Resumo: O conceito de transexual se refere aos indivíduos que não aceitam o seu gênero, havendo um descompasso entre o seu sexo biológico e o psicológico. O presente trabalho tem por objetivo analisar a discussão envolvendo o nome da pessoa transexual e a alteração do registro público, considerando o nome como uma forma de designação social e fator de proteção à dignidade da pessoa humana. Utilizou-se o método de abordagem indutivo e bem como o método de pesquisa monográfico. Analisa-se o teor das jurisprudências e os condicionamentos impostos à alteração, com destaque à Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4275. Ressalta-se que a adequação da aparência física do transexual ao seu gênero nem sempre é obtida por meio da cirurgia de transgenitalização, visto que esse processo de adequação também pode se dar por meio do uso de hormônios e outras intervenções somáticas a depender da realidade e necessidade de cada indivíduo. Após a realização do estudo, conclui-se que se trata de tema de relevância social e que a decisão da Suprema Corte sedimentou seu entendimento com valorização da dignidade da pessoa humana.[1]¹
Palavras-chaves: Transexualidade. Nome. Gênero. Dignidade.
Abstract: The concept of transsexual refers to individuals who do not accept their gender in a way that there is a mismatch between their biological and psychological sex. The present work aims to analyze the discussion involving the name of the transgender person and the modifying the public registry, regarding the name as a form of social designation and a protection factor for human dignity. As an approach, it was used the inductive method, as well as the monographic research. The contents of the case-laws and the conditions imposed to the name switching are analyzed, notably the Direct Unconstitutionality Lawsuit, case 4275. It is emphasized that the adequacy of the transgender physical appearance to its gender is not always achieved by means of sex reassignment surgery, bearing in mind that this adequacy process can also happen through the use of hormone and other somatic interventions, depending on the realities and needs of each individual. After the study, it is concluded that it involves a subject of social relevance and that the Supreme Court judgment reinforced its opinion concerning the value of the human dignity.
Keywords: Transsexuality. Name. Gender. Dignity.
Sumário: Introdução. 1. Noções Introdutórias Sobre a Transexualidade. 2. Readequação de Gênero: Cirurgia de Transgenitalização e Propostas Terapêuticas. 3. Princípio da imutabilidade Relativa do Nome: Possibilidade de Alteração do Prenome por Pessoas Transexuais. 4. A Dignidade da Pessoa Humana e a Inexigibilidade da Cirurgia de Redesignação Sexual. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.
Introdução
O presente estudo tem por escopo apresentar a possibilidade de alteração do nome e retificação de gênero sem o procedimento cirúrgico de redesignação sexual, no qual se pretende analisar a extensão e repercussão desses direitos na vida dos indivíduos transgêneros sob a ótica da dignidade da pessoa humana e do direito ao nome.
De acordo com Bento (2008), a estrutura social divide a sexualidade apenas em homem e mulher. No entanto, há uma grande diversidade no tocante a esse assunto. Tratando-se, aqui, especificamente sobre a transexualidade e em seu aspecto que diz respeito à mudança do nome e gênero no registro civil para aqueles que não realizaram a cirurgia de redesignação sexual.
A pessoa transexual é aquela que não se reconhece de forma correspondente ao seu sexo biológico, sendo o homem transexual aquele que nasceu com a genitália feminina, mas não se identifica com ela e a mulher transexual, aquela que nasceu com a genitália masculina, mas, igualmente, não se identifica com esta. (BENTO, 2008)
Noutro giro, tem-se que o nome é o sinal que individualiza cada pessoa civil na sociedade, sendo considerado direito da personalidade. Tal entendimento é previsto no Código Civil de 2002, que elenca o nome civil, no capítulo reservado aos direitos da personalidade. (BRASIL, 2002).
O registro civil consta o nome e o gênero do indivíduo, os quais são determinados pelo sexo biológico. Assim, no caso do transexual, seu nome e gênero não estão adequados a forma na qual se identifica, como reconhece a si mesmo, tornando-se imperiosa uma adequação do registro civil com a realidade vivida pelo transexual.
Giza-se na pesquisa apresentada a extensão da Lei de Registros Públicos, Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 na matéria em questão e a relevância de verificar a seguridade do direito ao nome. Posto que, em regra, conforme o artigo 57 da referida Lei, o nome não pode ser alterado, sendo admitida a alteração apenas como exceção e após decisão judicial.
