Multiparentalidade: uma expressão social e o reconhecimento do STF

Resumo: O principal objetivo deste trabalho é abranger a prevalência dos entendimentos a respeito da multiparentalidade, diante da Repercussão Geral 622, e os avanços doutrinários e jurisprudênciais que se obtivem a partir dessa. Além desenvolver a teoria em relação à filiação socioafetiva, como é interpretado no âmbito jurídico e familiar. Diante de tais configurações familiares que compõe a sociedade contemporânea, deve-se compreender como os Tribunais as consideram, e a importância de princípios fundamentais para consolidação dos entendimentos jurisprudenciais, dentre eles, o princípio da afetividade que fundamentou inúmeras conquistas para o Direito família, como por exemplo, o reconhecimento da multiparentalidade. Nesse texto, também estabelecerá quais são os efeitos jurídicos que percorrem a multiparentalidade, como são considerados e abordados. O conceito de família vem ressurgindo, são inúmeras configurações familiares presentes na sociedade, diante de uma Constituição baseado na dignidade da pessoa humana, em um Estado de direito e sob a égide de uma democracia, deve ser reconhecido pelo Ordenamento jurídico toda realidade social.[1]

Palavras Chaves: Multiparentalidade. Família. Filiação socioafetiva. Princípio da afetividade.

Abstract: The main objective of this work is to cover the main understandings regarding multiparentality, in view of the General Repercussion 622, and the doctrinal and jurisprudential advances that were obtained from this. Develop the theory regarding socio-affective affiliation, as interpreted in the legal and family context. Faced with such familiar configurations that make up contemporary society, one must understand how the Courts consider them, and the importance of fundamental principles for the consolidation of jurisprudence, among them, the principle of affection that founded countless achievements for family law, among them the recognition of multiparentality. Determining also what are the legal effects that cross multiparentality, how they are considered and addressed. The concept of family resurfaces in society, are numerous family configurations present in society, before a Constitution based on the dignity of the human person, in a State of law and under the aegis of a democracy, must be recognized by the legal system every social reality .

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Keywords: Multiparentality. Family. socio-affective affiliation. Principle of affectivity.

Sumário: Introdução. 1. Filiação socioafetiva. 2. Princípios norteadores da multiparentalidade. 3 Reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva. 4. STF, repercussão geral 622. 4.1. Efeitos jurídicos. Conclusão.

Introdução

Toda organização, estrutura e característica humana sofre modificações advindas do tempo, essas que são influenciadas pela cultura, sociedade, informação, dentre outros fatores; a estrutura familiar diante disso evoluiu e ressignificou. Na idade média, diante do poder da igreja, das monarquias e a falta de autonomia dos cidadãos, a entidade familiar era vista como uma obrigação, união de um homem e uma mulher para produção de filhos, com fito de angariar futura mão de obra e soldados para guerras desencadeadas no território.

O patriarcalismo era o sistema adotado naquela época, este que perdurou muitos anos, e deixou marcas até a atualidade. Tinha-se uma ideia do homem como provedor; a mulher que cuidava da casa e dos filhos; sendo esse a essência do conceito de família. Com as revoluções econômicas e sociais, a busca por igualdade e o desenvolvimento da sociedade como um todo, hoje a família é vista com base no afeto, na busca pela felicidade, igualdade e dignidade da pessoa humana, sendo essa pedra de toque do ordenamento jurídico pátrio.

A proteção da família tem previsão constitucional. A carta magna em seu artigo 226, caput, assim dispõe in verbis: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Desta feita o ente estatal não pode se eximir, nem ignorar a realidade que se apresenta, os conceitos de família formados por um homem e uma mulher se extinguiram. Segundo a ilustre doutrinadora Dias, temos agora famílias, ou seja, varias configurações que formam a diversidade que nos apresenta: famílias anaparentais, parentais, homoafetivas, multiparentais, dentre outras. Com tais transformações, coube ao judiciário interpretar e reconhecer as novas configurações familiares na sociedade, diante da inércia do legislador. Porém com o advento da Constituição de 1988 e o Código Civil de 2002, novas concepções foram adotadas, um olhar mais atual e com propósitos baseados na dignidade e na afetividade diante do Direito de Família.

