Os perigos do fenômeno da deslegalização, degradação hierárquica ou delegação normativa no direito tributário

Resumo: Analisa-se a aplicação da técnica legislativa da deslegalização oriunda do Direito Administrativo, fazendo um paralelo de sua aplicação pelas Agências Reguladoras no tocante a compatibilidade e adequabilidade do instituto ao Direito Tributário.

Palavras-chaves: deslegalização, degradação hierárquica, delegação normativa.

Sumário: I – conceitos e definições; II – limites e ponderações; III – consequências lógicas e seus impactos no âmbito do Direito Tributário; IV – Conclusão;

I – CONCEITOS E DEFINIÇÕES

Leonardo Vizeu Figueiredo[1] fazendo um paralelo histórico do termo, menciona que a deslegalização é um vocábulo utilizado pela doutrina alemã que remonta a ultrapassagem de certas entidades (Agências Reguladoras) da fase de mero executor da lei, para o status de regulador.

A doutrina francesa faz uso da expressão delegação normativa, tendo em vista as peculiaridades constitucionais de competências legislativas que são partilhadas entre Executivo e Legislativo. Já em Portugal, tal fenômeno é descrito como degradação do grau hierárquico.

Elucidando melhor a questão, José dos Santos Carvalho Filho[2] leciona:

“Modernamente, contudo, em virtude da crescente complexidade das atividades técnicas da Administração, passou a aceitar-se nos sistemas normativos, originariamente na França, o fenômeno da deslegalização, pelo qual a competência para regulamentar certas matérias se transfere da lei (ou ato análogo) para outras fontes normativas por autorização do próprio legislador: a normatização sai do domínio da lei (domaine de la loi) para o domínio do ato regulamentar (domaine del´ordonannce). O fundamento não é difícil de conceber: incapaz de criar regulamentação sobre algumas matérias de alta complexidade técnica, o próprio Legislativo delega ao órgão ou à pessoa administrativa a função específica de instituí-la, valendo-se dos especialistas e técnicos que melhor podem dispor sobre tais assuntos

Não obstante, é importante ressaltar que referida delegação não é completa e integral. Ao contrário, se sujeita a limites. Ao exercê-la, o legislador reserva para si a competência para o regulamento básico, calcado nos critérios políticos e administrativos, transferindo tão somente a competência para regulamentação técnica mediante parâmetros previamente enunciados na lei. É o que no direito americano se denomima delegação com parâmetros (idelegation with standards) Daí poder afirmar-se que a delegação só pode conter discricionariedade técnica..”

Como se vê, tais termos podem ser classificados como sinônimos, resumindo-se na ideia de transferência (delegação) normativa, previstas até mesmo na própria lei, para outras entidades que não o Poder Legislativo, com a finalidade de complementação/regulação da lei.

Resta saber, quais seriam os limites de tal margem discricionária?

II – LIMITES E PONDERAÇÕES

O poder normativo tem profunda importância no Direito, tendo em vista sua função primordial de complementar a lei, porém a margem discricionária para tal permissão não é infinita, possuindo contornos bem definidos para se evitar justamente abusos e excessos, não abrangidos pela intenção do legislador nem contemplados pela lei que delegou.

Analisando detalhadamente o fenomenologia da deslegalização, em todos os planos (existência, validade e eficácia) o único instrumento adequado e competente para inovar o ordenamento jurídico sempre será a lei.

A deslegalização atua no plano da efetividade/aplicabilidade, permitindo, unicamente, a complementação de lacunas da própria lei, sendo-lhe defeso modificar, suspender, suprimir, revogar, nem tampouco estipular novas disposições.

Nesse sentido se posiciona Robertônio Santos Pessoa[3], defendendo que o Poder Regulamentar da Administração Pública deve se ater a operacionalizar a lei, sem exercer maiores funções normativas de matérias técnicas.

Sobre o tema Leonardo Vizeu Figueiredo destaca:

“Perfazendo-se um estudo da deslegalização por meio da teoria da norma, fácil perceber que o mesmo opera efeitos, tão somente, no campo de aplicabilidade, que se trata da delimitação do campo de efeitos da norma jurídica. Isto é, o veículo de existência, validade, eficácia e efetividade continua sendo a lei stricto sensu, ato exclusivo do Poder Constitutivo Legislativo. Todavia, no que se refere à aplicabilidade da norma, está será delimitada, no que se refere a seus aspectos técnicos e não políticos, por meio da edição de um ato normativo derivado do Poder Constituído Executivo, nos termos e limites previstos na delegação que a lei traz.”