A alteração do nome e gênero no registro civil na hipótese de transexuais que ainda não realizaram a cirurgia de redesignação sexual sempre causou dissenso na jurisprudência. Visto que, nem sempre o procedimento cirúrgico é a terapia adequada ao transgênero e a não mudança do nome e gênero no registro civil dos transexuais pode gerar situações vexatórias e constrangedoras a estes, violando direitos fundamentais garantidos a todos os indivíduos, como a dignidade da pessoa humana. Sendo que, somente, com a recente decisão sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4275, julgada em 01 de março de 2018, abriu-se a possibilidade de que os indivíduos transexuais tenham seus direitos tutelados, ao dar interpretação conforme a Constituição Federativa do Brasil de 1988 e o Pacto de São José da Costa Rica ao art. 58 da Lei nº 6.015/73.
Pelo o exposto, justifica-se o estudo de forma a contemplar o direito de gênero, do qual emerge do sexo psicológico e do autorreconhecimento de cada indivíduo perante a sua realidade fática. Desconstruindo a ideia de que, a identidade de gênero está condicionada a situação anatômica, ao diferenciar os conceitos de sexo biológico, gênero e sexo psicológico.
Nesse sentido, o presente artigo, utilizando o método qualitativo de pesquisa através das técnicas de pesquisa documental e bibliográfica, primeiramente, analisará a transexualidade e as formas de adequação ao sexo psicológico, em seguida os aspectos relacionados ao direito ao nome, como elemento tutelado pelos direitos da personalidade e por fim o estudo sobre alteração do nome e registro civil sem a redesignação sexual e as repercussões desse tema com a ADI n.º 4275 de 2009. Dessa forma o artigo é dividido em: Introdução, Referencial teórico, Considerações finais e Referências.
O presente trabalho tem por objetivo apresentar o tema da transexualidade e a identidade de gênero, para discutir a possibilidade de alteração do gênero no registro público sem a realização da cirurgia de redesignação sexual.
1 Noções Introdutórias Sobre a Transexualidade
As reflexões sobre a formação do gênero compreendem, além da autoconsciência de cada pessoa sobre o seu corpo, como as repercussões e influências da sociedade. Oportunamente, para a compreensão dos capítulos seguintes, mostra-se necessária a abordagem e conceituação de identidade de gênero, sexo biológico e sexo psicológico.
Para a conceituação da identidade de gênero é necessário entender que o gênero é uma forma de determinismo social dos atributos de masculinidade e feminilidade. Desta feita, pelo o que se depreende da cartilha divulgada pelo movimento Livres & Iguais da Organização das Nações Unidas (ONU), a identidade de gênero se refere à experiência de uma pessoa com o seu próprio gênero, na qual pode se apresentar como homem, mulher, ambos ou mesmo como nenhum dos dois gêneros a partir de uma distinção sociológica. (ONU, 2007).
Entende-se sobre sexo biológico aquele definido pela combinação dos cromossomos com a genitália, ou seja, o determinado no nascimento. Enquanto o sexo psicológico, nos dizeres de Peres (2001) como resultante de “interações genéticas, fisiológicas e psicológicas que estão presentes na formação do indivíduo, e que também são responsáveis pelo comportamento e pela identificação sexual”. Desse modo o sexo psicológico, representa a percepção do indivíduo como homem ou mulher.
No que tange o objeto de estudo, o indivíduo transexual é caracterizado como aquele que se identifica um gênero diferente do sexo designado no seu nascimento. Assim dispõe Dias (2007) em a Transexualidade e o direito de casar.
“Eventual incoincidência entre o sexo aparente e o psicológico gera problemas de diversas ordens. Além de um severo conflito individual, há repercussões nas áreas médica e jurídica, pois o transexual tem a sensação de que a biologia se equivocou com ele. Ainda que o transexual reúna em seu corpo todos os atributos físicos de um dos sexos, seu psiquismo pende, irresistivelmente, ao sexo oposto. Mesmo sendo biologicamente normal, nutre um profundo inconformismo com o sexo anatômico e intenso desejo de modificá-lo, o que leva à busca de adequação da externalidade de seu corpo à sua alma”. (DIAS, 2007, pág. 01)
Para o Conselho Federal de Medicina, a transexualidade pode ser diagnosticada quando o paciente, concomitantemente possuir: a) desconforto com o sexo anatômico natural; b) desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; c) permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos; d) ausência de transtornos mentais (BRASIL, 2012-a).