Em seguida, é apresentada a paternidade biológica e socioafetiva, em especial o que vem a ser a multiparentalidade, entendimentos dos tribunais a esse respeito, e os efeitos que são gerados.

1- Filiação socioafetiva

O reconhecimento da união estável definida por uma convivência reiterada, foi um avanço no âmbito jurídico, definindo a afetividade como propulsora das relações familiares, diante disso, a ideia de laços familiares definidos por critérios consanguíneos, obtendo a “verdade real” em um laboratório, através de um teste de paternidade, ou simplesmente o reconhecimento através de um registro civil, não são mais parâmetros para definir situações que abrangem o Direito de Família.

É de suma importância que os pais biológicos se responsabilizem, reconheçam seus filhos e garanta os direitos básicos de toda criança/adolescente. Obrigação esta que deve ser imposta pelo Estado. A filiação socioafetiva transcende a obrigação, o dever de cuidar, é pautado na essência do afeto, sentimento esse que traz significado para as relações familiares, devendo ser primordial e indispensável.

Nas palavras dos conceituados doutrinadores Chaves e Rosenvald “O pai afetivo é aquele que ocupa, na vida do filho, o lugar do pai (a função). É uma espécie de adoção de fato. É aquele que ao dar abrigo, carinho, educação, amor… ao filho, expõe o foro íntimo da filiação, apresentando-se em todos os momentos, inclusive naqueles em que se toma a lição de casa ou verifica o boletim escolar. Enfim, é o pai das emoções, dos sentimentos e é o filho do olhar embevecido que reflete aqueles sentimentos que sobre ele se projetam”. (CHAVES, Cristiano e ROSENVALD, Nelson. 2015).

A análise da relação socioafetiva, é baseada na teoria denominada “Da posse do estado de filho”, analisando três critérios, a saber, tractatus, nomem e fama (ou reputatio), segundo primeiro critério ora citado: a criança/adolescente deve ser tratada como filho; nomem: possuir o nome no registro civil; e fama: ser reconhecida pela sociedade como filho. Cabe mencionar que nomem e fama são requisitos dispensáveis para composição do tipo familiar, devido à essência da paternidade socioafetiva, ser definida pelo afeto, cuidado, carinho, que o terceiro de forma espontânea escolhe prover.

O diploma civilista pátrio trouxe em seu texto o art. 1593: “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. De acordo com alguns doutrinares, esse artigo é o entendimento e reconhecimento pelo legislador, das constituições familiares baseada na afetividade. O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entenderam não haver hierarquia entre a relação socioafetiva e biológica, sendo ambas reconhecidas da mesma forma, recebendo tratamento igualitário pelo Ordenamento Jurídico.

A Corte Suprema no julgamento do Recurso Extraordinário nº 898.060, estabeleceu a tese jurídica da multiparentalidade, em que o direito a ancestralidade, origem genética e afetos são compatíveis e análogos, não havendo prevalência de nenhum. Entretanto, esse entendimento é contemporâneo para o Direito, visto que alguns doutrinadores e tribunais compreendiam a prevalência biológica sobre a socioafetiva ou o inverso. Segue o entendimento segundo o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios TJ-DF:

CIVIL. APELAÇÃO. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. ANULAÇÃO. REGISTRO CIVIL. DECORRÊNCIA. AÇÃO JUDICIAL. REALIZAÇÃO. EXAME DE DNA. CONCLUSÃO. INEXISTÊNCIA. PATERNIDADE. AUSÊNCIA. DEMONSTRAÇÃO. PATERNIDADE SÓCIOAFETIVA. REFORMA DA SENTENÇA.

Ainda que o reconhecimento da paternidade tenha ocorrido através de ação judicial com trânsito em julgado, o assento de nascimento é passível de anulação, por meio de provimento judicial, a requerimento do pai ou do filho, quando não espelhar a realidade biológica, uma vez que a paternidade é um direito natural e constitucional.

