O afastamento do critério de miserabilidade previsto na Lei Orgânica da Assistência Social

Resumo: Este trabalho científico busca analisar a Seguridade Social pelo viés do Benefício de Prestação continuada em algumas situações especiais elencadas na legislação assistencial, precipuamente em relação ao critério de miserabilidade adotado pela interpretação literal do preceito legal. A aferição da condição de necessitado estabelecida para prestação Benefício de Prestação Continuada da Lei n. 8.742/93 (Lei Orgânica da Assistência Social) gera muitas divergências entre a Autarquia Administrativa e o Poder Judiciário, já que o valor considerado na legislação (um quarto do salário mínimo) dificulta a concessão do benefício para aqueles que dele necessitam. Além disso, grande parte da doutrina e tribunais entendem que esse requisito sofreu um processo de inconstitucionalização no decorrer dos anos, desde a promulgação da lei em 1993. Neste contexto, este trabalho tende a identificar as características atinentes à ao Benefício de prestação Continuada, demonstrando algumas implicações decorrentes da divergência acerca do critério de miserabilidade, principalmente em razão da analogia trazida por outras leis, estabelecendo critérios mais elásticos em relação ao limite máximo estabelecido. Conclui-se, portanto, nossos legisladores e a autarquia federal devem adotar um critério mais elástico que seja condizente com a realidade em que vivemos, reforçando a ideia de justiça social e dignidade da pessoa humana. [1]

Palavras-chave: Seguridade Social; LOAS; Benefício de Prestação Continuada; Critério de Miserabilidade.

Abstract: This scientific work searches Social Security Yearbook for bias of the Benefit of Provision continued in some special situations recommended in the welfare legislation, precipitously in relation to the criterion of miserability adopted by the literal interpretation of the legal precept. Benchmarking of the defined condition of necessity for rendering Benefit of Continuous Provision of Law n. 8,742 / 93 (Organic Law of Social Assistance) generates many divergences between the Administrative Authority and the Judiciary, since the value considered in the legislation makes it difficult to benefit what is necessary. Moreover, much of the doctrine and courts understand that this requirement has undergone a process of unconstitutionalization without failure of the years, since a law enactment in 1993. In this context, this work has an identification as characteristics related to the Continuous Benefit Benefit, demonstrating Some implications arising from the divergence on the criterion of miserability, mainly due to the analogy brought by other laws, as well as more elaborated criteria in relation to the installed ceiling. In conclusion, therefore, our legislators and a federal autarchy must adopt a more elastic criterion that is consistent with the reality in which we live, reinforcing an idea of ​​social justice and dignity of the human person.

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Keywords: Social Security; LOAS; Continuous Benefit Benefit; Criterion of Miserableness.

Sumário: Introdução. 1. Histórico da Seguridade Social. 2. Diretrizes e objetivos da Assistência Social. 3. Da (in) constitucionalidade do requisito da miserabilidade. 3.1. Do entendimento da Administração Pública referente ao critério de miserabilidade. 3.2. Do entendimento jurisprudencial acerca do critério de miserabilidade. 3.3. Do afastamento do critério de miserabilidade para concessão do LOAS. Conclusão.

Introdução

O presente trabalho tem por escopo discutir os impactos que a interpretação restritiva do critério legal acerca dos limites máximos de renda per capita, contido na Lei de Orgânica da Assistência Social, Lei n. 8742/93, tem na sociedade, tendo como parâmetros os recentes entendimentos jurisprudenciais sobre o tema, os princípios gerais do direito, as normas da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) e os direitos básicos do Segurado.

Dessa maneira, foram analisadas as modificações imprimidas à legislação vigente, suas alterações quanto a interpretação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), os benefícios decorrentes desses mesmos direitos e a jurisprudência a respeito dessa matéria, sobretudo no que diz respeito ao posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), com fudamento Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que em seus artigos 194, caput e 203, caput tem-se, respectivamente, a Seguridade Social como um “conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à Saúde, à Previdência e à Assistência Social”, e que esta última será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à Seguridade Social.

