Amianto: a virada jurisprudencial

Resumo: O presente artigo trata da virada jurisprudencial ocorrida no julgamento do caso do amianto, analisando-se os precedentes do Supremo Tribunal Federal à luz dos princípios de Direito Ambiental e do fenômeno da mutação constitucional.

Palavras-chave: Amianto. Direito Ambiental. Mutação Constitucional. Inconstitucionalidade Superveniente.

Abstract: This article deals with the jurisprudential turn of the trial of the case of asbestos, analyzing the precedents of the Federal Supreme Court in light of the principles of Environmental Law and the phenomenon of constitutional mutation.

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Keywords: Asbestos. Environmental Law. Constitutional Mutation. Unconstitutionality Superveniente.

Sumário: Introdução. 1. Do Princípio da Precaução. 2. Da proteção à saúde. 3. Da Inconstitucionalidade Material Superveniente. 4. Conclusão.

Introdução

A questão do amianto vinha sendo julgada pelo Supremo Tribunal Federal com descaso aos princípios ambientais, em especial o princípio da precaução. Felizmente, houve uma virada jurisprudencial. Neste artigo, analisa-se os precedentes do Supremo Tribunal Federal à luz desses princípios e do fenômeno da inconstitucionalidade material superveniente.

1. Do Princípio da Precaução.

O princípio da precaução orienta as normas em relação às consequências desconhecidas, embora prováveis, da atividade potencialmente poluidora. Este princípio recomenda a realização de estudos científicos prévios para que se possa mensurar os reais riscos e projetar o planejamento ambiental da atividade que possa gerar impacto para as gerações futuras.

Em relação ao amianto, antes mesmo da certeza científica acerca dos seus malefícios à saúde humana, os Tribunais Superiores deveriam ter privilegiado a proteção ao meio ambiente e a qualidade de vida da população, em detrimento de interesses meramente econômicos.

Os precedentes mais antigos do Supremo Tribunal Federal desconsideravam esta principiologia, pois, entenderam, por muito tempo, que o amianto poderia ser utilizado no Brasil, de acordo com a regulamentação da Lei nº 9.055/95, como se observa da seguinte ementa: “EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI PAULISTA. PROIBIÇÃO DE IMPORTAÇÃO, EXTRAÇÃO, BENEFICIAMENTO, COMERCIALIZAÇÃO, FABRICAÇÃO E INSTALAÇÃO DE PRODUTOS CONTENDO QUALQUER TIPO DE AMIANTO. GOVERNADOR DO ESTADO DE GOIÁS. LEGITIMIDADE ATIVA. INVASÃO DE COMPETÊNCIA DA UNIÃO. 1. Lei editada pelo Governo do Estado de São Paulo. Ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Governador do Estado de Goiás. Amianto crisotila. Restrições à sua comercialização imposta pela legislação paulista, com evidentes reflexos na economia de Goiás, Estado onde está localizada a maior reserva natural do minério. Legitimidade ativa do Governador de Goiás para iniciar o processo de controle concentrado de constitucionalidade e pertinência temática. 2. Comercialização e extração de amianto.Vedação prevista na legislação do Estado de São Paulo. Comércio exterior, minas e recursos minerais. Legislação. Matéria de competência da União (CF, artigo 22, VIII e XIII). Invasão de competência legislativa pelo Estado-membro. Inconstitucionalidade. 3. Produção e consumo de produtos que utilizam amianto crisotila. Competência concorrente dos entes federados. Existência de norma federal em vigor a regulamentar o tema (Lei 9055/95). Conseqüência. Vício formal da lei paulista, por ser apenas de natureza supletiva (CF, artigo 24, §§ 1º e 4º) a competência estadual para editar normas gerais sobre a matéria. 4. Proteção e defesa da saúde pública e meio ambiente. Questão de interesse nacional. Legitimidade da regulamentação geral fixada no âmbito federal. Ausência de justificativa para tratamento particular e diferenciado pelo Estado de São Paulo. 5. Rotulagem com informações preventivas a respeito dos produtos que contenham amianto. Competência da União para legislar sobre comércio interestadual (CF, artigo 22, VIII). Extrapolação da competência concorrente prevista no inciso V do artigo 24 da Carta da República, por haver norma federal regulando a questão.” (grifo nosso) (ADI 2656 / SP, Tribunal Pleno, Julgamento em 08/05/2003, Relator Ministro Maurício Corrêa).