Embora se reconheça que a paternidade não deriva apenas do vínculo de consangüinidade, mas, sobretudo, em razão do laço de afetividade, é certo que se revela necessário o consenso das partes quanto à prevalência da paternidade sócio-afetiva sobre a biológica, de forma a atender aos interesses de ambos, não podendo o judiciário impor a paternidade sócio-afetiva, que, sobejamente, não condiz com a vontade de uma das partes. (TJ-DF – APC: 20100610138590 DF 0013621-31.2010.8.07.0006, Relator: GETÚLIO DE MORAES OLIVEIRA, Data de Julgamento: 03/07/2013, 3ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 16/07/2013 . Pág.: 104)

Destarte, a realidade social deve ser expressa e reconhecida pelos Tribunais, contudo toda transformação é necessário um período para adaptação, a recognição da paternidade socioafetiva pelo Direito foi um “grande passo”, a multiparentalidade deverá ser o próximo no perpassar do tempo.

Julgado segundo o Superior Tribunal de Justiça STJ:

RECURSO ESPECIAL Nº 1.564.700 – MG (2014/0282914-8). EMENTA (E-STJ FL. 320): EMBARGOS INFRINGENTES. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. PREVALÊNCIA SOBRE A BIOLÓGICA. RECONHECIMENTO. RECURSO REJEITADO. 1. A parentalidade socioafetiva envolve o aspecto sentimental criado entre parentes não biológicos, pelo ato de convivência, de vontade e de amor e prepondera em relação à biológica. 2. Comprovado o vínculo afetivo entre filho e o marido da genitora daquele, deve prevalecer à paternidade socioafetiva. 3. Embargos infringentes conhecidos e rejeitados. Alega-se dissídio. O recorrente invoca os acórdãos proferidos no REsp 833.712/RS e AgRg do Ag 942.352/SP. Sustenta, em síntese, que "se filhos adotados podem, de acordo com o entendimento prevalente no STJ, perquirir e requerer sua filiação biológica, muito mais caberá tal faculdade a quem foi registrado em nome de outrem (que não seu verdadeiro genitor) por evidente erro" (e-STJ fl. 366). No caso, a existência de paternidade socioafetiva não retira do filho o direito de buscar o desfazimento da adoção à brasileira e o reconhecimento do vínculo biológico. (STJ – REsp: 1564700 MG 2014/0282914-8, Relator: Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Publicação: DJ 02/06/2017)

Segundo Fachin, “a verdadeira paternidade pode também não se explicar apenas na autoria genética da descendência”, sendo assim a relação pai/mãe-filho, deve ser mais ampla que um simples material genético, abranger princípios básicos, como da afetividade, melhor interesse da criança, busca pela felicidade, dentre outros, princípios estes, que valorizam o cuidado, confiança e o carinho que não são gerados no útero, através da fecundação de um óvulo e um espermatozoide, mas no dia a dia, diante das dificuldades que são encontradas, duvidas e medos, porém que faz nascer uma relação socioafetiva, sendo o material genético a afetividade.

2- Princípios norteadores da multiparentalidade

Imensuráveis correntes vêm surgindo na busca de entendimento sólido sobre a multparentalidade, os Tribunais estão abrindo espaço para a interpretação dessa nova constituição familiar, e as decisões estão sendo apoiada em Princípios do Direito de Família e Constitucionais, uma fonte formal, que na falta da lei exerce função complementar. São teorias que guiam os operadores do direito para uma interpretação jurídica baseada na realidade social. Em especial a multiparentalidade compreende alguns princípios, dentre eles percebe-se com mais frequência o da afetividade; dignidade da pessoa humana; solidariedade; melhor interesse da criança; busca pela felicidade e convivência familiar.

O Principio da Afetividade está na essência da multiparentalidade, sendo base de varias decisões judicial, fundamental na formação de teorias para o estudo deste instituto. Esse princípio é construído com o convívio reiterado, desenvolvido pela confiança, é um laço familiar que não tem fatores genéticos.

