Multiparentalidade e seu reflexo no direito sucessório

Resumo: Os objetivos deste trabalho são apresentar de forma resumida o instituto da multiparentalidade, o seu surgimento baseado nas constituições familiares afetivas, os princípios informativos que possibilitaram seu reconhecimento perante os Tribunais, assim como as controvérsias acerca do seu reflexo no direito sucessório. Visa, ainda, demonstrar que apesar de ser uma conquista social e um grande avanço para o Direito de Família, a questão patrimonial decorrente do reconhecimento da multiparentalidade, qual seja, o direito constitucional à herança, ainda é um tema complexo, principalmente com relação à divisão de bens quanto aos herdeiros ascendentes. Ademais, demonstra a possibilidade do surgimento de demandas que visam unicamente o ganho patrimonial, fato este que pode gerar insegurança jurídica. Para tanto, utilizamos como principal método pesquisa bibliográfica e jurisprudencial.

Palavras-chave: Pluriparentalidade. Família. Afeto. Herança.

Abstract:  The objectives of this article are to present a brief review of the legal institute of multi-parenthood, to demonstrate its emergence based on affective familiar constitutions, to discuss the informative principles allowing its recognition before the Courts of Justice, and to point the controversies regarding its impacts on the law of succession. Although multi-parenthood consists of a social achievement and a significative progress for the Law of Family, it is shown here that a patrimonial question arises, namely the constitutional right to inheritance. That question remains a complex subject, mainly concerning the division of assets among the ascending heirs. Moreover, it is discussed here how demands aiming only patrimonial gain may arise, causing legal uncertainty. The main methods used in this review are bibliographic and jurisprudence research. 

Keywords: Pluriparentality. Family. Affection. Heritage

Sumário: Introdução. 1. Multiparentalidade. 1.1 Conceito. 1.2 A Entidade Familiar Baseada no Afeto. 1.3 Princípios e Fundamentos Informativos. 1.4 O Reconhecimento da Multiparentalidade Perante os Tribunais. 2. O Direito Sucessório. 2.1 Reflexo da Multiparentalidade na Sucessão. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

O Direito de Família é um ramo do Direito Privado, dotado de autonomia, uma vez que apresenta princípios informadores próprios, e características singulares que permitem seu aperfeiçoamento em consonância com a evolução da sociedade.

Justamente em decorrência da evolução da sociedade e das modificações nas relações que permeiam o instituto da Família é que surgiu a necessidade de resguardar direitos que, apesar de não estarem positivados, merecem amparo dos Tribunais para que o sistema jurídico possua segurança jurídica e, principalmente, como medida a ser adotada para efetivar a dignidade da pessoa humana.

Assim surgiu o termo da “multiparentalidade” no direito de família, tema que ainda é extremamente recente, controverso e que já apresenta reflexo em outras áreas do Direito.

Nesta esteira, o presente estudo divide-se em dois momentos principais: primeiramente discorre-se sobre a multiparentalidade, os princípios informativos que possibilitaram seu reconhecimento e o posicionamento dos Tribunais Brasileiros e, por fim, explana-se sobre o reflexo desse reconhecimento sobre o direito à sucessão nas relações multiparentais.

1 MULTIPARENTALIDADE

A multiparentalidade é um assunto atual, muito presente na realidade fática da sociedade e que está sendo analisado pelos juristas com o intuito de proteger as atuais entidades familiares, ou seja, busca tutelar “não somente a criança ou o adolescente, mas pessoa que durante anos desenvolveu relação socioafetiva como se pai/mãe fosse” (GUASSÚ; COVA, 2015).

Além disso, passou a acarretar grandes discussões acerca da extensão e dos efeitos jurídicos que este novo “instituto” já está causando, principalmente na esfera patrimonial quando voltado ao direito sucessório.

1.1 CONCEITO

Inicialmente cabe explanar o significado do termo “multiparentalidade” ou “pluriparentalidade” para que o tema seja de fácil interpretação e rápido entendimento.

Este termo é composto pelo prefixo “multi” ou “pluri” que significa “múltiplos, numerosos” + substantivo “parentalidade” que consiste no “estado ou condição de quem é pai ou mãe”(DICIONÁRIO PRIBERAM, 2013).