Entendeu o Supremo Tribunal Federal, nesta oportunidade, que a questão técnica sobre os efeitos danosos do amianto crisotila não deveria ser objeto de análise. A lei federal autorizava o uso desta variedade do amianto, conforme previsão no seu art. 2, in verbis: “Art. 2º O asbesto/amianto da variedade crisotila (asbesto branco), do grupo dos minerais das serpentinas, e as demais fibras, naturais e artificiais de qualquer origem, utilizadas para o mesmo fim, serão extraídas, industrializadas, utilizadas e comercializadas em consonância com as disposições desta Lei. Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, consideram-se fibras naturais e artificiais as comprovadamente nocivas à saúde humana.”.

Assim, percebe-se que o amianto crisotila estava autorizado para utilização, desde que de forma restrita, conforme os parâmetros legais.

No art. 1º da mesma lei, vedou-se a pulverização (spray) de todos os tipos de fibras, inclusive do asbesto/amianto da variedade crisotila e sua venda a granel de fibras em pó.

Entretanto, alguns trabalhadores ainda se prejudicavam com a utilização pela indústria desta modalidade de substância extremamente prejudicial à saúde.

2. Da proteção à saúde.

Dentre os valores constitucionais resguardados, a proteção à saúde se destaca nos arts. 6º e 196 da Constituição Federal de 1988.

Tal direito também goza de proteção nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, no art. 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, no art. 11 da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, no art. 12 do Pacto Internacional Sobre Direitos Econômicos Sociais e Culturais (Decreto nº 591, de 06 de julho de 1992) e no art. 10 do Protocolo Adicional à Convenção Americana Sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – Protocolo de San Salvador (Decreto nº 3.321, de 30 de dezembro de 1999).

 Uma maior proteção à saúde também se fundamenta no dever estatal de redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança, previsto no art. 7º, inciso XXII, da Constituição Federal de 1988 e a proteção do meio ambiente, no art. 225, da Constituição Federal de 1988, que abrange o meio ambiente do trabalho, conforme previsão no art. 200, inc. VIII da Constituição Federal de 1988, na Seção relativa ao direito à saúde.

De acordo com a doutrina de Ana Paula de Barcellos faz parte do mínimo existencial e, portanto, constitui um direito exigível diante do Poder Judiciário, quatro elementos: educação fundamental, saúde básica, assistência aos desamparados e acesso à justiça.

Portanto, percebe-se que o direito à saúde é um dos mais caros ao nosso ordenamento jurídico, gozando de forte proteção constitucional e convencional, fazendo parte do mínimo existencial dos direitos fundamentais.

3. Da Inconstitucionalidade Material Superveniente.

Quando ainda pairava alguma controvérsia sobre os efeitos do amianto no organismo humano, o Supremo Tribunal Federal entendia que não poderia adentrar sobre a questão e ainda que não lhe cabia proibir mercadorias em razão da livre iniciativa.

Embora a comunidade científica ainda pudesse apresentar dados inconclusivos sobre o tema, jamais um argumento econômico poderia se sobrepor à proteção de direitos fundamentais.

Sabe-se que o amianto foi banido em mais de 50 países, todas as categorias de amianto são consideradas cancerígenas, tanto pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como pela Agência Internacional para a Pesquisa sobre o Câncer. Os dados são alarmantes já que, segundo a OMS, 90.000 pessoas morrem anualmente no mundo devido à exposição do amianto no local de trabalho.

De acordo com a OMS, não há níveis de utilização segura da substância, inclusive do amianto crisotila.

Tal conclusão foi ratificada pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente que também reconheceu que telhas e caixas d’água feitos de crisotila são resíduos perigosos.

No plano internacional, o Brasil assumiu compromisso de substituir progressivamente a utilização do amianto crisotila, inclusive com a ratificação da Convenção nº 162, da Organização Internacional do Trabalho, promulgada por meio do Decreto nº 126, de 22 de maio de 1991.

Tal Convenção também pode ser utilizada como fundamento para embasar a possibilidade de leis estaduais se adequarem aos tratados, ainda que contrariem a legislação federal geral sobre o tema.

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Pode-se tanto entender que a referida Convenção tem status de supralegalidade, por proteger o direito humano à saúde (conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal nos Recursos Extraordinários 466.643 e 349.703), como que possui status de legislação ordinária, anterior à lei 9.055/95, o que impediria que esta fosse considerada a norma geral sobre o tema.

Nas palavras do Ministro Joaquim Barbosa no voto-vista, quando do julgamento da Medida Cautelar na ADI 3937/SP, que restou ao final indeferida: “Não faria sentido que a União assumisse compromissos internacionais que não tivessem eficácia para os Estados e Municípios.”.

No mesmo julgamento, se pontuou como argumentação à mudança de entendimento a inexistência de alternativas, não há medidas intermediária à proibição para proteção ao bem jurídico.