O limite da deslegalização encontra-se na própria Constituição Federal em seu art. 5º, dispondo que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude da lei, dessa forma, a complementação da lei não pode ser livre ao ponto de inovar no próprio ordenamento jurídico, trazendo disposições que ultrapassam os próprios contornos legais.

J.J Canotilho[4] ressalta os principais limites que o tema deve enfrentar:

“Quando uma matéria tiver sido regulada por acto legislativo, o grau hierárquico desta regulamentação fica congelado e só um outro acto legislativo poderá incidir sobre a mesma matéria, interpretando, alterando, revogando ou integrando a lei anterior. Os princípios da tipicidade e da preeminência da lei justificam logicamente o princípio do congelamento do grau hierárquico: uma norma legislativa nova, substitutiva, modificativa ou revogatória de outra, deve ter uma hierarquia normativa pelo menos igual à da norma que se pretende alterar, revogar, modificar ou substituir. Este princípio não impede, rigorosamente, a possibilidade de deslegalização ou de degradação do grau hierárquico. Neste caso, uma lei, sem entrar na regulamentação da matéria, rebaixa formalmente o seu grau normativo, permitindo que essa matéria possa vir a ser modificada por regulamentos. A deslegalização encontra limites constitucionais nas matérias constitucionalmente reservadas à lei. Sempre que exista uma reserva material-constitucional de lei, a lei ou decreto-lei (e eventualmente, também, decreto legislativo) não poderão limitar-se a entregar aos regulamentos a disciplina jurídica da matéria constitucionalmente reservada à lei.”

Nesse sentido, importante são as lições de José Afonso da Silva[5] sobre a distinção conceitual dos princípios da legalidade e da reserva legal. Segundo seu entender, legalidade seria a submissão e o respeito à lei, ou a atuação dentro da esfera estabelecida pelo legislador, enquanto que o princípio da reserva legal consistiria na regulação exclusiva de certas matérias necessariamente por lei formal.

A delegação normativa faz com que se transfira a competência normativa técnica para seara administrativa infralegal, sob a escusa principal de ausência de expertise técnica de certos assuntos por parte do Legislativo para tanto.

Nessa ótica, o conhecimento técnico para regulação de certas matérias necessita de profissionais especializados, não havendo como se exigir do legislador infraconstitucional tamanha gama de saber, tendo em vista que a setorização normativa do ordenamento jurídico torna-se cada vez mais tendente a ser especialista, a fim de melhor atender as exigências da sociedade.

No âmbito tributário, o Supremo Tribunal Federal já vem se filiando a corrente da deslegalização:

“Tributário. IPI. Artigo 66 da Lei n. 7.450/1985, que autorizou o Ministro da Fazenda a fixar prazo de recolhimento do IPI, e Portaria n. 266/1988/MF, pela qual dito prazo foi fixado pela mencionada autoridade. Acórdão que teve os referidos atos inconstitucionais. Elemento do tributo em apreço que, conquanto não submetido pela constituição ao princípio da reserva legal, fora legalizado pela Lei n. 4.502/1964 e assim permaneceu até a edição da Lei n. 7.450/1985, que, no artigo 66, o deslegalizou, permitindo que sua fixação ou alteração se processasse por meio da legislação tributária (CTN, art. 160), expressão que compreende não apenas as leis, mas também os decretos e as normas complementares. (CTN, art. 96). Orientação contrariada pelo acórdão recorrido. Recurso conhecido e provido (STF. RE n. 140669/PE. Rel. Min. Ilmar Galvão, Tirbunal Pleno, 02/12/98.”

Resta saber que consequências práticas essa corrente que vem se filiando o STF pode ocasionar no âmbito do Direito Tributário?

Assim como as Agências Reguladoras, dotadas da função de regular determinadas disposições, seria compatível e adequado que as Secretarias e Procuradorias da Fazenda pudessem, inclusive, ultrapassar a margem de discricionariedade para além dos limites autorizados como defendem alguns doutrinadores?

III – CONSEQUÊNCIAS LÓGICAS E SEUS IMPACTOS NO ÂMBITO DO DIREITO TRIBUTÁRIO

O fenômeno da deslegalização vem se tornando uma prática rotineira pelas entidades da Administração Pública, como por exemplo, as Agências Reguladoras, principalmente pelas próprias Secretarias e Procuradorias por parte da Fazenda.

Como se viu, a deslegalização pode ser definida como a transferência do conteúdo normativo técnico da norma, para ato infralegal. A norma terá eficácia limitada, só ganhando aplicabilidade com a edição do ato normativo técnico.

É salutar ter em mente que a técnica legislativa da deslegalização só poderá ser usada para as matérias que não se encontram, constitucionalmente, sob a incidência do princípio da estrita reserva legal, como é o caso do Direito Tributário.