Na área jurídica, Karina Azevedo Simões de Abreu (2014) cita que a multiparentalidade “trata-se da possibilidade jurídica conferida ao genitor biológico e/ou do genitor afetivo de invocarem os princípios da dignidade humana e da afetividade para ver garantida a manutenção ou o estabelecimento de vínculos parentais.”

Desta forma, podemos concluir que a multiparentalidade volta-se a possibilidade de uma pessoa possuir dois pais e uma mãe ou duas mães e um pai, reconhecidos perante a sociedade, com todos os direitos e deveres inerentes a esta relação. Em regra, observa-se a multiparentalidade na existência de um pai biológico e um pai afetivo, ambos reconhecendo o estado de filiação da mesma pessoa.

Os casos mais corriqueiros decorrem da existência de um padrasto ou madrasta que exercendo a função parental, tornam-se pais e mães, os quais desejam que estes filhos afetivos sejam reconhecidos perante a sociedade e perante o ordenamento jurídico visando proteger os direitos do filho afetivo.

Destarte, um filho terá estabelecido uma relação de paternidade ou maternidade com mais de um pai ou de uma mãe, podendo inclusive requerer que esta situação seja registrada em seu registro de nascimento, passando, assim, a possuir dois pais e uma mãe ou duas mães e um pai.

Assim, na multiparentalidade não há que se falar em priorizar a relação biológica em detrimento da relação afetiva ou vice-versa, mas sim em afirmar que a relação biológica e afetiva devem coexistir, ou seja, são consideradas em igual grau de hierarquia jurídica.

1.2 A ENTIDADE FAMILIAR BASEADA NO AFETO

Para que a multiparentalidade surgisse no ordenamento jurídico brasileiro, além da evolução fática social, houve também a necessidade de mudança de alguns parâmetros em relação à entidade familiar.

A Carta Magna de 1988 já apresentou mudanças bem avançadas em relação ao Direito de Família, quando prevê que o planejamento familiar, fundamentado no princípio da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, é de livre decisão do casal, devendo o Estado propiciar os recursos necessários para o exercício desse direito (Art. 226 caput e § 7º).

Ainda, institui como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem o direito à convivência familiar, protegendo-os de qualquer forma de discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, determinando aos filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, os mesmos direitos e qualificações, proibindo quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação (Art. 227 caput e § 6º).

Além disso, o Código Civil de 2002 prevê em seu artigo 1.593, que o parentesco pode ser natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou de outra origem. Costa Machado e Silmara Juny Chinellato (2010, p. 1295) explicam que “o parentesco civil se refere à adoção, que vincula adotantes e adotados sem restrições ou diferenciações, como se uns descendessem dos outros.” (grifos nossos)

Logo, podemos observar que o direito positivado passou a considerar que a entidade familiar não está mais baseada unicamente na questão patrimonial, como outrora, dando espaço à afetividade desenvolvida com o tempo no convívio das relações familiares.

Corroborando essa evolução, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA de 1990, também enfatiza, nos artigos 20, 26 e 27, que não deve haver quaisquer designações discriminatórias aos filhos em relação à filiação, possibilitando aos filhos havidos fora do casamento o reconhecimento pelos pais a qualquer momento, qualquer que seja a origem da filiação, instituindo, ainda, que o estado de filiação apresenta-se como um direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição.

O professor Rolf Madaleno (2017, p. 39) cita em sua obra uma assertiva de Cristiano Chaves de Farias, o qual expõe que “A entidade familiar deve ser entendida, hoje, como grupo social fundado, essencialmente, em laços de afetividade […]”.

Outrossim, podemos afirmar que a entidade familiar baseada no afeto é plenamente aceitável e reconhecida na doutrina e na legislação pátria e efetivou-se juridicamente com sua ampla aplicação nos casos práticos, criando uma jurisprudência já consolidada com relação a este tema.

Logo, é possível asseverar que a multiparentalidade, fortemente relacionada com a afetividade desenvolvida no contexto familiar, deve ser reconhecida no ordenamento pátrio como uma evolução jurídica firmada pela situação fática social e amparada implicitamente na legislação vigente.

1.3 PRINCÍPIOS E FUNDAMENTOS INFORMATIVOS

Tomando por base o direito positivado, as normas de interpretação e integração jurídica, podemos identificar como princípios e fundamentos basilares que possibilitaram o reconhecimento da multiparentalidade, dentre outros:

a)   princípio da dignidade da pessoa humana: este é um princípio que traz a ideia de que todos os indivíduos devem ter assegurados seus direitos e garantias fundamentais visando condições existenciais mínimas para uma vida saudável, sendo, ainda, considerada uma qualidade intrínseca que qualifica o ser humano como dotado de autonomia e autodeterminação.  Está previsto no art, 1°, inciso III da Constituição Federal de 1988.