 O Direito de Família está cada vez mais pautado na afetividade, cada constituição familiar é única, todavia o fator intrínseco para todas, é o afeto. Ao falar em multiparentalidade, estamos referindo a uma familiar onde se tem mais de um pai ou mãe, o que define essa relação como uma família, é um “fio condutor” que denominamos afeto, esse sentimento fornece base para a posse de estado de filho, reconhecendo assim a busca pela felicidade.

No momento em que se reconhece juridicamente o princípio da afetividade, consequentemente abre espaço para a garantia da busca pela felicidade, ou seja, cabe ao Estado a proteção e garantia para que as pessoas busquem aquilo que lhes traga a felicidade, pautada no afeto e na dignidade da pessoa humana, reconhecendo assim as inúmeras constituições familiares que buscam aquilo que as façam feliz, que as tornem dignas de ocupar determinado lugar na sociedade de forma equiparada.

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Segundo a Min. Nancy Andrighi: “A quebra de paradigma do Direito de Família tem como traço forte a valorização do afeto e das relações surgidas da sua livre manifestação, colocando à margem do sistema a antiga postura meramente patrimonialista ou ainda aquela voltada apenas ao intuito de procriação da entidade familiar”. O princípio da afetividade é compreendido de forma implícita, na Constituição/88 e no Código Civil, entretanto alguns doutrinadores elucidam no art 1º, III, da CF/88. Diante dos fatos sociais que são incontroláveis, tal principio é recepcionado pela doutrina, jurisprudência e ordenamento jurídico, possibilitando a sua estrutura de lege lata.

O princípio da solidariedade também tem como ideal a consolidação da afetividade, segundo lição reluzente do doutrinador Tartuce: “Ser solidário significa responder pelo outro, o que remonta a ideia de solidariedade do direito das obrigações. Quer dizer, ainda, preocupar-se com a outra pessoa” (Tartuce, Flávio. 2017). Sendo assim a responsabilidade pelo outro, cuidar e proteger um terceiro são formas de expressão da solidariedade, trazida pela CF/88 em seu art. 3º, I, um dos objetivos fundamentais, sendo a solidariedade de forma inteligível uma expressão do afeto.

A multiparentalidade é uma organização que se configura por um pai/mãe socioafetiva, objetivando o princípio do maior interesse da criança/adolescente, ou seja, é essencial que essa estrutura familiar possa proporcional melhores condições para criança, sendo um acréscimo em sua vida, na sua formação e identidade. Caracterizado pelo art. 3º do ECA: “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo de proteção integral, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, afim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, espiritual e social, em condições de liberdade e igualdade”.

É de suma importância para criança ou adolescente a convivência familiar, tratando-se também de um princípio norteador do âmbito familiar. É necessário para a formação do ser humano ter referências, e com isso uma constituição familiar que lhe possa proporcionar o mínimo para seu crescimento com a melhor qualidade possível. Na atualidade é nítida a convivência de crianças com pai de criação, padrasto/madrasta, um terceiro que devido à proximidade se torna referência de pai/mãe, ou seja, a família contemporânea é pautada por essa diversidade na convivência, uma realidade social que adentrou aos tribunais.

3-Reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva

A Constituição de 1988 trouxe de forma expressa a proibição da discriminação sobre os direitos de filiação, destacado no art. 227 § 6º In verbis: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. É necessário expressar que o tratamento entre pais biológicos e socioafetivos, não deve ocorrer hierarquia, ambos são interpretados com os mesmos direitos e deveres, sem distinção.

Diante de tais fatores, se conclui que a paternidade socioafetiva também seja reconhecida de forma extrajudicial. Os Tribunais reconhecem de forma unanime as famílias formadas por relações socioafetivas, os doutrinadores desenvolvem inúmeras teorias para tal instituto, e a legislação “caminha” da mesma forma, por isso a possibilidade do reconhecimento extrajudicial, seria a exteriorização do tratamento igualitário entre biológico e socioafetivo.

A sociedade esta em constante transformação, devendo os Tribunais se adaptar as necessidades e realidades que as abrangem, não podendo dessa forma “fechar os olhos” para a realidade que os envolve, cabe a estes vivenciar os parâmetros trazidos pela Constituição de 1988, baseado em um Estado democrático de Direito, onde a dignidade da pessoa humana deve ser protegida, possibilitando que as pessoas tenham seus direitos estabelecidos sem discriminação.