O arcabouço teórico foi construído a partir de conceitos fundamentais para esta pesquisa, tais como evolução histórica, as sucessivas alterações da interpretação jurisprudencial acerca da aferição da hipossuficiência econômica do indivíduo, dentre outros. E tudo isso com amparo nos ensinamentos de Ibrahim (2011), Kertzman (2012), Santos (2011), Tavares (2001), além de outros doutrinadores.

Importante enfatizar a importância deste tema para o mundo jurídico, por envolver a proteção de necessitados e aqueles indivíduos que se encontram em situação de vulnerabilidade social, buscando a partir do envolvimento de discussões no meio acadêmico e profissional a abordagem de temas jurídicos atuais e relevantes para a efetivação da dignidade da pessoa humana.

1. Histórico Da Seguridade Social

Entender o contexto histórico em que o direito Previdenciário se desenvolveu é importante para compreender como ele se encontra atualmente, principalmente em território brasileiro. O presente capítulo, dessa forma, demonstrará como o Direito Previdenciário foi surgindo e se consolidando ao longo dos séculos, e como se apresenta essas normas de proteção no território brasileiro.

Conforme leciona Kertzman (2008, p. 37):

“Sob a ótica previdenciária, o primeiro ordenamento legal foi editado na Alemanha, por Otto Von Bismark, em 1883, com a instituição do Seguro-doença. No ano seguinte, foi criada a cobertura compulsória para os acidentes de trabalho. Neste mesmo país, em 1889, foi criado o seguro por invalidez e velhice. Foi a primeira vez que o Estado ficou responsável pela organização e gestão de um benefício custeado por contribuições recolhidas compulsoriamente das empresas.”

Kertzman ainda diz que (2008, p. 38):

“O ponto chave do estudo da evolução histórica mundial é o chamado plano Beveridge, construído na Inglaterra, em 1942. Este plano é o que marca a estrutura da seguridade social moderna, com a participação universal de todas as categorias de trabalhadores e cobrança compulsória de contribuições para financiar três áreas da Seguridade: saúde, Previdência Social e Assistência Social.”

Já no Brasil, esse processo ocorreu de forma graduada, com marco implantado pela Lei Eloi Chaves até o decreto 20.465 de 01 de Outubro de 1931, que constituiu um sistema amplo de seguros sociais que cobria riscos por invalidez, idade avançada e óbito.

Neste sentido, Kertzman (2008, p. 38):

“A Constituição de 1891 estabeleceu a aposentadoria por invalidez para os servidores públicos, custeada pela nação. Percebe-se que esta regra foi incipiente (devida apenas a servidores públicos, em caso de invalidez permanente), não podendo ser considerada como um marco previdenciário mundial. Como mencionado, a primeira Constituição a tratar do tema previdenciário, levando-se em conta regramentos mínimos que estruturam essa área social, foi a Mexicana, de 1917.”

Com a Constituição Cidadã foi implantado o sistema de seguridade social (assistência social, assistência médica e previdência), passando a vigorar no país um sistema que além de garantir a proteção aos trabalhadores, passa a ser um Estado de Seguridade Social que garante a proteção universal à sua população. Conforme preceitos do Lorde Beveridge, consolida-se a ideia de garantir um mínimo social necessário a existência humana digna (JUNIOR, 2002).

2. Diretrizes e objetivos da Assistência Social

A assistência social é política social destinada a prestar, gratuitamente, proteção à família, maternidade, infância, adolescência, velhice e aos deficientes físicos (art. 203). Para Júnior (2002), ao lado do seguro social previdenciário, o Estado presta também assistência social em certas circunstâncias (velhice, doença, etc), em caráter normalmente geral e de forma voluntária, posto que não retribui, nesses casos, contribuições recebidas.

