Resumo: O presente estudo almeja analisar o novo paradigma da justiça criminal negociada como uma alternativa ao enfrentamento do conflito, adequando-se ao sistema penal e processual garantista, trazendo como exemplo de negociação e cooperação no Brasil, o instituto da colaboração premiada. Na ocasião, afim de uma melhor compreensão do assunto, será realizada uma breve exposição do sistema garantista penal, proposto por Luigi Ferrajoli, como um modelo ideal de limitação do poder punitivo do Estado, através de um conjunto sistemático de garantias penais e processuais penais. É nesse contexto, de uma justiça criminal garantista, típica do Estado Democrático de Direito, que não permite o consenso na resolução de conflitos, que surge a justiça negociada, como um novo paradigma alternativo ao modelo conflito clássico, estruturado no princípio da razoável duração do processo em conjunto com novas garantias processuais, como a da autonomia da vontade. Nesse caminho, a colaboração premiada surge como um instrumento viabilizador do consenso entre os atores processuais penais, permitindo uma desburocratização do sistema acusatório clássico, e uma releitura do modelo ideal de Ferrajoli. Assim, o objetivo principal do estudo é contribuir para a uma análise crítica sobre o tema, justificado no momento atual da justiça criminal brasileira, demonstrando que a justiça penal negociada surge como uma alternativa para o atual sistema, em consonância com um sistema garantista penal e processual estruturado no Estado Democrático de Direito. Buscando uma efetiva abordagem do tema, o trabalho faz-se valer dos métodos dedutivo e dialéticos, sendo a técnica bibliográfica a fundamentalmente utilizada.
Palavras-chave: Justiça Penal Negociada. Sistema Garantista Penal. Negociação de Conflitos. Colaboração Premiada.
Abstract: The present study aims to analyze the new paradigm of negotiated criminal justice as an alternative to confronting the conflict, the leaving to the penal system and procedural guarantee, bringing as an example of negotiation and cooperation in Brazil, the institute of the awarded collaboration.
At the occasion, in order to better understand the subject, a brief exposition of the criminal guarantor system, proposed by Luigi Ferrajoli, will be held as an ideal model for limiting the punitive power of the State through a systematic set of criminal and procedural guarantees. It is in this context, from a criminal justice guarantor, typical of the Democratic State of Law, that does not allow consensus in the resolution of conflicts, that negotiated justice arises, as a new alternative paradigm to the classic conflict model, structured in the principle of the reasonable duration of the new procedural safeguards, such as the autonomy of the will. In this way, the award-winning collaboration emerges as an instrument that enables consensus among criminal procedural actors, allowing a debureaucratization of the classic accusatory system, and a re-reading of Ferrajoli's ideal model. Thus, the main objective of the study is to contribute to a critical analysis on the subject, justified in the current moment of the Brazilian criminal justice, demonstrating that the negotiated criminal justice appears as an alternative to the current system, in line with a criminal process in the Democratic State of Law. Seeking an effective approach to the subject, the work uses the deductive and dialectical methods, being the bibliographical technique the fundamentally used.
Keywords: Criminal Justice Negotiated. Criminal Guarantor System. Negotiation of Conflicts. Award Winning Collaboration.
Sumário: 1. Introdução. 2. O garantismo penal como um sistema ideal de garantias penais e processuais penais. 3. A justiça penal negociada como uma alternativa ao sistema garantista. 4. A colaboração premiada como instrumento de resolução negociada do conflito no Brasil. 5. Conclusões. 6. Bibliografia.
INTRODUÇÃO
O modelo garantista penal proposto por Luigi Ferrajoli aborda uma leitura do direito penal e processual penal sob a ótica do Estado Democrático de Direito, maximizando garantias ao cidadão em contrapartida ao poder punitivo do Estado. Nesse sentido, o garantismo propõe um conjunto de dez garantias ou axiomas que se inter-relacionam, sob a égide do princípio da legalidade estrita, de cujo preceito derivam todos os demais princípios.
Não há dúvidas de que esse modelo teórico trouxe influências significativas ao processo penal brasileiro, sobretudo através de limitações ao poder punitivo do Estado por meio de um conjunto de garantias processuais, como o princípio da jurisdicionalidade, da separação entre juiz e acusação, contraditório e ampla defesa. Nesse contexto, buscando uma aproximação máxima ao modelo ideal de Ferrajoli aliado, e uma eficiência na persecução penal, ocorre uma expansão de mecanismos de justiça penal negociada, como as colaborações premiadas, fundada em um acordo de vontade entre as partes processuais e maior disposição do litígio, trazendo à tona um processo penal brasileiro com a ascendência de novas garantias, como a autonomia de vontade.