No Direito de Família, a dignidade de pessoa humana será plenamente atendida quando o indivíduo conseguir efetivar todas as garantias civis e sociais tendo autonomia para decidir sobre o planejamento familiar, paternidade responsável, convivência familiar, dentre outros temas abordados no contexto familiar, além da segurança de que o Estado e a sociedade serão capazes de assegurar com absoluta prioridade o direito da criança e do adolescente à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, ao respeito, à cultura, à liberdade e ao respeito, impedindo qualquer forma de discriminação e opressão.

b)   princípio da solidariedade familiar: este princípio pode ser extraído do artigo 1.511 do Código Civil, quando este afirma que o casamento se refere a uma “comunhão plena de vida” e do cáput do artigo 227 da Constituição Federal, quando impõe à família, à sociedade e ao Estado o dever de proporcionar e de garantir direitos fundamentais às crianças, aos adolescentes e aos jovens.

Assim, podemos afirmar que a família deve agir numa relação de auxílio mútuo, recebendo apoio da sociedade e do Estado para que essa entidade consiga alcançar a plenitude da vida em sua essência.

c)    princípio da afetividade: este princípio traz a ideia de que o afeto é elemento essencial nas relações familiares devendo apresentar-se tanto nos vínculos de filiação como nos de parentesco, no intuito de dar sentido e dignidade à existência humana (MADALENO, 2017, p. 94-95).

O novo contexto familiar consagrou maior importância aos laços afetivos, sendo considerado, atualmente, às vezes, mais importante que o vínculo consanguíneo, sendo capaz de proporcionar uma vida plena nas relações familiares. O ato de zelar e dedicar-se ao filho demonstrando um desejo nato de ser pai ou mãe revelam uma realidade afetiva relevante para o sistema jurídico.

Ainda, com relação ao afeto, o Professor Rolf Madaleno (2017, p. 95) acrescenta:

“[…] maior prova da importância do afeto nas relações humanas está na igualdade da filiação […], na maternidade e paternidade socioafetivas e nos vínculos de adoção, como consagra esse valor supremo ao admitir outra origem de filiação distinta da consanguínea […], ou ainda através da inseminação artificial heteróloga […].”

Esse princípio também pode ser extraído do artigo 226, § 4° c/c artigo 227, cáput, § 5° e 6°, ambos da Constituição Federal, quando prevê uma diversidade na formação familiar, consagrando o entendimento de que o afeto é a base para a formação familiar.

d)   princípio da paternidade responsável: como o próprio nome diz, este princípio volta-se à responsabilidade do pai ou da mãe em relação aos filhos. Ele traz a ideia de que os pais deverão assegurar aos filhos todos os direitos e garantias fundamentais de forma que dignifiquem suas vidas, além de possibilitar aos casais o livre planejamento familiar, conforme consagra o artigo 226, § 7° da Constituição Federal.

Assim, tanto a formação quanto a manutenção da entidade familiar deve ser amparada pela paternidade responsável, garantindo maior liberdade aos indivíduos quanto às suas escolhas com relação à organização e construção familiar.

e)   princípio da isonomia filial: é um princípio constitucional que proíbe qualquer tipo de discriminação em razão da filiação, igualando todos os filhos em relação aos direitos e deveres, independente da origem da filiação. Está expressamente previsto no artigo 227, cáput e § 6° da Constituição Federal.

f)     princípio da proteção e do melhor interesse da criança e do adolescente: este princípio traz a ideia de que a criança e o adolescente devem receber proteção integral e prioritária da família, da sociedade e do Estado, para que tenham acesso ao direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (CF, Art. 227, cáput).

Além disso, também é possível identificá-lo quando a Constituição Federal, no artigo 229, afirma ser dever dos pais a assistência, a criação e a educação dos filhos menores.

Corroborando esse posicionamento constitucional, podemos citar a Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente, a qual reafirma, no aseu artigo 3º, a necessidade de proteção das crianças e do adolescente, no intuito de assegurar a eles todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana visando lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem.