Conforme leciona Souza (2011, p. 19):

“A assistência social é o sistema de que se utiliza o Estado para cuidar de situações atuais, prestando auxílio independentemente de qualquer pagamento prévio ou direto por parte da pessoas assistida. Defluem dessas definições as três principais características da assistência social: (1) atualidade das situações de necessidades atendidas pelo Estado; (2) clientela indefinida; (3) ausência de contribuições por parte do assistido.”

Em termos legais, a assistência social pode ser definida:

“como política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas do cidadão” (art. 1ª, LOAS).

Wladimir Novaes (1992, p.99) define assistência social como:

“Um conjunto de atividades particulares e estatais direcionados para o atendimento dos hipossuficientes, consistindo os bens oferecidos em pequenos benefícios em dinheiro, assistência à saúde, fornecimento de alimentos e outras pequenas prestações, não só complementando os serviços de Previdência Social, como ampliando, em razão da natureza da clientela e das necessidades providas. Trata-se de técnica de proteção social que deflui da solidariedade pessoal e social, como exigência do bem-estar comum de fundamental importância na Seguridade Social. O sistema é custeado pela coletividade, mediante o qual se confere o direito à prestação a um grupo de pessoas que não dispõem de meios particulares de subsistência.”

A Assistência social se integra ao sistema da seguridade social como um serviço público de tipo novo.

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Consolidado a partir da Lei 8.742/93 – Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS – em seu art. 4ª define as diretrizes balizadoras da assistência social. Em seu art. 2ª, define quais os objetivos da assistência social, em consonância com os objetivos determinados no art. 203 da Constituição Federal, sendo estes:

“I – a proteção social, que visa à garantia da vida, à redução de danos e à prevenção da incidência de riscos, especialmente: (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011)

a) a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)

b) o amparo às crianças e aos adolescentes carentes; (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)

c) a promoção da integração ao mercado de trabalho; (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)

d) a habilitação e reabilitação das pessoas com deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; e (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)

e) a garantia de 1 (um) salário-mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família; (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)

O art. 4ª da Lei 8.742/93 justifica a importância de tal dispositivos, elencando em um rol exemplificativo os princípios balizadores da Assistência Social:

“I – supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica;”

A ordem econômica que se funda com a valorização do trabalho humano, deve garantir também uma existência digna, desenvolvendo o poder publico ações sociais além das exigências da rentabilidade econômica.

“II – universalização dos direitos sociais, a fim de tornar o destinatário da ação assistencial alcançável pelas demais políticas públicas;”

Esse princípio visa assegurar a integração ou reabilitação das pessoas na vida comunitária, capacitando-os além das necessidade sociais, inclusive quando se trata das pessoas com deficiência.

“III – respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e comunitária, vedando-se qualquer comprovação vexatória de necessidade;”

Traduz-se o Estado garantidor em um compromisso do Estado Brasileiro em cumprir efetivamente os direitos humanos, vedando ao poder público o barramento de direitos aos cidadãos que se encontram em estado de necessidade social.

“IV – igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem discriminação de qualquer natureza, garantindo-se equivalência às populações urbanas e rurais;”

Este princípio tem como finalidade o resgate histórico das discriminações sofridas pela população rural, que se estende até os dias atuais.

“V – divulgação ampla dos benefícios, serviços, programas e projetos assistenciais, bem como dos recursos oferecidos pelo Poder Público e dos critérios para sua concessão.”

Tanto a forma de acesso à proteção assistencial, quanto aos benefícios sociais devem ser amplamente divulgados, como forma de resgate à política voltada pera a cidadania.

Os benefícios de proteção social não são taxativos e podem ser prestados de forma continuada ou eventual, caracterizando uma relação jurídica entre o assistido e órgão assistente no momento em que aquele quando em estado de necessidade, gerado pela ocorrência de uma contingência social esteja em risco (JUNIOR, 2002).

Os recursos são de responsabilidade da União, destinados ao financiamento dos benefícios de prestação continuada, podendo ser repassados diretamente pelo Ministério da previdência Social ao INSS, órgão responsável pela sua manutenção e execução.