Trata-se de um novo paradigma, que surge como um aliado ao atual sistema acusatório e não como um substituto, com uma tendência de desburocratizar e trazer mais eficácia aos mecanismos de investigação, produção de provas e solução da lide, através de um consenso entre as partes. Ocupa-se, portanto, de uma inovação significativa, permitindo uma maior horizontalidade entre os participantes do processo, com a disponibilidade do objeto processual, negociando redução de penas até um possível arquivamento de processo, buscando-se uma efetiva concretização do princípio constitucional da duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII). Nesse viés, por ser a justiça penal negociada um modelo o qual se destaca uma maior disponibilidade do objeto processual e autonomia de vontade do acusado, surgem questionamentos acerca da compatibilidade desse novo mecanismo de solução de conflitos ao modelo garantista abraçado pelo Código de Processo Penal (CPP) e pela Constituição Federal de 1988 (CF) .O presente artigo pretende estudar a justiça penal negociada sob a ótica do modelo garantista processual, em consonância com os direitos e garantias processuais previstos na Constituição Federal de 1988, viabilizando um novo paradigma no processo penal.
Para tanto, em um primeiro momento, será analisado, de maneira não extensiva, o modelo garantista penal, como o modelo ideal de um Estado de Direito, abordando todas as garantias processuais e suas repercussões no processo penal brasileiro, com suporte referencial na teoria de Luigi Ferrajoli.
Em um segundo momento, pretende-se estudar a expansão da justiça penal negociada no processo penal brasileiro, indicando seus princípios fundamentadores e suas garantias processuais, para investigar a possibilidade de adequação desse novo modelo ao garantismo processual penal balizado no ordenamento jurídico pátrio.
Por fim, será analisado o instituto da colaboração premiada como um instrumento de resolução negociada dos conflitos no processo penal brasileiro, demonstrando a importância desse novo mecanismo nas investigações, colhimento de provas e resolução dos litígios penais.
Pretende-se demonstrar, portanto, que a expansão do consenso na justiça processual penal brasileira, notadamente através das colaborações entre os agentes processuais, com fulcro na resolução menos burocrática do processo, não constitui um retrocesso aos direitos e as garantias do processado, amplamente consolidadas no Estado Democrático de Direito, mas um aliado na prestação jurisdicional mais eficaz, consolidando a flexibilização de algumas garantias em detrimento de novas, como a autonomia de vontade.
1. O GARANTISMO PENAL COMO UM SISTEMA IDEAL DE GARANTIAS PENAIS E PROCESSUAIS PENAIS.
A necessidade em assegurar aos indivíduos um ordenamento jurídico de efetiva proteção de direitos e garantias fundamentais no pós-guerra consolidou, de maneira definitiva, as bases de um Estado do bem-estar-social .Os direitos fundamentais passam a ser vistos não mais como meras abstenções do Estado frente às liberdades dos indivíduos, mas como um sistema objetivo de valores que deveriam ser vinculantes, demonstrando uma constitucionalização do direito e ampliação da força normativa da constituição. [1]
É nesse campo fértil de valores que o modelo garantista penal de Luigi Ferrajoli ganha força, disseminando sua axiologia de intervenção mínima e de máximas garantias, inspirado nos movimentos iluministas, notadamente de filósofos como Cesare Beccaria.
O modelo garantista propõe um direito penal e processual penal balizados na máxima tutela das liberdades do cidadão contra o arbítrio do Estado. Tal modelo seria um meio termo entre o sistema antiliberal que abusa do poder de punir e do abolicionismo, que não reconhece qualquer legitimidade no âmbito de atuação penal. [2]
Assim, Ferrajoli denominou de garantista, cognitivo ou de legalidade estrita, um sistema penal de sigla SG, considerado um modelo-limite, tendencialmente e jamais totalmente alcançado, portanto ideal, moldado conforme dez axiomas ou princípios axiológicos fundamentais. Tais axiomas resultam em garantias que podem ser divididas em penais e processuais: 1) princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito; 2) princípio da legalidade, no sentido lato ou no sentido estrito; 3) princípio da necessidade ou da economia do direito penal; 4) princípio da lesividade ou da ofensividade do evento; 5) princípio da materialidade ou da exterioridade da ação; 6) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; 7) princípio da jurisdicionariedade, também no sentido lato ou no sentido estrito; 8) princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação; 9) princípio do ônus da prova ou da verificação; 10) princípio do contraditório ou da defesa, ou da falseabilidade. [3]
Para os fins do presente artigo, debruçaremos nossas considerações apenas nos garantias 7 a 10, relacionados ao processo penal, perfilhando todas as nuanças e respectivas consequências no âmbito do processo penal brasileiro.
