Resumo: O presente trabalho buscou analisar a aplicação da legislação estrangeira aos direitos reais brasileiros, debatendo a utilização da LINDB cumulado com a lei federal n° 7.652/1991, como tem sido tratada a hipoteca de navio estrangeiro no Brasil, assim como, o princípio do nemo potest venire contra factum proprium.
Palavras-chave: Direito Internacional. Direitos Reais;
Abstract: The present paper tried to analyse the application of the foreign legislation to the Brazilian right of ownership law, debating on how the LINDB it’s used and the federal law n. 7.652/1991, how the foreign mortage on a vessel is applied in Brasil and the nemo potest venire contra factum proprium principle.
Keywords: International Law. Right of Ownership Law.
Sumário: Introdução. 1. Conflitos da lei no espaço: a aplicação da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) cumulado com a Lei Federal nº 7.652/1991. 2. Hipoteca de Navio Estrangeiro e sua eficácia no Brasil. 3. A aplicação do princípio do nemo potest venire contra fact proprium. Considerações finais. Referências.
Introdução
Não é novidade que o intenso intercâmbio entre os diferentes povos do mundo, viabilizados pelos meios de comunicação modernos e a crescente tendência a facilitação e ao acesso aos países estrangeiros, possibilitaram o estreitamento de laços entre distintas nacionalidades. Casamentos entre estrangeiros, contratos entre empresas e pessoas de diferentes nações ou até mesmo fatos ocorridos no exterior envolvendo o cidadão nacional são extremamente comuns na atualidade.
Notoriamente, é praticamente impossível que tais casos não afetem o Direito Internacional Privado de cada país, uma vez que não existe uma legislação internacional geral que disponha sobre a aplicação do direito, sobretudo os direitos reais, nas relações públicas ou privadas. As normas que existem não resolvem a lide, mas orientam os juízes indicando qual direito será aplicável no caso concreto, haja vista que a legislação aplicável pode ser nacional ou estrangeira (STRENGER, 1973, p. 14-15).
Neste sentido, propõe-se o seguinte problema de pesquisa: “como se dá a aplicação da legislação internacional nos direitos reais brasileiros?”.
Constitui-se como objetivo geral a resposta do problema de pesquisa, que diz respeito a como tem se dado a aplicação da legislação estrangeira nos direitos reais. São objetivos específicos: abordar a partir de uma perspectiva internacional, a aplicação da legislação estrangeira nos direitos reais brasileiros, discutindo os conflitos de leis no espaço, dispositivos pertinentes da LINDB cumulado com a lei federal n. 7.652/1991, assim como analisar o caso de hipoteca de navio estrangeiro e a sua eficácia no Brasil, bem como abordar o princípio do nemo potest venire contra fact proprium largamente utilizado na jurisprudência.
A metodologia científica vincula-se a uma abordagem metodológica qualitativa de artigos científicos, tendo como técnica a análise de conteúdo. Por sua vez, o gênero adotado foi a pesquisa teórica, da qual foram escolhidos dois procedimentos técnicos a serem utilizados: a pesquisa bibliográfica e documental. No primeiro estágio da pesquisa, será realizada uma coleta de bibliografia sobre os conflitos de leis no espaço; o posicionamento brasileiro a respeito da aplicação internacional na LINDB; de mesmo modo que, como é tratada a questão da hipoteca de navio estrangeiro e sua eficácia no Brasil. Depois, será realizada uma análise documental a respeito da aplicação do princípio do nemo potest venire contra fact proprium na jurisprudência dos Tribunais brasileiros.
1. Conflitos da lei no espaço: a aplicação da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) cumulado com a Lei Federal nº 7.652/1991
De acordo com o princípio da territorialidade, toda lei elaborada por um Estado soberano vige em seu território. Contudo, existem hipóteses em que devemos aplicar a legislação estrangeira.
No Brasil, ao verificar a hipótese de aplicação da legislação estrangeira, o Magistrado deve-se ater ao que dispõe a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (BRASIL, Decreto-Lei n. 4.657/1942). Desta forma, ao se tratar de obrigações sobre direitos reais, optou a legislação brasileira pela regra da locus regit actum, aplicando-se a lei do local em que forem constituídas, conforme dispõe o art. 16 da referida lei. A exceção é justamente quando a obrigação é celebrada no estrangeiro com efeitos no Brasil, nesse caso, deverá ser observada a forma essencial prevista no art. 108 do Código Civil (BRASIL, Lei 10.406/2002).
De acordo com o art. 9, §2º da LINDB, o contrato reputa celebrado no lugar que residir o proponente (BRASIL, Decreto-Lei n. 4.657/1942). Contudo, tal redação gera antinomia com o disposto no art. 435 do Código Civil, que preleciona que se reputa celebrado o contrato no lugar em que foi proposto. Entende-se que deve ser aplica a questão da especialidade, vigorando o artigo do Código Civil (BRASIL, Lei 10.406/2002).
Por sua vez, a Lei 7.652/1988 dispõe em seu art. 1º a respeito do registro de propriedade marítima, dando como finalidade a lei “regular o registro da propriedade marítima, dos direitos reais e demais ônus sobre embarcações e o registro de armador", enquanto no art. 2º que "o registro da propriedade tem por objeto estabelecer a nacionalidade, validade, segurança e publicidade da propriedade de embarcações” (BRASIL, Lei 7.652/1988).
A supracitada lei, no parágrafo único do art. 3º, assim como no art. 12, atribui a competência ao Tribunal Marítimo para o registro da propriedade de embarcações e para o registro de direitos reais e outros ônus que gravem embarcações brasileiras (BRASIL, Lei 7.652/1988).
