensão punitiva do Estado formulada pelo Ministério Público, titular da ação penal de iniciativa pública (MEIRELLES, 2014, p.155).

1.3.5     Princípio da Legalidade

A legalidade, como princípio da Administração, significa que o agente público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e as exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso (MAZZA, 2013, p.118).

1.3.6     Princípio da Eficiência

Meirelles (2014, p.102) apresenta a eficiência como um dever, dizendo que “É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros.”

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O princípio da eficiência exige que a atividade administrativa, e aqui se inclui a policial, seja exercida com presteza, perfeição e rendimento funcional.

1.3.7     Princípio da Razoabilidade

Tal princípio, sem dúvida, pode ser chamado de princípio da proibição de excesso, que, em última análise objetiva aferir a compatibilidade entre os meios e os fins, de modo a evitar restrições desnecessárias ou abusivas por parte da Administração Pública, com lesão aos direitos fundamentais. Como se percebe, a razoabilidade envolve a proporcionalidade, e vice-versa. Registre-se, ainda, que a razoabilidade não pode ser lançada como instrumento de substituição da vontade da lei pela vontade do julgador ou do intérprete, mesmo porque cada normal tem uma razão de ser (MEIRELLES, 2014, p. 96).

1.3.8     Princípio da Oficialidade

Sendo certo que ao Estado está reservado o direito exclusivo de punir o infrator, o que, nos Estados contemporâneos, isso só se torna possível através da adoção e respeito a certos ritos, a que se convencionou chamar de persecução criminal (persecutio criminis), é evidente que tais ritos deverão ser implementados pelos órgãos estatais.

Oficialidade significa, assim, que a investigação criminal (componente da persecutio criminis) deve ser feita por órgãos oficiais, não podendo ficar a cargo do particular, ainda que a titularidade da ação penal possa ser atribuída ao ofendido (MAZZA, 2013, p.125).

1.3.9     Princípio da Justiça

Encontra respaldo nos outros princípios, de forma tal que, violados quaisquer deles, violado estará o princípio sob comentário. Por outro lado, entendemos que o princípio da justiça não pode ser confundido com a moral do justiceiro. O policial não é, de forma alguma, justiceiro da sociedade ou arauto dos vitimados, para confundir persecução penal com ânsia persecutória. A persecução penal é racional e garantista, enquanto a ânsia persecutória é irrefreável e busca combater o crime a qualquer preço. Eis que, o policial tem o dever de não se envolver emocionalmente com os casos em que trabalha e, também, de não deixar que sua particular compreensão de justiça prevaleça sobre todos os princípios que delimitam a sua atuação, porque não cabe à polícia impor a sanção penal (TÁVORA, 2013, p.179).

1.3.10   Princípio da Impessoalidade

Também chamado de princípio da finalidade. É o princípio que informa que os atos praticados pela administração pública sempre deverão atender à finalidade do interesse público, jamais podendo, pois, buscar o atendimento do interesse pessoal ou de terceiros, sob pena de incorrer em desvio de finalidade (MEIRELLES, 2014, p.127).

1.3.11   Princípio da Liberdade

De acordo com Távora (2014, p.127) “Consubstancia-se num conjunto de direitos que deve servir como meta para a polícia”. Tem dois vetores: um negativo, que significa a liberdade do particular em face do poder estatal, poder este que jamais poderá restringir a liberdade sem fundamento, de forma gratuita; e outro positivo que reveste a defesa do cidadão contra agressões e ameaças dos demais membros da comunidade.

2 CONSEQUÊNCIAS DA NÃO OBSERVÂNCIA DO BLOCO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA NA ATIVIDADE POLICIAL

2.1. Boletim de Ocorrência de Fato Penalmente Atípico e a Violação ao Bloco da Intervenção Mínima

2.1.1 Definição e Características do Boletim de Ocorrência

Boletim de ocorrência, também conhecido pela sigla BO, é o ato oficial utilizado pelos órgãos da Polícia Civil, Polícia Federal e pelas Polícias Militares, bem como pelos bombeiros e pela guarda municipal para fazer o registro da “notitia criminis”, ou seja, a notificação, a cientificação de um crime, no Brasil, ainda que uma gama de outras ocorrências de relevância jurídica também poderem ser noticiadas.