Assim sendo, a Corregedoria Nacional de Justiça publicou o Provimento nº 63 de 14-11-2017, “Ementa: Institui modelos únicos de certidão de nascimento, de casamento e de óbito, a serem adotadas pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais, e dispõe sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva no Livro “A” e sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida”. Uma conquista para o Direito de Família, materializando uma realidade social, tanto no âmbito judicial quanto administrativo.

De acordo com o provimento, alguns critérios devem ser respeitados, para que evitem fraudes, dentre eles, o art. 10, § 2º, “Poderão requerer o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva de filho os maiores de dezoito anos de idade, independentemente do estado civil”. § 4º, “O pretenso pai ou mãe será pelo menos dezesseis anos mais velho que o filho a ser reconhecido”. Art. 14. “O reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais e de duas mães no campo FILIAÇÃO no assento de nascimento”. São vários os critérios adotados para se ter o reconhecimento extrajudicial da paternidade ou maternidade socioafetiva, uma grande conquista, mas que exige precauções.

Toda novidade social traz especulações, o Direito como regulador das condutas humanas, tem como dever fornecer segurança jurídica para a sociedade, destarte no âmbito familiar tais garantias são primordiais, para tanto o provimento traz no art. 15, in verbis: “O reconhecimento espontâneo da paternidade ou maternidade socioafetiva não obstaculizará a discussão judicial sobre a verdade biológica”. Mesmo sendo um ato extrajudicial, todos os direitos da criança ou adolescentes são resguardados, possibilitando sempre o melhor interesse do menor e a busca pela felicidade.

4- STF, Repercussão geral 622.

A multiparentalidade é uma realidade de constituição familiar já consagrada há muito tempo pela sociedade, um costume que vem ganhando dimensão social. Todavia diante da inércia do legislador e a falta de um texto legal que embase este instituto, inúmeras correntes doutrinárias surgiram, e entendimentos distintos ganharam espaços nos tribunais. Esta forma de constituição familiar era interpretada de acordo com posicionamentos adotados por correntes majoritárias, divergindo entre elas na maioria das vezes, por exemplo, alguns entendiam que a paternidade biológica tinha maior prevalência que a socioafetiva e outros que defendia a igualdade no tratamento.

Diante dessa celeuma nos tribunais, em 2016 o STF decidiu a respeito da Repercussão Geral 622: “A paternidade socioafetiva declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vinculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”, entendimento do Recurso Extraordinário 898.060, originário do estado de Santa Catarina, relator Min. Luiz Fux, j. 21-09-2016. (Tartuce, Flávio. 2017).

Com essa repercussão geral, alguns pontos foram definidos, dentre eles o valor jurídico do princípio da afetividade, sendo reconhecido a sua importância para o Ordenamento Jurídico. A socioafetividade é vista como uma forma de parentesco familiar de acordo com o art. 1593 do Código Civil: “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”, um reconhecimento que comtempla o tratamento igualitário, não havendo em regra, hierarquia nem prevalência de uma paternidade sobre a outra, sendo biológica ou socioafetiva.

Segundo o Tribunal de Justiça do RS:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ADOÇÃO. PADRASTO E ENTEADA. PEDIDO DE RECONHECIMENTO DA ADOÇÃO COM A MANUTENÇÃO DO PAI BIOLÓGICO. MULTIPARENTALIDADE. Observada a hipótese da existência de dois vínculos paternos, caracterizada está a possibilidade de reconhecimento da multiparentalidade. DERAM PROVIMENTO AO APELO. (TJ-RS – AC: 70064909864 RS, Relator: Alzir Felippe Schmitz, Data de Julgamento: 16/07/2015, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 22/07/2015)

Diante dessa interpretação do STF, pode-se concluir que ouve o reconhecimento expresso da multiparentalidade, e sua importância para a formação social. Foi um meio de reconhecer a importância do pai socioafetivo para a atualidade, aquele que por opção se dedicou a suprir direitos básicos que toda criança deve ter, essa importância para realidade social não pode ser menosprezada pelo Direito, e no mesmo sentindo, não podendo eximir o pai biológico de suas responsabilidades, pois mesmo coexistindo o pai afetivo, este sendo responsável por todas as necessidades, aquele não poderá se esquivar das mesmas.