Por estar presente no Manual Estatístico e Diagnóstico de Saúde Mental(DSM) e no Código Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial da Saúde (OMS), a transexualidade ainda é considerada uma doença pela medicina, tratando-se de uma disforia de gênero. Apesar desse entendimento, Tartuce (2017) afirma que existem movimentos científicos e sociais que pretendem considerar a transexualidade como condição sexual e passar a ser denominada como transexualismo.
Por oportuno, a transexualidade traz consequências na esfera jurídica, um destes reflexos diz respeito à mudança do nome e do gênero no registro civil, como bem elucida Dias (2015):
“A falta de coincidência entre o sexo anatômico e o psicológico chama-se transexualidade. É uma realidade que ainda aguarda regulamentação, pois se reflete na identidade do indivíduo e na sua inserção no contexto social. Situa-se no âmbito do direito de personalidade e do direito à intimidade, direitos que merecem destacada atenção constitucional”. (DIAS, 2015, p.127)
Diante do exposto, para continuidade da explanação sobre o assunto, é importante a análise no capítulo seguinte das possibilidades de tratamentos clínicos para a adequação do sexo biológico ao psicológico do transgênero.
2 Readequação de Gênero: Cirurgia de Transgenitalização e Propostas Terapêuticas
Premente a abordagem acerca da readequação de gênero, isto é, a adequação física da pessoa com o gênero com o qual se identifica. Essa adequação se trata de um processo, por meio do qual, o indivíduo pode ser submetido a uma intervenção cirúrgica, ao uso de hormônios e outras intervenções somáticas, a fim de lhe conferir a aparência física adequada ao seu gênero.
Em um breve histórico, a primeira intervenção corporal bem-sucedida tornada pública foi realizada em 1952, na Dinamarca, por Christian Hamburger, no ex-soldado George Jorgensen. (ÁRAN, 2006)
Nesse sentido, Arán (2006) remonta que:
“As primeiras cirurgias de transgenitalização foram realizadas por volta de 1920 na Alemanha e na Dinamarca. Tais procedimentos eram considerados como práticas de "adequação sexual", e associados ao tratamento de "pseudo-hermafroditas" e "hermafroditas verdadeiros". A primeira operação de que se tem notícia foi realizada em 1921 por Feliz Abraham, em "Rudolf", considerado o primeiro transexual redefinido. Logo em seguida, o pintor Einar Wegener, em 1923, aos 40 anos, retirou os testículos e o pênis e se tornou Lili Elbe (CASTEL, 2001, p.85). Na Dinamarca também foram realizadas outras cirurgias bem sucedidas tal como a de Robert Cowuell, aviador da Segunda Guerra Mundial, que se tornou Roberta Cowuell, ainda que sem notoriedade e divulgação (SAADEH, 2004, p.200). Somente com a intervenção praticada por Christian Hamburger, em 1952, num jovem de 28 anos chamado George Jorgensen, ex-soldado do exército americano, este procedimento veio a público”. (Ágora (Rio J.) vol.9 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2006)
No Brasil, em 1971, o médico Roberto Farina realizou uma cirurgia de transgenitalização. Na época, foi movida uma ação penal contra o cirurgião, sob a acusação da prática do crime de lesão corporal. Ao final, o médico foi condenado em primeira instância, mas absolvido em grau de recurso (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, 1976)
No entanto, as cirurgias de transgenitalização, a saber, neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários, como propostas terapêuticas aos casos de transexualismo, só passaram a ser reguladas em 1997, pela Resolução nº 1.482, do Conselho Federal de Medicina, posteriormente revogada pela Resolução nº 1.652 de 2002, que, por sua vez, foi revogada pela Resolução nº 1.955 de 2010. (ÁRAN, 2006)
Arán, Murta e Lionço (2009), explicam que o Conselho Federal de Medicina, ao teor da Resolução 1.482/1997, parte da premissa de que a transexualidade é uma doença, em razão disso estabelece o diagnóstico do transtorno da identidade de gênero como condição ao acesso à assistência médica.
A resolução do Conselho Federal de Medicina n º 1.955/2010 determina, em seu artigo 4º, que os pacientes serão selecionados com base em avaliação de equipe multidisciplinar, após dois anos de acompanhamento, com diagnóstico médico de transexualismo, e possuir mais de 21 anos (Resolução CFM n º 1.955/2010).