É por meio do boletim de ocorrência que a autoridade policial ou judiciária recebe a notícia crime, ou seja, recebe uma série de informações (nomes de agentes, vítimas, testemunhas, vestígios, instrumentos e produtos de crime, etc.). É também um valioso método de assegurar a legalidade em que se pautou a ação ou operação policial (TOURINHO, 2013, p.212).

O boletim de ocorrência, de acordo com a doutrina de Tourinho Filho (2013, p.214) “pode ser conceituado como sendo o registro ordenado e minucioso das ocorrências que exigem a intervenção policial. Ocorrência policial, por sua vez, é todo fato que, de qualquer forma, afete ou possa afetar a ordem pública e que exija a intervenção policial por meio de ações ou operações”.

O boletim de ocorrência é um documento oficial. Logo, deve seguir os princípios expressos e reconhecidos da Administração Pública (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, motivação, entre outros). A elaboração do boletim de ocorrência deve ser pautada pela impessoalidade, uso do padrão culto da língua, clareza, concisão, coerência e objetividade. Na redação oficial, não existe espaço para opiniões pessoais. O boletim de ocorrência deve ser isento da interferência da subjetividade da pessoa que o elabora.

Em cumprimento dos ditames da legalidade e motivação, aquele que relata a ocorrência deve fundamentar as ações e providências que adotar, principalmente as coercitivas, como uso da força, prisões, apreensões e multas. Deve apresentar, de forma lógica, clara e concisa, as razões de fato e de direito que o levaram a tomar tais medidas. O ato administrativo não tem eficácia nem validade se não estiver alicerçado no Direito e na Lei. Quando o policial motiva suas ações, ele afasta possíveis suspeitas e resistências (GOMES, 2015, p.43).

2.1.2. Boletim de Ocorrência de Fato Penalmente Atípico

Tornou-se costume em nossa sociedade a lavratura de boletins de ocorrência noticiando fatos penalmente atípicos, Tal espécie de boletim de ocorrência, doutrinariamente conhecido como boletim de ocorrência para preservação de direitos, visa resguardar uma situação de fato que não caracteriza ilícito penal ou prevenir a realização de uma possível infração. O pronto registro desses fatos em sede de delegacia de polícia, não indica que os agentes que o fazem desconhecem a lei, pelo contrário, demonstra sua disposição em atender os particulares, suprindo a falta de aparelhamento dos demais órgãos estatais e acaba por proporcionar, de forma desnecessária, um lastro probatório mínimo para que os advogados iniciem suas funções.

O Manual de Polícia Judiciária da Polícia Civil do Estado de São Paulo (2000, p.74), trata em seu corpo do instituto em comento, verbis:

“Além dessa função principal, o boletim de ocorrência é utilizado largamente para registros de fatos atípicos, isto é, fatos que, muito embora, não apresentem tipicidade penal – não configurando, portanto, infração penal -, merecem competente registro para preservar direitos ou prevenir a prática de possível infração, sendo conhecidos, consuetudinariamente, pela denominação de boletim de ocorrência de preservação de direitos”.

Inúmeros são os casos que dão azo ao famigerado boletim de ocorrência para preservação de direitos, cabendo trazer à baila alguns exemplos, como nas situações imprevisíveis de acidente de trânsito, sem dolo, havendo apenas danos de natureza material; cônjuge, que pretende sair de casa, solicita o boletim de ocorrência para que, em uma futura separação judicial, não seja acusado de abandono de lar, fato bastante comum no meio forense.