Na sessão do STF que foi decida sobre este Recurso Extraordinário, a Ministra Cármen Lúcia destacou que: “amor não se impõe, mas cuidado sim e esse cuidado me parece ser do quadro de direitos que são assegurados, especialmente no caso de paternidade e maternidade responsável”. A socioafetividade não é uma solução para os pais biológicos se eximirem da responsabilidade da paternidade, estes tem obrigações que devem ser exigidas pelo Estado em proteção ao melhor interesse da criança ou adolescente.

Quando a sociedade adota novos paradigmas, cabe ao judiciário as reconhecer, a multiparentalidade é uma realidade vivida por inúmeras crianças, os laços afetivos em regra, deveriam ser concomitantes ao biológico, contudo infelizmente não são assim, quando ocorre o desmembramento dessa corrente, exercidas por pessoas diferentes, estas devem de acordo com a suas possibilidades se responsabilizarem de forma solidária.

4.1- Efeitos jurídicos

A multiparentalidade é a relação familiar existente por mais de uma mãe/pai, não possuindo entre eles vinculo biológico, provindo da afetividade que construída entre a criança e um terceiro que passa a exercer a função de pai. Existindo a posse de estado de filho, a confirmação do vinculo afetivo de filiação, a paternidade socioafetiva aufere todos os direitos e deveres proveniente da relação familiar, a responsabilidade para com a criança ou adolescente.

Um dos efeitos da multiparentalidade é a emergência da parentalidade, não somente com o pai ou mãe afetiva, mas com todos que estejam consagrados pelos laços familiares, ascendentes e descendentes, em linha reta e colateral. Diante desse reconhecimento, como não poderia ser diferente, a criança tem o direito ao nome do pai ou mãe socioafetivo, um reconhecimento pautado na dignidade da pessoa humana.

Destarte, a multiparentalidade contempla todos os direitos e deveres da paternidade ou maternidade, sejam eles biológicos ou afetivos devido à ideia de não existência de inferioridade hierárquica entre socioafetivo e biológico, jamais poderão ocorrer distinções de tratamento entre eles, recebendo assim obrigação de alimentos, visitas, nome e sucessórios.

Recordando, tantos os deveres são exigidos dos pais em relações multiparentais, quanto dos filhos. Se uma criança, na sua realidade de fato, convive com seu pai biológico e um terceiro que ocupa semelhante papel, pai socioafetivo, este filho irá suceder de ambos os pais, mas da mesma forma os pais irão suceder desse filho. Assim como as obrigações estão para os pais, da mesma forma estão para os filhos.

A multiparentalidade é uma nova configuração familiar que foi reconhecido pelo meio jurídico, contudo que ainda precisa ser compreendida, inúmeras celeumas estão presentes, principalmente em relação ao âmbito patrimonial, uma área que existe muita especulação e ao mesmo tempo muito receio. Todavia como ressaltado pelos doutrinadores, a importância da evolução dos Tribunais ao anuírem a multiparentalidade, não pode ser menosprezada por indagações midiáticas, existe muito para se concluir sobre está nova composição familiar, todavia o importante é sempre olhar para o futuro, visando um “olhar digno e humano” dos Tribunais e ao mesmo tempo uma sintonia com as transformações sociais.

Conclusão

O Direito tem como incumbência regulamentar as condutas sociais, objetivando uma convivência pacífica na sociedade. O ser humano é um animal defino pela biologia como racional, diante disso, ele nasce, cresce, desenvolve e morre. Analisando através do Direito família, certas concepções possuem fundamentação biológica, critérios que foram definidos pelo Direito romano e se perpetuaram até o século XXI.

Contudo, a humanidade se destaca por ser algo muito maior que um genoma humano, possui personalidade e características que são transformadas para que possa superar suas limitações, tanto físicas como emocionais. A realidade social oferece uma diversificação de conceitos, que cabe ao direito e principalmente o legislador e os tribunais, se adaptarem. No âmbito de família, muito se conquistou, algo que era antes definido simplesmente pelo casamento, atualmente se estabelece pelo afeto.