Tendo em vista que o “poder de tributar, envolver o poder de destruir”, no âmbito tributário o legislador teve o cuidado de tentar por “arestas” contra a sede arrecadatória do Estado, disciplinando um rol taxativo de hipóteses normativas e regras legais onde o contribuinte poderá ter seu patrimônio constrangido ao ônus da imposição e majoração da carga tributária.

A delegação normativa no viés do Direito Administrativo é algo não apenas plenamente permitido às Agências Reguladoras pela jurisprudência, como também incentivado pela doutrina majoritária, tendo em vista a ausência de capacidade técnica do Legislativo para tanto.

Em que pese, corrente considerável vir a defender que o exercício do poder regulamentar por parte das Agências Reguladoras não deve se abster ao mero complemento da lei, mas sim na efetiva criação de normas técnicas não contidas na lei, proporcionando, em consequência, inovação no ordenamento jurídico, tal situação encontra-se em disparidade quando realizada pela Administração Tributária.

O abismo se mostra ainda mais evidente quando se conhece o conceito das Agências Reguladoras, que são autarquias sob o regime especial integrantes da Administração Pública indireta, vinculadas ao Ministério competente para o trato da respectiva atividade, tão somente para fins organizacionais, sendo caracterizada pela sua independência política, autonomia administrativa e financeira, onde devem permanecer impermeáveis às pressões políticas que possam vir a ser exercidas pelo governo.

Tal autonomia é condição ímpar para o correto funcionamento das mesmas e consecução de seus objetivos institucionais, ou seja, não há, portanto, relação de subordinação entra a Agência Reguladora e o Governo Central.

Dessa forma, são definidas como entidades politicamente neutras e imparciais, de setores de mercados específicos, estabilizando o convício de interesses políticos, coletivos e privados.

Seu diferencial se deve aos seguintes fatos: i) conhecimento técnico especializado sobre o setor regulado para fins de excelência das políticas estatais concebidas; ii) independência, garantido que não sofram influências externas e estranhas de suas funções, dando base a imparcialidade e neutralidade no exercício dos poderes regulatórios.

No tocante a independência, divide-se em independência orgânica (autonomia política em relação à estrutura do Governo Central, fato que se configura na impossibilidade de revisão de seus atos reguladores por qualquer outro órgão ou entidade da Administração Pública, salvo Judiciário) e administrativa (instrumentos econômicos e financeiros que permitem o devido exercício de suas atividades, sem precisar socorrer-se ao Governo Central, tendo liberdade de gestão, no sentido de arrecadar receitas próprias e organizar suas despesas, sem ingerência do Executivo, ficando tão somente sujeitas ao controle do Legislativo, via Tribunal de Contas).

Após esse breve aprofundamento no Direito Administrativo, percebe-se que tais definições estão ausentes em se tratando das Secretarias e Procuradorias da Fazenda, órgãos totalmente parciais, que ao se debruçarem no poder regulamentar, não raro das vezes, exorbitam seus limites, pugnando pelo benefício do Ente político em detrimento do mero poder complementar, pautado na imparcialidade e neutralidade.

Para fins de melhor elucidação dos perigos do fenômeno da deslegalização no âmbito tributário, destaca-se a Portaria nº 33/2018 da PGFN, portaria essa que “regulamenta” o bloqueio de bens sem autorização judicial.

A lei que embasa a portaria permite que a Administração Pública realize a restrição de bens administrativos, sem a interposição de um processo judicial, recebendo diversas críticas por ofensas ao devido processo legal, ausência de contraditório e ampla-defesa, tendo já sido ajuizada 3 ações no STF.

Focando na aludida portaria, a PGFN estipula que após inscrito o débito em dívida ativa da União, o devedor deverá ser notificado para pagar o débito, à vista ou parcelado, em até 5 dias. Além disso, o devedor tem 10 dias para ofertas uma garantia em execução fiscal ou apresentar pedido de revisão.

Caso o contribuinte não adote nenhuma dessas alternativas no devido prazo, a portaria estipula uma série de sanções políticas, como envio da CDA para protesto, representação nos bancos, cadastros de proteção ao crédito, averbar por meio eletrônico a indisponibilidade de bens do particular, suprimir benefícios fiscais e impedir de receber financiamento público.

A lei já era alvo de severas críticas, agora, a portaria 33/2018 da PGFN também entrou na mira, tendo em vista que extrapola o poder regulamentar e cria ônus e sanções políticas aos contribuintes

Como se pôde perceber, tais instituições tendem a adotar posturas parciais, o que macula e torna eivada de vícios a delegação normativa, tendo em vista a ausência de imparcialidade e neutralidade nas suas disposições.