Tais exigências também se revelam necessárias tendo em vista que o procedimento cirúrgico se trata de intervenção altamente invasiva e de caráter irreversível. Com isso, há a necessidade de intensa assistência ao paciente. Conforme esclarece Arán, Murta e Lionço (2009), ainda aplicável com a Resolução nº 1.955/10, o procedimento assistencial é dividido em etapas:
“Em geral, o processo assistencial compreende as seguintes etapas: avaliação e acompanhamento psiquiátrico periódico para confirmação do diagnóstico; psicoterapia individual e de grupo; hormonioterapia, com o objetivo de induzir o aparecimento de caracteres sexuais secundários compatíveis com a identificação psicossexual do paciente; avaliação genética; tratamento cirúrgico. Além disso, vários desses serviços já estabelecem contato com uma assessoria jurídica, para indicação de pacientes operados no processo de mudança de nome. Vale destacar que, na transexualidade, a importância do acesso aos serviços de saúde consiste não apenas no cuidado do processo de saúde-doença, mas fundamentalmente numa estratégia de construção de si”.(ARÁN, Márcia; MURTA, Daniela; LIONÇO, Tatiana. Transexualidade e saúde pública no Brasil, Ciência & Saúde Coletiva, 14 (4):1141-1149, 2009)
Noutro giro, embora seja o principal recurso terapêutico, nem sempre a intervenção cirúrgica é o procedimento mais adequado a atender às subjetividades do transexual. Àran e Murta (2009) citam que há muitos homens transexuais que desejam uma cirurgia para modificar caracteres sexuais secundários, mas não querem realizar a cirurgia de transgenitalização.
É nesse sentido que Arán, Murta e Lionço (2009) explicam:
“A cirurgia de transgenitalização, comumente apresentada como central na demanda de transexuais, foi problematizada como solução não-consensual entre as diferentes pessoas transexuais. Existindo realidades distintas, há também necessidades distintas quanto à característica das intervenções somáticas que seriam satisfatórias para cada indivíduo. É interessante notar que a discriminação e a conotação patologizante que recai sobre transexuais foram apresentadas como central para o segmento, demandando iniciativas que primem pela humanização do atendimento e pela viabilização e qualificação do acesso dessas pessoas ao sistema de saúde”. (ARÁN, Márcia; MURTA, Daniela; LIONÇO, Tatiana. Transexualidade e saúde pública no Brasil, Ciência & Saúde Coletiva, 14 (4):1141-1149, 2009)
Inclusive, a Portaria n.º 457, de 19 de agosto de 2008, do Ministério da Saúde, dispondo acerca das Diretrizes Nacionais para o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde – SUS, em seu artigo 3º, afirma que as diretrizes devem se pautar em integral atenção e não restringir ou centralizar a terapia à cirurgia de transgenitalização. (MINISTÉRIO DA SÁUDE, 2008).
Feitas essas considerações sobre as formas de readequação de gênero da pessoa transexual, no próximo item será realizada uma análise do direito ao nome e a sua imutabilidade frente a dignidade da pessoa humana.
3 Princípio da imutabilidade Relativa do Nome: Possibilidade de Alteração do Prenome por Pessoas Transexuais
O nome é um dos direitos da personalidade mais importantes, tendo em vista que o nome é a designação pela qual a pessoa é conhecida no mundo. (DONIZETTI, 2017) Nesse sentido, Rosenvald e Farias ratificam: “O nome civil é o sinal exterior pelo qual são reconhecidas e designadas as pessoas, no seio familiar e social.” (FARIAS e ROSENVALD, 2015, p.239)
Segundo o art. 16 do Código Civil Brasileiro de 2002 (CC/02), o nome é composto pelo prenome e pelo sobrenome. O prenome é o primeiro elemento do nome e o sobrenome, também conhecido como patronímico, é o atributo familiar que decorre da ancestralidade do indivíduo.
Por seu turno, o Pacto de San Jose da Costa Rica, ratificado pelo Brasil, em seu artigo 18, estabelece que “toda pessoa tem direito a um prenome e aos nomes de seus pais ou ao de um deles. A lei deve regular a forma de assegurar a todos esse direito, mediante nomes fictícios, se for necessário”. (BRASIL, 1992).
Dessa forma, como esclarece Moraes (2000), o ordenamento jurídico brasileiro consolidou o reconhecimento do direito ao nome como um elemento da personalidade individual, não servindo apenas para identificar a pessoa, mas também, como finalidade precípua, a proteção à esfera privada e o interesse da identidade do indivíduo.
Nesse sentido, Moraes (2000, p.52) informa:
“A relevância do nome, então, não se reduz, como outrora, à designação como pertencente a determinada família. O nome hoje, conforme a doutrina de Cornu, tende a se “integrar à pessoa até se tornar o sustentáculo dos outros elementos, o anteparo da identidade da pessoa, a sede do seu amor-próprio”. Neste sentido, uma nova luz foi trazida pela Psicanálise, ao estabelecer que o nome é suporte não só da identidade social mas também da identidade subjetiva (…)”.