Conforme leciona Souza (2011, p. 20):

“Quanto aos recursos das ações governamentais na área da assistência social, eles derivam do orçamento da seguridade social e são previstos no art. 195; há ainda outras fontes que deverão organizar-se com base nas seguintes diretrizes: a descentralização político-administrativa, cabendo à coordenação e as normas gerais à esfera federal, a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como às entidades beneficentes e de assistência social, com participação da população através de organizações representativas, tanto na formulação das políticas, como no controle em todos os níveis.”

     Os Estados, Distrito Federal e Municípios também participam do financiamento da seguridade social com recursos provenientes dos respectivos orçamentos, assim como toda a sociedade.

3. Da (in) constitucionalidade do requisito da miserabilidade

O Benefício de Prestação Continuada garante à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família, uma renda mensal de 1 (um) salário mínimo.

O artigo 20, da Lei n. 8.742/93, com redação dada pela Lei n. 12.435/11, repetindo a redação da Carta Magna, consta que, o Benefício de Prestação Continuada é a garantia de um salário mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção, nem de tê-la provida por sua família.

O decreto 1.744, de 08 de Dezembro de 1995 regulamenta o benefício de prestação continuada, devido à pessoa portadora de deficiência e ao idoso.

Conforme entendimento de Santos (2011), o parágrafo 3º, do artigo 20, da LOAS é manifestamente inconstitucional, pois não se pode perder de vista que o BPC é aquela parcela de proteção social que se consubstancia em benefício. Ao fixar em ¼ do salário mínimo o fato discriminante para a aferição da necessidade, o legislador elegeu um discriminante inconstitucional porque deu aos necessitados conceito diferente de bem-estar social, presumindo que a renda per capita superior a ¼ do mínimo seria a necessária e suficiente para a sua manutenção, ou seja, quanto menos têm, menos precisam ter.

Consonante com a abordagem, Gomes (1998) também é favorável a este entendimento, pois ao eleger a renda per capita mensal familiar de ¼ (um quarto) do salário mínimo como critério para aferição da miserabilidade de um indivíduo, o legislador violou a Carta Maior, tendo em vista que quantificou o bem-estar social em valor diferente ao estabelecido pela nossa Constituição, ferindo o princípio do não retrocesso social.

Conforme os ensinamentos de Ibrahim (2011), em relação ao parâmetro utilizado pela LOAS para a aferição da miserabilidade, a restrição financeira pode e deve ser ponderada com características do caso concreto, inclusive utilizando de meios probatórios dispostos para a própria autarquia Federal, como o caso da entrevista administrativa, perícia social, entre outras, sob pena da negativa do benefício, condenar-se à morte o necessitado. Ainda que a extensão do benefício somente possa ser feita por lei, não deve o intérprete omitir-se a realidade social.

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Após esse entendimento, Ibrahim (2011) ainda comenta em seu livro sobre a concessão do benefício assistencial, nestas hipóteses, além da legalidade estrita em que se pauta o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), justifica-se a partir do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o qual possui, como núcleo essencial, plenamente sindicável, o mínimo existencial, isto é, o fornecimento de recursos elementares para a sobrevivência digna do ser humano.

3.1 Do entendimento da Administração Pública referente ao critério de miserabilidade

Atualmente, existe grande divergência de entendimento entre a Administração Pública, representada pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e o Poder Judiciário, inclusive entre os próprios membros do judiciário em relação ao requisito da miserabilidade definida trazido pelo parágrafo 3º, artigo 20, da Lei Orgânica da Assistência Social.

Para Tavares (2011), a questão é analisar a possibilidade ou não haver uma flexibilização desse critério em casos que seja claramente visível a condição de necessitado da pessoa com deficiência ou do idoso, no entanto, quando do cálculo da renda per capita familiar desse indivíduo, o valor supera ¼ (um quarto) do salário mínimo.

Para o INSS, autarquia federal que executa e analisa os pedidos de Benefício de Prestação Continuada, o requisito da renda mensal familiar per capita inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo é o único critério a ser levado em consideração para a aferição do estado de necessitado do indivíduo que almeja o recebimento do Benefício de Prestação Continuada, justificando-se pelo Princípio da Estrita Legalidade, em que é pautada a concessão dos benefícios pela administração pública.