Existem ainda casos que aparentam ser ilícitos penais em razão da magnitude dos efeitos suportados por aqueles que os suportam, mas que também não são de competência dos agentes policiais, tais como: participantes de concurso público que ao chegarem no local da prova,no horário disposto no edital do certame, e encontram os portões fechados, sendo, então, impedidos de ingressar e realizar a avaliação; casos de reclamação em Procon municipal, servindo o boletim de ocorrência como documento de suporte para a referida reclamação; ou ainda nos casos de perda ou extravio de documento, sendo estes casos, definitivamente, os mais numerosos em sede policial.

Não obstante, os exemplos supracitados dispensam qualquer lavratura de boletim de ocorrência, uma vez que existem órgãos ou entidades com competência previamente fixada para resolver tais situações. Na hipótese do cerceamento ao direito dos candidatos do concurso público de entrar no recinto de aplicação do exame para realizá-lo, em clara violação às regras editalícias, o Ministério Público possui meios próprios para apurar vícios, ofensas relacionadas aos concursos públicos, podendo os ofendidos oferecer representação ao parquet, prestando declaração, sob pena de incorrerem no crime de falsidade ideológica, previsto no artigo 299 do Código Penal. No que tange as reclamações feitas ao Procon, não há nenhuma necessidade de se registrar um boletim de ocorrência, pois assim que o consumidor leva ao Procon um caso de ofensa a direitos consumeristas, previstos em lei, o órgão tem mecanismos para diretamente agir em defesa do consumidor, dispensando a apresentação de boletim de ocorrência. Vale ressaltar que se a ofensa configurar crime, o Procon deve encaminhar o registro que recebeu à autoridade policial competente (MENDES, 2009, p.01).

2.1.3. Conflito entre o Bloco da Intervenção Mínima e a Lavratura de Boletins de Ocorrência de Fato Atípico

De acordo com a doutrina de Tourinho Filho (2013, p.78):

“A função precípua da Polícia Civil consiste em apurar as infrações penais e a sua autoria. Sempre vigilante, ela indaga de todos os fatos suspeitos, recebe os avisos, as notícias, forma os corpos de delitos para comprovar a existência dos atos criminosos, seqüestra os instrumentos dos crimes, colige todos os indícios e provas que pode conseguir, rastreia os delinqüentes, captura-os nos termos da lei e entrega-os à Justiça Criminal, juntamente com a investigação feita, para que a Justiça examine e julgue maduramente”. 

O bloco principiológico da intervenção mínima deve ser observado pelos agentes policiais, em todos os setores, tais princípios que o compõe devem informar as atividades da polícia, sejam as de investigação ou as administrativas, como o atendimento ao público ou a organização dos serviços internos dos órgãos policiais, sob pena de violar, além dos princípios do bloco, os princípios regentes da Administração Pública, sobretudo o princípio da eficiência.

O princípio da eficiência exige que a atividade administrativa, e aqui se inclui a policial, seja exercida com presteza, perfeição e rendimento funcional. Meirelles (2014, p.102) apresenta a eficiência como um dever, explanando que “é o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros.” Logo, os agentes policiais, englobando a Polícia Judiciária e a Militar, devem observar o conteúdo do referido princípio.

Boletim de Ocorrência não pode ser considerado um instrumento público para registros de interesses individuais, muito menos os estabelecimentos policiais podem ser considerados cartórios ou tabelionatos gratuitos para registros cíveis. Esta utilização acaba por criar situações de desvio de finalidade, desperdício de recursos humanos e materiais, além de causar constantes conflitos entre policiais e particulares nas unidades policiais, o que, por si só, configura, juridicamente, responsabilidade administrativa do funcionário que incorre em falta funcional (SABBÁ, 2011, p.01).