Ainda como forma de efetivar o melhor interesse da criança e do adolescente, o Estatuto da Criança e do Adolescente explicita que a prioridade à qual estão sujeitas refere-se à primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude, além de proibir que sofram qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, prevendo punição por qualquer atentado aos seus direitos (Arts. 4º e 5º).

g)   a posse do estado de filho: é um dos fundamentos amplamente aceito pelos Tribunais brasileiros para a filiação socioafetiva e um dos pilares da adoção à brasileira. A posse do estado de filho pode ser conceituada como uma condição que o indivíduo assume que apresenta características e circunstâncias capazes de determiná-lo como filho legítimo do casal que o cria, possuindo ou não vínculo biológico.

Logo, o indivíduo é considerado filho de um determinado casal por assim ser apresentado à sociedade, pela relação afetiva e duradoura caracterizando a convivência familiar e por desfrutar de todas as condições e garantias que os filhos possuem na relação familiar.

h)   direito à busca da felicidade: outro fundamento utilizado no Direito de Família intimamente ligado ao princípio da dignidade humana, traz a ideia de que o indivíduo deve ser reconhecido pelas suas capacidade de autodeterminação, autossuficiência e liberdade de escolha dos próprios objetivos, sem que haja interferência do Estado, o qual fica impedido de realizar imposições de modelos pré-concebidos de família para que o indivíduo possa, assim, decidir pela formação e constituição da sua família como melhor lhe aprouver.

1.4 O RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE PERANTE OS TRIBUNAIS

Os Tribunais brasileiros vêm reconhecendo a possibilidade da multiparentalidade gradativamente. Inicialmente, a multiparentalidade foi observada nas decisões que reconheciam a parentalidade socioafetiva, quando se passou a autorizar a existência, inclusive registral, de dois pais ou duas mães, porém ainda não se denominava multiparentalidade.

O caso que apresentou maior visibilidade e que pode ser considerado um marco para a multiparentalidade foi o de uma criança que perdeu sua mãe biológica, três dias depois do parto, em decorrência de acidente vascular cerebral. Meses após, seu pai conheceu uma mulher, e se casaram quando a criança tinha dois anos, e foi por ela criado como filho, com quem convive por mais de 18 anos e com quem mantém estreito relacionamento. Por respeito à memória da mãe, vítima de infortúnio e que comoveu toda a comunidade, requereu ao Poder Judiciário o reconhecimento da maternidade socioafetiva e a inclusão do nome da mãe socioafetiva no assento de nascimento da filha[1].

O posicionamento do Tribunal de Justiça de São Paulo acerca da possibilidade do reconhecimento da mãe socioafetiva e da manutenção da mãe biológica deu-se em 2012 e a partir de então o assunto vem tomando maior relevância na esfera jurídica com o surgimento de diversos casos semelhantes e que questionam sobre a prevalência ou não da paternidade socioafetiva sobre a biológica.

Tanto é assim que o Supremo Tribunal Federal fixou tese reconhecendo a multiparentalidade em 21/09/2016, por meio do Recurso Extrardinário 898.060 de Santa Catarina, visando esclarecer o seu posicionamento. O voto do Relator Ministro Luiz Fux baseia-se, basicamente, na evolução da sociedade e das diretrizes do Direito de Família, nos princípios da dignidade da pessoa humana, solidariedade familiar, afetividade, diversidade familiar, paternidade responsável, isonomia filial, proteção e melhor interesse da criança e do adolescente, além de citar os fundamentos da posse do estado de filho e do direito à busca da felicidade.

Após demonstrar sua fundamentação, Fux fixou a seguinte tese: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitantemente baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais”, recebendo apoio de outros oito Ministros. (STF, RE n° 898.060, Relator: Ministro Luiz Fux, J. 21/09/2016)

O professor Flávio Tartuce (2016), considerou a tese como um avanço e uma nova realidade para o Direito de Família e das Sucessões, principalmente quanto: ao reconhecimento por vários Ministros que o princípio da afetividade possui alto valor jurídico; à inexistência de hierarquia entre a paternidade socioafetiva e biológica; e, por fim, quanto ao reconhecimento de que a multiparentalidade reflete em todos os fins em direto, inclusive alimentares e sucessórios.

Logo, podemos inferir que o reconhecimento da multiparentalidade pelos Tribunais brasileiros e, recentemente, pelo STF representa um avanço e uma conquista social no sentido de efetivar direitos e garantias fundamentais voltadas à entidade familiar.