A referida autora ainda acrescenta que o nome não se trata apenas de um direito, sendo também um dever:
“Ele é também um dever, o dever que se tem de ser identificado socialmente, cumprindo a função de “sinal distintivo”. Aqui o que se leva em consideração é a sua função identificadora do indivíduo, não mais em relação a si mesmo, à sua personalidade e dignidade, mas em relação à comunidade em que se encontra inserido e ao Estado”. (MORAES, Maria Celina Bodin de, p.54, 2000)
Com isso, é possível inferir a íntima relação que o nome do indivíduo tem com a dignidade da pessoa humana, sendo que a boa relação existente entre o nome do indivíduo e sua identificação social é essencial para a proteção e preservação daquele princípio.
Isso porque, de acordo com Barroso (2010), o princípio da dignidade da pessoa humana é conceituado como a ideia de que o indivíduo deve ser tratado e não como um meio para realização de metas, mas como um fim em si mesmo, nos moldes do imperativo kantiano.
Noutro giro, como já exposto anteriormente, o nome compõe o rol de direitos da personalidade, os quais foram definidos pelos jusnaturalistas como sendo direitos, cuja ausência de proteção, o homem perderia a sua própria condição de humano, como explica Donizetti (2017).
Assim, o nome possui as características comuns a todos estes direitos, isto é, se reveste da intransmissibilidade, irrenunciabilidade, indisponibilidade, imprescritibilidade, além de ser absoluto.
Outra importante característica do nome diz respeito à possibilidade de sua alteração apenas em circunstâncias excepcionais, o que consagra o princípio da imutabilidade relativa. O referido princípio é extraído do artigo 58, da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, Lei de Registros Públicos, que dispõe que “o prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios”. (BRASIL, 1973).
Como bem elucida Rosenvald e Farias (2015, p. 243).
“[…] o nome será alterável, tão somente, em situações excepcionais, previstas expressamente em lei, ou por força de situações outras, igualmente excepcionais, reconhecidas por decisão judicial. A situação é justificável. É que o nome implica em registro público e, via de consequência, os registros públicos devem espelhar, ao máximo, a veracidade dos fatos da vida”. (FARIAS e ROSENVALD, 2015, p.243)
A alteração do prenome é assim medida excepcional devendo as hipóteses de alteração estarem previstas em lei, como, por exemplo, no artigo 55, parágrafo único, da Lei nº 6.015, de Registros Públicos, que autoriza a alteração em caso de prenome suscetível de expor ao ridículo os seus portadores, bem como a hipótese do artigo 58, parágrafo único, da mencionada lei, que se consubstancia na permissão para substituição pelo apelido público notório. (BRASIL, 1973)
No entanto, a despeito da importância do nome para o indivíduo, como seu identificador social e corolário da dignidade da pessoa humana, no Brasil, não existe uma lei que autorize a alteração do prenome para pessoas transexuais, embora exista um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, qual seja, o Projeto de Lei nº 5002/13.
O referido projeto dispõe sobre a identidade de gênero, e visa garantir em lei a possibilidade de retificação registral do sexo, bem como a mudança do prenome nos documentos pessoais sempre que não coincidam com a identidade de gênero autopercebida.
Diante da ausência normativa, as pessoas transexuais têm buscado perante o Poder Judiciário autorização para a mudança do nome no registro civil. Assim, a jurisprudência nacional tendia a permitir a alteração do prenome apenas para pessoas transexuais que se submeteram a cirurgia de transgenitalização.
Nesse passo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou entendimento no sentido da viabilidade de mudança do nome e do estado sexual do transexual submetido a procedimento cirúrgico de mudança sexual.
“[…] assim, tendo o recorrente se submetido à cirurgia de redesignação sexual, nos termos do acórdão recorrido, existindo, portanto, motivo apto a ensejar a alteração para a mudança de sexo no registro civil, e a fim de que os assentos sejam capazes de cumprir sua verdadeira função, qual seja, a de dar publicidade aos fatos relevantes da vida social do indivíduo, forçosa se mostra a admissibilidade da pretensão do recorrente, devendo ser alterado seu assento de nascimento a fim de que nele conste o sexo feminino, pelo qual é socialmente reconhecido. – Vetar a alteração do prenome do transexual redesignado corresponderia a mantê-lo em uma insustentável posição de angústia, incerteza e conflitos, que inegavelmente atinge a dignidade da pessoa humana assegurada pela Constituição Federal”. (STJ – REsp: 1008398 SP 2007/0273360-5, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 15/10/2009, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: –>DJe 18/11/2009)
Tal decisão se revelou de suma importância, pois autorizou a mudança do nome, condicionada à realização de cirurgia de redesignação sexual. No entanto, como já exposto, nem sempre a cirurgia é a melhor forma para o processo de adequação do transexual, de maneira que o ordenamento carecia de jurisprudência para permitir a alteração do prenome mesmo nos casos em que não houvesse o procedimento cirúrgico.