A garantia da jurisdicionalidade, prevista no axioma A7 nulla culpa sine iudicio, é considerada o pressuposto de todas as demais garantias processuais, podendo ser considerado em sentido estrito ou lato. Em sentido estrito, o juízo seria uma exigência própria das garantias penais, exigindo-se qualquer juízo como condição para a aplicação da pena, ao passo que no sentido lato, é exigido o cumprimento de todas as demais garantias processuais em um juízo, ou seja, não basta um juízo qualquer, mas aquele que ocorra em conformidade com as garantias de prova e defesa.
Em linhas gerais, enquanto a legalidade assegura a prevenção das ofensas prescritas como delitos, o princípio da submissão à jurisdição assegura a prevenção de “vinganças privadas”. Assim, o principio da jurisdicionalidade foi amplamente recepcionado na Constituição Federal de 1988 nos incisos LIII, LIV, LVII, proibindo qualquer sanção penal sem o devido processo legal.
O princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação, previsto no axioma A8, nullum iudicium sine accusatione, constitui a própria essencial do sistema acusatório, caracterizado pela relação triangular entre os atores processuais, garantindo a imparcialidade do juiz e a isonomia entre as partes. Para o garantismo, o modelo processual deve ser o acusatório, atribuindo ao juiz, necessariamente imparcial, a função de espectador.
A Constituição Federal de 1988 não estabeleceu, de maneira taxativa, o sistema processual penal que deveria ser adotado no Brasil, mas adotou um sistema de garantias, que prevê como titular da ação penal pública o Ministério Público, conforme o artigo 129, inciso I. Como consequência dessa disposição, os Tribunais definiram como acusatório o nosso sistema.
Alguns dispositivos inseridos na reforma do Código de Processo Penal em 2008 mostram a inclinação do ordenamento processual para um sistema acusatório: artigo 155, que veda ao juiz que fundamente sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos em investigação; artigo 212, ao determinar que as partes é que farão as inquirições diretamente às testemunhas; artigo 257, I, ao afirmar que cabe privativamente ao Ministério Público promover a ação penal pública. A celeuma recai no artigo 156, incisos I e II, que permite ao juiz produzir provas de ofício, gerando a falsa ideia de um sistema inquisitivo. Na verdade, a atuação do magistrado é acessória e complementar à das partes, produzindo provas somente depois de perceber a necessidade em produção de alguma prova que não fora requerida, podendo atuar de ofício.[4]
A garantia do ônus da prova, axioma A9, nulla accusatio sine probatione, atribui à acusação a tarefa de afastar o princípio da presunção de inocência, comprovando a culpa do processado, através de provas válidas e lícitas que possam ser contestadas.
Em suma, conforme Ferrajoli, busca-se uma verdade formal ou processual obtida através de fatos e circunstâncias relevantes, condicionada ao respeito das garantias e procedimentos perfilhados em regras precisas. Uma verdade diversa da “verdade substancial” obtida de maneira absoluta, mas fundamentada por provas recolhidas através de técnicas processuais estabelecidas, sendo apenas provável. Nesse viés, havendo dúvidas ou falta de provas criteriosamente obtidas, prevalece sempre a presunção de não culpabilidade do acusado.[5]
Por fim, e não menos importante, o princípio do contraditório, transcrito no axioma A10, nulla probatio sine defensione, constitui a essência do próprio sistema acusatório, haja vista que não há provas sem defesa, ou seja, sem o contraditório e a ampla defesa.