O conflito entre o bloco da intervenção mínima e o registro de boletins de ocorrência de fatos atípicos atenta contra os princípios penais e da administração pública, como supracitado. Sendo assim, percebe-se um descaminho no que tange à função policial e, por conseguinte, grande perda de tempo e consumo inútil de material para serviços que deveriam ser realizados por outros órgãos estatais e profissionais. Todo o trabalho da Polícia Civil deve ser direcionado para esta direção, não devendo sofrer desgaste, não devendo ser desperdiçado com atribuições que não estão incluídas em suas competências.

Cumpre ainda tratar da validade do boletim de ocorrência de fato atípico. Mendes (2009, p.01), em artigo publicado, dispõe que:

“Em síntese, o boletim de ocorrência, por si só, não preserva o cidadão de nada. Mesmo considerando que, com o seu registro, o delegado de polícia toma conhecimento do fato, isso em nada favorece o interessado, exceto se a situação configurar infração penal”.

Corroborando com o entendimento do autor, o Tribunal de Justiça do Estadode Santa Catarina (TJSC) decidiu que o boletim de ocorrência “é peça instrumental que contém mera transcrição das informações prestadas pela vítima, mostrando-se sem mais, dado com imprestabilidade eficacial probatória”, uma vez que serão os elementos colhidos no inquérito policial que fornecerão embasamento a uma possível ação penal e não aquilo que consta da narrativa do boletim de ocorrência, ainda mais nos casos de “preservação de direitos”.

Ainda sobre a questão da validade dos boletins de ocorrência de fatos penalmente atípicos, o Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) manteve o decidido pelo juiz da 3ª Vara da Fazenda Pública Estadual de Goiânia, Élcio Vicente da Silva, que deferiu liminar desonerando os escrivães e demais agentes do quadro de funcionários da Polícia Civil do Estado de Goiás (PCGO) a registrar boletins de ocorrência de fatos atípicos. A decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de Goiás foi proferida em razão do Agravo de Instrumento N° 369390-36.2015.8.09.0000, cuja a ementa segue in verbis:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. POLÍCIA CIVIL. DESOBRIGAÇÃO QUANTO AO REGISTRO DE BOLETINS DE OCORRÊNCIA DE FATOS ATÍPICOS. TUTELA ANTECIPADA. LIVRE CONVENCIMENTO DO JULGADOR. AUSÊNCIA DE TERATOLOGIA E/OU ILEGALIDADE. 1. Em se tratando de tutela de urgência, a decisão concessiva ou negativa do juiz de direito, tendo em vista o seu livre convencimento motivado e o seu poder geral de cautela, somente enseja reforma no caso de ilegalidade, arbitrariedade ou manifesto equívoco ou abuso de poder. 2. Não há ilegalidade ou teratologia na decisão de primeiro grau que, devidamente fundamentada, ressalta a presença dos requisitos autorizadores da concessão de liminar em ação civil pública – periculum in mora e fumus boni iuris –, deferindo a medida pleiteada, referente à desoneração de escrivães e demais servidores do quadro da Polícia Civil do Estado de Goiás da obrigação de lavrar boletins de ocorrência de fatos atípicos, que, aliás, não se mostra irreversível, tampouco revela periculum in mora reverso”.

Assim, a disponibilidade de escrivães de polícia para proceder a registro de ocorrência de fato atípico suprime a população de serviços de natureza urgente, levando em consideração o número escasso de servidores, que deveriam se ater exclusivamente a investigar delitos e contravenções.

3 REFLEXOS NAS ATIVIDADES DA POLÍCIA CIVIL EM RAZÃO DA INOBSERVÂNCIA DO BLOCO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA PELA POLÍCIA MILITAR

A polícia administrativa tem caráter predominantemente preventivo, atuando antes de o crime ocorrer, para evitá-lo, submetendo-se essencialmente às regras de Direito Administrativo. No Brasil, a polícia administrativa é associada ao policiamento ostensivo, sendo realizada pela Polícia Militar. Cumpre ainda comentar que tal polícia relaciona-se mais com a atividade das pessoas.