Em março de 2018, o Supremo Tribunal Federal julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4275 de 2009, na qual sedimentou o entendimento de que é possível ao transexual, que não realizou a cirurgia de redesignação sexual, alterar o nome e o gênero no registro civil sem ordem judicial, podendo ser solicitada a mudança pela via administrativa.(SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2018)
Por conseguinte, apresenta-se o embasamento jurídico, a partir do princípio da dignidade da pessoa humana para a alteração do registro civil sem a cirurgia de transgenitalização.
4 A Dignidade da Pessoa Humana e a Inexigibilidade da Cirurgia de Redesignação Sexual
A transexualidade vem suscitando discussões com meio acadêmico, jurídico e medico sobre a sua delimitação e definição. Indaga-se, inicialmente, se a cirurgia de redesignação sexual, estudada anteriormente, é um procedimento terapêutico obrigatório condicionante para caracterização da transexualidade.
Como já explicitado e nas palavras de Vieira (2003) apud Levi (2014), a transexualidade é uma “convicção absoluta de uma pessoa, de sexo fisicamente determinado ao nascer, de pertencer psicologicamente ao outro”. A medicina considera a transexualidade um distúrbio, por portar desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação ou autoextermínio. Dito isso, a cirurgia de adequação de sexo é uma das formas de tratamento para a adequação do sexo biológico ao psicológico percebido pelos indivíduos transexuais.
Como preleciona Dias (2016), a identidade do indivíduo e sua inserção no meio social são garantias constitucionais que situam-se no âmbito do direito de personalidade e do direito à intimidade. Apesar da identificação do indivíduo ser feita no momento do nascimento, por meio do critério anatômico, a aparência externa não é a única circunstância para a atribuição da identidade sexual. Segundo a supracitada autora “quando existe divergência entre a identidade civil e a identidade sexual, deve espelhar a identidade social”.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em sua Opinião Consultiva 24, considerou que a orientação sexual e a identidade de gênero são direitos protegidos pelo Pacto de San Jose, e que estão vinculadas às garantias de liberdade e de autodeterminação. Sendo que o nome e a menção a sexo nos documentos de registro de acordo com a identidade de gênero são garantias protegidas pela Convenção Americana de Direitos Humanos. Dessa forma, os Estados parte da OEA estão obrigados a reconhecer, regular e estabelecer os procedimentos adequados para o alcance dessas garantias. Como determina a Corte, a inexistência de normas internas sobre o tema não habilita os Estados membros da OEA a violarem ou restringirem direitos humanos desses grupos populacionais. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2017)
No Recurso Extraordinário 670.422 em discussão no STF (RE 670.422), no qual se questionou acórdão do TJ/RS que autorizou a mudança de nome, mas condicionou a alteração do gênero à realização de cirurgia de redesignação de sexo, o ministro Dias Toffoli, em seu voto, defendeu que “não é o sexo do indivíduo a identidade biológica, que faz a conexão do sujeito com a sociedade, mas sim a sua identidade psicológica”. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2014). No mesmo julgamento, o ministro Barroso, manifestou-se no sentido de que exigir a cirurgia de transgenitalização como condicionante para alteração no registro civil é uma violação aos direitos à integridade psicofísica, à dignidade e autonomia dos transexuais.
Sob essa égide, a identidade psicológica é aquela que dirige o comportamento do indivíduo com sua família, com a sociedade, tanto de forma privada como pública. Entende-se, assim, que a cirurgia de transgenitalização é de caráter complementar, visando a conformação das características e anatomia ao sexo psicológico.
A dispensabilidade da realização da cirurgia de transgenitalização encontra respaldo nos enunciados 42 e 43 do Conselho Nacional de Justiça (BRASIL, 2014), que dispõem, respectivamente:
“Enunciado 42 do CNJ: Quando comprovado o desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto, resultando numa incongruência entre a identidade determinada pela anatomia de nascimento e a identidade sentida, a cirurgia de transgenitalização é dispensável para a retificação de nome no registro civil”.