O princípio do contraditório viabiliza uma relação horizontal entre acusação e defesa, trazendo um aspecto democrático para o processo penal, eis que possibilita ao acusado refutar as provas e alegações trazidas pelo órgão acusatório no âmbito probatório, contribuindo, em paridade de forças, para o livre convencimento do magistrado. [6]
A partir da construção de um sistema de legalidade estrita SG, balizado em conformidade com os dez axiomas garantistas que se interrelacionam, Ferrajoli estabelece tipologias de sistemas punitivos, a depender das garantias por eles concebidas.[7]
A partir do exposto, é importante destacarmos a intenção do legislador ordinário de aproximar o sistema punitivo empregado no ordenamento processual penal brasileiro ao modelo ideal garantista, através de uma releitura do Código de Processo Penal de 1941 com a Constituição Federal de 1988, que traz em seu bojo uma série de garantias constitucionais ao acusado, como a ampla defesa, o contraditório, o devido processo legal, a presunção de inocência, dentre outros implícitos no ordenamento.
Por certo, em um segundo passo, assentadas as premissas do modelo garantista ideal de Ferrajoli, cumpre avaliarmos esse modelo juntamente com os novos rumos da justiça penal, através dos mecanismos de consenso, levando em consideração não só as garantias individuais do contraditório, ampla defesa ou da presunção de não culpabilidade, mas sopesando com um conjunto mais amplo de direitos e garantias constitucionais de natureza metaindividual.
Essa perspectiva mais abrangente de um sistema garantista, ampliando o acervo de direitos a serem observados, é chamada de garantismo penal integral, pois busca não só uma tutela das garantias individuais, mas de uma integralidade de direitos e garantias constitucionais.[8]
Para tanto, é necessário entendermos os princípios legitimadores do consenso na resolução dos litígios e a eventual adequação de institutos como a colaboração premiada em um processo penal estruturado sob a ótica de um sistema de garantias ao processado.
2. A JUSTIÇA PENAL NEGOCIADA COMO UMA ALTERNATIVA AO SISTEMA GARANTISTA.
O processo criminal tradicional tem como objetivo identificar e sancionar o agente que pratica o ilícito penal, a partir de um devido processo, do qual se constata a autoria e a materialidade do fato típico, antijurídico e culpável.
Entretanto, os métodos clássicos de aferição e aplicação de sanção penal vêm se mostrando pouco eficiente diante da evolução da criminalidade, demonstrando que a burocrática jurisdição estatal aliada à tendência legislativa da máxima intervenção penal se mostra ineficaz no enfretamento dos litígios penais.
É nesse contexto de retrocessos no âmbito da persecução penal, notadamente com a violação do princípio da duração razoável do processo, devido processo legal, eficácia da jurisdição e da própria eficiência na obtenção da justiça, que surgem debates acerca da implementação alternativa de um sistema consensual de solução de conflitos.
Assim, faz-se importante conceituar a justiça penal negociada como um acordo em que ambas as partes praticam concessões recíprocas, na busca por um acordo final, no qual se permite uma disposição maior do objeto do processo, negociando-se desde o arquivamento até uma redução de pena.[9]
Pode-se dizer que a negociação de sentença criminal, como próprio nome sugere, é um acordo entre defesa e acusação, em que se busca a declaração de culpa do arguido, conhecido pelos americanos de guilty plea, ou a declaração de que não haverá uma contestação do acusado, também utilizada pelos americanos sob o nome de plea of nolo contendere. Na negociação, almeja-se a aplicação de uma condenação mais leniente do que a que poderia ser obtida em um procedimento ordinário, com a escolha do arguido em não exercer certos direitos processuais. Nesse sentido, são requisitos imprescindíveis da negociação criminal a mutualidade de concessões, a capacidade de compreensão do arguido acerca de seus direitos, a informação, a voluntariedade da confissão, a presença de defesa técnica e a homologação final do acordo por um juiz, que avalia a legalidade das premissas estabelecidas entre as partes.
Todavia, apesar da expansão das ideias de consenso, é de notória importância analisar a adequação desse novo modelo de solução de conflitos sob a ótica do sistema garantista projetado no ordenamento processual e constitucional brasileiro.