Em caso de posse ou propriedade de bem imóvel, a legislação aplicada será a do local onde situa-se o bem, conforme disposto no arts. 8° e 12, §1° da LINDB, bem como art. 23, I CPC (BRASIL, Lei 13.105/2015). Trata-se da aplicação da regra da lex rei sitae, o qual dispõe que “o alcance dessa norma traduz basicamente a aplicação do princípio da territorialidade em matéria de direitos reais e a determinação da lei aplicável aos bens individualmente considerados” (BASSO, 2014). Assim, a jurisdição do local da situação do bem é inafastável haja vista que se trata de matéria de ordem pública.
2. Hipoteca de navio estrangeiro e sua eficácia no Brasil
No tocante a hipoteca de navio estrangeiro e sua eficácia no Brasil, o Tribunal Marítimo somente registra hipoteca e demais ônus sobre embarcações brasileiras, não sendo possível o registro de hipoteca de embarcações estrangeiras, a menos que seu proprietário seja pessoa jurídica brasileira ou pessoa física residente e domiciliada no Brasil (RODAS, 2015).
É importante salientar que esse posicionamento está de acordo a Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras Relativas aos Privilégios e Hipotecas Marítimas, adotada em Bruxelas, por ocasião da Conferência Internacional de Direito Marítimo, em 1926, que estabelece em seu artigo 1º, que as hipotecas “…sobre navios regularmente estabelecidos segundo as leis do Estado contratante a cuja jurisdição o navio pertencer, e inscritos em um registro público, tanto pertencente à jurisdição do porto de registro, como de um ofício central, serão considerados válidos e acatados em todos os outros países contratantes” (BRASIL, Decreto 351/1935).
Deste modo a hipoteca em navio estrangeiro, não se opera de pleno direito no Brasil, haja vista a sua inaplicabilidade diante da legislação internacional e do entendimento pacífico da jurisprudência.
3. Princípio do nemo potest venire contra fact proprium
Mesmo não estando explicitamente disciplinado no ordenamento jurídico brasileiro, o princípio internacional da proibição do comportamento contraditório, mais conhecido como nemo potest venire contra factum proprium, como o próprio nome diz, torna ilícita uma atitude que, num primeiro momento, foi diversa da alegada.
Seja em decorrência da globalização, crise econômica, política ou do avanço tecnológico, é inegável que a sociedade passa por inúmeros processos de mutação na contemporaneidade. Como consequência, há uma assustadora insegurança nos atos negociais, razão pela qual se exige uma coerência nas atitudes dos indivíduos que decidem estabelecer uma relação jurídica (AYRES; RODRIGUES, 2010, p. 2).
Nesse sentido o princípio da proibição de comportamento contraditório “não reflete uma proibição à simples incoerência do indivíduo; configura um princípio de proibição à ruptura da confiança causada por esta incoerência” (idem, p. 7).
Corolário do princípio da boa-fé, o instituto é amplamente utilizado na jurisprudência. “Tendo em vista a dimensão social e econômica alcançada pelas relações obrigacionais, espera-se das partes cooperação e confiança na realização dos negócios jurídicos. Atuam, aí, os princípios da proteção da boa-fé objetiva – criando deveres de cooperação, informação e lealdade – e, fundamentalmente, da confiança – vinculando as partes a não frustrar imotivadamente as expectativas legítimas criadas por sua conduta” (TRT-4 RO 00011080820135040702, data de julgamento: 08/02/2017, 11ª turma).
No ramo dos Direitos Reais, o princípio supracitado é utilizado como fundamento para decidir questões relativas a relações condominiais, reintegrações de posse, assim como, ações rescisórias.
Como exemplo, temos o caso Apelação Cível 2008.00.07667, que diz respeito a cobrança de pagamento de cotas condominiais. No caso em análise, o possuidor de determinado imóvel, não quer ser considerado condômino a fim de pagar a cota condominial devida. Acontece que, em momento diverso, firmou pactos de parcelamento de dívidas condominiais, uma qualidade de condômino. Desse modo, o possuidor não pode escolher ter a qualidade de condômino para algumas coisas e para outras não. Correta a aplicação do princípio de proibição de comportamento contraditório pelo magistrado, uma vez que não é lícito adotar um comportamento contraditório com sua conduta anteriormente adotada, sob pena de quebrar a confiança legítima e da boa-fé (TJ/RJ, 13ª Câmara Cível, Apelação Cível 2008.001.07667, rel. Des. SERGIO CAVALIERI FILHO, j. 12/03/2008).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com o exposto, podemos concluir que a legislação brasileira optou pela regra do locus regit actum, aplicando-se a lei do local em que forem constituídas as obrigações. Contudo, quando tratar-se de uma obrigação celebrada no estrangeiro com efeitos no Brasil, nesse caso, deverá ser observar a forma estabelecida no art. 108 do Código Civil.
Verificamos também, que não é possível o registro de hipoteca em embarcações estrangeiras, a não ser que seu proprietário seja pessoa jurídica brasileira ou pessoa física residente e domiciliada no Brasil.
Por último, averiguamos que o princípio do nemo potest venire contra factum proprium é amplamente utilizado como argumento nas jurisprudências brasileira, vedando a possibilidade de comportamentos contraditórios, ou seja, que não esteja em consonância com o que foi pré-estabelecido entre as partes.
Informações Sobre os Autores
Mariele Cunha Rocha
Advogada. Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande FURG
Diego Damas Fernandez
Advogado e Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande FURG