Entretanto, alguns segurados não cumprem o requisito de renda per capita por valores ínfimos além do requisito legal, não cumprindo à risca tal requisito trazido pela lei, como por exemplo, 5 (cinco), 10 (dez) ou 15 (quinze) reais da quantia estabelecida pela LOAS, no entanto, tais indivíduos fazem jus de forma cristalina ao benefício.

Para demonstrar essa discrepância entre o entendimento da Autarquia administrativa, Tavares (2011, p. 19) utiliza o seguinte exemplo:

“Em uma família composta por quatro pessoas, na qual somente o conjugue varão trabalhe e receba 1 salário mínimo, a esposa, ocupada com os cuidados dispensados principalmente a uma das filhas, portadora de deficiência mental incapacitante, não tem como se dedicar a uma atividade laboral. Como o requisito legal somente considera necessitado aquele cuja renda familiar per capita seja inferior a ¼ do salário mínimo e, no exemplo, a renda encontra-se exatamente nesse valor, poderia o juiz desconsiderar a previsão legal?”

Como indagado, o entendimento atual do INSS ao negar o benefício assistencial para aqueles que necessitam, encontra-se em dissonância à justiça social almejada pela Seguridade Social, devendo ser analisado a necessidade em um mínimo existencial, englobando a impossibilidade de exercício da atividade laboral, além da impossibilidade de sustento próprio.

3.2 Do entendimento jurisprudencial acerca do critério de miserabilidade

Conforme Duarte (2005), sucede que a exigência da LOAS restringiu de modo extremo a camada social de pessoas portadoras de deficiência e idosos que seriam amparadas pelo auxílio constitucional, por levar em consideração apenas um critério objetivo, ignorando a condição social do indivíduo. Assim, pode-se dizer em outras palavras, que uma linha de miserabilidade foi tão achatada a ponto de ficarem acima dessa linha cidadãos em situação de miserabilidade crítica.

O Egrégio Tribunal Regional Federal da 1º Região também apresenta a mesma linha de pensamento ora defendida neste trabalho. É o que se vê em linhas abaixo:

“PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. LEI Nº 8.742, DE 1993 (LOAS). REQUISITOS LEGAIS. IDADE SUPERIOR A 65 ANOS. HIPOSSUFICIÊNCIA. CONDIÇÃO DE MISERABILIDADE. 1. Por se tratar de sentença líquida, aplicável o § 2º do artigo 475 do Código de Processo Civil, razão pela qual a sentença não está sujeita ao duplo grau de jurisdição. 2. O benefício de prestação continuada é devido à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 anos ou mais, que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de têla provida por sua família. 3. A família com renda mensal per capita inferior a ¼ do salário-mínimo não é capaz de prover de forma digna a manutenção do membro idoso ou portador de deficiência física (§ 3º, art. 20, Lei 8.742/93). Contudo, o legislador não excluiu outras formas de verificação da condição de miserabilidade. Precedentes do STJ, da TNU e desta Corte. 4. Outro benefício assistencial ou previdenciário, de até um salário-mínimo, pago a idoso, ou aposentadoria por invalidez de valor mínimo paga à pessoa de qualquer idade, não deverão ser considerados para fins de renda per capita; devendo-se excluir tanto a renda quanto a pessoa do cômputo para aferição do requisito (PEDILEF 200870950021545, JUIZ FEDERAL SEBASTIÃO OGÊ MUNIZ, TNU – Turma Nacional de Uniformização, DJ 15/09/2009). 5. A parte autora atendeu aos requisitos legais exigidos: idade superior a 65 anos e renda per capita inferior a ¼ do salário-mínimo, viabilizada pela exclusão da renda do cônjuge idoso e do filho portador de necessidades especiais (fls. 10 e 24/48). 6. Embora a antecipação de tutela tenha sido deferida de forma irregular em razão da ausência de pedido expresso da parte autora, deve ser mantida, porque os recursos eventualmente interposto contra o Acórdão tem previsão de ser recebidos apenas no efeito devolutivo. 7. Apelação não provida. (TRF-1 – AC: 2200 MG 2005.38.04.002200-2, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL FRANCISCO DE ASSIS BETTI, Data de Julgamento: 05/12/2012, SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: e-DJF1 p.28 de 22/01/2013).”

Conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça, a renda per capita familiar inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo configuraria uma presunção absoluta de miserabilidade, dispensando outros meios de provas. Entretanto, ultrapassando o limite estabelecido, outros meios de prova poderiam ser utilizados para a demonstração da condição de necessitado, expressa na situação de absoluta carência de recursos para a subsistência. Em outras palavras, o STJ entende que o requisito da miserabilidade trazido pela LOAS não é um critério absoluto, pois deve ser considerado como um limite mínimo, um quantum objetivamente considerado insuficiente à subsistência da pessoa com deficiência e do idoso, o que não impede que o julgador faça uso de outros fatores que tenham o condão de comprovar a condição de miserabilidade do requerente.

Reforçando o pensamento aqui defendido, cabe transcrever outro trecho da mesma decisão do Ministro Gilmar Mendes, citada acima na Reclamação 4374 – LOAS – Benefício Assistencial:

“(…) O acórdão apontado como parâmetro é o relativo ao julgamento da ADI no 1.232/DF (Pleno, por maioria; Rel. Min. Ilmar Galvão, Red. para o acórdão Min. Nelson Jobim; DJ de 01.06.2001). Na oportunidade, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do § 3o do art. 20 da Lei no 8.742/1993, que estabelece critérios para receber o benefício previsto no art. 203, inciso V, da Constituição. (…)”

Nesse meio tempo, observou-se certa proliferação de leis que estabeleceram critérios mais elásticos para a concessão de outros benefícios assistenciais, tais como: a Lei 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei 10.219/01, que criou o Bolsa Escola; a Lei 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a Municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas; e o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03). Isso foi visto pelos aplicadores da LOAS como um fato revelador de que o próprio legislador estaria reinterpretando o art. 203 da Constituição da República. Abria-se, com isso, mais uma porta para a concessão do benefício assistencial fora dos parâmetros objetivos fixados pelo art. 20 da LOAS (TAVARES, 2011, p. 22)

O ministro Sepúlveda Pertence enfatizou, quando em analise de decisões que concederam o beneficio com base em legislação superveniente à Lei 8742/1993, que as decisões reclamadas não tem declarado a inconstitucionalidade do §3ª do art. 20 dessa lei, mas dado interpretação a tal dispositivo em conjunto com a legislação posterior, a qual não foi objeto da ADI nº 122 (RCL nº 4164/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 30/06/2006).

Neste sentido, elencam-se as decisões do Ministro Marco Aurélio, que sempre deixou claro seu posicionamento no sentido de insuficiência de critérios definidos pelo §3ª do art. 20 da lei nº 8742/93 para fiel cumprimento do art. 203, inciso V, da Constituição (Rcl nº 4.164/RS, Rel. Min. Marco Aurélio).

Portanto, compreende-se que há a necessidade de valoração das provas produzidas nos autos para a aferição da miserabilidade mesmo quando a renda per capita seja superior a ¼ do salário mínimo, posto não ser este o critério único para aferição da miserabilidade.

3.3 Do afastamento do critério de miserabilidade para concessão do LOAS

Os inúmeros casos concretos que são objetos de questionamento entre a autarquia federal e os juizados em todo o país, têm demonstrado que os critérios objetivos estabelecidos pela Lei nª 8742/1991 são insuficientes para atestar que o idoso ou deficiente não possuem meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. Constatada tal insuficiência, os juízes e tribunais se elegem de outros meios probatórios para comprovar a condição de miserabilidade do individuo que pleiteia o beneficio (TAVARES, 2011).