Para tanto, importante mencionar as principais críticas perfilhadas em torno da justiça negociada, como os possíveis abusos praticados pelos órgãos acusatórios, a desjudicialização do conflito, a violação do direito ao silêncio, da presunção do estado de inocência, da verdade real e o desequilíbrio da balança entre os atores processuais.[10]
Dentre as críticas mais contundentes aos procedimentos de negociação, está a renúncia às garantias processuais penais e, consequentemente de um aniquilamento do modelo garantista, além da semelhança dos acordos à tortura, marcada pela coação do acusado. Entretanto, antes de tecermos quaisquer apontamentos sobre os princípios legitimadores da justiça penal negociada, é salutar esclarecer que a negociação não surge como substituta ao processo penal convencional, mas como procedimento alternativo e diferenciado, cunhado no livre acordo de vontade entre as partes processuais, que busca um encurtamento na solução dos litígios de natureza penal, comprometido com uma sentença mais célere e de maior efetividade.[11]
Em um Estado Democrático de Direito, a proporcionalidade é de extrema importância na justificativa do não exercício de certos direitos em detrimento de outros. As restrições aos direitos fundamentais são justificadas quando forem idôneas ao objetivo almejado, devendo se atentar para a adequação, necessidade e ter noção de qual princípio será protegido no conflito.[12]
Assim, a duração razoável do processo é uma das garantias utilizadas como frente de legitimação ás críticas relativas ao perecimento do princípio da judicialização ou nulla culpa sine iudicio, garantia basilar do modelo ideal de Ferrajoli.
Indiscutivelmente, a duração razoável do processo, insculpida no art. 5°, inc. LXXVIII da Constituição Federal é uma consequência natural do devido processo legal e da efetivação da justiça. Diferente do que muitos leigos no assunto asseveram, os mecanismos de consenso não ocultam direitos do acusado, sobretudo de um devido processo, caracterizando-se como uma comercialização e barganha do Poder Judiciário[13], mas uma possibilidade de escolha do próprio arguido, com maior interação e disposição do objeto do processo pelas partes, respeitados os preceitos de legalidade e constitucionalidade.
O que o procedimento do consenso enseja é um caminho mais curto entre o fato típico e a resposta do Estado, priorizando soluções mais céleres e efetivas às transgressões penais, emergindo a confiança da sociedade na justiça penal, além de contribuir para uma maior prevenção da criminalidade.[14]
Aliás, o andamento razoável do processo, sob a ótica do consenso, não pode ser visto como uma violação da presunção do estado de inocência, mas de sua decorrência, pois um processo moroso ocasiona danos não só ao arguido que está preso, mas também aquele que pretende ver seu status quo de inocente reestabelecido, frente ao sofrimento e à estigmatização que a falta de um processo mais célere ocasiona. [15]
De igual banda, fala-se também em uma indevida subordinação da justiça criminal aos interesses pessoais dos atores processuais, de modo que no plea bargaining americano, o instituto do consenso fora criado para satisfazer os interesses das partes processuais.[16]
Sobre essa questão, a justiça penal negociada pode ser pautada em outra garantia de legitimação, que é a autonomia de vontade do arguido em optar por um procedimento mais enxuto e de não exercício de certos direitos processuais que lhe são garantidos.
Complementarmente, pode-se destacar como crítica a justiça penal negociada, a potencialização da confissão como a “rainha das provas” e fundamento único para uma condenação. Entretanto, apesar de ambas possuírem semelhanças, como o não exercício de um direito processual, e o reconhecimento em favor da parte adversa, na confissão o acusado tem conhecimento e aceitação dos fatos, mas não necessariamente quanto às consequências jurídicas. Na justiça negociada, a admissão da culpa não é elemento essencial, caracterizando-se pelo livre acordo de vontade quanto a determinadas respostas legais ao que foi imputado.[17]
O consenso não provoca o desaparecimento do processo e do direito de defesa[18]. Na verdade o que se pode aferir é uma situação de não exercício de certos direitos fundamentais processuais do arguido em detrimento de outras garantias e deveres processuais, em prol de ambas as partes processuais.
Desse modo, salienta-se que, diferentemente de uma renúncia, no não exercício do direito ocorre uma satisfação pela omissão ou através de uma conformação do arguido aos termos estabelecidos pelo órgão acusatório, de forma temporária ou pontualmente.[19]
Na opção por uma justiça negociada, o interessado continuará sendo titular de direitos de defesa, como o contraditório e a ampla defesa. O que se está propondo, através da expansão de mecanismos de consenso, é uma resposta criminal mais eficiente, do ponto de vista de uma prevenção geral e especial, e através de escolhas proporcionais pelo arguido em relação ao não exercício de certos direitos em prol de um resultado mais leniente. [20]
Na verdade, o que se observa com a possibilidade de um mecanismo de consenso é a ideia de uma opção a mais dentre os procedimentos de solução de conflitos penais, sob a égide da voluntariedade, disponibilidade do objeto processual, maior participação e cooperação entre partes e o magistrado, sem que haja um desacordo com a integralidade das garantias e direitos estabelecidos no SG de Ferrajoli.