2 O DIREITO SUCESSÓRIO

O direito sucessório é um direito fundamental previsto na Constituição Federal de 1988, no artigo 5°, incisos XXVII e XXX, os quais expressamente garantem o direito à herança.

Segundo Sílvio de Salvo Venosa (2003, p. 20-21), entende-se herança “como o conjunto de direitos e obrigações que se transmitem, em razão da morte, a uma pessoa, ou a um conjunto de pessoas, que sobreviveram ao falecido. […] A herança entra no conceito patrimonial […]”.

Assim, diante da morte de um indivíduo, nasce o direito ao herdeiro de suceder o falecido em relação aos seus direitos e obrigações.

2.1 O REFLEXO DA MULTIPARENTALIDADE NA SUCESSÃO

Atualmente, com o reconhecimento da multiparentalidade pelo STF, muito se discute acerca de sua extensão e reflexos na realidade fática. Um dos temas de grande debate volta-se ao direito patrimonial que este reconhecimento possa ensejar.

Com base na tese fixada pelo STF, não resta dúvidas de que o entendimento desta Suprema Corte segue no sentido de que a multiparentalidade acarreta efeitos e garante o direito à sucessão, pois declara, expressamente, que a filiação socioafetiva concomitante com a filiação biológica produz consequências patrimoniais e extrapatrimoniais.

Porém, nosso ordenamento jurídico de 2002, o Código Civil, quando previu como se daria a sucessão entre os herdeiros, não imaginou que chegaríamos a possibilidade da multiparentalidade e, assim, não preconizou como seria a divisão dos bens nesta situação específica.

O Código Civil de 2002 prevê a ordem de preferência e vocação hereditária no artigo 1.829 e, desta forma, estabelece as linhas sucessórias entre os genitores, filhos e demais parentes.

Ocorre que se na família multiparental sobrevier a morte de um dos pai ou mãe, o filho (seja socioafetivo ou biológico) herdará o seu quinhão em concorrência com os demais irmãos, visto que não existe mais diferenciação entre os “tipos” de filhos. Porém, se ocorrer a morte do filho e este filho não possuir descendentes e nem cônjuge, os pais/genitores serão os herdeiros e, neste caso, teremos um impasse, pois não há previsão legal de como será dividido os bens deste filho entre os ascendentes multiparentais.

Neste último caso, teríamos como herdeiros, três pessoas e nossa legislação previu apenas a sucessão dos ascendentes entre um vínculo paterno e um vínculo materno, como se observa do artigo 1.836, § 2°, CC: “Art. 1.836. Na falta de descendentes, são chamados à sucessão os ascendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente. § 2° Havendo igualdade em grau e diversidade em linha, os ascendentes da linha paterna herdam a metade, cabendo a outra aos da linha materna.

Assim sendo, observamos que o tema ainda demanda muito empenho tanto do Poder Legislativo quanto do Poder Judiciário para que, na questão da sucessão de famílias multiparentais, sejam sanadas as lacunas legais proporcionando maior segurança jurídica além de efetivar os mesmos direitos fundamentais a todos os envolvidos.

Outro ponto temerário quanto a este assunto volta-se à possibilidade de um aumento de demandas judiciais com o intuito único de buscar o direito ao patrimônio do pai biológico/pai socioafetivo, com quem o indivíduo nunca desenvolveu qualquer tipo de relação filial (afeto, cuidado e amor). Segundo o professor Flávio Tartuce (2016), esta questão foi levantada pelo professor José Fernando Simão, estudioso do tema, inclusive por ser juridicamente cabível esta possibilidade em decorrência do princípio da paternidade responsável.

Esta situação de monetarização nas relações familiares já é realidade nos Tribunais brasileiros, mesmo antes do surgimento da multiparentalidade, visto que alguns filhos socioafetivos buscam a investigação da paternidade biológica de pai já falecido, em ações sucessórias, abrindo mão, inclusive, da sua realidade socioafetiva, apenas com intuito de ganho patrimonial.

Neste mesmo sentido, Cristiano Chaves de Farias, citado por Rolf Madaleno (2017, p. 491-492), também entende que o cuidado e a ponderação prática devem sempre estar presentes na análise da multiparentalidade, visto que possibilita a plurihereditariedade, ou seja, concede autorização para que o filho plúrimo busque a herança de cada um de seus genitores que vier a falecer, tornando-se herdeiro necessário.