O mister da Polícia Militar incide sobre bens, direitos e atividades e esgota-se no âmbito da função administrativa, que é exercida por órgãos administrativos de caráter fiscalizador, ou seja, por integrantes dos mais diversos setores da Administração Pública (MAZZA, 2013, p.220).

Todavia, existem situações em que a atuação da Polícia Militar acaba interferindo no bom desempenho da Polícia Civil, acarretando controvérsias entre as duas forças. Tal como supracitado, as atividade ligadas ao desvendamento de uma infração penal e as ordens emanadas do Poder Judiciário são de responsabilidade das Polícias Civil (em âmbito estadual) e Federal (quando se tratar de crime federal). Somente cabe à Polícia Militar tais atividades de forma excepcional, quando se tratar de crime militar.

Assim, de acordo com Neto (2014, p.01):

“Com base nessas premissas, podemos afirmar que qualquer atividade realizada pela Polícia Militar que extrapole seu âmbito constitucional de atuação, especialmente no que se refere às atividades de polícia investigativa/judiciária, deve ser considerada inconstituciona”l.

Cumpre destacar que é comum nos estados brasileiros a inexigência de conhecimentos jurídicos para o preenchimento dos cargos de praças da Polícia Militar, uma vez que os editais dos concursos públicos não cobram noções de Direito. Advém daí o grande problema da corporação, visto que somente os oficiais possuem conhecimento jurídico e estes são uma pequena fração do contingente da tropa, restando às praças o patrulhamento das ruas.

Surgem, então, diversos casos que obstam o trabalho da Polícia Civil e até mesmo do Judiciário, tais como o cumprimento de mandado de busca e apreensão realizado pelos policiais militares.

Sabe-se que a detenção de infratores em situação de flagrante delito decorrente do cumprimento de mandados de busca e apreensão realizados pela Polícia Militar sem qualquer conhecimento do Delegado de Polícia, que, por sua vez, é a autoridade responsável pela direção das atividades de investigação. Logo, segundo Neto (2014, p.01):

“Mesmo que o cumprimento do mandado de busca pela Polícia Militar resulte num estado de flagrante delito do suspeito, sua prisão nessa circunstância seria ilegal em virtude da origem ilícita do mandado. Seria um caso típico de prova ilícita por derivação. Assim, caberia ao Delegado de Polícia, como primeiro defensor dos direitos fundamentais, constatar essa ilegalidade e não ratificar a prisão em flagrante realizada pelos milicianos”.

Assim, resta evidente o perigo que essas ações praticadas pela Polícia Militar podem causar à Justiça, visto que as referidas ações provavelmente resultarão na invalidação das provas que não poderão ser utilizadas e, consequentemente, na impunidade de um criminoso, que, em razão de um erro policial, ficará em liberdade.

O policial militar, no caso em tela, ainda pode incorrer nas penas do artigo 328 do Código Penal (usurpação de função). Vale ressaltar que os fins não justificam os meios, cabendo ao Poder Judiciário a incumbência de zelar pelo que dispõem as leis acerca do tema.

Outra consequência, esta diretamente derivada de ofensas ao bloco da intervenção mínima, é o flagrante de pessoas por situações que não configuram ilícitos penais. Tal ocorre em razão do desconhecimento das leis penais, como já supracitado, sendo isto frequente por parte das praças que como cediço possuem pouco conhecimento jurídico e são a maior parte do contingente de policiais.

O flagrante por ilícito civil ou até mesmo em casos de desrespeito às normas legais ou constitucionais, constitui óbice ao trabalho dos agentes da Polícia Civil, que acabam por desperdiçar seus esforços realizando a triagem dessas ocorrências. Dessa forma, mais uma vez, a máquina estatal é utilizada de maneira incorreta e ineficiente, causando prejuízos àqueles que precisam, realmente, dos serviços da Polícia Civil (TÁVORA, 2013, p.448).

CONCLUSÃO

O bloco da intervenção mínima ou ultima ratio deve informar as atividades da Polícia Civil de forma contínua, uma vez que o Direito Penal, objeto do mister policial, é a última linha de defesa da sociedade e é assim que deve ser tratado.