No que tange ao princípio da obrigatoriedade da ação penal, o nullum iudicium sine acusationis, de suma importância em um sistema acusatório, e analisando o papel do Ministério Público dentro de uma justiça negociada, Ferrajoli refuta a ideia de oportunidade no que tange às ações penais, jamais podendo se admitir um acusador público atuar à margem das disposições legais, podendo escolher quais violações penais seriam perseguidas, ou predeterminar a pena com o acusado.[21]
Entretanto, há de salientar que o método do consenso não exclui a obrigatoriedade e legalidade do Ministério Público em oferecer a ação penal, mas apenas flexibiliza o modo de agir na persecução penal.
A obrigatoriedade está em verificar a justa causa, mas o modo como o órgão acusatório atua na persecução se reveste de uma maior discricionariedade. Assim, o Ministério Público pode propor o acordo ao arguido, possibilitando uma maior participação do mesmo na solução do litígio, caso haja indícios suficientes de autoria e materialidade delitiva.
Se o acusado não tiver interesse em um acordo, o órgão acusatório continua obrigado a acusá-lo, não havendo qualquer óbice a legalidade dos institutos do consenso.[22]
Já no âmbito da verdade processual, é sabido que a verdade buscada dentro do processo penal não é uma verdade absoluta e real, mas a verdade processual, aferida no âmbito do processo e de natureza exclusivamente jurídica, com base nos meios legalmente estabelecidos pelo legislador.[23] Há inúmeras regras que buscam uma verdade obtida dentro de critérios de legalidade, como a vedação das provas ilícitas.
Desta feita, a verdade buscada é aquela que esteja em consonância com as garantias atinentes ao acusado, sobretudo a da presunção de inocência. Nesse sentido, nenhum procedimento poderá buscar uma verdade que vá além do legítimo para condenar ou absolver o acusado.
Na busca por esse desiderato, o procedimento processual convencional não está imune a erros e abusos na persecução penal. Não é à toa que existem institutos como a revisão criminal, prevista no art. 621 do Código de Processo Penal, possibilitando uma revisão da sentença condenatória em casos específicos.
Com base no exposto, o consenso nas sentenças criminais está totalmente vinculado com a verdade processualmente aceita, buscando a condenação daqueles que são culpados de fato, preservando a jurisdição, na medida em que evita a vingança de cunho privado do ofendido e a impunidade do acusado, tão frequentes no procedimento ordinário.[24]
De todo o exposto, infere-se que a justiça penal negociada não surgiu no cenário jurídico processual com objetivos de violar garantias processuais penais, mas de adequar o sistema processual penal vigente as novas feições da criminalidade e complexidade das relações entre os indivíduos, flexibilizando certas garantias negativas em prol de garantias positivas, sem que com isso haja desequilíbrios ou ofensas a Constituição Federal[25]. De tal sorte, não podemos deixar de citar que o modelo SG proposto por Luigi Ferrajoli é idealista, não se habilita a existir de modo puro e imaculado, que deve ser relido nas atuais estruturas de negociação criminal, sem, contudo, ser esquecido.[26]
Nesse viés, importante destacarmos os avanços na legislação brasileira no sentido de mecanismos de consenso, sobretudo por meio das colaborações premiadas, como passaremos a expor.
3. A COLABORAÇÃO PREMIADA COMO INSTRUMENTO DE RESOLUÇÃO NEGOCIADA DO CONFLITO NO BRASIL
Não é de hoje que o Brasil envereda nos caminhos do consenso, rompendo com a estrutura tradicional punitiva. À exemplo desse avanço, podemos citar a lei 9.099/95, que implementou os Juizados Especiais, e consequentemente, institutos como a transação penal e a suspensão condicional do processo.[27]
Com o advento da Lei 12.850/13 a colaboração premiada inaugura uma espécie de acordo no diploma legal pátrio, representando uma conduta de cooperação por parte daquele que é investigado ou processado na esfera criminal.