Como se não bastasse, Flávio Tartuce (2016) aponta, ainda, a preocupação acerca da aplicação da tese da multiparentalidade para os casos de reprodução assistida heteróloga, hipótese que poderá gerar efeitos e consequências jurídicas aos doadores de material genético, tornando, tal método impraticável.

Logo, é notória que a sucessão nas famílias multiparentais ainda é uma temática que apresenta muita polêmica, de resolução complexa, pois muitas são as situações fáticas passíveis de se caracterizar e autorizar o reconhecimento da pluriparentalidade, o que pode vir a acarretar, inclusive, afronta a direitos fundamentais de alguns indivíduos que se envolveram numa relação familiar, mas que não desejam desenvolver a convivência familiar com todas as suas consequências.

Ainda, para agravar tal situação, as lacunas existentes na legislação sucessória são barreiras a serem superadas, para que a segurança de todo o ordenamento jurídica seja preservada.

CONCLUSÃO

A importância maior deste artigo volta-se à necessidade de conscientização da sociedade e da comunidade jurídica acerca da nova temática que envolve a multiparentalidade e dos temas controversos do seu reflexo no direito sucessório.

A multiparentalidade surgiu com o intuito de humanizar as relações familiares, baseadas na realidade fática atual de formação da família, e proporcionar a dignidade da pessoa humana e a sua busca à felicidade.

O afeto, carinho e dedicação oriundos da convivência familiar devem ser reconhecidos e protegidos pelo ordenamento jurídico, para que todas as famílias, independente da sua constituição, sejam acolhidas e possam usufruir de todos os direitos que a legislação prevê.

Porém, quando há um reflexo patrimonial, como no caso da multiparentalidade, é imperioso que haja ponderação na análise do caso fático, pois não é viável que o instituto da família sirva de base apenas para que se obtenha ganho patrimonial.

Importante, portanto, que o tema da pluriparentalidade seja amplamente discutido, em todos os seus aspectos e reflexos, mas principalmente com relação à sucessão, para que seja possível adequar a atual situação jurídica de modo a evitar abusos e anseios unicamente patrimoniais.

Para o Direito de Família, o reconhecimento da multiparentalidade pelo STF e a aplicação da tese firmada pela Suprema Corte, a qual já vem sendo citada em diversas decisões dos Tribunais brasileiros, retrata a ascensão da importância do afeto nas relações familiares, e é considerada uma grande conquista social, além de ser efetivamente, o reconhecimento de que o Direito de Família deve se adequar à evolução das necessidades da sociedade e não mais ser determinado por padrões fixos que impossibilitam as famílias contemporâneas de atingirem sua felicidade suprema.

Diante do exposto, entendemos ser produtiva e digna a multiparentalidade e todos os direitos e deveres que dela decorram quando o desejo de se reconhecer mais de um pai/mãe como genitor se baseia em laços afetivos e que demonstre a coexistência do pai biológico e do pai afetivo, assim como a coparticipação de ambos na vida do filho, assumindo todos os encargos do poder família e, consequentemente, desenvolvendo uma convivência familiar, cuidados e afetos dignos do instituto da Família.

 

Referências:
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BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 5 nov. 2017.
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GUASSÚ, Rivadavio; COVA, Jéssica. “Multiparentalidade – Dupla Paternidade/Maternidade”. Disponível em:   <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI217945,11049-Multiparentalidade+Dupla+PaternidadeMaternidade>. Acesso em: 29 ago. 2017.
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VENOSA, Sílvio de Salvo. “Direito Civil: Direito das Sucessões”. 3. ed. v.7. São Paulo: Atlas, 2003.
 
Notas
[1]   MATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Preservação da Maternidade Biológica. Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família – Enteado criado como filho desde dois anos de idade Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes – A formação da família moderna não-consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade Recurso provido. (TJ-SP – APL: 64222620118260286 SP 0006422-26.2011.8.26.0286, Relator: Alcides Leopoldo e Silva Júnior, Data de Julgamento: 14/08/2012, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 14/08/2012)


Informações Sobre o Autor

Marcia Beani Poiani

Formada em Direito pelas Faculdades Integradas Rio Branco, Mediadora/Conciliadora pela Faculdade Legale, Pós-graduada em Direito de Família e Sucessão pela Faculdade Legale. Advogada atuante nos ramos do Direito de Família e Sucessão, Cível e Tributário


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