No âmbito tributário, diferente dos outros ramos do Direito, existe uma severa preocupação no tocante ao princípio da reserva legal, consubstanciada no princípio da estrita legalidade formal.

Não é por outra razão que o legislador constituinte quis separar um título especificamente para tratar do sistema tributário nacional, dispondo uma seção unicamente para dispor sobre a limitação do poder de tributar, elencando no art. 150, I,  que é vedado aumentar ou exigir tributo sem lei que o estabeleça, repetido no art. 5º da CF, art. 3º do CTN e art. 97 do CTN.

Percebe-se dessa forma, a cautela que teve no trabalho de criação da Constituição quanto do CTN, no árduo intuito de impor limites, arestas, obstáculos a insaciável atividade arrecadatória por parte do Estado.

O fenômeno da deslegalização, portanto, não só é incompatível com a seara tributária tendo em vista sua obediência ao princípio da legalidade formal restrita como estrita reserva legal, como também mostra-se inadequado a utilização do instituto pela ausência de neutralidade e imparcialidade por parte dos órgãos da Administração Tributária no intuito de regular as disposições conforme a real interpretação teleológica do legislador, no intuito de meramente suprir as lacunas de sua incapacidade técnica é incapaz de regular, sem contudo modificar, suprimir, revogar nem inovar no ordenamento jurídico.

IV – CONCLUSÃO

Esse artigo procurou discorrer, sem, contudo pretender esgotar o tema, dos perigos da fenomenologia da deslegalização, também chamada de degradação hierárquica ou delegação normativa e seus efeitos no Direito Tributário.

Definiu-se que deslegalização é uma técnica por meio qual a própria lei transfere a capacidade de regulação normativa para outras entidades que não o Poder Legislativo, tendo em vista sua incapacidade de discorrer sobre determinadas matérias de alta complexidade técnica, delegando assim a função específica de instituí-la para regulamentação, notadamente tendo como principal exemplo as Agências Reguladoras.

Tal delegação normativa não pode ser geral e irrestrita, encontrando-se óbice nos próprios limites formais do processo legislativo e materiais, a depender do ramo do Direito.

A atividade de regulamentação infralegal encontra limites no poder regulamentar, devendo se limitar meramente a complementar as lacunas da lei, sendo vedado, portanto, modificar, suspender, suprimir, revogar ou inovar no ordenamento jurídico.

Mostrou-se que o STF vem se filiando a corrente da deslegalização no âmbito tributário, porém, tal técnica seria incompatível de se conciliar com a obediência do princípio da restrita Legalidade cumulada com o princípio da Reserva Legal, necessitando de lei em sentido formal para tanto, funcionando como uma garantia expressamente prevista pelo legislador constitucional como mecanismos de defesa contra as arbitrariedades do Estado Fiscal.

Ademais, se mostraria inadequada tendo em vista a ausência de imparcialidade e neutralidade por parte da Administração Tributária na atividade regulamentária, indo não raro das vezes para além da mera complementação das lacunas, agindo verdadeiramente no intuito de inovar o ordenamento no jurídico em prol de seus próprios interesses, extrapolando assim seu poder regulamentar de forma rotineira, citando-se como exemplo a recente Portaria nº 33/2018 da PGFN.

 

Referências
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4. Ed. Coimbra: Almedina, 2000.
Figueiredo, Leonardo Vizeu. Lições de Direito Econômico, 9ª ed, Rio de Janeiro, Forense, 2016.
José dos Santos Carvalho Filho, Manual de Direito Administrativo, 9ª ed, Rio de Janeiro, Lumen Juris.
Pessoa, Robertônio Santos. Adminsitração e regulação. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19 ed. São Paulo, Mlaheiros Editores, 2000.
 
Notas
[1] Figueiredo, Leonardo Vizeu. Lições de Direito Econômico, 9ª ed, Rio de Janeiro, Forense, 2016.

[2] José dos Santos Carvalho Filho, Manual de Direito Administrativo, 9ª ed, Rio de Janeiro, Lumen Juris. P.39.

[3] Pessoa, Robertônio Santos. Adminsitração e regulação. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

[4] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4. Ed. Coimbra: Almedina, 2000, P.837.

[5] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19 ed. São Paulo, Mlaheiros Editores, 2000. P,425.


Informações Sobre o Autor

Filipe Reis Caldas

Advogado Tributarista. Pós-Graduado em Direito Público pela FACESF. Pós-Graduando em Direito Tributário pelo IBET. Membro da Comissão de Assuntos Tributários da OAB/PE.


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