A multiparentalidade é um fato social de inúmeras famílias na sociedade, uma nova estrutura que proporciona melhores condições para o crescimento de uma criança, algo que veio para somar, multiplicar, apesar de dividir varias opiniões. O afeto se tornou imprescindível para o reconhecimento dos tribunais da existência da filiação socioafetiva, e dessa mesma forma, legitimar a multiparentalidade. A Constituição de 1988 traz em seu texto, que a família tem especial proteção do Estado, isto posto a multiparentalidade deve receber igual proteção, acolhendo todos os direitos e deveres que dela decorrer.

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A Repercussão Geral 622 delineou um entendimento unificado em relação à multiparentalidade, abrandando a celeuma nos tribunais e doutrinas sobre este instituto, tendo a paternidade socioafetiva igual direito que a biológica, podendo ambas constar no registro civil, e desfrutar equitativamente de suas obrigações. Com o provimento 63 tais famílias poderão ter tais direito reconhecidos de forma extrajudicial, um direito já amparado para a filiação biológica, e que agora alcança a socioafetiva. Conquista essas fundamentais para inúmeras famílias que buscam o reconhecimento judicial.

O afeto deve mover e ser a estrutura de uma relação familiar, sendo reconhecido por ser um direito constitucional a dignidade da pessoa humana, todo ser humano tem que viver de forma justa, e ser tratado da mesma forma, cabendo ao Direito abrir os “caminhos” para que toda pessoa possa buscar aquilo que proporcione a felicidade, objetivando sempre o melhor interesse para a criança ou adolescente em uma relação familiar.

 

Referências:
TARTUCE, Flávio. Direito de Família. ____. Manual de Direito Civil. São Paulo: Editora Forense LTDA, 2017. Pg. 1218 -1234; 1426 – 1433.
DIAS, Maria Berenice. Filiação. ____. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais LTDA, 2016. Pg. 652 – 658.
FARIAS, Cristiano Chaves. A filiação e o reconhecimento dos filhos. ___. Curso de direito civil: famílias, volume 6 / Cristiano Chaves de Farias; Nelson Rosenvald. São Paulo: Editora Atlas S.A. 2015. Pg. 590 – 600.
BRASIL. Código Civil de 2002, disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso: 10-01-2018.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso: 15-01-2018.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso: 15-01-2018.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA – DF – APC: 20100610138590 DF 0013621-31.2010.8.07.0006, Relator: GETÚLIO DE MORAES OLIVEIRA Data de Julgamento: 03/07/2013, 3ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE: 16/07/2013. < https://tj-df.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/23663983/apelacao-civel-apc-20100610138590-df-0013621-3120108070006-tjdf > . Acesso: 15-01-2018.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – REsp: 1564700 MG 2014/0282914-8, Relator: Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Publicação: DJ 02/06/2017. <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/468456381/recurso-especial-resp-1564700-mg-2014-0282914-8/decisao-monocratica-468456404>. Acesso: 15-01-2018.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA – RS – AC: 70064909864 RS, Relator: Alzir Felippe Schmitz, Data de Julgamento: 16/07/2015, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 22/07/2015.<https://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/211663570/apelacao-civel-ac-70064909864-rs>. Acesso: 18-01-2018.
BRASIL, Recurso Extraordinário 898.060, Ministro Luiz Fux, 21 de setembro de 2016, <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE898060.pdf>. Acesso em 18- 01- 2018.
 
Notas
[1] Artigo orientado pela Profa. Renata Lamounier Oliveira. Possui graduação em Direito pela Universidade de Rio Verde (2013). Especialização em Direito Processual Civil (2018). Atualmente é docente da Universidade de Rio Verde e analista judiciário – Tribunal de Justiça do Estado de Goiás.


Informações Sobre o Autor

Kamilla Lima Alves

Acadêmica de Direito na Universidade de Rio Verde Campus Caiapnia Uni.Rv


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