É cediço, como ressaltou a ministra Carmen Lúcia que:

“A constitucionalidade da norma legal, assim, não significa a inconstitucionalidade dos comportamentos judiciais que, para atender, nos casos concretos, à Constituição, garantidora do princípio da dignidade humana e do direito à saúde, e à obrigação estatal de prestar a assistência social 'a quem dela necessitar, independentemente da contribuição à seguridade social', tenham de definir aquele pagamento diante da constatação da necessidade da pessoa portadora de deficiência ou do idoso que não possa prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família (Rcl n° 3.805/SP, DJ 18.10.2006).”

Os doutrinadores, incluindo os tribunais, parecem caminhar no sentido de se admitir que o critério de ¼ do salário mínimo pode ser conjugado com outros fatores indicativos do estado de miserabilidade da pessoa, que satisfaz os requisitos legais utilizando outros meios de prova, como a pericia social, para a concessão do beneficio assistencial de que trata o art. 203, inciso V, da Constituição.

Conclusão

A assistência social encontra-se regulamentada pela lei nº 8742/1993 (Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS).

A concessão do benefício de prestação continuada é garantida à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais, condicionada ao preenchimento do requisito da renda per capita familiar inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo, cuja previsão consta no artigo 203, inciso V da CF, e tem sua regulamentação definida na Lei nº 8.742/1993.

Mesmo com o entendimento restritivo da autarquia administrativa, o critério objetivo da renda por vezes torna-se injusto e contrário à justiça social por analisar critérios objetivos, muitas vezes, transpassado por valores ínfimos que extrapolam o limite rigidamente estabelecido. Essas discussões ganharam força após a promulgação do artigo 34 da Lei 10.471/2003 (Estatuto do Idoso), que por analogia, flexibiliza os critérios objetivos adotados.

Entretanto esse critério, quando analisado de forma restritiva, não corresponde

aos parâmetros para aferição de miserabilidade utilizados pelas leis assistenciais nos dias atuais, além de violar inúmeros princípios constitucionais, bem como os princípios específicos da Seguridade Social, como por exemplo, o princípio da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, proporcionalidade, igualdade, da solidariedade social, da justiça social, entre outros tantos.

Uma vez declarada a inconstitucionalidade do dispositivo art. 20 §3º da Lei nº 8.742/93 pelo Supremo Tribunal Federal, em 18 de abril de 2013 , começa a predominar na jurisprudência a ideia de que a comprovação da renda poderia ser feita por outros meios probatórios, flexibilizando o critério no caso em concreto. Na mesma oportunidade o STF declarou a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 34 da Lei 10.471/2003.

Porém, a autarquia Federal ainda não aceita esse posicionamento, concedendo o benefício apenas aos que comprovem da renda mensal familiar per capita inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo, sendo este o único critério a ser levado em consideração para a aferição do estado de necessitado do indivíduo, elevando injustificadamente a quantidade de ações judiciais neste sentido.

Portanto, em relação ao problema apresentado, conclui-se que verificado que a previsão objetiva da lei não é suficiente para cumprir o princípio moral da dignidade da pessoa humana e que o critério acolhido pelo legislador de forma genérica se mostra insuficiente para solucionar o problema da situação de miserabilidade. Caberá, contudo, ao poder judiciário valorizar os elementos mais adequados para a justa solução do caso concreto, garantindo a efetivação da justiça social e a dignidade da pessoa humana.

 

Referências
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TAVARES, Marcelo Leonardo. Direito previdenciário. 13 Ed. Niterói, RJ. Editora Impetus. 2001.
 
Nota
[1] Artigo orientado pelo Prof. Joseval Martins Viana, Coordenador do Curso de Direito Médico e da Saúde da Faculdade Legale. Graduado em Letras e em Direito. Mestre em Comunicação e Letras com ênfase no Discurso Jurídico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.


Informações Sobre o Autor

Isabella Teresa Silva Souto

Pós-graduanda em Direito Previdenciário pela Universidade Cândido Mendes – UCAM


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