“Enunciado 43 do CNJ: É possível a retificação do sexo jurídico sem a realização da cirurgia de transgenitalização”.
Infere-se, então, que a realização da cirurgia de redesignação sexual sob o fundamento do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à disposição sobre o próprio corpo condiciona-se a autonomia privada do indivíduo transexual sobre as partes do seu corpo. Cabendo a este a decisão a respeito da adequação ou não ao sexo por meio do procedimento cirúrgico.
Em vista da inexistência de legislação especifica sobre o assunto, coube ao judiciário, até o julgamento da Ação de Inconstitucionalidade n.º 4275, permitir a alteração do gênero e nome no registro civil sem ou com a realização da cirurgia. Insurgindo, dessa forma, divergências de entendimento, visto que, muitas decisões indeferiam tal alteração sem a realização da cirurgia sob o fundamento de que somente após a intervenção cirúrgica mostra-se viável a realização da alteração do designativo de sexo no registro civil, em razão da repercussão social da referida alteração e em respeito aos princípios da publicidade e da veracidade dos registros públicos. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2018)
Impor ao indivíduo tal procedimento mostra-se contrária aos princípios constitucionais, especificamente, a dignidade da pessoa humana. Nos dizeres do ministro Fachin (2014), “o direito ao próprio corpo deve ser tomado em uma ampla acepção, de modo que envolve tantas ações quanto omissões, ou melhor dizendo, trata-se de poder fazer ou deixar de fazer algo com o próprio corpo, sem que haja qualquer punição pela escolha deliberada”. Nesse sentido é restrito a autonomia privada do indivíduo transexual a autodeterminação sobre a disposição do seu corpo no que concerne a realização ou não da cirurgia. Nas palavras do supracitado jurista (2014), configura constrangimento a exigibilidade da cirurgia de redesignação e uso de medicamentos para que se reconheça um direito acolhido como próprio da personalidade. Ainda na explanação do ministro Fachin (2014), esse preleciona:
“Compete atinar que a cirurgia de redesignação sexual, como toda e qualquer cirurgia, apresenta inegáveis riscos aos indivíduos, além de, por si só, ser uma cirurgia demasiadamente agressiva e invasiva. (…) Não parece adequado, dentro do ponto de vista constitucional da dignidade da pessoa humana, tornar a cirurgia condição sinequa non para a mudança de nome e sexo, pois, se assim fosse, de algum modo o sujeito sofreria uma violação a um direito. Se não aceitar realizar a cirurgia terá seu direito ao nome e identidade negados, se fizer a cirurgia para que então possa ter reconhecido seu direito ao nome e sexo, terá seu direito ao corpo agredido. Uma análise sistemática da Constituição de 1988 dá conta de demonstrar que esse escambo entre direitos não parece ser a tônica que o constituinte pretendeu dar a lei fundamental. A Constituição de 1988 surgiu como uma luz ao final de um sombrio túnel; sua essência está na garantia de todos os direitos previstos em seu texto, de modo que se faz inadmissível impor a uma parcela da sociedade que tenham que fazer uma opção entre direitos fundamentais”. (FACHIN, 2014, pág. 60)
O reflexo dessa discussão ocorreu na supracitada Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275, ajuizada pela Procuradoria Geral da República perante o Supremo Tribunal Federal, julgou procedente a ação para dar interpretação conforme a Constituição e o Pacto de São José da Costa Rica ao art. 58 da Lei nº 6.015/73, de modo a reconhecer aos transgêneros que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no registro civil. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2018)
A referida Ação Direta de Inconstitucionalidade, que teve como Relator o Ministro Marco Aurélio fundamentou-se por parte da Procuradoria Geral da República com base no direito fundamental à identidade de gênero, no princípio da dignidade da pessoa humana, no princípio da igualdade, da liberdade, da privacidade e na vedação de discriminações odiosas. Se manifestando da seguinte maneira sobre o artigo 58 da Lei nº 6.015/73.