Assim, sob a ótica do garantismo de Ferrajoli, tido como um sistema ideal de garantias penais é imprescindível analisarmos que a colaboração se apresenta como um mecanismo alternativo, somatório no colhimento de provas, considerada essencial para aferir a culpabilidade no processo penal.
Desta feita, o colaborador firma um acordo com o órgão acusatório ou autoridade policial, para fins de colaboração na investigação criminal ou na persecução processual, adquirindo em troca uma série de benefícios. Para obter tais “prêmios”, a lei exige do acusado ou processado uma série de condições, como a efetiva colaboração para a investigação ou processo. Assim, na feitura do acordo, que pode ser feito com a autoridade policial o com o Ministério Público, o investigado ou réu poderá gozar de uma redução de pena, perdão judicial e, até mesmo, a possibilidade de não oferecimento da denúncia por parte do órgão acusatório.
O discurso de que a delação premiada é um instituto eticamente reprovável, espúrio e imoral é comum entre seus opositores, de modo que o Direito não pode fomentar comportamentos baseados na traição. Entretanto, julgamentos nesse sentido devem ser refutados, pois a colaboração premiada é um instrumento que pode levar a resolução, e até mesmo, a prevenção de novos delitos. Nesse caminho, a obrigação do acusado colaborador é para com a sociedade, existindo o dever de auxiliar na elucidação do crime, e consequentemente um direito de interesse da coletividade, coadunando-se com uma visão integral do garantismo.[28]
Em adição, a colaboração premiada é uma tendência mundial, sobretudo no combate as organizações criminosas, sendo uma técnica especial de investigação utilizada há anos por vários países, com o objetivo de enfrentar os crimes de maior complexidade, notadamente de viés transnacional.[29]
Diferente de institutos como a confissão e a delação premiada, a colaboração premiada prevê um acordo escrito entre as partes envolvidas, trazendo maior segurança ao colaborar, além das hipóteses de validade e invalidade do acordo.[30]
Levando como pressuposto o SG de Ferrajoli, é imperioso enfrentarmos a colaboração como um mecanismo essencial no combate a atual criminalidade, sem, contudo, violar garantias processuais constitucionalmente adquiridas, mas apenas flexibilizá-las em prol de outras constitucionalmente entendidas. Nesse sentido, o Estado, além de garantir a proteção do indivíduo, tem o dever de proteger e efetivar a tutela jurisdicional de modo satisfatório, assegurando, inclusive, a efetividade do seu exclusivo poder-dever de punir.[31]
Fica-se então demonstrado que a colaboração premiada constitui um novo passo na política criminal de enfrentamento da macrocriminalidade representando um verdadeiro influxo á necessidade de eficiência na persecução penal,[32]cujo conteúdo deve trazer novos elementos que possibilitem uma investigação eficiente, sem que haja a deturpação de direitos e garantias e abusos pelos agentes envolvidos.
CONCLUSÕES
Procuramos com o presente trabalho demonstrar que a tendência crescente de aplicação de uma justiça penal negociada no âmbito processual criminal brasileiro, arraigada por uma maior racionalidade e eficiência na solução dos litígios penais, não consubstancia uma violação a um sistema processual de garantias.
A teoria garantista, estruturada sob a égide de dez axiomas penais e processuais penais, é um modelo ideal do qual devemos nos aproximar. Assim, a Constituição Federal de 1988 e o Código Processual Penal abraçaram uma gama de direitos e garantias fundamentais positivos e negativos que devem ser perquiridos em sua integralidade, estruturando o sistema processual penal de modo a compatibilizar novos mecanismos de persecução, sem, contudo, violar preceitos constitucionalmente adquiridos.
A negociação de sentença criminal, assim, é uma tendência racional de ponderação dos direitos e garantias processuais fundamentais em favor do próprio arguido, viabilizando um método alternativo e não substituto de solução da contenda penal.
De modo análogo, fica demonstrado a adequação, a necessidade, a proporcionalidade a legitimidade e a constitucionalidade do instituto da colaboração premiada no ordenamento jurídico brasileiro, inexiste qualquer mácula na inclusão do consenso no âmbito penal em confronto com as garantias processuais estabelecidas ao arguido.
Informações Sobre o Autor
Erica Montenegro Alves Barroso
Mestranda em Direito Constitucional e Pós- Graduada em Direito e Processo Penal na Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Advogada