No julgamento do mérito da ADI 3937/SP, conforme divulgação no Informativo de Jurisprudência nº 874, de acordo com o Ministro Ricardo Lewandowski não há dúvida, na comunidade científica mundial e brasileira, quanto ao potencial cancerígeno de todas as variedades do amianto, inclusive do crisotila.

Para ele, ainda que houvesse alguma dúvida com relação à lesividade do amianto crisotila para a saúde humana, é o caso de se aplicar o princípio da precaução, segundo o qual, para que o ambiente seja protegido, serão aplicadas pelos Estados, de acordo com as suas capacidades, medidas preventivas. Onde existam ameaças de riscos sérios ou irreversíveis, não será utilizada a falta de certeza científica total como razão para o adiamento de medidas eficazes, em termos de custo, para evitar a degradação ambiental.

Houve uma aplicação correta do princípio da precaução, para que prevaleça a proteção ao meio ambiente, ainda que se possa aventar alguma discussão em outros ramos do conhecimento.

Além de todas essas questões, também se mencionou que o amianto pode ser substituído por outros materiais (fibras de Poli Álcool Vinílico – PVA) e Polipropileno – PP), sem propriedade carcinogênica e recomendados pela Anvisa.

Dessa forma, pode-se dizer que o art. 2º da Lei federal nº 9.055/1995 passou por um processo de inconstitucionalização e, no momento atual, não mais se compatibiliza com a Constituição de 1988, razão pela qual os Estados-Membros passaram a ter competência legislativa plena sobre a matéria até que sobrevenha eventual nova lei federal.

O Plenário do Supremo Tribunal Federal ressaltou que o processo de inconstitucionalização da Lei 9.055/1995 se operou em razão de mudança no substrato fático da norma.

Ressalte-se que não se confunde o ocorrido no presente caso com a clássica lição de que não cabe inconstitucionalidade superveniente de ato normativo produzido antes da nova Constituição perante o novo paradigma.

O Supremo Tribunal Federal utilizou o termo inconstitucionalidade superveniente em sentido diverso. Neste julgamento do amianto houve mudança na situação fática subjacente à norma jurídica, ou seja, mudanças no cenário jurídico, político, econômico ou social do país e, portanto, se alterou a conclusão acerca da constitucionalidade da norma.

Na hipótese analisada, mudou-se a percepção acerca a lesividade da utilização da substância em relação ao bem jurídico saúde e meio ambiente ecologicamente equilibrado.

4. Conclusão

Assim, percebe que os Tribunais Superiores podem alterar suas conclusões acerca de um determinado tema diante de alterações no substrato fático que o circunda. No caso do amianto, apesar de há décadas os especialistas alertarem sobre os riscos da utilização da substância em todas as suas categorias, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sempre foi refratária à sua proibição, em virtude principalmente de aspectos econômicos, ignorando por completo o princípio da precaução.

Felizmente, em julgamento recente, houve uma virada na jurisprudência que declarou a constitucionalidade de leis estaduais que aumentam a proteção ao trabalhador e ao meio ambiente em relação ao amianto. O Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade superveniente, em razão de alteração na matéria fática, da lei federal 9.055/95, que permitia a utilização de algumas formas do amianto crisotila.

 

Referências:
Supremo Tribunal Federal, Órgão Plenário, ADI 3937/SP, relator originário Ministro Marco Aurélio, redação para o acórdão Mininistro Dias Toffoli, julgado em 24/8/2017.
Supremo Tribunal Federal, Órgão Plenário, ADI 3406/RJ e ADI 3470/RJ, Relator Mininistra Rosa Weber, julgados em 29/11/2017.
Supremo Tribunal Federal, Órgão Plenário, ADI 2656/SP, Relator Ministro Maurício Corrêa, julgado em 08/05/2003.
Supremo Tribunal Federal, Órgão Plenário, Recurso Extraordinário 466.343/SP, Ministro Relator Cezar Peluzo, julgado em 03/12/2008.
Supremo Tribunal Federal, Órgão Plenário, Recurso Extraordinário 349.703/RS, Ministro Relator Celso de Mello, julgado em 12/03/2008.
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
Dados da OMS sobre o amianto. Disponível em: http://www.who.int/occupational_health/publications/asbestosrelateddiseases.pdf. Acesso em 30 de dezembro de 2017.

Informações Sobre o Autor

Maria Pilar Prazeres de Almeida

Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal Fluminense. Aprovada nos concursos de Advogada da FINEP Defensora Pública do Estado da Bahia Defensora Pública do Estado do Espírito Santo e Defensora Pública do Estado de Santa Catarina


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