A função dos agentes policiais e os serviços oferecidos em âmbito de delegacia não podem ser banalizados. Não é qualquer ocorrência, qualquer caso que deve ser recebido pelos agentes e levado à ciência da autoridade policial, no caso, o delegado de polícia.

Boletim de ocorrência, de forma alguma, pode ser considerado um instrumento público para fins de registro de interesses particulares, bem como as delegacias não podem ser tratadas como cartórios ou tabelionatos para serviços sem custos para a população. Tal costume deve ser abolido de nosso sistema jurídico, pois representa uma violação aos princípios da Administração Pública, princípios positivados na Constituição Federal de 1988.

Os Boletins de ocorrência para preservação de direitos noticiam fatos penalmente atípicos, fatos que não possuem nenhuma relevância ao Direito Penal e que atrapalham o desempenho da atividade dos agentes policiais, sobretudo dos escrivães. Isso, claramente, configura desvio de finalidade, já que há uma deturpação do que deveria ser praticado, culminando em desperdício de recursos, como já supracitado, de natureza material e de natureza humana, visto que os agentes gastam tempo e energia em atividades que não são de sua competência.

É claro que a intenção é das melhores, pois, com o registro de fatos atípicos, os particulares se sentem protegidos, além de suprir deficiências de outros órgãos ou entidades estatais que deveriam estar agindo em defesa dessas pessoas, como, por exemplo, o Procon.

Não obstante, é um esforço desnecessário, uma vez que, como cediço, existem outros órgãos com competências legais para realizar a tutela dos cidadãos em casos extrapenais, tais como os de Direito do Consumidor ou Direito de Família. Acreditamos que em situações como essa, que envolvem matéria não Penal, o registro do boletim de ocorrência deva ser recusado pelo servidor e o interessado encaminhado para o local adequado para realizar suas pretensões, como um cartório, o Ministério Público ou até mesmo a Defensoria Pública.

Outrossim, a validade do boletim de ocorrência de fato penalmente atípico é bastante questionável, pois por se tratar de peça meramente instrumental que contém simples narrativa daquilo que os interessados informaram, mostra-se, então, sem eficácia probatória, já que os elementos colhidos no inquérito policial é que irão fornecer suporte a uma possível ação penal e comporão a instrução probatória na fase judicial da persecução penal. Afinal, é a narrativa de um particular sobre um fato atípico e que o agente policial não tem qualquer obrigação de investigar. Percebe-se que nestes casos inexiste qualquer fragmento de incidência do Direito Penal e, assim, não há necessidade de prestação do serviço policial.

Cumpre ainda ressaltar que há uma nefasta prática de certos profissionais ou repartições solicitarem, ou até mesmo exigirem, que o particular prejudicado por um ilícito civil busque preliminarmente um boletim de ocorrência para preservação de direitos. Tal proceder é absurdo e necessita ser fulminado, não merecendo qualquer guarida em nosso ordenamento jurídico.

Por fim, no que tange à inobservância do bloco da intervenção mínima pela Polícia Militar, faz-se mister o aperfeiçoamento dos policiais militares, especialmente no que diz respeito ao conhecimento jurídico acerca do Direito Penal e Processual Penal para que sejam evitados certas condutas costumeiramente realizadas pelas praças da Polícia Militar.

Também é necessário que os concursos públicos a serem realizados para o preenchimento dos quadros da força sejam reformulados e que sejam incluídas no conteúdo programático noções de Direito, ao menos de quatro dos seus ramos, indispensáveis para o bom desempenho das funções policiais, quais sejam: Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Penal e Direito Processual Penal.

 

Referências
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Informações Sobre o Autor

Antonio José Cacheado Loureiro

Professor de Direito da Universidade do Estado Amazonas. Mestrando em Direito Ambiental (Universidade do Estado do Amazonas)


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