“Se a finalidade da norma referida é proteger o indivíduo contra humilhações, constrangimentos e discriminações em razão do uso de um nome, essa mesma finalidade deve alcançar a possibilidade de troca de prenome e sexo dos transexuais. (…) impor a uma pessoa a manutenção de um nome em descompasso com a sua identidade é, a um só tempo, atentatório à sua dignidade e comprometedor de sua interlocução com terceiros, nos espaços públicos e privados”. (BRASIL, ADI nº 4275, pág 14-15)
Em seu voto, o Ministro Celso de Mello utilizou os Princípios de YOGYAKARTA como uma das razões para o deferimento da ADI nº 4275. Tais princípios, conforme sua Carta aprovada no ano de 2006 em Yogyakarta, Indonésia, dissertam sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero. O supracitado Ministro ao se referir aos Princípios de YOGYAKARTA manifestou-se do seguinte modo:
“Esse importante documento internacional – ao proclamar que toda pessoa tem o direito de ser reconhecida, em qualquer lugar, como pessoa perante a lei e que a identidade de gênero, autodefinida pelo próprio interessado, constitui parte essencial de sua personalidade e um dos aspectos básicos de sua autodeterminação, dignidade e liberdade – estabelece que “Nenhuma pessoa deverá ser forçada a se submeter a procedimentos médicos, inclusive cirurgia de mudança de sexo, esterilização ou terapia hormonal, como requisito para o reconhecimento legal de sua identidade de gênero (…)”. (BRASIL, ADI nº 4275, pág 04)
Dessa forma, impedir a interpretação extensiva do artigo 58 da Lei de Registros Públicos em relação a retificação de gênero e exigir a realização de citada cirurgia impõe à pessoa transexual despropositada discriminação, da qual vai de encontro ao direito à identidade pessoal, ou seja, o direito ao nome e gênero constantes do seu assento de nascimento condizentes com sua realidade pessoal e social, com a maneira pela qual é visto e reconhecido socialmente.
Considerações Finais
Nas considerações aventadas no presente estudo, verificou-se, que a alteração de prenome e de gênero no registro civil dos transexuais que não se submetem a cirurgia de redesignação sexual causa dissenso na jurisprudência nacional. Parte das decisões sobre o tema indeferem os pedidos de adequação do registro civil fundamentando-se na falta de interesse de agir do transexual por não desejar realizar a cirurgia,
Por negar o seu sexo biológico, identificando-se com o gênero do sexo oposto, que não condiz com seu sexo anatômico, a pessoa transexual enfrenta diversas questões de caráter social e personalíssima relacionadas ao seu registro de nascimento, visto que seu nome e sexo documentados não condizem com sua realidade pessoal. Assim, a identidade de gênero não decorre unicamente do determinismo biológico, haja vista que o gênero é uma experiência individual, que pode ou não corresponder ao sexo biológico.
Como foi explanado o indivíduo transexual busca adequar-se corporalmente ao gênero com o qual se identifica, através de terapia hormonal e intervenções cirúrgicas. Ocorre que, pode ou não manifestar o desejo de se submeter à cirurgia de transgenitalização, visto que, se faz parte da autonomia privada do indivíduo a submissão do corpo para a realização de tal procedimento.
Durante a realização do presente estudo, o julgamento da ADI nº 4275, em março de 2018, o Supremo Tribunal Federal findou com a controvérsia jurisprudencial causada por esse tema. Ao dar interpretação conforme a Constituição e o Pacto de São José da Costa Rica ao art. 58 da Lei nº 6.015/73, no que tange a alteração de prenome e gênero no registro civil mediante averbação no registro original, independentemente de cirurgia de transgenitalização demonstrou que a tutela dos direitos da personalidade por meio do direito à identidade de acordo com o seu gênero psicológico deve ser não apenas prevista no ordenamento jurídico, mas também, efetivada no seio da sociedade.
O amparo por parte do poder público sobre os direitos da personalidade à identidade e ao nome devem buscar a realização de sua representação social, qual seja, a identificação do indivíduo através da sua realidade concreta através da sua individualização.
A retificação do registro civil, como demonstrou a ADI nº 4275, não pode estar vinculada a uma cirurgia, pois diante das particularidades de cada pessoa, essa pode ser inviável seja do ponto de vista médico, financeiro ou também por existir alternativas a cirurgia, como os tratamentos hormonais.
Conclui-se, portanto, que não há como o judiciário exigir a realização da cirurgia, para tão somente depois buscarem a alteração de sua identidade sexual. Se assim ocorrer, haverá confronto direito com o direito à saúde, à intimidade, à dignidade da pessoa humana e a identidade pessoa condizente com a realidade psíquica e social dos indivíduos transexuais.
Informações Sobre os Autores
Patrícia Fernandes Veloso
Acadêmica de Direito, da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES
Laila Monique Santos Soares
Acadêmica de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES
Geicielly Gomes Trindade de Jesus
Acadêmica de Direito, da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES